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ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
Movimentos sociais do século XIX: história e historiografia
Profa. Dra. Claudete Maria Miranda Dias. Departamento de Geografia e História –
Universidade Federal do Piauí.
Introdução
“A história precisa ser reescrita a cada geração, porque
embora o passado não mude, o presente se modifica; cada
geração formula novas perguntas ao passado e encontra novas
áreas de simpatia à medida que revive distintos aspectos das
experiências de suas predecessoras”1
.
A história do Brasil é plena de movimentos de resistência da população aos padrões de
dominação do colonizador europeu, desde as populações nativas aos escravos negros africanos e
brasileiros, aos mestiços e mulatos, mão-de-obra explorada pelos donos dos meios de produção. E
no final do século XVIII, com o agravamento da crise do sistema colonial brasileiro, sucessivas
rebeliões, insurreições, revoltas, conspirações, motins, distúrbios, quilombos - com a participação
da população livre, pobre e mestiça e dos escravos - ocorrem no Brasil, como as insurreições
mineira, baiana e carioca, a revolução nordestina de 1817, a Confederação do Equador em 1824, as
revoltas provinciais como a Sabinada na Bahia, Balaiada no Piauí e Maranhão, a Cabanagem no
Pará, a Cabanada e a Praieira em Pernambuco e a Farroupilha no Rio Grande do Sul, para citar
apenas as maiores manifestações, sem falar das pequenas sedições do cotidiano e os quilombos da
população negra. Propunham o rompimento do pacto colonial, o fim da escravidão e do monopólio
da terra, o estabelecimento de uma República federativa e o direito à cidadania, ou simplesmente
lutavam para acabar com a dominação portuguesa. Esses movimentos marcam a participação no
processo de independência de setores e camadas da sociedade brasileira, como artesãos, vaqueiros,
lavradores, além de fazendeiros, pequenos proprietários e comerciantes em vários pontos do Brasil.
Todos foram violentamente reprimidos por um eficaz aparato armado pelos governos de Portugal e
depois do Brasil. A repressão deflagrada às manifestações contrárias ao sistema colonial dava-se
tanto de forma coercitiva - com prisões, enforcamentos, fuzilamentos, exílios e devassas ou por
tropas armadas, como cavalaria, infantaria, artilharia, formadas em sua maioria de recrutas e
mercenários.
Por meio de um estudo historiográfico elaborado através de diversos títulos e autores
selecionados elaboramos uma tipologia e mapeamento de importantes movimentos Sociais como a
insurreição de 1817 e a Praieira em Pernambuco e a Balaiada no Maranhão e Piauí - esclarecendo o
nível de participação, organização, composição social, lideranças e reivindicações - durante o
processo de independência do Brasil, um período de transição, quando, principalmente no Nordeste,
1
ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
ocorreram grandes atritos entre os grupos dominantes e as camadas populares, “pobres,
expropriadas, que procuravam libertar-se da dominação em que estavam submetidas”2
.
O processo de independência do Brasil se estendeu do final do século XVIII (1789) - ponto
de partida de manifestações como as conjurações mineira, seguida da baiana e carioca - e prolonga-
se até meados do XIX, (1850), quando se consolida a Monarquia Constitucional e censitária com a
repressão ao último movimento rebelde deste período, a “Praieira”, em Pernambuco. É o fim e um
período de grandes e pequenas manifestações e o início de uma nova ordem econômica com o fim
do tráfico de africanos como escravos e a instituição da Lei de Terras. Foi um longo, penoso e
violento período quando ocorrem enormes transformações mundiais devido, sobretudo ao advento
das revoluções francesa (1789), industrial na Inglaterra (1798), marcando o início de um período de
revoluções no mundo denominado de “era das revoluções” por Eric Hobsbawm3
, no qual se insere
o processo de independência do Brasil.Estes fatos são significativos, pois de alguma forma
encerram em si mesmos uma memória histórica. Mas não são marcos estanques que signifiquem a
conquista da independência, autonomia e soberania nacional do Brasil, pois em termos econômicos
ainda hoje permanecem os laços de dependência às grandes potências mundiais e ao capital
monopolista internacional.
Pernambuco acende a chama da rebeldia
O Nordeste brasileiro, após o apogeu econômico da cana de açúcar no período colonial,
entra em decadência, tendo que abrir mão de uma posição de destaque no cenário nacional para a
região sudeste, provocando uma crise social, política e econômica de tais proporções que foi
inevitável o aparecimento de manifestações sociais de vários setores da população, tornando-se uma
região “insurgente”4
. Essas manifestações, denominadas aqui de movimentos sociais, propagaram-
se pelo Brasil sendo que em Pernambuco, ocorreu o maior número deles, como a revolução de
1817, a Confederação do Equador, a Cabanada e a Praieira. Um dos movimentos ocorridos em
Pernambuco, e que se espalhou por quase toda a região Nordeste, foi a insurreição de 1817,
estudada por diferentes autores por variados ângulos e visões, desde o “papel da elite proprietária”,
à inserção do “processo revolucionário num contexto amplo” e integrado ao processo de
independência do Brasil, além de estudos nos autos das devassas do movimento enfocando a
situação econômica de Pernambuco5
. Com abordagens diferentes, indo do famoso livro de Muniz
Tavares, ativo participante do movimento, publicado pela primeira vez em 1840, a longa
bibliografia se completa com estudos que apontam análises históricas opostas, variando desde a
mais tradicional e oficial, feita por Francisco Adolfo de Varnhagen: “História Geral do Brasil”,
editada ainda no século XIX, à de visão socialista6
.
Um dos estudos mais completos, de Carlos Guilherme Mota, destaca a estreita
relação entre a estrutura mental e social, enfatizando as formas de pensamento, denominadas por
2
ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
ele, como revolucionárias, ajustadas e reformistas, com “determinações liberais, nacionais e
descolonizadoras, que provocaram profundas mudanças nas velhas formas de pensar” daquela
época agregadas em três grandes correntes ideológicas: as formas de pensamento revolucionárias,
as formas de pensamentos ajustadas e as reformistas: “difícil será qualificar o fenômeno global de
revolução, uma vez que não foram alteradas as relações de produção; a menos que se entenda a
revolução como um fenômeno parcial, o que é inconcebível. Nesse caso, é-se obrigado a denominar
o fenômeno de 1817 como movimento insurrecional das elites coloniais”. Em suma, “insurreição”
e não “revolução”. Apesar das mudanças ocorridas, no fundo “a insurreição de 1817 configura uma
revolução falhada” ou “revolução parcial”7
.
