SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 2
Descargar para leer sin conexión
Quando decidiu inspirar seu trabalho na biotecnologia e na
engenharia genética?
Minha mãe foi diagnosticada com câncer
quando eu era adolescente e, apesar de ela
ter vivido por mais 10 anos após o diagnós-
tico, a sombra da doença e a esperança de
que surgisse algum tipo de tratamento mé-
dico revolucionário foram uma constante
na minha vida. Depois que ela morreu, co-
mecei a acompanhar as notícias e os resul-
tados do Projeto Genoma Humano [que bus-
ca sequenciar todos os genes que codificam
as proteínas do corpo humano, assim como
as sequências de DNA que não são genes],
que parecia ser a última esperança de cura
para as diversas enfermidades. No entanto,
minhas experiências com a medicina me
tornaram uma pessoa cética. E a maior parte
do meu trabalho gira em torno dessa tensão
entre o altruísmo da pesquisa científica e o
ceticismo e o pragmatismo cruel do mundo
industrializado.
Sua obra está no limiar entre a ficção e a
realidade, e muitas de suas esculturas
provocam, ao mesmo tempo, atração
e repulsa. O que pretende
mostrar com essa
abordagem limítrofe?
Para mim, as minhas criações são todas
muito belas, mas elas são muito diferentes
daquilo que o público está acostumado a
ver. As pessoas tendem a temer a diferença,
e esse medo leva, com frequência, a resulta-
dos negativos. Entretanto, todas as minhas
criaturas reservam uma beleza e vulnerabi-
lidade por trás da estranheza que desper-
tam quando as pessoas entram em contato
com elas pela primeira vez. Eu adoro ver o
público nessa viagem que vai da aversão à
simpatia. Gosto de assistir à empatia que
surge depois de passado o choque inicial de
estranhamento. Ser testemunha desse pro-
cesso me dá esperança. Se as criaturas fos-
sem apenas ‘fofinhas’, penso que meu tra-
balho seria muito brando; mas é justamente
seu lado grotesco que o faz forte.
Que tipo de público pretende atingir com sua obra, e de que
forma?
Todo mundo me interessa. Embora meu traba-
lho seja fruto, definitivamente, da arte mun-
dial contemporânea, acho que ele ecoa além
do público especializado. Procuro alcançar
pessoas que tenham olhos, corações e mentes.
Como tem sido a reação das pessoas a sua obra ao redor do
mundo?
Meu trabalho tem provocado respostas fortes
em todos os lugares onde foi exibido. Acredi-
to que ele opera em uma série de níveis. Em
um determinado nível, pode ser considerado
apenas como uma história estranha
que quase todos po-
dem apreciar.
Entrevista PATRICIA PICCININI
Elas podem ser doces, estranhas, sedutoras, até repulsivas. Uma série de emoções
vêm à tona quando se está frente a frente com as criaturas da artista australiana
Patricia Piccinini. Sua vasta imaginação, impregnada das inúmeras possibilidades que
a engenharia genética oferece, se materializa em seres facilmente reconhecíveis como
reais. É essa proximidade com a vida cotidiana que assusta – ativa um sinal de alerta
em – e provoca os espectadores. Se para alguns parece desconcertante e para outros,
elucidativa, sua obra é, definitivamente, inquietante e perturbadora. Ela habita o limiar
entre ficção e realidade, entre ciência e ética, entre o palpável e o inatingível.
O trabalho de Piccinini já foi exposto em diversas galerias ao redor do mundo, com
destaque nas bienais de Liverpool (Inglaterra), Berlim (Alemanha), Havana (Cuba) e
Veneza (Itália). Agora, é a vez de ser apresentado ao público brasileiro na exposição
individual intitulada ‘ComCiência’ no Centro Cultural Banco do Brasil, de São Paulo, até o
fim do ano.
Nesta entrevista ao sobreCultura, Piccinini fala sobre o que inspira sua obra,
suas influências artísticas, sua relação com o público. Segundo ela, não há nada de
‘especulativo’ sobre as tecnologias genéticas que imagina em seu trabalho. “Tudo isso
está acontecendo a nossa volta.”
Entrevista concedida a Alicia Ivanissevich |sobreCultura | RJ |
fotosdivulgação
Em outro nível, minha obra se conecta com
