SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 37
Alquimia em Thomas Mann
Uma análise simbólica de A Montanha Mágica
Roberto Nicolato4
Introdução
Não é novidade o fato de que a obra A Montanha Mágica1,
de Thomas Mann, comporta reflexões e diálogos com as mais
diferentes civilizações e pressupostos filosóficos. Trata-
se de uma narrativa que sob a perspectiva de acontecimentos
4Roberto Nicolato é professor do curso de Jornalismo do Uninter em
Curitiba; mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade
Federal do Paraná.
1 MANN, Thomas. A Montanha Mágica.2.ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000.
do presente volta o olhar para o passado, focalizando
desde o espírito das civilizações primitivas, passando pela
visão imagética e obscurantista da Idade Média até a
concepção humanista sustentada pelos ideais de progresso e
democracia que permeiam o século XIX e início do século XX.
As diferentes vozes acabam por formular uma espécie de
“caixa de ressonância” na figura do herói Hans Castorp, um
herói em formação que a exemplo de um neófito terá de
enfrentar vários obstáculos para atingir o conhecimento, a
experiência e a sabedoria, como ocorre nos rituais de
iniciação das sociedades primitivas e nas etapas da grande
obra alquímica.
O personagem-protagonista vai funcionar como um
catalizador de pensamentos antagônicos e difusos, que
permeiam a cultura ocidental nas vozes do humanista
Setembrini, em confronto com o obscurantismo medieval de
Nafta e o universo oriental e mítico, representado pelas
figuras de Peeperkorn e Clawdia Chauchat.
O tempo presente vai estar refletido nas imagens e
pensamentos de outras épocas e civilizações, nos quais nos
são oferecidos elementos para situá-lo à luz de novas
interpretações. As reflexões sobre corpo e espírito,
oriente e ocidente, ciência e religiões (primitivas,
católica ou protestante) estão presentes em toda a obra.
São níveis de compreensão bastante amplos, complexos e
que exigem análises pontuais. De outro modo, nossa
pretensão é realizar uma leitura de A Montanha Mágica sob o
ponto de vista da alquimia e da ciência das religiões, numa
abordagem que se pretende não reducionista e que tampouco
ofereça uma visão abrangente que dê conta de abarcar o que
está contido no livro - esforço que se traduz humanamente
impossível.
Por isso, fizemos a opção por um recorte que contemple
a análise de aspectos simbólicos - sem desprezar a certeza
de que a Montanha Mágica traz complexidades de outra monta
-, ciente de que é possível promover uma leitura um tanto
específica e pontual daqueles níveis de diálogo prontamente
identificáveis com os preceitos da tradição alquímica que
surgiu nos primórdios da civilização e, afora as
experiências no campo da química propriamente dita, se
constituiu num intrincado sistema filosófico, ricamente
ilustrado pela simbologia e iconografia quando de seu
ressurgimento entre os séculos XVI e XVII.
A nossa análise recairá sobre estratos que revelem
preceitos filosóficos de culturas arcaicas em contraponto
aos mitos modernos, em páginas determinadas de A Montanha
Mágica, de aparição difusa e um pouco mais constante no
final da obra, não se constituindo elemento de primeira
grandeza sob o ponto de vista de uma leitura mais
totalizante. Mais do que um único tratado de conteúdos
específicos, A Montanha Mágica é uma obra excepcional
justamente por ser, como já foi dito, um caleidoscópio do
pensamento humano ocidental, perpassado por laivos de um
misticismo antigo, carregado de símbolos e mitos - muitos
dos quais recorrentes em sociedades arcaicas - visto a
partir de uma Europa esfacelada em suas instituições e
valores.
Se propusemos tal recorte, penso que não seria leviano
partir de uma das últimas premissas, um tanto explícita do
narrador e estampada na última página de A Montanha Mágica:
a de que a história de Hans Castorp é uma “história
hermética”. Nesta frase, estaria o narrador (em terceira
pessoa) usando apenas uma força de expressão para dar um
colorido despretensioso à experiência do protagonista? Até
que ponto esta história está contaminada pelos preceitos do
hermetismo?
Não é nenhuma novidade o fato de que alguns dos mais
importantes nomes da literatura universal mantiveram de
alguma forma diálogo explícito ou não com os mitos da
antiguidade e com a tradição ocultista e alquímica. O poeta
francês Jean-Arthur Rimbaud é um bom exemplo. Ele mantinha
contatos com um alquimista na sua cidade natal Charleville
(interior da França), e a contaminação de tal universo o
inspirou na produção do poema “Alquimia do Verbo”2.
Charles Baudelaire se inspirou no primeiro mandamento
da Tábua Esmeraldina, escrita por Hermes Trismegisto (que é
citado numa poema destinado ao leitor na abertura do livro
As Fores do Mal)3, para compor o poema “Correspondências”,
numa clara visão de que entre o universo (macrocosmo) e o
homem (microcosmo) existe uma correspondência mútua. O que
existe num, está presente no outro. Ou então por que não
citar os poemas ocultistas de Fernando Pessoa, reunidos em
livro homônimo publicado pela editora Aquariana, ou o
diálogo de T.S Eliot com as lendas do Rei Pescador?
Com Thomas Mann não foi diferente. Mann é uma autor de
conhecimentos múltiplos, um humanista que tanto sabia lidar
com o pensamento cientificista e racional quanto com as
estruturas arquetípicas da mitologia antiga. Não é por
acaso que carrega a alcunha de “mago de chumbo” da
literatura universal.
Este estudo pretende não apenas analisar o contraponto
que existe entre o pensamento racional/científico e as
reflexões acerca dos mitos primitivos e míticos, mas também
2 RIMBAUD, Jean-Arthur.Uma Temporada no Inferno & Iluminações. 2.ed.Rio
de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1982, p63-65.
3 BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985, p.99. A terceira estrofe do poema “Ao Leitor” é a seguinte: “Na
almofada do mal é Satã Trismegisto/Quem docemente nosso espírito
consola,/E o metal puro da vontade então se evola/Por obra desse sábio
que age sem ser visto”.
identificar os “espaços alquímicos”, a partir dos quais se
desenrolam veladamente ou de forma oculta algumas ações
presentes em A Montanha Mágica.
Neste cenário repleto de simbologias, inclusive
numérica, estará transitando o herói alemão Hans Castor, um
estudante de engenharia naval que sobe a montanha para
visitar o primo Joaquim no sanatório de Berghof, em Davos
(Suíça). A pretensão inicial de ali permanecer por apenas
três semanas acaba se transformando em sete anos de
profundas experiências existenciais e espirituais.
Durante os longos anos em que permanece na montanha
(símbolo da elevação espiritual e onde se dá o processo de
cura), Hans vai vivenciar a transformação de um jovem,
formado ao estilo burguês, para a de um homem que atinge um
grau maior de compreensão da vida.
A narrativa de A Montanha Mágica se encaminha para
formação da consciência do herói, após ter ele seguido uma
proposição que mais tarde - depois de o livro de Mann já
ter sido escrito - seria formulada por Mircea Eliade: a de
que o homem integral deve conhecer outras situações além de
condição histórica, como por exemplo “o estado de sonho, ou
de devaneio, ou o de melancolia o do desprendimento, ou da
contemplação estética, ou da evasão, etc.(…)4”.
4 ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos.São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.
29.
Além de identificar esses elementos ditos “alquímicos”
é também nossa intenção nesse trabalho realizar uma análise
do processo de iniciação de Hans Castorp a partir de
pressupostos da psicologia moderna, baseados na “teoria dos
arquéticos” e do “processo de individuação”, do psicólogo
sueco, Carl G. Jung.
Gostaríamos de esclarecer ainda que este trabalho tem
a pretensão de apenas identificar e fazer algumas reflexões
e associações com os principais conceitos da ciência
hermética, não se constituindo num estudo aprofundado em
razão da extrema complexidade que exige o presente tema a
ser analisado.
O espaço sacralizado
Um dos procedimentos narrativos utilizados por Thomas
Mann em suas obras é a antecipação. Da mesma forma que em A
Morte em Veneza4, o escritor lançará mão de tal recurso em A
Montanha Mágica para compor uma trama de inúmeras
referências simbólicas, também presentes nos sonhos e nos
diálogos entre os personagens.
4 MANN, Thomas.Tônio Kroeger. A morte em Veneza.São Paulo: Abril
Cultural, 1982.
Em O Homem e seus mitos, Carl Gustav Jung5 afirma que
os arquétipos e símbolos representam a linguagem do
inconsciente que se faz comunicar com o ser humano através
dos sonhos e, diríamos, por extensão dos devaneios. Na obra
de Mann, os sonhos são por si só fonte de grandes
revelações, como pretendemos abordar mais adiante neste
ensaio.
Por enquanto, nos é bastante lembrar que as
transformações existenciais e espirituais de Hans Castorp
são antecipadas logo no início de A Montanha Mágica num
diálogo que Setembrini (defensor do pensamento humanista e
racional) mantém com o estudante de engenharia naval no
primeiro encontro no sanatório de Berghof, em Davos.
Essa passagem nos remete aos rituais de iniciação das
sociedades arcaicas e da antiguidade clássica, ilustrada na
figura de Ulisses, herói e semi-Deus da Odisséia de Homero,
que terá de superar uma série de etapas, nas quais não
apenas a força física mas também a sabedoria serão um
passaporte de retorno à terra natal e à consequente
libertação de Penélope das mãos de indignos pretendentes.
Vejam só! Então não é dos nossos. Goza boa saúde, está
aqui apenas de passagem, como Ulisses no reino das
sombras? Que audácia descer até estas profundezas,
5 JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira
onde os mortos levam uma existência irreal, desprovida
de sentido…6.
O diálogo de Setembrini com seu interlocutor demonstra
que mais do que um ambiente de cura, a montanha se instaura
no universo da magia, no espaço do sagrado. Os homens que
viviam em sociedades arcaicas escolhiam as cidades ou se
agrupavam para construir ali um local sagrado, conforme
ensina Mircea Eliade, em O Sagrado e o Profano. “A Cidade
(Urbs) se situa no meio do orbis terrarum”7
A exemplo de Setembrini – que coloca a humanidade na
condição de criaturas “que caíram muito baixo”8 - Eliade vai
recuperar o mito da queda, pois que a busca do sagrado
pelas civilizações arcaicas seria uma das maneiras do homem
retornar ao paraíso perdido, com a expulsão de Adão e Eva.
De acordo com Mircea Eliade, em seu aspecto mítico, a
montanha, assim como um árvore ou um pilar, está situada no
centro do mundo, servindo de elemento de ligação entre o
céu e a terra.
Com efeito, numerosas culturas falam-nos dessas
montanhas – míticas ou reais – situadas no centro do
mundo: é o caso de Meru, na Índia, de Haraberezaiti,
no Irã, da montanha mítica “Monte dos Países”, na
6 MANN, Thomas. A Montanha Mágica.2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000, p.81.
7 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes,
1999, p.46.
8 MANN, Thomas. A Montanha Mágica.2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000, p.82.
Mesopotâmia, de Gerizim, na Palestina, que se chamava
aliás umbigo da terra9.
É lícito observar que o próprio título da obra de
Thomas Mann A Montanha Mágica contém em si algo além da
visão cientificista, moldada nos ideais de progresso e
personificada na figura do italiano Setembrini, um dos
responsáveis pelo “aprendizado” de Hans Castorp.
Diferentemente da planície, o sanatório de Berghof é
um espaço de “isolamento contemplativo” em relação à
realidade social que se passa lá embaixo, pois ali os
personagens, mais do que agentes do processo, acompanham o
desenrolar da história universal, sem participar dela
ativamente. Como espaço da magia, está situado além do
tempo humano, pois se anuncia e realiza à margem dos fatos,
da historicidade.
Mas se os habitantes de Berghof estão pouco sujeitos
ao tempo histórico como os moradores da planície, de outro
modo eles permanecem mais vuneráveis ao desenrolar do tempo
psicológico e sobretudo místico que, na opinião de Eliade,
“é a verdadeira fonte de todo o ser e de todo acontecimento
cósmico”10.
9 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 39.
10 _.Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.58.
O personagem Hans Castor, por exemplo, vai se
conscientizar de que a montanha é um espaço sagrado no
final do quarto capítulo de A Montanha Mágica:
(…)Começara a adquirir a seus próprios olhos um quê de
intangibilidade sagrada e natural, tanto assim que a
vida lá de baixo, na baixada, vista assim de cima, se
lhe afigurava quase anormal e errada11.
Se a imagem do mundo tem um centro – toda região
habitada pelo ser humano conforme nos ensinam os mitos mais
antigos - o sagrado também se manifesta em vários outros
centros não menos significativos no Sanatório de Berghof,
caracterizados como espaços sagrados ou alquímicos, e que
também podem ser plenamente identificáveis no romance de
Thomas Mann. A começar pelo restaurante do sanatório, onde
a numerologia estabelece estreita relação entre o espaço do
cotidiano e dos afazeres domésticos com aquele que adquire
um sentido mítico e alquímico.
Durante toda a sua estada no Sanatório de Berghof,
Castorp tomará assento nas sete mesas do restaurante. A
descrição de uma das cenas sobre a relação entre os
hóspedes e o restaurante, de pronto já confere um sentido
secular de imobilidade, com a impressão do protagonista se
dando no nível da irracionalidade:
11 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro:Nova Fronteira,
2000, p.203.
Os hóspedes vinham afluindo por ambas as entradas.
Entravam também pelas portas do avarandado, que
estavam abertas. Dentro de pouco tempo, todos se
encontravam sentados em torno das sete mesas, como se
nunca se tivessem levantado. Tal era, pelo menos, a
impressão de Hans Castorp – impressão puramente
fantástica e irracional(…)12.
Na realidade, o número 7 é bastante recorrente em toda
A Montanha Mágica a exemplo do número 3. Logo no início da
obra, já nos damos conta de que Hans Castorp tem a
pretensão de permanecer por três semanas em Berghof, tempo
em que estará visitando o seu primo Joaquim. No final,
acabará permanecendo sete anos no local. Também não é
gratuito o fato de A Montanha Mágica ser estruturada em sete
capítulos (Hermes Trismegisto, considerado o pai espiritual
da alquimia, teria escrito uma obra intitulada o Livro dos
Sete Capítulos).
Na obra de Thomas Mann, não é possível dissociar o
espaço do tempo e da numerologia que podem ser explicados à
luz de alguns pressupostos da alquimia, “arte” que sempre
existiu em lugares tão distantes quanto o Próximo e o
Extremo Oriente (especialmente na China) como no Ocidente,
desde meados do último milênio a.C.