A realidade econômica de crise, o clima cotidiano de mal-estar causado por boatos, ofensas
constantes e freqüentes conflitos nas ruas de Recife entre brasileiros e portugueses, além da atuação
das sociedades secretas, ocasionavam insegurança e mobilização social. O movimento estourou em
6 de março de 1817, na província de Pernambuco, na época, uma das mais representativas em
termos políticos e econômicos, no contexto colonial português, abalado pela generalizada crise do
próprio sistema colonial no final do século XVIII e começo do XIX. Ao lado da Bahia e do Rio de
Janeiro, Pernambuco contribuía consideravelmente com algodão e açúcar no mercado europeu,
distribuídos por Portugal, que controlava a maior parte do comércio pernambucano, não apenas dos
produtos tropicais, mas também o de escravos e outras mercadorias de exportação. Essa prática
monopolista restringia as necessidades do capitalismo industrial nascente, provocando reações por
parte dos produtores brasileiros ansiosos pelo livre comércio, contra os privilégios dos comerciantes
portugueses. Esse contexto de expansão da economia e de insatisfação de setores sociais ligados ao
comércio e da “massa popular”, entre outros problemas, “constituíram o pano de fundo da explosão
das contradições econômicas, políticas e sociais da sociedade pernambucana” culminando com a
rebelião, como enfatiza Glacyra Leite8
. O movimento de 1817 - denominado insurreição, revolução,
revolta, rebelião - partiu dos sintomas da crise generalizada do antigo sistema colonial no final do
século XVIII e início do XIX. Com duração de 74 dias, “chegou a concretizar, o fim da dominação
portuguesa na região nordestina e a adoção do sistema republicano de governo”. Os insurgentes
com apoio da população de Recife, militares e civis, idealizaram um novo Governo provisório da
república de Pernambuco, a exemplo do que acontecera nos Estados Unidos da América, formado
pela elite - clero, magistratura, comércio, agricultura e militar. Temendo a reação portuguesa e a
radicalização da “massa popular” nas ruas, demonstra fragilidade na sua composição: os setores
populares que apoiaram a derrubada das autoridades portuguesas ficaram ausentes: “o apoio popular
passou a ser incômodo e, por isso mesmo, desconsiderado na composição do novo governo”,
caracterizando-o pela defesa e manutenção da escravidão, limitando o ideário liberal e
demonstrando que as manifestações dos setores populares deviam ser controladas9
. Nas
3
ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
proclamações divulgadas, defendia-se o fim da dominação de Portugal, a implantação da república
e a autonomia política e administrativa, mas sustentava a grande propriedade e a escravidão, de
acordo com as características do liberalismo em vigor no Brasil. Essa característica do movimento
revolucionário de 1817, de participação conjunta da sociedade para derrubada da dominação
portuguesa, liberação comercial, autonomia administrativa e política, mas a manutenção da
escravidão e da grande propriedade, encontra-se em outros movimentos do período, pela
independência do Brasil, devido, sobretudo ao fato da liderança está a cargo das elites políticas e
econômicas. A historiadora Emília Viotti da Costa classificou esta tendência de “limites do
liberalismo no Brasil”10
, limite este que se encontra em outro movimento de grande repercussão,
como a Confederação do Equador, deflagrada também na Província de Pernambuco, no ano de 1824
expandindo-se pelas províncias nordestinas.
Ainda em Pernambuco ocorreu o último movimento do processo de independência: a Praieira,
em 1848, registrada com diversas nomeações, desde revolta, rebelião, revolução e insurreição. Uma
nova visão da Praieira em Pernambuco é traçada por Isabel Marson, em um dos estudos mais
importantes: apoiada nos documentos dos processos de julgamento dos implicados diretamente
reconstitui o movimento. Reinterpreta criticamente as fontes disponíveis - escrita pelos participantes
- mostra o movimento como um dos conflitos armados ocorridos durante o período de lutas pela
independência do Brasil, identificando-o de acordo com “os padrões de comportamentos políticos
estabelecidos” na época. Para esta autora, a Praieira foi um movimento específico e único no
cenário nacional da época: a “Praieira representaria o episódio brasileiro no ciclo revolucionário
europeu de 1848”. Ela reinterpreta as visões de contemporâneos do movimento como Urbano
Sabino e Figueira de Mello, que defendem os praieiros e os acusam, interpretações e que serviram
de estratégia de interpretação para outros historiadores e “servem de fontes para historiadores
insuspeitos que utilizam o mesmo enfoque metodológico para os fatos recolhidos e pinçados
estrategicamente e informações fragmentárias, aceitos como o real cada um interpretando à sua
maneira e de acordo com os interesses imediatos”11
.
A nova historiografia sobre a Praieira, em especial o livro de Marson estabelece uma
polêmica com estes textos considerados hegemônicos através da confrontação, conseguindo
recompor as “múltiplas facetas de cada momento histórico discutido nas fontes” e resgatando as
“contradições ocultas” ao mesmo tempo em que “busca um sentido político e pragmático do tema
mesmo correndo o risco de estudar um tema polêmico, privilegiado por vários historiadores”.
Utilizando outras fontes como a imprensa, “a política parlamentar e a obra acadêmica”, a autora
“reconstrói os liames da participação popular e da repressão”; reconstrui passo a passo a guerra
civil, inclusive as batalhas, para então “dialogar com a historiografia hegemônica de versão única e
que dominou todo o tempo”, com uma visão linear do movimento, que omite duas batalhas
4
ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
importantes, obscurece o papel do “Partido da Praia”; justifica as medidas empregadas pelos
conservadores usadas contra os “rebeldes” e as principais lideranças acusadas e julgadas. Esta visão
“preenche as lacunas sobre a perspectiva dos praieiros” na historiografia hegemônica que defende
os praieiros, rebate as críticas dos que os acusavam de “crime de rebelião”, denuncia as “práticas
repressivas usadas pelas autoridades contra os participantes do movimento” considerado como uma
revolução, onde “estão as origens do socialismo brasileiro”, reforçada por alguns autores que dão
destaque aos personagens que participaram do momento histórico12
.
Os balaios do Maranhão e Piauí
A década de 30 do século XIX foi povoada de manifestações sociais no Brasil, acirradas
pelas questões políticas mal resolvidas pela Regência, considerado um dos períodos mais violentos
da história do Brasil do século passado. Entre os movimentos sociais do período, outro se destaca
por sua amplidão, duração, composição social e repressão: a Balaiada, ocorrida no Piauí e
Maranhão entre os anos de 1838 a 1841.Grande parte da historiografia oficial brasileira, sobre a
Balaiada13
privilegia o movimento apenas no Maranhão, sendo o Piauí apenas um prolongamento.