ideias da vida contemporânea – ideias sobre
ciência, ética ou meio ambiente. Ainda em
outro patamar, apresenta reflexões sobre pre-
ocupações artísticas, como forma e matéria,
abstração e figuração. Muitas dessas reações
parecem surpreendentemente universais, e
eu tenho obtido respostas muito fortes e se-
melhantes dos diversos públicos, seja na
Coreia, na Austrália ou no Peru. É claro que
sempre há diferenças sutis, e estou animada
para ver como será a reação dos brasileiros
a minha obra.
O que espera do público brasileiro nesta primeira exposição
no país?
Realmente, não sei o que esperar. Mas as
ideias com as quais trabalho e os modos de
expressão que uso para discuti-las, assim
como meu foco na empatia com o público,
são todas coisas que atravessam as culturas.
Espero que as pessoas recebam meu trabalho
com abertura e honestidade, e isso poderia
começar, ou expandir, o debate sobre uma
série de questões presentes no mundo hoje.
Que tipo de materiais utiliza para fazer suas esculturas?
Quanto tempo leva para construir uma peça?
Meu trabalho é criado a partir de uma varieda-
de de materiais e técnicas, que vão do simples
desenho ao vídeo e à escultura. Minhas escul-
turas figurativas são construídas com técnicas
especiais, que usam silicone, fibra de vidro e
cabelo humano. Outros trabalhos são feitos
em bronze, fibra de vidro e tinta automotiva.
Todas as minhas peças começam com ideias e
desenhos. Depois, eu decido qual será o meio
que vai representar melhor as ideias que estou
interessada em desenvolver.
Eu conto com um fantástico grupo de téc-
nicos que trabalham comigo em meu ateliê
para me ajudar a fabricar as peças. Uma coisa
comum a todos os meus trabalhos é que eles
são produzidos com muita dedicação e extre-
mo cuidado, independentemente de se tratar
de um desenho ou de uma escultura.
As obras podem levar de semanas a meses
para serem feitas; até anos, se considerar todo
o tempo investido em sua concepção.
Quais são suas influências artísticas?
Minhas principais influências são o surrea-
lismo e os artistas contemporâneos que
herdaram essa abordagem: a francesa
Louise Bourgeois, o alemão Hans
Bellmer e os norte-americanos
Man Ray e Matthew Barney
são alguns deles. Eu adoro
a combinação de estranha-
mento e interesse na
vida contemporâ-
nea. Também me
interessa a pintura
barroca da italiana
Artemesia Gentiles-
chi e o realismo social
inglês do século 19. Estou
realmente conectada com as
características emotivas e em-
páticas desses trabalhos. Duas
das minhas pinturas favoritas são O
pesadelo, do anglo-suíço Henry Fuseli
[1741–1825], e Angústia, do teuto-fran-
cês August Schenck [1828-1901].
Quando sabe que teve ou está tendo um insight?
Como meus trabalhos requerem muito
tempo e esforço para serem criados, te-
nho que ter plena certeza do que quero
fazer antes de decidir fazê-lo. Levo muito
tempo pensando, esboçando e desenhan-
do. É um processo demorado e deliberado.
Como os críticos de arte avaliam as suas obras? O que
pensa sobre as resenhas e críticas de arte? Como elas
afetam seu trabalho?
Para ser honesta, não é, realmente, algo
sobre o que pense muito. Minha vida
gira mesmo em torno da minha casa e
de meu ateliê.
Você acredita que seu trabalho levante questões
éticas e filosóficas?
Sem dúvida. Esse é o ponto crucial da
minha obra. Não há nada de particular-
mente ‘especulativo’ sobre os tipos de
tecnologias genéticas que eu imagino
no meu trabalho. Tudo isso está acon-
tecendo a nossa volta. Minhas obras
não dizem às pessoas o que pensar
sobre essas tecnologias, mas as con-
vida a fazê-lo por conta própria e
procura lembrá-las de que não exis-
tem respostas simples.
ENTRE DELÍRIOS E MONSTROS
Mix
Na página ao lado, The Long Awaited (2008).
À esquerda, The Welcome Guest (2011) e abaixo The
Observer (2010). As obras estão em exposição no Centro
Cultural do Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo até dezembro
deste ano e seguem para o CCBB de Brasília no início de 2016.