O que se sabe é que a origem da alquimia remonta ao
tempo do Egito antigo, onde era praticada pelos sacerdotes,
12 Idem, p. 105. Grifos são meus.
e que tem como fundador reconhecido Hermes Trismegisto, “o
três vezes grande Hermes”. Esse deus do antigo Egito também
é chamado pelos gregos de Thot. Trata-se de um deus que
regia as artes e as ciências sagradas.
Segundo os estudiosos dessa tradição, não existem
documentos referentes à primeira civilização egípcia,
levando nos a crer que os conhecimentos alquímicos se
sobreviveram graças à transmissão oral.
“Assim sendo, é perfeitamente natural que o chamado Corpus
Hermeticum, o qual abarca todos os textos atribuídos a
Hermes-Thot, tenha chegado até nós em língua grega e
redigido num estilo mais ou menos platônico”12.
Um dos textos mais representantivos do chamado Corpus
Hermeticum é a Tábua Esmeraldina composta de 12
mandamentos, dos quais o primeiro instaura a teoria das
correspondências: “Na verdade, decerto e sem dúvida: Quando
se pretende obrar os milagres de uma coisa, o debaixo é
igual ao de cima e o de cima é igual ao de baixo”13.
O principal propósito da alquimia era a produção da
Pedra Filosofal, também conhecida como elixir ou tintura,
utilizada para transformar um metal inferior em ouro. Para
Carl Jung, - teórico que recuperou os pressupostos
12 BURCKHARDT, Titus. Alquimia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991,
p.21.
13 Idem, p.201.
filosóficos alquímicos para promover uma análise exaustiva
e associativa dos conteúdos simbólicos dos sonhos – jamais
foi produzida “uma tintura ou ouro artificial durante todos
esses séculos de intenso labor”14.
Aliás, Jung julgou encontrar nas imagens alquímicas a
confirmação da sua tese do “inconsciente coletivo”, assim
como nas representações míticas e arquetípicas que
constituíram o legado das civilizações antigas à
humanidade.
A alquimia entrou em declínio no quinto e sexto
séculos depois de Cristo, ficando restrita ao mundo árabe.
No entanto, essa “arte” ressurgiu com grande intensidade
nos séculos XVI e XVII nos países europeus. “Com a adoção
da ideologia grega pelo Renascimento, irrompeu no Ocidente
uma nova vaga de alquimia Bizantina”15. De acordo com Titus
Burckhardt, as obras passaram a circular na forma de
manuscritos mais ou menos secretos.
Além disso, inspirou a produção de uma rica
iconografia, demonstrada no livro Alquimia e Psicologia de
Carl Jung. Mas na medida em que o pensamento ocidental
tendia a tornar-se mais racionalista e humanista, a
14 JUNG. Carl G. Psicologia e Alquimia.2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994,
p.253.
15 BURCKHARDT, Titus. Alquimia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991,
p. 24.
alquimia entrou em decadência, contribuindo também nesse
sentido o advento da química moderna.
Retornando à composição do espaço mítico e simbólico
em A Montanha Mágica, a certa altura da narrativa o
sanatório é apresentado ao leitor sob o signo de uma
bandeira que tremula no jardim, adornada com um caduceu16,
símbolo que foi apropriado pelas ciências médicas e que
para a alquimia significava o bastão de Hermes (Mercúrio),
composto por duas serpentes enroladas em torno de um eixo,
o eixo do mundo.
Quanto à riqueza simbólica da numerologia de A
Montanha Mágica, vale ressaltar que é bastante
representativo o número 34 do quarto do protagonista Hans
Castorp. O próprio autor evidencia isso ao escolher a
expressão “Número 34”17 como um dos subtítulos do primeiro
capítulo do livro.
À luz da ciência hermética, o 3 tanto pode
representar a trindade alquímica – composta por Mercúrio,
sob a forma do deus da revelação e que corresponde a Hermes
Trismegisto, juntamente com o rei e o filho do rei – como
as três etapas principais da obra: o enegrecimento,
16 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000, p. 110.
17 Idem, p.17.
embranquecimento e enrubescimento, embora na sua origem o
processo alquímico compreendesse quatro etapas.
Em Psicologia e Alquimia, Jung diz que nas cores
mencionadas por Heráclito também era citado o amarelo
(amarelecimento),formando assim a “tetrametria da
filosofia”. Mais tarde, nos séculos XV e XVI, as cores
teriam sido reduzidas a três com o amarelo caindo em
desuso18.
De outra forma, os sete signos planetários (Sol, Lua,
Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno) são formados por
três figuras básicas: o círculo, o semicírculo e a cruz.
“Uma vez que o círculo é também o signo do Sol e o
semicírculo o da Lua, ambas as figuras podem ser
consideradas quanto imagens do disco solar e da meia-lua,
respectivamente”19.
Por sua vez, o número 4 corresponde aos quatro
elementos (terra, água, fogo e ar), que formam todas as
substâncias do universo, e mencionados pela primeira vez
pelo filósofo grego Empédocles, cerca de 450 anos antes de
cristo. Essa teoria, segundo Cherry Gilchrist em A Alquimia
e seus mistérios, também teria sido formulada por
Aristóteles (350 a.C), tendo influência na Europa até
18 JUNG, Carl G. Psicologia e Alquimia.2.ed.Petrópolis:Vozes, 1994,
p.241.
19BURCKHARDT, Titus.Alquimia.Lisboa:Publicações Dom Quixote, 1991, p.
77.
surgir a nova era da ciência, no século XVII. “Aristóteles
sustentava que cada elemento era composto de duas
qualidades, existindo ao todo quatro qualidades: quente,
seco, úmido e frio”20. O éter, no qual os quatro elementos
(terra, água, fogo e ar) se acham presentes, representa a
quintessência.
É interessante observar que o somatório de 3 e 4
resulta no número 7, e que os sete planetas são
correspondentes aos seguintes metais no universo da
alquimia: Sol/ouro, Lua/prata, Mercúrio/mercúrio,
Vênus/cobre, Marte/ferro, Júpiter/estanho e Saturno/chumbo.
A simbologia do sete (total de integrantes do grupo
liderado por Peeperkorn que faz uma excursão à cachoeira)
também nos remete aos sete andares que representavam os
sete céus planetários – nos Mistérios de Mitra cada degrau
é feito de um metal diferente -, através dos quais o
sacerdote ascendia ao cume do universo.
No livro Psicologia e Alquimia, uma das ilustrações21
nos revela a “Montanha dos Adeptos”, ou o templo dos
sábios, iluminado pelo sol e pela lua e que se ergue sobre
os sete patamares. O templo fica oculto na montanha, alusão
20 GILCHRIST, Cherry. A alquimia e seus mistérios.2.ed.São Paulo:
IBRASA, 1993, p.32.
21 JUNG, Carl. G. Psicologia e Alquimia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994,
p.207.
ao fato de a pedra do filósofo encontrar-se dentro da
terra, de onde deve ser extraída e purificada.
Em A Montanha Mágica, o espaço alquímico ainda pode
ser identificado na “caverna analítica” do dr. Krokowski
que aparece nos sonhos de Castorp como o “dissecador de
almas”22, ou aquele que celebra a iluminação do inconsciente
e, cujas palestras proferidas para os internos do
sanatório, vão ganhar contornos cada vez mais “misteriosos”
no decorrer da história.
A certa altura da narrativa, as conversas reservadas
entre o herói Hans Castorp e o dr. Krokowski vão atrair a
curiosidade de Joaquim. O narrador traça algumas
conjecturas a respeito dos assuntos tratados, que tanto
pode ser a doença como forma desonrosa da vida, como de
degeneração desonrosa do imaterial, como entendia Hans, ou
sobre o amor como fator patogênico, então um dos temas da
conferência do médico.
Entretanto, mais do que esclarecer o leitor, a
narrativa encobre com uma cortina de mistério outra
descoberta feita por Joachim da relação um tanto estranha
de Hans para com Krokowski: “Em compensação, porém, fizera
Joachim outra descoberta, justamente a que ele julgava uma
traição da parte de Hans Castrop”. Neste caso específico,
22 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000, p.127
Joachim tratava justamente das visitas, também
desconhecidas, que o primo fazia ao médico:
E quando ressoou do calabouço o barítono do dono do
gabinete, dizendo “Entre!”, com um estalo exótico do
“r” e com um som desfigurado das vogais, Joachim viu
como primo desaparecia na penumbra da caverna
analítica do dr. Krokowski23.
Na narrativa de Thomas Mann não há alusão de que esses
encontros entre Hans e o médico tenham algum carácter de
conhecimento alquímico ou místico, embora simbolicamente a
iniciação consista na morte e ressurreição do neófito, ou
em outras palavras, na descida aos infernos (caverna),
seguida da ascensão ao ceú. É importante notar que dali em
diante as palestras do dr. Krokowski vão rumar para o
hiponotismo, sonambolismo e para as coisas ocultas,
culminando com as sessões com Ellen Brand no calabouço
analítico.
De outra forma, após esses contatos com o dr.
Krokowski Hans passará a se ocupar de estudos científicos e
a se interessar de maneira mais explícita por astrologia e
rituais de antigas civilizações, como a dos caldeus.
“Aquele velho povo de magos, de origem árabe e semítica,
sumamente versado em astrologia e profecias”24. A
23 Idem p. 501.
24 Ibidem p.505.
experiências e a busca de desses conhecimentos por parte de
Hans, no entanto, vão contar com a reprovação do primo
Joaquim.
Ainda nesse diálogo com Joachim, Hans diz ao seu
interlocutor que todo seu aprendizado poderia lhe ser útil
durante a guerra, sem perceber que ele próprio (Hans)
estaria destinado a lutar no campo de batalha após receber
alta do sanatório25. Vale ressaltar que o alquimista
necessita aspirar as alturas, de onde contempla o céu e o
mar e as criaturas, para depois voltar a terra e realizar a
grande obra26.
Ritos de passagem
O psicólogo sueco Carl Jung confere aos sonhos e às
imagens simbólicas do inconsciente grande relevância no
sentido de conhecer e entender a organização psíquica da
personalidade global de um indivíduo. Para ele, o
inconsciente não é um “quarto de despejo” dos desejos
recalcados (conforme a tese freudiana), mas um mundo de
conteúdos arquetípicos comuns a toda a humanidade e que
utilizam os sonhos como meios de comunicação.
25 Ibidem, idem p.507.
26 GILCHRIST, Cherry. A Alquimia e seus mistérios. 2.ed. São Paulo:
IBRASA, 1993, p.113.
Na sua concepção, apesar da evolução psíquica do homem
moderno, os conteúdos do inconsciente ainda se parecem com
os produtos da mente do homem primitivo. Daí a formulação
da teoria dos arquétipos - imagens psíquicas do chamado
inconsciente coletivo - que muitas vezes se relacionam com
o universo da alquimia, através da manifestação de símbolos
como o círculo, o rei e a rainha, a águia e a cruz, entre
outros.
Em sua atividade como psicólogo, Jung chegou a
analisar cerca de 80 mil sonhos, os quais, na sua
concepção, obedecem uma determinada configuração ou esquema
devido à recorrência de seus conteúdos. É o que ele chama
de processo de individuação, “pelo qual o consciente e
inconsciente do indivíduo aprendem a conhecer, respeitar e
acomodar um ao outro”27.
A grosso modo, Carl Jung entende que o sistema
psíquico comporta “um centro organizador” da psique do
indivíduo que atua como fonte das imagens oníricas – também
responsável pelo amadurecimento da personalidade - e que
ele chamou de self:
Mas este aspecto mais rico e mais total da psique
aparece, de início, apenas como uma possibilidade
inata. Pode emergir de maneira insuficiente ou então
27 JUNG. Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
desenvolver-se de modo quase completo ao longo da
nossa existência; o quanto vai evoluir depende do
desejo do ego de ouvir ou não suas mensagens28.
É o ego que ilumina o sistema inteiro, e ajuda a
realizar a totalidade da psique. Na realidade, o
amadurecimento da psique pode ser comparado, no universo da
ciência hermética, à passagem do estado bruto da primeira
matéria ao da perfeição (o ouro). Os símbolos da alquimia e
os mitos primitivos vão povoar os sonhos, muitas vezes
recorrentes, durante todo o processo de desenvolvimento
psíquico do personagem Hans Castorp em A Montanha Mágica.
Logo nos primeiros dias no sanatório, Hans terá um
sonho, recorrente em outros capítulos, e que se traduz numa
das passagens mais significativas de A Montanha Mágica. A
manifestação é uma espécie de chave para compreender o
processo de individuação e de “iniciação” do protagonista
na “arte” da alquimia.
No sonho, o herói pede emprestado um lápis para a russa Mme
Chauchat. Diz o narrador: “Ela deu-lhe uma lapiseira de
prata, que continha um lápis pintado de vermelho, gasto até
a metade, e recomendou a Hans Castorp, numa voz
agradavelmente velada que o devolvesse sem falta após a
aula”29.
28 Idem p.162.
29 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000, p. 126. Grifo meu.
Cena semelhante é descrita pelo narrador mais adiante,
num dos passeios do protagonista pelos arredores sanatório
e durante o qual a doença já começa a se manifestar. Hans é
transportado de súbito, numa espécie de devaneio, para uma
fase remota de sua vida, quando tinha apenas 13 anos de
idade, e a exemplo de Chauchat e ele vai pedir um lápis
emprestado ao companheiro de colégio, Pribslav Hippe, um
garoto estranho que entre os colegas, tem o apelido de
“Quirguiz” (povo de origem turca que habita a Rússia
asiática: “(…) tirou do bolso uma lapiseira prateada, com
um anel que se devia empurrar para cima, para que o lápis
vermelho apontasse do tubo metálico”30.
É importante notar que além da situação semelhante,
algumas características físicas de Hippe são idênticas à de
Mme Chauchat como a voz velada e rouca, as maçãs salientes
do rosto e os olhos que se perdiam “trevas misteriosas”31. A
descrição da amada de Hans, na verdade, é também a de uma
figura masculina e na própria concepção do protagonista
Hippe e Chauchat são no fundo uma mesma pessoa (como
poderemos ver um pouco mais adiante).
Conforme Jung, na alquimia, Hermes-Mercúrio, enquanto
deus ctônico da manifestação espírito de mercúrio, possuía
30 Idem p.166.
31 Ibidem p.167.
uma natureza dupla e era considerado um hermafrodita. Tanto
podia trazer a boa sorte como a perdição dos alquimistas:
Enquanto planeta Mercúrio ele é o mais próximo do sol,
o que indica também sua maior afinidade com o ouro.
Enquanto metal, o mercúrio dissolve o ouro e apaga o
seu brilho solar. Durante toda a Idade Média
constituiu o objeto misterioso da especulação dos
filósofos da natureza: ora era um espírito serviçal e
útil (paredos: literalmente, o assistente e o
companheiro) ou “familiaris” (espírito familiar); ora
era o `servus` ou o `cervus fugitivus`(o escravo ou o
cervo fugitivo), um duende que leva os alquimistas ao
desespero, evasivo, enganador e trocista,
multiplicidade de atributos que tinha em comum com o
diabo; citemos dentre eles, o dragão, o leão, a águia,
o corvo, que são os principais. Na hierarquia
alquímica dos deuses, ele é o mais baixo, como `prima
materia`, e o mais alto, como `lapis philosophorum`32.
O processo de iniciação de Hans Castorp em busca do
conhecimento supremo passa necessariamente por uma busca