Para esta historiografia os “balaios” eram um bando de facínoras, sanguinários rebeldes e
verdadeiros bandidos, “uma lavra que infesta e assusta a província”, vadios e perversos sertanejos
que ameaçavam a tranqüilidade, sob a liderança do Balaio, um “desabusado crioulo”.O movimento
é visto sob a ótica dos que comandaram a repressão: “é uma mancha negra da história do Brasil”, tal
a violência dos rebeldes e uma ameaça à ordem estabelecida, enquanto as “forças da legalidade” são
enaltecidas como heróicas e patrióticas, valentes e bravas e de “admirável valor e disciplina” com
destaque para a atuação do Cel. Luís Alves de Lima14
, designado pelo governo imperial governador
das armas e presidente da Província do Maranhão para pacificar “toda a zona conflagrada
das“forças legais”. Esta repressão é considerada como pacificação merecendo destaque na maioria
dos estudos da historiografia dominante essencialmente sem se dá ao trabalho de questionar as
fontes, apenas se contentando em reproduzir a linguagem da repressão, cujo conteúdo resume-se ao
relato minucioso dos acontecimentos, obedecendo a uma ordem cronológica dos fatos, ou: “a
marcha que ia tendo a rebelião”. Os documentos oficiais servem de base para um relato horripilante
do movimento, contribuindo para uma visão distorcida que vigorou durante muitos anos na
historiografia brasileira.
Nos anos 1950 surgiu uma outra vertente historiográfica que introduz a Balaiada na história
como um movimento revolucionário descaracterizado de banditismo. Articulado com o processo de
independência do Brasil e o período regencial que suscitaram um “espírito revolucionário” da
massa oprimida e que atingiu o Império em várias décadas, como a guerra dos Farrapos, Sabinada,
Praieira, Cabanagem e outros. A Balaiada está inserida na “era revolucionária” da Regência e se
articula em 200 anos de formação política e social do Maranhão. As argumentações fundamentam-
5
ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
se em fontes primárias e bibliográficas, elaborando uma interpretação que utiliza o aspecto
geográfico do Maranhão para descaracterizar o movimento como de bandidos. Por suas
características físicas, não haveria lugar para bandidos: a geografia onde ocorreu o movimento não
oferece contornos para o banditismo por isto considerar a Balaiada como uma rebelião de massa
composta do povo, da plebe, vaqueiros, lavradores, camponeses, artesãos, negros, mestiços e
cafuzos que ousaram enfrentar a ordem dominante.
A nova historiografia15
que surgiu no final dos anos 1980 aborda a Balaiada no Maranhão,
através da pesquisa oral, e ao mesmo tempo faz uma interpretação da historiografia para mostrar em
uma linguagem regional, a situação da população maranhense durante o tempo de cativeiro, tempo
de fartura, do pega e da guerra propriamente. Ressalta a importância da memória oral, considerando
que os documentos existentes originarem-se em sua maioria dos “agentes da repressão”, por isso, a
necessidade que o historiador tem de saber manusear e interpretar as fontes. A utilização da tradição
oral sobre acontecimentos ocorridos na década de 1940 do século passado resulta em uma ousadia
muito grande, mas permite uma reconstituição da versão popular da Balaiada e desmitificá-lo como
um movimento de bandidos. Ao mesmo tempo em que valoriza uma metodologia histórica, de certa
forma negligenciada pelos historiadores do passado, mas bastante valorizada pelas ciências sociais é
uma prova de que é possível resgatar a memória longínqua por meio da oralidade, levando-se em
conta, é claro, os equívocos, lacunas e interpretações, risco este que existe também na
documentação escrita.
Nos anos 1980 surge uma outra historiografia fruto de pesquisas para Teses de Doutorado,
seguindo a linha da nova história social imprescindível para a historiografia da Balaiada no
Maranhão Entre os trabalhos mais recentes sobre a Balaiada16
, que mesmo limitando-se a estudar o
movimento no Maranhão, volta para a análise da situação econômica da província, onde estariam as
causas primordiais para a eclosão de um movimento dessa natureza e outros que tratam
especificamente da participação dos escravos no movimento, resgatando a luta e resistência deles
pela liberdade apontando para uma das questões centrais do movimento: a ligação dos escravos com
os balaios, compreendida na forma pela qual o escravo foi inserido no sistema produtivo do
Maranhão. Com a crise da lavoura, as lutas pela independência e as cisões no seio da classe
dominante, as condições de vida da população pobre e dos escravos criaram “pontos passíveis de
aproximação”. No decorrer do movimento essa aproximação avança, mas as forças do Governo
comandadas por Luís Alves de Lima tudo fizeram para impedir a união, temendo o fortalecimento
do movimento concluindo que apesar da união, existiram dois movimentos simultâneos: a
insurreição dos escravos e a revolta dos sertanejos. Essa união seria em um determinado momento
do movimento cuja repressão conseguiu destruí-la.
6
ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
Somente nos anos 70 do século XX é que surge uma historiografia da Balaiada no Piauí,
sendo Odilon Nunes o primeiro autor a estudá-la, dedicando-lhe um volume de sua obra “Pesquisas
para a História do Piauí”17
. Transcreve um grande volume de fontes primárias relativas ao
movimento até então inexploradas, consideradas por ele, como “um opulento manancial em grande
parte desconhecido”. Pela primeira vez propõe-se a restabelecer a verdade histórica e se possível
“reivindicar um julgamento menos injusto dos camponeses que se sublevaram contra o regime em
um período caótico da história do Brasil”. Sendo um misto de historiografia tradicional e positivista,
utiliza o próprio documento, para descrever o desenrolar do movimento caracterizado como revolta,
rebelião, insurreição e até como revolução, sobre a massa popular, os combates, destacando a
organização das forças legais, em especial a atuação de Luís Alves de Lima. Seguindo os passos
dessa historiografia pioneira, em meados dos anos 1980 surgem as primeiras Dissertações de
Mestrado de historiadores piauienses com duas vertentes: uma que desmistifica a visão de
movimento de bandidos, mas que ainda considera, o movimento no Piauí, como de caráter
oligárquico, sendo que os balaios, que compunham a massa que participou do movimento, seriam
apenas massa de manobra das lideranças liberais, formadas por ricos fazendeiros descontentes como
o governo da época; e outra que pode ser inserida na nova história da Balaiada no Piauí, onde é
destacada a participação das camadas populares e da repressão, a composição social, lideranças,
reivindicações, organização e área de atuação, baseando-me em vasta documentação primária e
historiográfica. Ambas vertentes contextualizam o Piauí desde a época colonial onde estão as bases
para a sociedade do século XIX e o processo de independência por meio de um estudo
historiográfico preliminar, destacando a dizimação das populações nativas durante a colonização e
lançando as primeiras indagações sobre a participação popular no processo de independência do
Brasil18
.