interior, pelo processo de reconhecimento do verdadeiro eu,
cujos pegadas encontram-se nas imagens simbólicas que o
levam de volta à infância durante o passeio acima citado:
“(…) ao passo que o verdadeiro Hans Castorp se encontrava
32 JUNG, Carl. G. Psicologia e Alquimia.2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994,
p. 75.
longe dali, num ambiente e numa época muito distantes
(…)”33.
Como no processo de individuação, as imagens
simbólicas do inconsciente de Hans comunicadas através dos
sonhos vão ganhar “forma”, tornar-se palpável, real,
durante os festejos de Carnaval e quando do seu primeiro
encontro propriamente dito com Mme Chauchat. O Carnaval não
só recupera de alguma maneira os antigos rituais de
renovação como também coloca em suspensão as convenções no
tempo e espaço permitindo o encontro de Hans e Chauchat.
Agora, e não mais em sonho, o protogonista vai pedir-
lhe de fato um lápis emprestado para realizar um desenho
como parte de uma brincadeira que envolve os hóspedes do
Sanatório. Apesar de real, o lápis não será tão verdadeiro
quanto aquele que aparece nas imagens do inconsciente, mas
é suficiente para fechar um ciclo e provocar grande
transformações na vida de Hans Castorp:
Enquanto isso, remexia a bolsinha de couro vendo se
descobria um lápis. De sob um lenço tirou uma
minúscula lapiseira de prata, frágil e fininha, artigo
de fantasia inútil para o trabalho sério. O lápis de
outrora, o primeiro, fora diferente, mais prático e
mais autêntico34.
33 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000, p. 165.
34 Idem p. 456.
Metaforicamente, o lápis, a exemplo do opus (obra) no
processo alquímico, possibilitará uma “nova criação”, qual
seja o desenho. O objetivo do alquimista é ativar um
processo de transformação de uma primeira substância ou
prima materia (conhecida por todos, mas reconhecida apenas
pelos sábios) numa outra substância, desta vez mais de
grande valor, qual seja a pedra filosofal, tida como a
chave de todo o conhecimento.
Essa transformação também se assemelha à criação do
mundo e pode ser observada pelo alquimista no vaso
(cadinho), que se traduz numa espécie de universo em
miniatura.
Conforme observa Carl Jung em Psicologia e Alquimia,
Zózimo (que pertence ao século III) cita em seu trabalho Da
arte da interpretação uma das mais antigas autoridades da
alquimia: Ostanes, que viveu no limiar da história e já era
conhecido por Plínio. Segundo Jung, Ostanes teria dito o
seguinte:
Vai até as correnteza do Nilo e lá encontrarás uma
pedra que tem espírito. Toma-a, dividia-a e enfia tua
mão dentro dela para extrair-lhe o coração, pois sua
alma reside em seu coração35.
35 JUNG Carl. G. Psicologia e Alquimia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994,
p. 305.
Segundo Jung, esta matéria-espírito é como o mercúrio
que deve se encontrar invisivelmente dentro dos minérios e
que deve em primeiro lugar ser expulso a fim de ser
recuperado “in substantia”. “Mas assim que se possui esse
mercúrio penetrante é possível `projetá-lo` em outros
corpos, fazendo-os passar de um estado imperfeito para o
estado perfeito”36
Ainda de acordo com Jung, o opus provém de uma só
coisa, devendo retornar ao uno, sendo uma espécie de
movimento circular, a do dragão que morde a própria cauda
(Uróboro). Por isso, muitas vezes, o opus é chamado de
circulare, ou roda. Mercúrio como símbolo unificador dos
opostos é o início e o fim da obra. “É a `prima materia`, o
´caput corvi`, a `nigredo´. Como dragão, devora-se a si
mesmo e como dragão morre para ressuscitar sob a forma do
lapis”37.
De qualquer forma, a prima materia, que não é
totalmente explicitada pelos teóricos da alqumia, é
submetida a um tratamento químico e sua forma exterior
precisa ser destruída pelo fogo (morte) para que sejam
liberados os princípios masculinos e femininos e que serão
reunidos num estágio simbolicamente chamado de casamento do
36 Ibidem p. 307.
37 Ibidem, idem p. 305.
Rei(ouro) e da Rainha (prata). Essa etapa é conhecida como
“nigredo” ou enegrecimento.
Depois desse processo, a “alma” da matéria ainda
continuará no vaso e vai passar por um processo de
ressurreição, de cores iridescentes chamado de Calda do
Pavão. “A criança oriunda da união (…) se desenvolve até
“embranquecer”, indicando que o Elixir está prefeito em seu
primeiro grau”38. Trata-se de uma fase capaz de transmutar
metais em prata. A fase seguinte e final é o
enrubescimento, ou seja o avermelhar-se do elixir e a sua
transformação em ouro.
Após o encontro com Claudia Chauchat durante o
Carnaval (logo após ela deixa o sanatório), Hans Castorp
passará a se interessar por leituras científicas (botânica,
química e física) e pelos assuntos de natureza mítica.
Propositalmente ou não, o sexto capítulo começa com o
título “Transformações”39 e é justamente nele que Joachim
vai constatar as visitas de Hans à caverna analítica do dr.
Krokowski.
Além disso, um termo estranho, segundo o narrador, vai
ser utilizado para designar essa nova ocupação do seu
38 CILCHRIST, Cherry. A alquimia e seus mistérios. 2.ed.São Paulo:
IBRASA, 1993, p. 19.
39 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000, p. 470.
intelecto, e que nos remete a Mercúrio ou alquimista de
pensamentos, o deus que rege:
Chamava-a “reger”, servia-se dessa denominação de um
brinquedo pueril, palavra da sua infância, para
aplicá-la a uma distração que lhe era cara, ainda que
andasse acompanhada de terror, de vertigens, de toda
espécie de tumultos do seu coração e aumentasse o
calor que lhe abrasava o rosto40.
Com a chegada do solstício de verão (termo místico),
também é introduzido na narrativa o personagem Nafta, um
judeu jesuíta, que segundo Castorp “tem qualquer coisa de
ocultista”41. Hans passa a se interessar pelo esquisito
Nafta, que também vai funcionar como “educador” na
pedagogia-hermética vivenciada pelo protagonista, embora
não tão representativo quanto Setembrini, responsável pela
formação humanística e “racional” do herói.
Na verdade, o que está em jogo na formação de Hans são
os princípios da razão e do progresso em contraponto ao
mundo dos símbolos, mitos arcaicos e do irracionalismo.
Setembrini acredita na “confraternização geral dos povos
sob o signo da razão, da ciência e do direito”42 e chega
inclusive a pensar guerra como uma maneira de livrar a
humanidade da superstição, do sensualismo e do misticismo,
40 Idem p.532.Grifo meu.
41 Ibidem p.526.
42 Ibidem, idem p.216.
representados por Chauchat e Peeperkorn, e da misantropia
medieval de Nafta.
No decorrer da narrativa, Setembrini e Nafta vão
travar violentas discussões filosóficas, algumas delas
pontuadas por assuntos referentes ao ocultismo e a
alquimia, temas em que Nafta vai demonstrar grande
conhecimento.
A pedagogia hermética de Hans se completa com a
chegada e a partida (morte) de Peeperkorn, companheiro de
viagem de Mme Chauchat, no sétimo e último capítulo de A
Montanha Mágica. A figura de Peeperkorn se assemelha a um
deus pagão dionísio/baco e é descrito como “(…)um sacerdote
idoso de um culto estranho, que dançasse diante do altar de
sacrifícios, arregaçando a vestimenta com uma graça
esquisita”43.
Como um profeta e com uma certa ascendência sobre os
demais “educadores” do protagonista, Peeperkorn vai
profetizar em termos símbólicos a ocorrência da guerra
pronta para explodir:
Chamo a sua atenção – prosseguia o holandês – para as
alturas, essas grandes alturas, onde gira aquele ponto
negro, no meio desse esquisito azul que puxa para
preto… É uma ave de rapina, uma enorme ave de rapina.
43 Ibidem, idem p.783.
(…)A águia, senhores, a ave de Júpiter, o rei da sua
estirpe, o leão dos ares! Usa calças de plumas e um
bico de ferro (…) Desce! Crava o bico de aço na cabeça
e nos olhos do homem, dilacera-lhe o ventre, àquela
criatura que Deus te…44
Como já vimos anteriormente, a figura do leão e da
águia na alquimia podem representar o lado negro de
Mercúrio, o diabo trocista e enganador.
Ao final de sua permanência no sanatório de Banghof,
Hans Castorp manterá um diálogo com Mme Chauchat que muito
bem demonstra seus “pensamentos alquimicamente
desenvolvidos”45 e o amadurecimento de sua psique por conta
de ter atingido o processo de individuação concebido pelo
psicólogo Carl Jung:
Numa palavra, talvez não saibas que existe uma coisa
que se chama pedagogia alquimístico-hermética, a
transubstanciação, rumo aos mais sublimes, e por
conseguinte uma ascensão, se bem me compreendes. Mas é
óbvio que a matéria susceptível de ser impelida e
empurrada, por influências exteriores, em direção a
uma esfera mais elevada, necessita para isso ter
certas qualidades próprias. E quanto às qualidades que
eu possuía, sei muito bem que eram as seguintes: desde
muito tempo estava familiarizado com a doença e com a
morte, e já nos meus tempos de menino cometi o
disparate de ti pedir emprestado um lápis, tal como se
deu aqui naquela noite de Carnaval. Mas o amor
disparatado é genial, pois a morte – sabes? – é o
princípio genial, a res bina, o lapis philosophorum e
é também o princípio pedagógico, uma vez que o amor a
44 Ibidem, idem p.812.
45 Ibidem, idem p.899.
ela conduz o amor à vida e ao homem. (…) Há dois
caminhos que conduzem à vida: um é o caminho
ordinário, direto e honrado; o outro é mau, passa pela
morte, e esse é o caminho genial46.
Nota-se que neste texto ao usar a expressão “ti pedir
emprestado”, o próprio herói acaba revelando que Chauchat e
Hippe, no fundo, simbolizam a mesma pessoa. Para Mircea
Eliade47, a iniciação comporta uma tripla revelação: a do
sagrado, a da morte e da sexualidade. Esta última
representada pela amor/desejo de Hans Castorp por Mme
Chauchat.
Resumindo, num nível simbólico, o herói vai cumprir as
três etapas da obra nas aventuras alquimísticas da matéria
e do espírito. A fase do enegrecimento se dá no início
quando o herói vai se deparar com a morte física, tanto na
dos hóspedes quanto na da sua própria pessoa, durante os
exames na sala escura de Behrens:
Terminada a radioscopia, teve ainda a amabilidade de
permitir que o paciente, a seus rogos insistentes,
contemplasse a própria mão através do anteparo
luminoso. (…) viu a carne em que vivia, solubilizada,
aniquilada, reduzida a uma névoa inconsistente… (…) e
pela primeira vez na vida compreendeu que estava
destinado a morrer48.
46 Ibidem, idem p.819.
47 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes,
1996, p.153.
48 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000, p. 300.
A decomposição e putrefação da matéria e a morte do
espírito é necessária para atingir um grau maior de
consciência e sabedoria..A etapa do embranquecimento da
obra pode ser expressa simbolicamente na tempestade de
neve49 que o herói precisará enfrentar ao se perder nos
arredores de Berghof. E por fim, a última etapa, a do
enrubescimento, é representada pela “animada sala de
partos, banhada de luz vermelha”50, onde é realizada a
sessão espiritual com Ellen Brand no calabouço analítico do
dr. Krokowski.
A médium é descrita como uma parturiente, tendo Hans
ao seu lado como marido. O objetivo da sessão é o
reaparecimento do falecido Joachim. No momento em que o
primo vai “surgir” das trevas vermelhas, Hans se
conscientiza de que o seu processo de iniciação havia
chegado ao seu limite e que estava indo longe demais no seu
aprendizado. Pediu desculpas ao primo, em murmúrio, e numa
manobra rápida acendeu a luz do lustre51.
A atitude de acender a luz lembra uma outra passagem
de A Montanha Mágica em que Setembrini também acende a luz
do quarto de Hans. Seria a luz da razão tão necessária no
momento em que a humanidade parecia estar completamente
49 Idem 638.
50 Ibidem p. 932.
51 Ibidem, idem p. 939.
submersa no mundo das trevas e caminhando para uma grande
guerra?. Ou então seria mais compreensível recorrermos ao
próprio Thomas Mann, para quem há determinados aspectos da
vida em que devemos manter um distanciamento respeitoso…
Conclusão
No romance A Montanha Mágica, o conhecimento alquímico
é um agente transformador, uma porta que se abre para que o
herói Hans Castorp possa encarar a vida em suas múltiplas
experiências e em todas as direções. Na base desse
despertar da consciência suprema, o protagonista vai
trilhar o caminho da liberdade e dos pressupostos éticos.
Ele terá que passar por uma série de provas,
reiteradas pela morte e ressurreição, tanto da matéria como
do espírito. O processo de “racionalização” das imagens
mais remotas do insconsciente assume neste espaço
sacralizado, que é a montanha (sanatório de Davos), uma
espécie de “cura” ou de concretude das diferentes etapa da
iniciação.
A exemplo de Friedrich Nietzsche e Carl G. Jung, o
escritor alemão Thomas Mann vai trazer para o início da
modernidade, marcado pelos ideais do progresso e da
ciência, a necessidade premente de se dialogar com os mitos
arcaicos que não somente constituem um patrimônio da
humanidade como também um espelho oculto, de algum lugar a
nos refletir.
Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche vai evocar as
origens dionisíacas da tragédia grega em contraponto à
metafísica de Socrátes e Carl Jung vai propor a
“iluminação” do insconciente coletivo como uma das metas
para alcançar o desenvolvimento psiquíco do indivíduo.
Por mais que a sociedade moderna acredite no homem
radicalmente desmitificado, ele ainda carrega “ uma
mitologia camuflada” e repleta de “ritualismos degradados”,
conforme a concepção do estudioso das religiões Mircea
Eliade: “os festejos que acompanham o Ano Novo ou a
instalação numa casa nova apresentam, ainda que laicizada,
a estrutura de um ritual de renovação”52.
Para Eliade, o cosmo totalmente dessacralizado é uma
descoberta recente na história do espírito humano. Mas se a
maior parte das situações simbólicas assumidas pelo homem
religioso das sociedades primitivas e civilizações arcaicas
foram ultrapassadas pelo racionalismo dos tempos modernos,
elas não desapareceram sem deixar vestígios: “contribuíram
52 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes,
1999, p. 166.
para que nos tornássemos aquilo que somos hoje; fazem
parte, portanto, da nossa própria história”53.
Referências Bibliográficas
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
BURCKHARDT, Titus. Alquimia. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1991.
ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
_.O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GILCHRIST, Cherry. A Alquimia e seus Mistérios. São Paulo:
IBRASA, 1993.
JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
_. Psicologia e Alquimia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
_.Tônio Kroeger; A Morte em Veneza. São Paulo: Abril
Cultural, 1992.
53 Idem p.164.
RIMBAUD, Jean-Arthur. Uma Temporada no Inferno &
Iluminações. Rio de Janeiro: Franciso Alves, 1982.