Completando esta pequena historiografia, destaca-se uma em forma de romance Renato
Castelo Branco19
, que faz um apanhado dos principais combates travados no Piauí e Maranhão.
Através de uma linguagem literária mesclando ficção e realidade, alguns personagens são criados
misturando-se com os autênticos, dando uma visão que se aproxima da oficial, ou seja, a que
considera os balaios como bandidos. Mas por outro lado, resgata o cotidiano dos vaqueiros e
artesãos que se envolveram no movimento por meio de situações reais, traduzindo em forma
literária, usos e costumes das categorias sociais mais importantes do movimento e parte integrante
de uma da sociedade rural.
Considerações historiográficas
A partir do início dos anos 1970, surgiram diversos estudos sobre os movimentos sociais no
Brasil, enfocando a história das camadas populares ou da resistência e luta dos escravos no século
XIX, acentuando aspectos de uma “história vista de baixo”20
. Fugindo da história apolégita ou
7
ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
8
tendenciosa dos positivistas que vêem as camadas populares como bandidos, “arraia miúda”, “ralé”
e “plebe ignara”, essa historiografia é o resultado de pesquisas de dissertações de mestrado e teses
de doutorado, uma história nova, por se preocupar em mostrar a dinâmica conflituosa da realidade
histórica, rompendo com a visão de uma história linear da historiografia tradicional, em vigor no
Brasil durante séculos.
A historiografia sobre os movimentos sociais do século XIX no Brasil abriu para uma visão
da história do Brasil a partir da adoção de novas abordagens metodológicas e novas fontes
documentais, rompendo com a visão tradicional ao mostrar que as camadas populares brasileiras
participaram de manifestações em defesa de seus interesses e contra uma ordem dominante elitista e
autoritária, em vigor no Brasil desde o início da colonização21
. Este estudo historiográfico se propôs
acentuar o papel da gente comum, de homens e mulheres que participaram de numerosos
movimentos sociais e populares ocorridos em várias províncias brasileiras, praticamente apagados,
para dar lugar à história ou à “versão falsa que oculta deliberadamente as lutas e os conflitos”.
NOTAS:
1 - HILL, Christhoper. O mundo de ponta cabeça. Idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradução e
apresentação de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. p. 32;
2 - ANDRADE, Manoel Correia de. (Org.) Movimentos populares no Nordeste no período regência. - Recife: Edição
Massangana, 1989. Resultado de um seminário comemorativo do sesquicentenário da guerra dos cabanos em
Pernambuco;
3
- HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. 1789/184; tradução Maria Teresa L. Teixeira e Marcos Penche. - Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977
4 - MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Nordeste insurgente. 1850-1890. - São Paulo: Brasiliense, 1981;
5 - MARSON, Isabel. O império do progresso. - São Paulo: Brasiliense. 1987;
6 - QUINTAS, Amaro. O sentido social da revolução praieira. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967;
7 - Nordeste 1817: estrutura e argumentos. São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1972. p. 9 à 155. Escrito originalmente com
tese de doutorado na USP, em 1970, apresenta um ampla bibliografia e fontes documentais sobre o tema.
8 - LEITE, Glacyra L. “Estrutura e comportamento sociais: Pernambuco em 1817”.- São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 7.
9 - Idem, Ibidem, p. 14 e p. 42;
10 - COSTA, Emília Viotti da. “ O processo de emancipação do Brasil”. IN: MOTA, Carlos Guilherme da. Brasil em
Perspectiva. São Paulo: Difel, 1975.
11 - MARSON. Isabel. O império do progresso. A revolução praieira. - São Paulo: Brasiliense, 1987 p. 17.
12 - Entre os autores que estudaram a Praieira destaca-se Jerônimo Martiniano Figueira de Melo, Chefe de Polícia
durante o movimento, que faz uma compilação dos Autos do inquérito da Praieira. O autor faz uma leitura
reconstituindo-o minuciosamente a partir da sua visão de Chefe de Polícia que comandou a repressão aos praieiros.
Outro autor contemporâneo é Urbano Sabino Pessoa de Melo. Deputado juiz de Direito e historiador da Praieira. O
citado livro de Amaro Quintas sobre a Praieira faz uma abordagem revolucionária. Para o autor o movimento construiu-
se sob a influência das comemorações do centenário da Praieira em 1948, reforçada pela visão do livro de Vamireh
Chacon, “História da idéias socialistas no Brasil”. S/c., s/ed., s/d.
13 - OTAVIO, Rodrigo. A Balaiada, 1839: depoimento de um dos heróis do cerco de Caxias sobre a revolução dos
balaios. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, T. LXV, parte II, 1903. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942;
14 - Depois Barão de Caxias por ter reprimido ou pacificado a Cidade de Caxias Depois recebeu o título de Duque de
Caxias, por ter “pacificado” o Rio Grande do Sul;
15 - ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. A guerra dos Bem-te-vis: a Balaiada na memória oral. - São Luís: Sioge, 1988.
16 - SANTOS, Maria Januária Vilela. A Balaiada e a insurreição de escravos no Maranhão. - São Paulo: Ática, 1983;
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. A Balaiada. - São Paulo: Brasiliense, 1987;
17 - NUNES, Odilon. Pesquisas para a História do Piauí. Rio de Janeiro, Artenova, 1975.
18 - OLIVEIRA, Maria Amélia Mendes de. A Balaiada no Piauí.- Teresina: Projeto Perônio Portella, 1987; DIAS,
Claudete Maria Miranda. Balaios e Bem-te-vis: a guerrilha sertaneja. - Teresina: Fundação Monsenhor Chaves, 1995.
19 - CASTELO BRANCO, Renato. Senhores e escravos: a Balaiada. - São Paulo, LREditores, 1983.
ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003.
9
20 - Esta expressão foi usada por: RUDÉ, George. A multidão na história. Estudos dos movimentos populares na França
e na Inglaterra-1730/1848. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Campus, 1991
21
- Nos anos de 1970 a história social no Brasil passava por um estágio de elaboração. Mas nas décadas de 1980 e
1990, a história tem se preocupado mais em estudar os movimentos sociais. Vide: DIAS, Claudete Maria Miranda Dias.