Más contenido relacionado

La actualidad más candente

Huberto Rohden Setas para o Infinito pdf
Huberto Rohden   Setas para o Infinito pdfHuberto Rohden   Setas para o Infinito pdf
Huberto Rohden Setas para o Infinito pdfHubertoRohden1
 
Biografia de Herminio Corrêa de Miranda
Biografia de Herminio Corrêa de MirandaBiografia de Herminio Corrêa de Miranda
Biografia de Herminio Corrêa de MirandaOsvaldo Brascher
 
A angústia e o desespero humano
A angústia e o desespero humanoA angústia e o desespero humano
A angústia e o desespero humanoir_joice
 
Texto35 P7
Texto35 P7Texto35 P7
Texto35 P7renatotf
 
Animismo ou espiritismo ernesto bozzano
Animismo ou espiritismo   ernesto bozzanoAnimismo ou espiritismo   ernesto bozzano
Animismo ou espiritismo ernesto bozzanoHelio Cruz
 
O livro-do-aprendiz-oswald-wirth
O livro-do-aprendiz-oswald-wirthO livro-do-aprendiz-oswald-wirth
O livro-do-aprendiz-oswald-wirthuvp4175
 
A atualidade de søren kierkegaard
A atualidade de søren kierkegaardA atualidade de søren kierkegaard
A atualidade de søren kierkegaardÉrika Renata
 
Friedrich Nietzsche - Ecce Homo
Friedrich Nietzsche - Ecce HomoFriedrich Nietzsche - Ecce Homo
Friedrich Nietzsche - Ecce Homoluvico
 
Esoterismo Por: Fernando Pessoa
Esoterismo Por: Fernando PessoaEsoterismo Por: Fernando Pessoa
Esoterismo Por: Fernando PessoaRODRIGO ORION
 
Ernesto bozzano literatura de além túmulo
Ernesto bozzano   literatura de além túmuloErnesto bozzano   literatura de além túmulo
Ernesto bozzano literatura de além túmuloClaudia Ruzicki Kremer
 
Simmel subjetividade artigo
Simmel subjetividade artigoSimmel subjetividade artigo
Simmel subjetividade artigoilanasm
 
Spinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristaisSpinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristaisAndrelinoFilho
 

La actualidad más candente (16)

Huberto Rohden Setas para o Infinito pdf
Huberto Rohden   Setas para o Infinito pdfHuberto Rohden   Setas para o Infinito pdf
Huberto Rohden Setas para o Infinito pdf
 
Biografia de Herminio Corrêa de Miranda
Biografia de Herminio Corrêa de MirandaBiografia de Herminio Corrêa de Miranda
Biografia de Herminio Corrêa de Miranda
 
A angústia e o desespero humano
A angústia e o desespero humanoA angústia e o desespero humano
A angústia e o desespero humano
 
Texto35 P7
Texto35 P7Texto35 P7
Texto35 P7
 
Animismo ou espiritismo ernesto bozzano
Animismo ou espiritismo   ernesto bozzanoAnimismo ou espiritismo   ernesto bozzano
Animismo ou espiritismo ernesto bozzano
 
O livro-do-aprendiz-oswald-wirth
O livro-do-aprendiz-oswald-wirthO livro-do-aprendiz-oswald-wirth
O livro-do-aprendiz-oswald-wirth
 
A atualidade de søren kierkegaard
A atualidade de søren kierkegaardA atualidade de søren kierkegaard
A atualidade de søren kierkegaard
 
Friedrich Nietzsche - Ecce Homo
Friedrich Nietzsche - Ecce HomoFriedrich Nietzsche - Ecce Homo
Friedrich Nietzsche - Ecce Homo
 
Esoterismo Por: Fernando Pessoa
Esoterismo Por: Fernando PessoaEsoterismo Por: Fernando Pessoa
Esoterismo Por: Fernando Pessoa
 
Apresentação do (ante) projeto de mestrado - PUC SP
Apresentação do (ante) projeto de mestrado - PUC SPApresentação do (ante) projeto de mestrado - PUC SP
Apresentação do (ante) projeto de mestrado - PUC SP
 
Ernesto bozzano literatura de além túmulo
Ernesto bozzano   literatura de além túmuloErnesto bozzano   literatura de além túmulo
Ernesto bozzano literatura de além túmulo
 