Balaios e Bem-te-vis: a guerrilha sertaneja. Teresina, Fundação Mons. Chaves, 1996.

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  • 1. ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. Movimentos sociais do século XIX: história e historiografia Profa. Dra. Claudete Maria Miranda Dias. Departamento de Geografia e História – Universidade Federal do Piauí. Introdução “A história precisa ser reescrita a cada geração, porque embora o passado não mude, o presente se modifica; cada geração formula novas perguntas ao passado e encontra novas áreas de simpatia à medida que revive distintos aspectos das experiências de suas predecessoras”1 . A história do Brasil é plena de movimentos de resistência da população aos padrões de dominação do colonizador europeu, desde as populações nativas aos escravos negros africanos e brasileiros, aos mestiços e mulatos, mão-de-obra explorada pelos donos dos meios de produção. E no final do século XVIII, com o agravamento da crise do sistema colonial brasileiro, sucessivas rebeliões, insurreições, revoltas, conspirações, motins, distúrbios, quilombos - com a participação da população livre, pobre e mestiça e dos escravos - ocorrem no Brasil, como as insurreições mineira, baiana e carioca, a revolução nordestina de 1817, a Confederação do Equador em 1824, as revoltas provinciais como a Sabinada na Bahia, Balaiada no Piauí e Maranhão, a Cabanagem no Pará, a Cabanada e a Praieira em Pernambuco e a Farroupilha no Rio Grande do Sul, para citar apenas as maiores manifestações, sem falar das pequenas sedições do cotidiano e os quilombos da população negra. Propunham o rompimento do pacto colonial, o fim da escravidão e do monopólio da terra, o estabelecimento de uma República federativa e o direito à cidadania, ou simplesmente lutavam para acabar com a dominação portuguesa. Esses movimentos marcam a participação no processo de independência de setores e camadas da sociedade brasileira, como artesãos, vaqueiros, lavradores, além de fazendeiros, pequenos proprietários e comerciantes em vários pontos do Brasil. Todos foram violentamente reprimidos por um eficaz aparato armado pelos governos de Portugal e depois do Brasil. A repressão deflagrada às manifestações contrárias ao sistema colonial dava-se tanto de forma coercitiva - com prisões, enforcamentos, fuzilamentos, exílios e devassas ou por tropas armadas, como cavalaria, infantaria, artilharia, formadas em sua maioria de recrutas e mercenários. Por meio de um estudo historiográfico elaborado através de diversos títulos e autores selecionados elaboramos uma tipologia e mapeamento de importantes movimentos Sociais como a insurreição de 1817 e a Praieira em Pernambuco e a Balaiada no Maranhão e Piauí - esclarecendo o nível de participação, organização, composição social, lideranças e reivindicações - durante o processo de independência do Brasil, um período de transição, quando, principalmente no Nordeste, 1
  • 2. ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. ocorreram grandes atritos entre os grupos dominantes e as camadas populares, “pobres, expropriadas, que procuravam libertar-se da dominação em que estavam submetidas”2 . O processo de independência do Brasil se estendeu do final do século XVIII (1789) - ponto de partida de manifestações como as conjurações mineira, seguida da baiana e carioca - e prolonga- se até meados do XIX, (1850), quando se consolida a Monarquia Constitucional e censitária com a repressão ao último movimento rebelde deste período, a “Praieira”, em Pernambuco. É o fim e um período de grandes e pequenas manifestações e o início de uma nova ordem econômica com o fim do tráfico de africanos como escravos e a instituição da Lei de Terras. Foi um longo, penoso e violento período quando ocorrem enormes transformações mundiais devido, sobretudo ao advento das revoluções francesa (1789), industrial na Inglaterra (1798), marcando o início de um período de revoluções no mundo denominado de “era das revoluções” por Eric Hobsbawm3 , no qual se insere o processo de independência do Brasil.Estes fatos são significativos, pois de alguma forma encerram em si mesmos uma memória histórica. Mas não são marcos estanques que signifiquem a conquista da independência, autonomia e soberania nacional do Brasil, pois em termos econômicos ainda hoje permanecem os laços de dependência às grandes potências mundiais e ao capital monopolista internacional. Pernambuco acende a chama da rebeldia O Nordeste brasileiro, após o apogeu econômico da cana de açúcar no período colonial, entra em decadência, tendo que abrir mão de uma posição de destaque no cenário nacional para a região sudeste, provocando uma crise social, política e econômica de tais proporções que foi inevitável o aparecimento de manifestações sociais de vários setores da população, tornando-se uma região “insurgente”4 . Essas manifestações, denominadas aqui de movimentos sociais, propagaram- se pelo Brasil sendo que em Pernambuco, ocorreu o maior número deles, como a revolução de 1817, a Confederação do Equador, a Cabanada e a Praieira. Um dos movimentos ocorridos em Pernambuco, e que se espalhou por quase toda a região Nordeste, foi a insurreição de 1817, estudada por diferentes autores por variados ângulos e visões, desde o “papel da elite proprietária”, à inserção do “processo revolucionário num contexto amplo” e integrado ao processo de independência do Brasil, além de estudos nos autos das devassas do movimento enfocando a situação econômica de Pernambuco5 . Com abordagens diferentes, indo do famoso livro de Muniz Tavares, ativo participante do movimento, publicado pela primeira vez em 1840, a longa bibliografia se completa com estudos que apontam análises históricas opostas, variando desde a mais tradicional e oficial, feita por Francisco Adolfo de Varnhagen: “História Geral do Brasil”, editada ainda no século XIX, à de visão socialista6 . Um dos estudos mais completos, de Carlos Guilherme Mota, destaca a estreita relação entre a estrutura mental e social, enfatizando as formas de pensamento, denominadas por 2