M16yg
M16ygM16yg
M16yg
 
Gaio%202
Gaio%202Gaio%202
Gaio%202
 
Rhe
RheRhe
Rhe
 
Simmel subjetividade artigo
Simmel subjetividade artigoSimmel subjetividade artigo
Simmel subjetividade artigo
 
Spinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristaisSpinoza e Borges na penumbra dos cristais
Spinoza e Borges na penumbra dos cristais
 

Similar a Alquimia em thomas mann

Literaturas sobre realismo (7)
Literaturas sobre realismo (7)Literaturas sobre realismo (7)
Literaturas sobre realismo (7)Equipemundi2014
 
21235763 A Arte Do Ator Jean Roubine
21235763  A  Arte  Do  Ator  Jean  Roubine21235763  A  Arte  Do  Ator  Jean  Roubine
21235763 A Arte Do Ator Jean RoubineRicardo Araujo
 
Ft21 Lusiadas Textos Introdutorios
Ft21 Lusiadas Textos IntrodutoriosFt21 Lusiadas Textos Introdutorios
Ft21 Lusiadas Textos IntrodutoriosFernanda Soares
 
Cap06 classicismo
Cap06 classicismoCap06 classicismo
Cap06 classicismowhybells
 
Análise do poema ulisses
Análise do poema ulissesAnálise do poema ulisses
Análise do poema ulissesEL Chenko
 
Lukács, georg a teoria do romance
Lukács, georg   a teoria do romanceLukács, georg   a teoria do romance
Lukács, georg a teoria do romanceLuciéle Bernardi
 
Revisando o realismo e o naturalismo, 02
Revisando o realismo e o naturalismo, 02Revisando o realismo e o naturalismo, 02
Revisando o realismo e o naturalismo, 02ma.no.el.ne.ves
 
C:\Fakepath\AscensãO Do Romance
C:\Fakepath\AscensãO Do RomanceC:\Fakepath\AscensãO Do Romance
C:\Fakepath\AscensãO Do RomanceEneida da Rosa
 
C:\fakepath\ascensão do romance
C:\fakepath\ascensão do romanceC:\fakepath\ascensão do romance
C:\fakepath\ascensão do romanceguest254bf1
 
literatura-classicismo: AULA SOBRE LITERATURA
literatura-classicismo: AULA SOBRE LITERATURAliteratura-classicismo: AULA SOBRE LITERATURA
literatura-classicismo: AULA SOBRE LITERATURAmariasantos1451
 
Classicismo / Renascimento
Classicismo / RenascimentoClassicismo / Renascimento
Classicismo / RenascimentoAndriane Cursino
 
Bacon francis-a-sabedoria-dos-antigos
Bacon francis-a-sabedoria-dos-antigosBacon francis-a-sabedoria-dos-antigos
Bacon francis-a-sabedoria-dos-antigoseunapim
 
A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Ru...
A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Ru...A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Ru...
A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Ru...Erimar Cruz
 
Classicismo 2. revisado
Classicismo 2. revisadoClassicismo 2. revisado
Classicismo 2. revisadoRoberta Savana
 

Similar a Alquimia em thomas mann (20)

Literaturas sobre realismo (7)
Literaturas sobre realismo (7)Literaturas sobre realismo (7)
Literaturas sobre realismo (7)
 
2º humanismo e criação literária
2º humanismo e criação literária2º humanismo e criação literária
2º humanismo e criação literária
 
21235763 A Arte Do Ator Jean Roubine
21235763  A  Arte  Do  Ator  Jean  Roubine21235763  A  Arte  Do  Ator  Jean  Roubine
21235763 A Arte Do Ator Jean Roubine
 
BOM-CRIOULO (1).ppt
BOM-CRIOULO (1).pptBOM-CRIOULO (1).ppt
BOM-CRIOULO (1).ppt
 
Ft21 Lusiadas Textos Introdutorios
Ft21 Lusiadas Textos IntrodutoriosFt21 Lusiadas Textos Introdutorios
Ft21 Lusiadas Textos Introdutorios
 
Cap06 classicismo
Cap06 classicismoCap06 classicismo
Cap06 classicismo
 
Os maias
Os maiasOs maias
Os maias
 
Análise do poema ulisses
Análise do poema ulissesAnálise do poema ulisses
Análise do poema ulisses
 
Lukács, georg a teoria do romance
Lukács, georg   a teoria do romanceLukács, georg   a teoria do romance
Lukács, georg a teoria do romance
 
Realismo
RealismoRealismo
Realismo
 
Arcadismo
ArcadismoArcadismo
Arcadismo
 
Revisando o realismo e o naturalismo, 02
Revisando o realismo e o naturalismo, 02Revisando o realismo e o naturalismo, 02
Revisando o realismo e o naturalismo, 02
 
C:\Fakepath\AscensãO Do Romance
C:\Fakepath\AscensãO Do RomanceC:\Fakepath\AscensãO Do Romance
C:\Fakepath\AscensãO Do Romance
 
C:\fakepath\ascensão do romance
C:\fakepath\ascensão do romanceC:\fakepath\ascensão do romance
C:\fakepath\ascensão do romance
 
literatura-classicismo: AULA SOBRE LITERATURA
literatura-classicismo: AULA SOBRE LITERATURAliteratura-classicismo: AULA SOBRE LITERATURA
literatura-classicismo: AULA SOBRE LITERATURA
 
Classicismo / Renascimento
Classicismo / RenascimentoClassicismo / Renascimento
Classicismo / Renascimento
 
Bacon francis-a-sabedoria-dos-antigos
Bacon francis-a-sabedoria-dos-antigosBacon francis-a-sabedoria-dos-antigos
Bacon francis-a-sabedoria-dos-antigos
 
A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Ru...
A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Ru...A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Ru...
A representação da metrópole pós colonial n"Os versos satânicos" de Salman Ru...
 
Realismo
RealismoRealismo
Realismo
 
Classicismo 2. revisado
Classicismo 2. revisadoClassicismo 2. revisado
Classicismo 2. revisado
 