  • 3. ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. ele, como revolucionárias, ajustadas e reformistas, com “determinações liberais, nacionais e descolonizadoras, que provocaram profundas mudanças nas velhas formas de pensar” daquela época agregadas em três grandes correntes ideológicas: as formas de pensamento revolucionárias, as formas de pensamentos ajustadas e as reformistas: “difícil será qualificar o fenômeno global de revolução, uma vez que não foram alteradas as relações de produção; a menos que se entenda a revolução como um fenômeno parcial, o que é inconcebível. Nesse caso, é-se obrigado a denominar o fenômeno de 1817 como movimento insurrecional das elites coloniais”. Em suma, “insurreição” e não “revolução”. Apesar das mudanças ocorridas, no fundo “a insurreição de 1817 configura uma revolução falhada” ou “revolução parcial”7 . A realidade econômica de crise, o clima cotidiano de mal-estar causado por boatos, ofensas constantes e freqüentes conflitos nas ruas de Recife entre brasileiros e portugueses, além da atuação das sociedades secretas, ocasionavam insegurança e mobilização social. O movimento estourou em 6 de março de 1817, na província de Pernambuco, na época, uma das mais representativas em termos políticos e econômicos, no contexto colonial português, abalado pela generalizada crise do próprio sistema colonial no final do século XVIII e começo do XIX. Ao lado da Bahia e do Rio de Janeiro, Pernambuco contribuía consideravelmente com algodão e açúcar no mercado europeu, distribuídos por Portugal, que controlava a maior parte do comércio pernambucano, não apenas dos produtos tropicais, mas também o de escravos e outras mercadorias de exportação. Essa prática monopolista restringia as necessidades do capitalismo industrial nascente, provocando reações por parte dos produtores brasileiros ansiosos pelo livre comércio, contra os privilégios dos comerciantes portugueses. Esse contexto de expansão da economia e de insatisfação de setores sociais ligados ao comércio e da “massa popular”, entre outros problemas, “constituíram o pano de fundo da explosão das contradições econômicas, políticas e sociais da sociedade pernambucana” culminando com a rebelião, como enfatiza Glacyra Leite8 . O movimento de 1817 - denominado insurreição, revolução, revolta, rebelião - partiu dos sintomas da crise generalizada do antigo sistema colonial no final do século XVIII e início do XIX. Com duração de 74 dias, “chegou a concretizar, o fim da dominação portuguesa na região nordestina e a adoção do sistema republicano de governo”. Os insurgentes com apoio da população de Recife, militares e civis, idealizaram um novo Governo provisório da república de Pernambuco, a exemplo do que acontecera nos Estados Unidos da América, formado pela elite - clero, magistratura, comércio, agricultura e militar. Temendo a reação portuguesa e a radicalização da “massa popular” nas ruas, demonstra fragilidade na sua composição: os setores populares que apoiaram a derrubada das autoridades portuguesas ficaram ausentes: “o apoio popular passou a ser incômodo e, por isso mesmo, desconsiderado na composição do novo governo”, caracterizando-o pela defesa e manutenção da escravidão, limitando o ideário liberal e demonstrando que as manifestações dos setores populares deviam ser controladas9 . Nas 3
  • 4. ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. proclamações divulgadas, defendia-se o fim da dominação de Portugal, a implantação da república e a autonomia política e administrativa, mas sustentava a grande propriedade e a escravidão, de acordo com as características do liberalismo em vigor no Brasil. Essa característica do movimento revolucionário de 1817, de participação conjunta da sociedade para derrubada da dominação portuguesa, liberação comercial, autonomia administrativa e política, mas a manutenção da escravidão e da grande propriedade, encontra-se em outros movimentos do período, pela independência do Brasil, devido, sobretudo ao fato da liderança está a cargo das elites políticas e econômicas. A historiadora Emília Viotti da Costa classificou esta tendência de “limites do liberalismo no Brasil”10 , limite este que se encontra em outro movimento de grande repercussão, como a Confederação do Equador, deflagrada também na Província de Pernambuco, no ano de 1824 expandindo-se pelas províncias nordestinas. Ainda em Pernambuco ocorreu o último movimento do processo de independência: a Praieira, em 1848, registrada com diversas nomeações, desde revolta, rebelião, revolução e insurreição. Uma nova visão da Praieira em Pernambuco é traçada por Isabel Marson, em um dos estudos mais importantes: apoiada nos documentos dos processos de julgamento dos implicados diretamente reconstitui o movimento. Reinterpreta criticamente as fontes disponíveis - escrita pelos participantes - mostra o movimento como um dos conflitos armados ocorridos durante o período de lutas pela independência do Brasil, identificando-o de acordo com “os padrões de comportamentos políticos estabelecidos” na época. Para esta autora, a Praieira foi um movimento específico e único no cenário nacional da época: a “Praieira representaria o episódio brasileiro no ciclo revolucionário europeu de 1848”. Ela reinterpreta as visões de contemporâneos do movimento como Urbano Sabino e Figueira de Mello, que defendem os praieiros e os acusam, interpretações e que serviram de estratégia de interpretação para outros historiadores e “servem de fontes para historiadores insuspeitos que utilizam o mesmo enfoque metodológico para os fatos recolhidos e pinçados estrategicamente e informações fragmentárias, aceitos como o real cada um interpretando à sua maneira e de acordo com os interesses imediatos”11 . A nova historiografia sobre a Praieira, em especial o livro de Marson estabelece uma polêmica com estes textos considerados hegemônicos através da confrontação, conseguindo recompor as “múltiplas facetas de cada momento histórico discutido nas fontes” e resgatando as “contradições ocultas” ao mesmo tempo em que “busca um sentido político e pragmático do tema mesmo correndo o risco de estudar um tema polêmico, privilegiado por vários historiadores”. Utilizando outras fontes como a imprensa, “a política parlamentar e a obra acadêmica”, a autora “reconstrói os liames da participação popular e da repressão”; reconstrui passo a passo a guerra civil, inclusive as batalhas, para então “dialogar com a historiografia hegemônica de versão única e que dominou todo o tempo”, com uma visão linear do movimento, que omite duas batalhas 4
  • 5. ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. importantes, obscurece o papel do “Partido da Praia”; justifica as medidas empregadas pelos conservadores usadas contra os “rebeldes” e as principais lideranças acusadas e julgadas. Esta visão “preenche as lacunas sobre a perspectiva dos praieiros” na historiografia hegemônica que defende os praieiros, rebate as críticas dos que os acusavam de “crime de rebelião”, denuncia as “práticas repressivas usadas pelas autoridades contra os participantes do movimento” considerado como uma revolução, onde “estão as origens do socialismo brasileiro”, reforçada por alguns autores que dão destaque aos personagens que participaram do momento histórico12 . Os balaios do Maranhão e Piauí A década de 30 do século XIX foi povoada de manifestações sociais no Brasil, acirradas pelas questões políticas mal resolvidas pela Regência, considerado um dos períodos mais violentos da história do Brasil do século passado. Entre os movimentos sociais do período, outro se destaca por sua amplidão, duração, composição social e repressão: a Balaiada, ocorrida no Piauí e Maranhão entre os anos de 1838 a 1841.Grande parte da historiografia oficial brasileira, sobre a Balaiada13 privilegia o movimento apenas no Maranhão, sendo o Piauí apenas um prolongamento. Para esta historiografia os “balaios” eram um bando de facínoras, sanguinários rebeldes e verdadeiros bandidos, “uma lavra que infesta e assusta a província”, vadios e perversos sertanejos que ameaçavam a tranqüilidade, sob a liderança do Balaio, um “desabusado crioulo”.O movimento é visto sob a ótica dos que comandaram a repressão: “é uma mancha negra da história do Brasil”, tal a violência dos rebeldes e uma ameaça à ordem estabelecida, enquanto as “forças da legalidade” são enaltecidas como heróicas e patrióticas, valentes e bravas e de “admirável valor e disciplina” com destaque para a atuação do Cel. Luís Alves de Lima14 , designado pelo governo imperial governador das armas e presidente da Província do Maranhão para pacificar “toda a zona conflagrada das“forças legais”. Esta repressão é considerada como pacificação merecendo destaque na maioria dos estudos da historiografia dominante essencialmente sem se dá ao trabalho de questionar as fontes, apenas se contentando em reproduzir a linguagem da repressão, cujo conteúdo resume-se ao relato minucioso dos acontecimentos, obedecendo a uma ordem cronológica dos fatos, ou: “a marcha que ia tendo a rebelião”. Os documentos oficiais servem de base para um relato horripilante do movimento, contribuindo para uma visão distorcida que vigorou durante muitos anos na historiografia brasileira. Nos anos 1950 surgiu uma outra vertente historiográfica que introduz a Balaiada na história como um movimento revolucionário descaracterizado de banditismo. Articulado com o processo de independência do Brasil e o período regencial que suscitaram um “espírito revolucionário” da massa oprimida e que atingiu o Império em várias décadas, como a guerra dos Farrapos, Sabinada, Praieira, Cabanagem e outros. A Balaiada está inserida na “era revolucionária” da Regência e se articula em 200 anos de formação política e social do Maranhão. As argumentações fundamentam- 5
  • 6. ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. se em fontes primárias e bibliográficas, elaborando uma interpretação que utiliza o aspecto geográfico do Maranhão para descaracterizar o movimento como de bandidos. Por suas características físicas, não haveria lugar para bandidos: a geografia onde ocorreu o movimento não oferece contornos para o banditismo por isto considerar a Balaiada como uma rebelião de massa composta do povo, da plebe, vaqueiros, lavradores, camponeses, artesãos, negros, mestiços e cafuzos que ousaram enfrentar a ordem dominante. A nova historiografia15 que surgiu no final dos anos 1980 aborda a Balaiada no Maranhão, através da pesquisa oral, e ao mesmo tempo faz uma interpretação da historiografia para mostrar em uma linguagem regional, a situação da população maranhense durante o tempo de cativeiro, tempo de fartura, do pega e da guerra propriamente. Ressalta a importância da memória oral, considerando que os documentos existentes originarem-se em sua maioria dos “agentes da repressão”, por isso, a necessidade que o historiador tem de saber manusear e interpretar as fontes. A utilização da tradição oral sobre acontecimentos ocorridos na década de 1940 do século passado resulta em uma ousadia muito grande, mas permite uma reconstituição da versão popular da Balaiada e desmitificá-lo como um movimento de bandidos. Ao mesmo tempo em que valoriza uma metodologia histórica, de certa forma negligenciada pelos historiadores do passado, mas bastante valorizada pelas ciências sociais é uma prova de que é possível resgatar a memória longínqua por meio da oralidade, levando-se em conta, é claro, os equívocos, lacunas e interpretações, risco este que existe também na documentação escrita. Nos anos 1980 surge uma outra historiografia fruto de pesquisas para Teses de Doutorado, seguindo a linha da nova história social imprescindível para a historiografia da Balaiada no Maranhão Entre os trabalhos mais recentes sobre a Balaiada16 , que mesmo limitando-se a estudar o movimento no Maranhão, volta para a análise da situação econômica da província, onde estariam as causas primordiais para a eclosão de um movimento dessa natureza e outros que tratam especificamente da participação dos escravos no movimento, resgatando a luta e resistência deles pela liberdade apontando para uma das questões centrais do movimento: a ligação dos escravos com os balaios, compreendida na forma pela qual o escravo foi inserido no sistema produtivo do Maranhão. Com a crise da lavoura, as lutas pela independência e as cisões no seio da classe dominante, as condições de vida da população pobre e dos escravos criaram “pontos passíveis de aproximação”. No decorrer do movimento essa aproximação avança, mas as forças do Governo comandadas por Luís Alves de Lima tudo fizeram para impedir a união, temendo o fortalecimento do movimento concluindo que apesar da união, existiram dois movimentos simultâneos: a insurreição dos escravos e a revolta dos sertanejos. Essa união seria em um determinado momento do movimento cuja repressão conseguiu destruí-la. 6
  • 7. ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. Somente nos anos 70 do século XX é que surge uma historiografia da Balaiada no Piauí, sendo Odilon Nunes o primeiro autor a estudá-la, dedicando-lhe um volume de sua obra “Pesquisas para a História do Piauí”17 . Transcreve um grande volume de fontes primárias relativas ao movimento até então inexploradas, consideradas por ele, como “um opulento manancial em grande parte desconhecido”. Pela primeira vez propõe-se a restabelecer a verdade histórica e se possível “reivindicar um julgamento menos injusto dos camponeses que se sublevaram contra o regime em um período caótico da história do Brasil”. Sendo um misto de historiografia tradicional e positivista, utiliza o próprio documento, para descrever o desenrolar do movimento caracterizado como revolta, rebelião, insurreição e até como revolução, sobre a massa popular, os combates, destacando a organização das forças legais, em especial a atuação de Luís Alves de Lima. Seguindo os passos dessa historiografia pioneira, em meados dos anos 1980 surgem as primeiras Dissertações de Mestrado de historiadores piauienses com duas vertentes: uma que desmistifica a visão de movimento de bandidos, mas que ainda considera, o movimento no Piauí, como de caráter oligárquico, sendo que os balaios, que compunham a massa que participou do movimento, seriam apenas massa de manobra das lideranças liberais, formadas por ricos fazendeiros descontentes como o governo da época; e outra que pode ser inserida na nova história da Balaiada no