Alquimia em thomas mann

  • 1. Alquimia em Thomas Mann Uma análise simbólica de A Montanha Mágica Roberto Nicolato4 Introdução Não é novidade o fato de que a obra A Montanha Mágica1, de Thomas Mann, comporta reflexões e diálogos com as mais diferentes civilizações e pressupostos filosóficos. Trata- se de uma narrativa que sob a perspectiva de acontecimentos 4Roberto Nicolato é professor do curso de Jornalismo do Uninter em Curitiba; mestre e doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. 1 MANN, Thomas. A Montanha Mágica.2.ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
  • 2. do presente volta o olhar para o passado, focalizando desde o espírito das civilizações primitivas, passando pela visão imagética e obscurantista da Idade Média até a concepção humanista sustentada pelos ideais de progresso e democracia que permeiam o século XIX e início do século XX. As diferentes vozes acabam por formular uma espécie de “caixa de ressonância” na figura do herói Hans Castorp, um herói em formação que a exemplo de um neófito terá de enfrentar vários obstáculos para atingir o conhecimento, a experiência e a sabedoria, como ocorre nos rituais de iniciação das sociedades primitivas e nas etapas da grande obra alquímica. O personagem-protagonista vai funcionar como um catalizador de pensamentos antagônicos e difusos, que permeiam a cultura ocidental nas vozes do humanista Setembrini, em confronto com o obscurantismo medieval de Nafta e o universo oriental e mítico, representado pelas figuras de Peeperkorn e Clawdia Chauchat. O tempo presente vai estar refletido nas imagens e pensamentos de outras épocas e civilizações, nos quais nos são oferecidos elementos para situá-lo à luz de novas interpretações. As reflexões sobre corpo e espírito, oriente e ocidente, ciência e religiões (primitivas, católica ou protestante) estão presentes em toda a obra.
  • 3. São níveis de compreensão bastante amplos, complexos e que exigem análises pontuais. De outro modo, nossa pretensão é realizar uma leitura de A Montanha Mágica sob o ponto de vista da alquimia e da ciência das religiões, numa abordagem que se pretende não reducionista e que tampouco ofereça uma visão abrangente que dê conta de abarcar o que está contido no livro - esforço que se traduz humanamente impossível. Por isso, fizemos a opção por um recorte que contemple a análise de aspectos simbólicos - sem desprezar a certeza de que a Montanha Mágica traz complexidades de outra monta -, ciente de que é possível promover uma leitura um tanto específica e pontual daqueles níveis de diálogo prontamente identificáveis com os preceitos da tradição alquímica que surgiu nos primórdios da civilização e, afora as experiências no campo da química propriamente dita, se constituiu num intrincado sistema filosófico, ricamente ilustrado pela simbologia e iconografia quando de seu ressurgimento entre os séculos XVI e XVII. A nossa análise recairá sobre estratos que revelem preceitos filosóficos de culturas arcaicas em contraponto aos mitos modernos, em páginas determinadas de A Montanha Mágica, de aparição difusa e um pouco mais constante no final da obra, não se constituindo elemento de primeira
  • 4. grandeza sob o ponto de vista de uma leitura mais totalizante. Mais do que um único tratado de conteúdos específicos, A Montanha Mágica é uma obra excepcional justamente por ser, como já foi dito, um caleidoscópio do pensamento humano ocidental, perpassado por laivos de um misticismo antigo, carregado de símbolos e mitos - muitos dos quais recorrentes em sociedades arcaicas - visto a partir de uma Europa esfacelada em suas instituições e valores. Se propusemos tal recorte, penso que não seria leviano partir de uma das últimas premissas, um tanto explícita do narrador e estampada na última página de A Montanha Mágica: a de que a história de Hans Castorp é uma “história hermética”. Nesta frase, estaria o narrador (em terceira pessoa) usando apenas uma força de expressão para dar um colorido despretensioso à experiência do protagonista? Até que ponto esta história está contaminada pelos preceitos do hermetismo? Não é nenhuma novidade o fato de que alguns dos mais importantes nomes da literatura universal mantiveram de alguma forma diálogo explícito ou não com os mitos da antiguidade e com a tradição ocultista e alquímica. O poeta francês Jean-Arthur Rimbaud é um bom exemplo. Ele mantinha contatos com um alquimista na sua cidade natal Charleville
  • 5. (interior da França), e a contaminação de tal universo o inspirou na produção do poema “Alquimia do Verbo”2. Charles Baudelaire se inspirou no primeiro mandamento da Tábua Esmeraldina, escrita por Hermes Trismegisto (que é citado numa poema destinado ao leitor na abertura do livro As Fores do Mal)3, para compor o poema “Correspondências”, numa clara visão de que entre o universo (macrocosmo) e o homem (microcosmo) existe uma correspondência mútua. O que existe num, está presente no outro. Ou então por que não citar os poemas ocultistas de Fernando Pessoa, reunidos em livro homônimo publicado pela editora Aquariana, ou o diálogo de T.S Eliot com as lendas do Rei Pescador? Com Thomas Mann não foi diferente. Mann é uma autor de conhecimentos múltiplos, um humanista que tanto sabia lidar com o pensamento cientificista e racional quanto com as estruturas arquetípicas da mitologia antiga. Não é por acaso que carrega a alcunha de “mago de chumbo” da literatura universal. Este estudo pretende não apenas analisar o contraponto que existe entre o pensamento racional/científico e as reflexões acerca dos mitos primitivos e míticos, mas também 2 RIMBAUD, Jean-Arthur.Uma Temporada no Inferno & Iluminações. 2.ed.Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1982, p63-65. 3 BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, p.99. A terceira estrofe do poema “Ao Leitor” é a seguinte: “Na almofada do mal é Satã Trismegisto/Quem docemente nosso espírito consola,/E o metal puro da vontade então se evola/Por obra desse sábio que age sem ser visto”.
  • 6. identificar os “espaços alquímicos”, a partir dos quais se desenrolam veladamente ou de forma oculta algumas ações presentes em A Montanha Mágica. Neste cenário repleto de simbologias, inclusive numérica, estará transitando o herói alemão Hans Castor, um estudante de engenharia naval que sobe a montanha para visitar o primo Joaquim no sanatório de Berghof, em Davos (Suíça). A pretensão inicial de ali permanecer por apenas três semanas acaba se transformando em sete anos de profundas experiências existenciais e espirituais. Durante os longos anos em que permanece na montanha (símbolo da elevação espiritual e onde se dá o processo de cura), Hans vai vivenciar a transformação de um jovem, formado ao estilo burguês, para a de um homem que atinge um grau maior de compreensão da vida. A narrativa de A Montanha Mágica se encaminha para formação da consciência do herói, após ter ele seguido uma proposição que mais tarde - depois de o livro de Mann já ter sido escrito - seria formulada por Mircea Eliade: a de que o homem integral deve conhecer outras situações além de condição histórica, como por exemplo “o estado de sonho, ou de devaneio, ou o de melancolia o do desprendimento, ou da contemplação estética, ou da evasão, etc.(…)4”. 4 ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos.São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 29.
  • 7. Além de identificar esses elementos ditos “alquímicos” é também nossa intenção nesse trabalho realizar uma análise do processo de iniciação de Hans Castorp a partir de pressupostos da psicologia moderna, baseados na “teoria dos arquéticos” e do “processo de individuação”, do psicólogo sueco, Carl G. Jung. Gostaríamos de esclarecer ainda que este trabalho tem a pretensão de apenas identificar e fazer algumas reflexões e associações com os principais conceitos da ciência hermética, não se constituindo num estudo aprofundado em razão da extrema complexidade que exige o presente tema a ser analisado. O espaço sacralizado Um dos procedimentos narrativos utilizados por Thomas Mann em suas obras é a antecipação. Da mesma forma que em A Morte em Veneza4, o escritor lançará mão de tal recurso em A Montanha Mágica para compor uma trama de inúmeras referências simbólicas, também presentes nos sonhos e nos diálogos entre os personagens. 4 MANN, Thomas.Tônio Kroeger. A morte em Veneza.São Paulo: Abril Cultural, 1982.
  • 8. Em O Homem e seus mitos, Carl Gustav Jung5 afirma que os arquétipos e símbolos representam a linguagem do inconsciente que se faz comunicar com o ser humano através dos sonhos e, diríamos, por extensão dos devaneios. Na obra de Mann, os sonhos são por si só fonte de grandes revelações, como pretendemos abordar mais adiante neste ensaio. Por enquanto, nos é bastante lembrar que as transformações existenciais e espirituais de Hans Castorp são antecipadas logo no início de A Montanha Mágica num diálogo que Setembrini (defensor do pensamento humanista e racional) mantém com o estudante de engenharia naval no primeiro encontro no sanatório de Berghof, em Davos. Essa passagem nos remete aos rituais de iniciação das sociedades arcaicas e da antiguidade clássica, ilustrada na figura de Ulisses, herói e semi-Deus da Odisséia de Homero, que terá de superar uma série de etapas, nas quais não apenas a força física mas também a sabedoria serão um passaporte de retorno à terra natal e à consequente libertação de Penélope das mãos de indignos pretendentes. Vejam só! Então não é dos nossos. Goza boa saúde, está aqui apenas de passagem, como Ulisses no reino das sombras? Que audácia descer até estas profundezas, 5 JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira
  • 9. onde os mortos levam uma existência irreal, desprovida de sentido…6. O diálogo de Setembrini com seu interlocutor demonstra que mais do que um ambiente de cura, a montanha se instaura no universo da magia, no espaço do sagrado. Os homens que viviam em sociedades arcaicas escolhiam as cidades ou se agrupavam para construir ali um local sagrado, conforme ensina Mircea Eliade, em O Sagrado e o Profano. “A Cidade (Urbs) se situa no meio do orbis terrarum”7 A exemplo de Setembrini – que coloca a humanidade na condição de criaturas “que caíram muito baixo”8 - Eliade vai recuperar o mito da queda, pois que a busca do sagrado pelas civilizações arcaicas seria uma das maneiras do homem retornar ao paraíso perdido, com a expulsão de Adão e Eva. De acordo com Mircea Eliade, em seu aspecto mítico, a montanha, assim como um árvore ou um pilar, está situada no centro do mundo, servindo de elemento de ligação entre o céu e a terra. Com efeito, numerosas culturas falam-nos dessas montanhas – míticas ou reais – situadas no centro do mundo: é o caso de Meru, na Índia, de Haraberezaiti, no Irã, da montanha mítica “Monte dos Países”, na 6 MANN, Thomas. A Montanha Mágica.2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.81. 7 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.46. 8 MANN, Thomas. A Montanha Mágica.2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.82.
  • 10. Mesopotâmia, de Gerizim, na Palestina, que se chamava aliás umbigo da terra9. É lícito observar que o próprio título da obra de Thomas Mann A Montanha Mágica contém em si algo além da visão cientificista, moldada nos ideais de progresso e personificada na figura do italiano Setembrini, um dos responsáveis pelo “aprendizado” de Hans Castorp. Diferentemente da planície, o sanatório de Berghof é um espaço de “isolamento contemplativo” em relação à realidade social que se passa lá embaixo, pois ali os personagens, mais do que agentes do processo, acompanham o desenrolar da história universal, sem participar dela ativamente. Como espaço da magia, está situado além do tempo humano, pois se anuncia e realiza à margem dos fatos, da historicidade. Mas se os habitantes de Berghof estão pouco sujeitos ao tempo histórico como os moradores da planície, de outro modo eles permanecem mais vuneráveis ao desenrolar do tempo psicológico e sobretudo místico que, na opinião de Eliade, “é a verdadeira fonte de todo o ser e de todo acontecimento cósmico”10. 9 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 39. 10 _.Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.58.
  • 11. O personagem Hans Castor, por exemplo, vai se conscientizar de que a montanha é um espaço sagrado no final do quarto capítulo de A Montanha Mágica: (…)Começara a adquirir a seus próprios olhos um quê de intangibilidade sagrada e natural, tanto assim que a vida lá de baixo, na baixada, vista assim de cima, se lhe afigurava quase anormal e errada11. Se a imagem do mundo tem um centro – toda região habitada pelo ser humano conforme nos ensinam os mitos mais antigos - o sagrado também se manifesta em vários outros centros não menos significativos no Sanatório de Berghof, caracterizados como espaços sagrados ou alquímicos, e que também podem ser plenamente identificáveis no romance de Thomas Mann. A começar pelo restaurante do sanatório, onde a numerologia estabelece estreita relação entre o espaço do cotidiano e dos afazeres domésticos com aquele que adquire um sentido mítico e alquímico. Durante toda a sua estada no Sanatório de Berghof, Castorp tomará assento nas sete mesas do restaurante. A descrição de uma das cenas sobre a relação entre os hóspedes e o restaurante, de pronto já confere um sentido secular de imobilidade, com a impressão do protagonista se dando no nível da irracionalidade: 11 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro:Nova Fronteira, 2000, p.203.
  • 12. Os hóspedes vinham afluindo por ambas as entradas. Entravam também pelas portas do avarandado, que estavam abertas. Dentro de pouco tempo, todos se encontravam sentados em torno das sete mesas, como se nunca se tivessem levantado. Tal era, pelo menos, a impressão de Hans Castorp – impressão puramente fantástica e irracional(…)12. Na realidade, o número 7 é bastante recorrente em toda A Montanha Mágica a exemplo do número 3. Logo no início da obra, já nos damos conta de que Hans Castorp tem a pretensão de permanecer por três semanas em Berghof, tempo em que estará visitando o seu primo Joaquim. No final, acabará permanecendo sete anos no local. Também não é gratuito o fato de A Montanha Mágica ser estruturada em sete capítulos (Hermes Trismegisto, considerado o pai espiritual da alquimia, teria escrito uma obra intitulada o Livro dos Sete Capítulos). Na obra de Thomas Mann, não é possível dissociar o espaço do tempo e da numerologia que podem ser explicados à luz de alguns pressupostos da alquimia, “arte” que sempre existiu em lugares tão distantes quanto o Próximo e o Extremo Oriente (especialmente na China) como no Ocidente, desde meados do último milênio a.C. O que se sabe é que a origem da alquimia remonta ao tempo do Egito antigo, onde era praticada pelos sacerdotes, 12 Idem, p. 105. Grifos são meus.
  • 13. e que tem como fundador reconhecido Hermes Trismegisto, “o três vezes grande Hermes”. Esse deus do antigo Egito também é chamado pelos gregos de Thot. Trata-se de um deus que regia as artes e as ciências sagradas. Segundo os estudiosos dessa tradição, não existem documentos referentes à primeira civilização egípcia, levando nos a crer que os conhecimentos alquímicos se sobreviveram graças à transmissão oral. “Assim sendo, é perfeitamente natural que o chamado Corpus Hermeticum, o qual abarca todos os textos atribuídos a Hermes-Thot, tenha chegado até nós em língua grega e redigido num estilo mais ou menos platônico”12. Um dos textos mais representantivos do chamado Corpus Hermeticum é a Tábua Esmeraldina composta de 12 mandamentos, dos quais o primeiro instaura a teoria das correspondências: “Na verdade, decerto e sem dúvida: Quando se pretende obrar os milagres de uma coisa, o debaixo é igual ao de cima e o de cima é igual ao de baixo”13. O principal propósito da alquimia era a produção da Pedra Filosofal, também conhecida como elixir ou tintura, utilizada para transformar um metal inferior em ouro. Para Carl Jung, - teórico que recuperou os pressupostos 12 BURCKHARDT, Titus. Alquimia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991, p.21. 13 Idem, p.201.
  • 14. filosóficos alquímicos para promover uma análise exaustiva e associativa dos conteúdos simbólicos dos sonhos – jamais foi produzida “uma tintura ou ouro artificial durante todos esses séculos de intenso labor”14. Aliás, Jung julgou encontrar nas imagens alquímicas a confirmação da sua tese do “inconsciente coletivo”, assim como nas representações míticas e arquetípicas que constituíram o legado das civilizações antigas à humanidade. A alquimia entrou em declínio no quinto e sexto séculos depois de Cristo, ficando restrita ao mundo árabe. No entanto, essa “arte” ressurgiu com grande intensidade nos séculos XVI e XVII nos países europeus. “Com a adoção da ideologia grega pelo Renascimento, irrompeu no Ocidente uma nova vaga de alquimia Bizantina”15. De acordo com Titus Burckhardt, as obras passaram a circular na forma de manuscritos mais ou menos secretos. Além disso, inspirou a produção de uma rica iconografia, demonstrada no livro Alquimia e Psicologia de Carl Jung. Mas na medida em que o pensamento ocidental tendia a tornar-se mais racionalista e humanista, a 14 JUNG. Carl G. Psicologia e Alquimia.2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p.253. 15 BURCKHARDT, Titus. Alquimia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991, p. 24.
  • 15. alquimia entrou em decadência, contribuindo também nesse sentido o advento da química moderna. Retornando à composição do espaço mítico e simbólico em A Montanha Mágica, a certa altura da narrativa o sanatório é apresentado ao leitor sob o signo de uma bandeira que tremula no jardim, adornada com um caduceu16, símbolo que foi apropriado pelas ciências médicas e que para a alquimia significava o bastão de Hermes (Mercúrio), composto por duas serpentes enroladas em torno de um eixo, o eixo do mundo. Quanto à riqueza simbólica da numerologia de A Montanha Mágica, vale ressaltar que é bastante representativo o número 34 do quarto do protagonista Hans Castorp. O próprio autor evidencia isso ao escolher a expressão “Número 34”17 como um dos subtítulos do primeiro capítulo do livro. À luz da ciência hermética, o 3 tanto pode representar a trindade alquímica – composta por Mercúrio, sob a forma do deus da revelação e que corresponde a Hermes Trismegisto, juntamente com o rei e o filho do rei – como as três etapas principais da obra: o enegrecimento, 16 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 110. 17 Idem, p.17.
  • 16. embranquecimento e enrubescimento, embora na sua origem o processo alquímico compreendesse quatro etapas. Em Psicologia e Alquimia, Jung diz que nas cores mencionadas por Heráclito também era citado o amarelo (amarelecimento),formando assim a “tetrametria da filosofia”. Mais tarde, nos séculos XV e XVI, as cores teriam sido reduzidas a três com o amarelo caindo em desuso18. De outra forma, os sete signos planetários (Sol, Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno) são formados por três figuras básicas: o círculo, o semicírculo e a cruz. “Uma vez que o círculo é também o signo do Sol e o semicírculo o da Lua, ambas as figuras podem ser consideradas quanto imagens do disco solar e da meia-lua, respectivamente”19. Por sua vez, o número 4 corresponde aos quatro elementos (terra, água, fogo e ar), que formam todas as substâncias do universo, e mencionados pela primeira vez pelo filósofo grego Empédocles, cerca de 450 anos antes de cristo. Essa teoria, segundo Cherry Gilchrist em A Alquimia e seus mistérios, também teria sido formulada por Aristóteles (350 a.C), tendo influência na Europa até 18 JUNG, Carl G. Psicologia e Alquimia.2.ed.Petrópolis:Vozes, 1994, p.241. 19BURCKHARDT, Titus.Alquimia.Lisboa:Publicações Dom Quixote, 1991, p. 77.
  • 17. surgir a nova era da ciência, no século XVII. “Aristóteles sustentava que cada elemento era composto de duas qualidades, existindo ao todo quatro qualidades: quente, seco, úmido e frio”20. O éter, no qual os quatro elementos (terra, água, fogo e ar) se acham presentes, representa a quintessência. É interessante observar que o somatório de 3 e 4 resulta no número 7, e que os sete planetas são correspondentes aos seguintes metais no universo da alquimia: Sol/ouro, Lua/prata, Mercúrio/mercúrio, Vênus/cobre, Marte/ferro, Júpiter/estanho e Saturno/chumbo. A simbologia do sete (total de integrantes do grupo liderado por Peeperkorn que faz uma excursão à cachoeira) também nos remete aos sete andares que representavam os sete céus planetários – nos Mistérios de Mitra cada degrau é feito de um metal diferente -, através dos quais o sacerdote ascendia ao cume do universo. No livro Psicologia e Alquimia, uma das ilustrações21 nos revela a “Montanha dos Adeptos”, ou o templo dos sábios, iluminado pelo sol e pela lua e que se ergue sobre os sete patamares. O templo fica oculto na montanha, alusão 20 GILCHRIST, Cherry. A alquimia e seus mistérios.2.ed.São Paulo: IBRASA, 1993, p.32. 21 JUNG, Carl. G. Psicologia e Alquimia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p.207.
  • 18. ao fato de a pedra do filósofo encontrar-se dentro da terra, de onde deve ser extraída e purificada. Em A Montanha Mágica, o espaço alquímico ainda pode ser identificado na “caverna analítica” do dr. Krokowski que aparece nos sonhos de Castorp como o “dissecador de almas”22, ou aquele que celebra a iluminação do inconsciente e, cujas palestras proferidas para os internos do sanatório, vão ganhar contornos cada vez mais “misteriosos” no decorrer da história. A certa altura da narrativa, as conversas reservadas entre o herói Hans Castorp e o dr. Krokowski vão atrair a curiosidade de Joaquim. O narrador traça algumas conjecturas a respeito dos assuntos tratados, que tanto pode ser a doença como forma desonrosa da vida, como de degeneração desonrosa do imaterial, como entendia Hans, ou sobre o amor como fator patogênico, então um dos temas da conferência do médico. Entretanto, mais do que esclarecer o leitor, a narrativa encobre com uma cortina de mistério outra descoberta feita por Joachim da relação um tanto estranha de Hans para com Krokowski: “Em compensação, porém, fizera Joachim outra descoberta, justamente a que ele julgava uma traição da parte de Hans Castrop”. Neste caso específico, 22 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p.127
  • 19. Joachim tratava justamente das visitas, também desconhecidas, que o primo fazia ao médico: E quando ressoou do calabouço o barítono do dono do gabinete, dizendo “Entre!”, com um estalo exótico do “r” e com um som desfigurado das vogais, Joachim viu como primo desaparecia na penumbra da caverna analítica do dr. Krokowski23. Na narrativa de Thomas Mann não há alusão de que esses encontros entre Hans e o médico tenham algum carácter de conhecimento alquímico ou místico, embora simbolicamente a iniciação consista na morte e ressurreição do neófito, ou em outras palavras, na descida aos infernos (caverna), seguida da ascensão ao ceú. É importante notar que dali em diante as palestras do dr. Krokowski vão rumar para o hiponotismo, sonambolismo e para as coisas ocultas, culminando com as sessões com Ellen Brand no calabouço analítico. De outra forma, após esses contatos com o dr. Krokowski Hans passará a se ocupar de estudos científicos e a se interessar de maneira mais explícita por astrologia e rituais de antigas civilizações, como a dos caldeus. “Aquele velho povo de magos, de origem árabe e semítica, sumamente versado em astrologia e profecias”24. A 23 Idem p. 501. 24 Ibidem p.505.
  • 20. experiências e a busca de desses conhecimentos por parte de Hans, no entanto, vão contar com a reprovação do primo Joaquim. Ainda nesse diálogo com Joachim, Hans diz ao seu interlocutor que todo seu aprendizado poderia lhe ser útil durante a guerra, sem perceber que ele próprio (Hans) estaria destinado a lutar no campo de batalha após receber alta do sanatório25. Vale ressaltar que o alquimista necessita aspirar as alturas, de onde contempla o céu e o mar e as criaturas, para depois voltar a terra e realizar a grande obra26. Ritos de passagem O psicólogo sueco Carl Jung confere aos sonhos e às imagens simbólicas do inconsciente grande relevância no sentido de conhecer e entender a organização psíquica da personalidade global de um indivíduo. Para ele, o inconsciente não é um “quarto de despejo” dos desejos recalcados (conforme a tese freudiana), mas um mundo de conteúdos arquetípicos comuns a toda a humanidade e que utilizam os sonhos como meios de comunicação. 25 Ibidem, idem p.507. 26 GILCHRIST, Cherry. A Alquimia e seus mistérios. 2.ed. São Paulo: IBRASA, 1993, p.113.
  • 21. Na sua concepção, apesar da evolução psíquica do homem moderno, os conteúdos do inconsciente ainda se parecem com os produtos da mente do homem primitivo. Daí a formulação da teoria dos arquétipos - imagens psíquicas do chamado inconsciente coletivo - que muitas vezes se relacionam com o universo da alquimia, através da manifestação de símbolos como o círculo, o rei e a rainha, a águia e a cruz, entre outros. Em sua atividade como psicólogo, Jung chegou a analisar cerca de 80 mil sonhos, os quais, na sua concepção, obedecem uma determinada configuração ou esquema devido à recorrência de seus conteúdos. É o que ele chama de processo de individuação, “pelo qual o consciente e inconsciente do indivíduo aprendem a conhecer, respeitar e acomodar um ao outro”27. A grosso modo, Carl Jung entende que o sistema psíquico comporta “um centro organizador” da psique do indivíduo que atua como fonte das imagens oníricas – também responsável pelo amadurecimento da personalidade - e que ele chamou de self: Mas este aspecto mais rico e mais total da psique aparece, de início, apenas como uma possibilidade inata. Pode emergir de maneira insuficiente ou então 27 JUNG. Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • 22. desenvolver-se de modo quase completo ao longo da nossa existência; o quanto vai evoluir depende do desejo do ego de ouvir ou não suas mensagens28. É o ego que ilumina o sistema inteiro, e ajuda a realizar a totalidade da psique. Na realidade, o amadurecimento da psique pode ser comparado, no universo da ciência hermética, à passagem do estado bruto da primeira matéria ao da perfeição (o ouro). Os símbolos da alquimia e os mitos primitivos vão povoar os sonhos, muitas vezes recorrentes, durante todo o processo de desenvolvimento psíquico do personagem Hans Castorp em A Montanha Mágica. Logo nos primeiros dias no sanatório, Hans terá um sonho, recorrente em outros capítulos, e que se traduz numa das passagens mais significativas de A Montanha Mágica. A manifestação é uma espécie de chave para compreender o processo de individuação e de “iniciação” do protagonista na “arte” da alquimia. No sonho, o herói pede emprestado um lápis para a russa Mme Chauchat. Diz o narrador: “Ela deu-lhe uma lapiseira de prata, que continha um lápis pintado de vermelho, gasto até a metade, e recomendou a Hans Castorp, numa voz agradavelmente velada que o devolvesse sem falta após a aula”29. 28 Idem p.162. 29 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 126. Grifo meu.
  • 23. Cena semelhante é descrita pelo narrador mais adiante, num dos passeios do protagonista pelos arredores sanatório e durante o qual a doença já começa a se manifestar. Hans é transportado de súbito, numa espécie de devaneio, para uma fase remota de sua vida, quando tinha apenas 13 anos de idade, e a exemplo de Chauchat e ele vai pedir um lápis emprestado ao companheiro de colégio, Pribslav Hippe, um garoto estranho que entre os colegas, tem o apelido de “Quirguiz” (povo de origem turca que habita a Rússia asiática: “(…) tirou do bolso uma lapiseira prateada, com um anel que se devia empurrar para cima, para que o lápis vermelho apontasse do tubo metálico”30. É importante notar que além da situação semelhante, algumas características físicas de Hippe são idênticas à de Mme Chauchat como a voz velada e rouca, as maçãs salientes do rosto e os olhos que se perdiam “trevas misteriosas”31. A descrição da amada de Hans, na verdade, é também a de uma figura masculina e na própria concepção do protagonista Hippe e Chauchat são no fundo uma mesma pessoa (como poderemos ver um pouco mais adiante). Conforme Jung, na alquimia, Hermes-Mercúrio, enquanto deus ctônico da manifestação espírito de mercúrio, possuía 30 Idem p.166. 31 Ibidem p.167.
  • 24. uma natureza dupla e era considerado um hermafrodita. Tanto podia trazer a boa sorte como a perdição dos alquimistas: Enquanto planeta Mercúrio ele é o mais próximo do sol, o que indica também sua maior afinidade com o ouro. Enquanto metal, o mercúrio dissolve o ouro e apaga o seu brilho solar. Durante toda a Idade Média constituiu o objeto misterioso da especulação dos filósofos da natureza: ora era um espírito serviçal e útil (paredos: literalmente, o assistente e o companheiro) ou “familiaris” (espírito familiar); ora era o `servus` ou o `cervus fugitivus`(o escravo ou o cervo fugitivo), um duende que leva os alquimistas ao desespero, evasivo, enganador e trocista, multiplicidade de atributos que tinha em comum com o diabo; citemos dentre eles, o dragão, o leão, a águia, o corvo, que são os principais. Na hierarquia alquímica dos deuses, ele é o mais baixo, como `prima materia`, e o mais alto, como `lapis philosophorum`32. O processo de iniciação de Hans Castorp em busca do conhecimento supremo passa necessariamente por uma busca interior, pelo processo de reconhecimento do verdadeiro eu, cujos pegadas encontram-se nas imagens simbólicas que o levam de volta à infância durante o passeio acima citado: “(…) ao passo que o verdadeiro Hans Castorp se encontrava 32 JUNG, Carl. G. Psicologia e Alquimia.2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 75.