Piauí, onde é destacada a participação das camadas populares e da repressão, a composição social, lideranças, reivindicações, organização e área de atuação, baseando-me em vasta documentação primária e historiográfica. Ambas vertentes contextualizam o Piauí desde a época colonial onde estão as bases para a sociedade do século XIX e o processo de independência por meio de um estudo historiográfico preliminar, destacando a dizimação das populações nativas durante a colonização e lançando as primeiras indagações sobre a participação popular no processo de independência do Brasil18 . Completando esta pequena historiografia, destaca-se uma em forma de romance Renato Castelo Branco19 , que faz um apanhado dos principais combates travados no Piauí e Maranhão. Através de uma linguagem literária mesclando ficção e realidade, alguns personagens são criados misturando-se com os autênticos, dando uma visão que se aproxima da oficial, ou seja, a que considera os balaios como bandidos. Mas por outro lado, resgata o cotidiano dos vaqueiros e artesãos que se envolveram no movimento por meio de situações reais, traduzindo em forma literária, usos e costumes das categorias sociais mais importantes do movimento e parte integrante de uma da sociedade rural. Considerações historiográficas A partir do início dos anos 1970, surgiram diversos estudos sobre os movimentos sociais no Brasil, enfocando a história das camadas populares ou da resistência e luta dos escravos no século XIX, acentuando aspectos de uma “história vista de baixo”20 . Fugindo da história apolégita ou 7
  • 8. ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. 8 tendenciosa dos positivistas que vêem as camadas populares como bandidos, “arraia miúda”, “ralé” e “plebe ignara”, essa historiografia é o resultado de pesquisas de dissertações de mestrado e teses de doutorado, uma história nova, por se preocupar em mostrar a dinâmica conflituosa da realidade histórica, rompendo com a visão de uma história linear da historiografia tradicional, em vigor no Brasil durante séculos. A historiografia sobre os movimentos sociais do século XIX no Brasil abriu para uma visão da história do Brasil a partir da adoção de novas abordagens metodológicas e novas fontes documentais, rompendo com a visão tradicional ao mostrar que as camadas populares brasileiras participaram de manifestações em defesa de seus interesses e contra uma ordem dominante elitista e autoritária, em vigor no Brasil desde o início da colonização21 . Este estudo historiográfico se propôs acentuar o papel da gente comum, de homens e mulheres que participaram de numerosos movimentos sociais e populares ocorridos em várias províncias brasileiras, praticamente apagados, para dar lugar à história ou à “versão falsa que oculta deliberadamente as lutas e os conflitos”. NOTAS: 1 - HILL, Christhoper. O mundo de ponta cabeça. Idéias radicais durante a Revolução Inglesa de 1640. Tradução e apresentação de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Cia. das Letras, 1987. p. 32; 2 - ANDRADE, Manoel Correia de. (Org.) Movimentos populares no Nordeste no período regência. - Recife: Edição Massangana, 1989. Resultado de um seminário comemorativo do sesquicentenário da guerra dos cabanos em Pernambuco; 3 - HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. 1789/184; tradução Maria Teresa L. Teixeira e Marcos Penche. - Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977 4 - MONTEIRO, Hamilton de Mattos. Nordeste insurgente. 1850-1890. - São Paulo: Brasiliense, 1981; 5 - MARSON, Isabel. O império do progresso. - São Paulo: Brasiliense. 1987; 6 - QUINTAS, Amaro. O sentido social da revolução praieira. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967; 7 - Nordeste 1817: estrutura e argumentos. São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1972. p. 9 à 155. Escrito originalmente com tese de doutorado na USP, em 1970, apresenta um ampla bibliografia e fontes documentais sobre o tema. 8 - LEITE, Glacyra L. “Estrutura e comportamento sociais: Pernambuco em 1817”.- São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 7. 9 - Idem, Ibidem, p. 14 e p. 42; 10 - COSTA, Emília Viotti da. “ O processo de emancipação do Brasil”. IN: MOTA, Carlos Guilherme da. Brasil em Perspectiva. São Paulo: Difel, 1975. 11 - MARSON. Isabel. O império do progresso. A revolução praieira. - São Paulo: Brasiliense, 1987 p. 17. 12 - Entre os autores que estudaram a Praieira destaca-se Jerônimo Martiniano Figueira de Melo, Chefe de Polícia durante o movimento, que faz uma compilação dos Autos do inquérito da Praieira. O autor faz uma leitura reconstituindo-o minuciosamente a partir da sua visão de Chefe de Polícia que comandou a repressão aos praieiros. Outro autor contemporâneo é Urbano Sabino Pessoa de Melo. Deputado juiz de Direito e historiador da Praieira. O citado livro de Amaro Quintas sobre a Praieira faz uma abordagem revolucionária. Para o autor o movimento construiu- se sob a influência das comemorações do centenário da Praieira em 1948, reforçada pela visão do livro de Vamireh Chacon, “História da idéias socialistas no Brasil”. S/c., s/ed., s/d. 13 - OTAVIO, Rodrigo. A Balaiada, 1839: depoimento de um dos heróis do cerco de Caxias sobre a revolução dos balaios. Revista do IHGB, Rio de Janeiro, T. LXV, parte II, 1903. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942; 14 - Depois Barão de Caxias por ter reprimido ou pacificado a Cidade de Caxias Depois recebeu o título de Duque de Caxias, por ter “pacificado” o Rio Grande do Sul; 15 - ASSUNÇÃO, Matthias Röhrig. A guerra dos Bem-te-vis: a Balaiada na memória oral. - São Luís: Sioge, 1988. 16 - SANTOS, Maria Januária Vilela. A Balaiada e a insurreição de escravos no Maranhão. - São Paulo: Ática, 1983; JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. A Balaiada. - São Paulo: Brasiliense, 1987; 17 - NUNES, Odilon. Pesquisas para a História do Piauí. Rio de Janeiro, Artenova, 1975. 18 - OLIVEIRA, Maria Amélia Mendes de. A Balaiada no Piauí.- Teresina: Projeto Perônio Portella, 1987; DIAS, Claudete Maria Miranda. Balaios e Bem-te-vis: a guerrilha sertaneja. - Teresina: Fundação Monsenhor Chaves, 1995. 19 - CASTELO BRANCO, Renato. Senhores e escravos: a Balaiada. - São Paulo, LREditores, 1983.
  • 9. ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. 9 20 - Esta expressão foi usada por: RUDÉ, George. A multidão na história. Estudos dos movimentos populares na França e na Inglaterra-1730/1848. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Campus, 1991 21 - Nos anos de 1970 a história social no Brasil passava por um estágio de elaboração. Mas nas décadas de 1980 e 1990, a história tem se preocupado mais em estudar os movimentos sociais. Vide: DIAS, Claudete Maria Miranda Dias. Balaios e Bem-te-vis: a guerrilha sertaneja. Teresina, Fundação Mons. Chaves, 1996.