  • 25. longe dali, num ambiente e numa época muito distantes (…)”33. Como no processo de individuação, as imagens simbólicas do inconsciente de Hans comunicadas através dos sonhos vão ganhar “forma”, tornar-se palpável, real, durante os festejos de Carnaval e quando do seu primeiro encontro propriamente dito com Mme Chauchat. O Carnaval não só recupera de alguma maneira os antigos rituais de renovação como também coloca em suspensão as convenções no tempo e espaço permitindo o encontro de Hans e Chauchat. Agora, e não mais em sonho, o protogonista vai pedir- lhe de fato um lápis emprestado para realizar um desenho como parte de uma brincadeira que envolve os hóspedes do Sanatório. Apesar de real, o lápis não será tão verdadeiro quanto aquele que aparece nas imagens do inconsciente, mas é suficiente para fechar um ciclo e provocar grande transformações na vida de Hans Castorp: Enquanto isso, remexia a bolsinha de couro vendo se descobria um lápis. De sob um lenço tirou uma minúscula lapiseira de prata, frágil e fininha, artigo de fantasia inútil para o trabalho sério. O lápis de outrora, o primeiro, fora diferente, mais prático e mais autêntico34. 33 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 165. 34 Idem p. 456.
  • 26. Metaforicamente, o lápis, a exemplo do opus (obra) no processo alquímico, possibilitará uma “nova criação”, qual seja o desenho. O objetivo do alquimista é ativar um processo de transformação de uma primeira substância ou prima materia (conhecida por todos, mas reconhecida apenas pelos sábios) numa outra substância, desta vez mais de grande valor, qual seja a pedra filosofal, tida como a chave de todo o conhecimento. Essa transformação também se assemelha à criação do mundo e pode ser observada pelo alquimista no vaso (cadinho), que se traduz numa espécie de universo em miniatura. Conforme observa Carl Jung em Psicologia e Alquimia, Zózimo (que pertence ao século III) cita em seu trabalho Da arte da interpretação uma das mais antigas autoridades da alquimia: Ostanes, que viveu no limiar da história e já era conhecido por Plínio. Segundo Jung, Ostanes teria dito o seguinte: Vai até as correnteza do Nilo e lá encontrarás uma pedra que tem espírito. Toma-a, dividia-a e enfia tua mão dentro dela para extrair-lhe o coração, pois sua alma reside em seu coração35. 35 JUNG Carl. G. Psicologia e Alquimia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 305.
  • 27. Segundo Jung, esta matéria-espírito é como o mercúrio que deve se encontrar invisivelmente dentro dos minérios e que deve em primeiro lugar ser expulso a fim de ser recuperado “in substantia”. “Mas assim que se possui esse mercúrio penetrante é possível `projetá-lo` em outros corpos, fazendo-os passar de um estado imperfeito para o estado perfeito”36 Ainda de acordo com Jung, o opus provém de uma só coisa, devendo retornar ao uno, sendo uma espécie de movimento circular, a do dragão que morde a própria cauda (Uróboro). Por isso, muitas vezes, o opus é chamado de circulare, ou roda. Mercúrio como símbolo unificador dos opostos é o início e o fim da obra. “É a `prima materia`, o ´caput corvi`, a `nigredo´. Como dragão, devora-se a si mesmo e como dragão morre para ressuscitar sob a forma do lapis”37. De qualquer forma, a prima materia, que não é totalmente explicitada pelos teóricos da alqumia, é submetida a um tratamento químico e sua forma exterior precisa ser destruída pelo fogo (morte) para que sejam liberados os princípios masculinos e femininos e que serão reunidos num estágio simbolicamente chamado de casamento do 36 Ibidem p. 307. 37 Ibidem, idem p. 305.
  • 28. Rei(ouro) e da Rainha (prata). Essa etapa é conhecida como “nigredo” ou enegrecimento. Depois desse processo, a “alma” da matéria ainda continuará no vaso e vai passar por um processo de ressurreição, de cores iridescentes chamado de Calda do Pavão. “A criança oriunda da união (…) se desenvolve até “embranquecer”, indicando que o Elixir está prefeito em seu primeiro grau”38. Trata-se de uma fase capaz de transmutar metais em prata. A fase seguinte e final é o enrubescimento, ou seja o avermelhar-se do elixir e a sua transformação em ouro. Após o encontro com Claudia Chauchat durante o Carnaval (logo após ela deixa o sanatório), Hans Castorp passará a se interessar por leituras científicas (botânica, química e física) e pelos assuntos de natureza mítica. Propositalmente ou não, o sexto capítulo começa com o título “Transformações”39 e é justamente nele que Joachim vai constatar as visitas de Hans à caverna analítica do dr. Krokowski. Além disso, um termo estranho, segundo o narrador, vai ser utilizado para designar essa nova ocupação do seu 38 CILCHRIST, Cherry. A alquimia e seus mistérios. 2.ed.São Paulo: IBRASA, 1993, p. 19. 39 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 470.
  • 29. intelecto, e que nos remete a Mercúrio ou alquimista de pensamentos, o deus que rege: Chamava-a “reger”, servia-se dessa denominação de um brinquedo pueril, palavra da sua infância, para aplicá-la a uma distração que lhe era cara, ainda que andasse acompanhada de terror, de vertigens, de toda espécie de tumultos do seu coração e aumentasse o calor que lhe abrasava o rosto40. Com a chegada do solstício de verão (termo místico), também é introduzido na narrativa o personagem Nafta, um judeu jesuíta, que segundo Castorp “tem qualquer coisa de ocultista”41. Hans passa a se interessar pelo esquisito Nafta, que também vai funcionar como “educador” na pedagogia-hermética vivenciada pelo protagonista, embora não tão representativo quanto Setembrini, responsável pela formação humanística e “racional” do herói. Na verdade, o que está em jogo na formação de Hans são os princípios da razão e do progresso em contraponto ao mundo dos símbolos, mitos arcaicos e do irracionalismo. Setembrini acredita na “confraternização geral dos povos sob o signo da razão, da ciência e do direito”42 e chega inclusive a pensar guerra como uma maneira de livrar a humanidade da superstição, do sensualismo e do misticismo, 40 Idem p.532.Grifo meu. 41 Ibidem p.526. 42 Ibidem, idem p.216.
  • 30. representados por Chauchat e Peeperkorn, e da misantropia medieval de Nafta. No decorrer da narrativa, Setembrini e Nafta vão travar violentas discussões filosóficas, algumas delas pontuadas por assuntos referentes ao ocultismo e a alquimia, temas em que Nafta vai demonstrar grande conhecimento. A pedagogia hermética de Hans se completa com a chegada e a partida (morte) de Peeperkorn, companheiro de viagem de Mme Chauchat, no sétimo e último capítulo de A Montanha Mágica. A figura de Peeperkorn se assemelha a um deus pagão dionísio/baco e é descrito como “(…)um sacerdote idoso de um culto estranho, que dançasse diante do altar de sacrifícios, arregaçando a vestimenta com uma graça esquisita”43. Como um profeta e com uma certa ascendência sobre os demais “educadores” do protagonista, Peeperkorn vai profetizar em termos símbólicos a ocorrência da guerra pronta para explodir: Chamo a sua atenção – prosseguia o holandês – para as alturas, essas grandes alturas, onde gira aquele ponto negro, no meio desse esquisito azul que puxa para preto… É uma ave de rapina, uma enorme ave de rapina. 43 Ibidem, idem p.783.
  • 31. (…)A águia, senhores, a ave de Júpiter, o rei da sua estirpe, o leão dos ares! Usa calças de plumas e um bico de ferro (…) Desce! Crava o bico de aço na cabeça e nos olhos do homem, dilacera-lhe o ventre, àquela criatura que Deus te…44 Como já vimos anteriormente, a figura do leão e da águia na alquimia podem representar o lado negro de Mercúrio, o diabo trocista e enganador. Ao final de sua permanência no sanatório de Banghof, Hans Castorp manterá um diálogo com Mme Chauchat que muito bem demonstra seus “pensamentos alquimicamente desenvolvidos”45 e o amadurecimento de sua psique por conta de ter atingido o processo de individuação concebido pelo psicólogo Carl Jung: Numa palavra, talvez não saibas que existe uma coisa que se chama pedagogia alquimístico-hermética, a transubstanciação, rumo aos mais sublimes, e por conseguinte uma ascensão, se bem me compreendes. Mas é óbvio que a matéria susceptível de ser impelida e empurrada, por influências exteriores, em direção a uma esfera mais elevada, necessita para isso ter certas qualidades próprias. E quanto às qualidades que eu possuía, sei muito bem que eram as seguintes: desde muito tempo estava familiarizado com a doença e com a morte, e já nos meus tempos de menino cometi o disparate de ti pedir emprestado um lápis, tal como se deu aqui naquela noite de Carnaval. Mas o amor disparatado é genial, pois a morte – sabes? – é o princípio genial, a res bina, o lapis philosophorum e é também o princípio pedagógico, uma vez que o amor a 44 Ibidem, idem p.812. 45 Ibidem, idem p.899.
  • 32. ela conduz o amor à vida e ao homem. (…) Há dois caminhos que conduzem à vida: um é o caminho ordinário, direto e honrado; o outro é mau, passa pela morte, e esse é o caminho genial46. Nota-se que neste texto ao usar a expressão “ti pedir emprestado”, o próprio herói acaba revelando que Chauchat e Hippe, no fundo, simbolizam a mesma pessoa. Para Mircea Eliade47, a iniciação comporta uma tripla revelação: a do sagrado, a da morte e da sexualidade. Esta última representada pela amor/desejo de Hans Castorp por Mme Chauchat. Resumindo, num nível simbólico, o herói vai cumprir as três etapas da obra nas aventuras alquimísticas da matéria e do espírito. A fase do enegrecimento se dá no início quando o herói vai se deparar com a morte física, tanto na dos hóspedes quanto na da sua própria pessoa, durante os exames na sala escura de Behrens: Terminada a radioscopia, teve ainda a amabilidade de permitir que o paciente, a seus rogos insistentes, contemplasse a própria mão através do anteparo luminoso. (…) viu a carne em que vivia, solubilizada, aniquilada, reduzida a uma névoa inconsistente… (…) e pela primeira vez na vida compreendeu que estava destinado a morrer48. 46 Ibidem, idem p.819. 47 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.153. 48 MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 300.
  • 33. A decomposição e putrefação da matéria e a morte do espírito é necessária para atingir um grau maior de consciência e sabedoria..A etapa do embranquecimento da obra pode ser expressa simbolicamente na tempestade de neve49 que o herói precisará enfrentar ao se perder nos arredores de Berghof. E por fim, a última etapa, a do enrubescimento, é representada pela “animada sala de partos, banhada de luz vermelha”50, onde é realizada a sessão espiritual com Ellen Brand no calabouço analítico do dr. Krokowski. A médium é descrita como uma parturiente, tendo Hans ao seu lado como marido. O objetivo da sessão é o reaparecimento do falecido Joachim. No momento em que o primo vai “surgir” das trevas vermelhas, Hans se conscientiza de que o seu processo de iniciação havia chegado ao seu limite e que estava indo longe demais no seu aprendizado. Pediu desculpas ao primo, em murmúrio, e numa manobra rápida acendeu a luz do lustre51. A atitude de acender a luz lembra uma outra passagem de A Montanha Mágica em que Setembrini também acende a luz do quarto de Hans. Seria a luz da razão tão necessária no momento em que a humanidade parecia estar completamente 49 Idem 638. 50 Ibidem p. 932. 51 Ibidem, idem p. 939.
  • 34. submersa no mundo das trevas e caminhando para uma grande guerra?. Ou então seria mais compreensível recorrermos ao próprio Thomas Mann, para quem há determinados aspectos da vida em que devemos manter um distanciamento respeitoso… Conclusão No romance A Montanha Mágica, o conhecimento alquímico é um agente transformador, uma porta que se abre para que o herói Hans Castorp possa encarar a vida em suas múltiplas experiências e em todas as direções. Na base desse despertar da consciência suprema, o protagonista vai trilhar o caminho da liberdade e dos pressupostos éticos. Ele terá que passar por uma série de provas, reiteradas pela morte e ressurreição, tanto da matéria como do espírito. O processo de “racionalização” das imagens mais remotas do insconsciente assume neste espaço sacralizado, que é a montanha (sanatório de Davos), uma espécie de “cura” ou de concretude das diferentes etapa da iniciação. A exemplo de Friedrich Nietzsche e Carl G. Jung, o escritor alemão Thomas Mann vai trazer para o início da modernidade, marcado pelos ideais do progresso e da
  • 35. ciência, a necessidade premente de se dialogar com os mitos arcaicos que não somente constituem um patrimônio da humanidade como também um espelho oculto, de algum lugar a nos refletir. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche vai evocar as origens dionisíacas da tragédia grega em contraponto à metafísica de Socrátes e Carl Jung vai propor a “iluminação” do insconciente coletivo como uma das metas para alcançar o desenvolvimento psiquíco do indivíduo. Por mais que a sociedade moderna acredite no homem radicalmente desmitificado, ele ainda carrega “ uma mitologia camuflada” e repleta de “ritualismos degradados”, conforme a concepção do estudioso das religiões Mircea Eliade: “os festejos que acompanham o Ano Novo ou a instalação numa casa nova apresentam, ainda que laicizada, a estrutura de um ritual de renovação”52. Para Eliade, o cosmo totalmente dessacralizado é uma descoberta recente na história do espírito humano. Mas se a maior parte das situações simbólicas assumidas pelo homem religioso das sociedades primitivas e civilizações arcaicas foram ultrapassadas pelo racionalismo dos tempos modernos, elas não desapareceram sem deixar vestígios: “contribuíram 52 ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 166.
  • 36. para que nos tornássemos aquilo que somos hoje; fazem parte, portanto, da nossa própria história”53. Referências Bibliográficas BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. BURCKHARDT, Titus. Alquimia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1991. ELIADE, Mircea. Imagens e Símbolos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. _.O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1999. GILCHRIST, Cherry. A Alquimia e seus Mistérios. São Paulo: IBRASA, 1993. JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. _. Psicologia e Alquimia. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1994. MANN, Thomas. A Montanha Mágica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. _.Tônio Kroeger; A Morte em Veneza. São Paulo: Abril Cultural, 1992. 53 Idem p.164.
  • 37. RIMBAUD, Jean-Arthur. Uma Temporada no Inferno & Iluminações. Rio de Janeiro: Franciso Alves, 1982.