Más contenido relacionado

Destacado

Destacado (16)

doc06275520160107143334
doc06275520160107143334doc06275520160107143334
doc06275520160107143334
 
Aliança vermelha
Aliança vermelhaAliança vermelha
Aliança vermelha
 
Artigo de opinião
Artigo de opiniãoArtigo de opinião
Artigo de opinião
 
Horario 7º semestre
Horario  7º semestreHorario  7º semestre
Horario 7º semestre
 
Edital n002 2014 composição apm
Edital n002  2014 composição apmEdital n002  2014 composição apm
Edital n002 2014 composição apm
 
Dispositivos
DispositivosDispositivos
Dispositivos
 
Senhor que cura
Senhor que curaSenhor que cura
Senhor que cura
 
Mirador Cañon Colorado.
Mirador Cañon Colorado.Mirador Cañon Colorado.
Mirador Cañon Colorado.
 
Apresentação1
Apresentação1Apresentação1
Apresentação1
 
CV-Ricardo Leoni-2015
CV-Ricardo Leoni-2015CV-Ricardo Leoni-2015
CV-Ricardo Leoni-2015
 
exploracion del universo
exploracion del universoexploracion del universo
exploracion del universo
 
NTIC´S II
NTIC´S IINTIC´S II
NTIC´S II
 
Asequw aosdiq
Asequw aosdiqAsequw aosdiq
Asequw aosdiq
 
CMA
CMACMA
CMA
 
Anexo 2 demonstrativo da divida consolidada líquida - 1o quadrimestre de 2014
Anexo 2  demonstrativo da divida consolidada líquida - 1o quadrimestre de 2014Anexo 2  demonstrativo da divida consolidada líquida - 1o quadrimestre de 2014
Anexo 2 demonstrativo da divida consolidada líquida - 1o quadrimestre de 2014
 
Charla de Presott
Charla de PresottCharla de Presott
Charla de Presott
 

Similar a Entrevista Patrícia Piccinini

Monografia silvija eidam
Monografia silvija eidamMonografia silvija eidam
Monografia silvija eidamAcervo Vis
 
Monografia silvija eidam
Monografia silvija eidamMonografia silvija eidam
Monografia silvija eidamAcervo Vis
 
Sobre o espectador e a obra de arte - da participaçãoo a interatividade
Sobre o espectador e a obra de arte - da participaçãoo a interatividadeSobre o espectador e a obra de arte - da participaçãoo a interatividade
Sobre o espectador e a obra de arte - da participaçãoo a interatividadeRenata Furtado
 
Tcc paula sampedro
Tcc paula sampedroTcc paula sampedro
Tcc paula sampedroAcervo_DAC
 
Charles Watson - DN - caderno3
Charles Watson - DN - caderno3Charles Watson - DN - caderno3
Charles Watson - DN - caderno3Charles Watson
 
LC 03 Movimento Perceptivo
LC 03 Movimento PerceptivoLC 03 Movimento Perceptivo
LC 03 Movimento PerceptivoOdair Tuono
 
Monografia fernanda paixao
Monografia fernanda paixaoMonografia fernanda paixao
Monografia fernanda paixaoAcervo Vis
 
Tcc 2014 francielly tamiozo
Tcc 2014 francielly tamiozoTcc 2014 francielly tamiozo
Tcc 2014 francielly tamiozoAcervo_DAC
 
Técnicas em artes visuais
Técnicas em artes visuaisTécnicas em artes visuais
Técnicas em artes visuaisCris Akemi
 
Solução - etapa 1 briefing.pdf
Solução - etapa 1 briefing.pdfSolução - etapa 1 briefing.pdf
Solução - etapa 1 briefing.pdfEdmilsonMirandaJr2
 
Arteterapia, uma breve introdução
Arteterapia, uma breve introduçãoArteterapia, uma breve introdução
Arteterapia, uma breve introduçãoBruno Carrasco
 
Psicopedagogia e Educação Infantil
Psicopedagogia e Educação InfantilPsicopedagogia e Educação Infantil
Psicopedagogia e Educação InfantilTel Ma
 
A LíNgua Do Mundo
A LíNgua Do MundoA LíNgua Do Mundo
A LíNgua Do MundoJoseSimas
 
Apresentação1 em formatação fund e metod de ciencias 7 semestre
Apresentação1 em formatação fund e metod de ciencias 7 semestreApresentação1 em formatação fund e metod de ciencias 7 semestre
Apresentação1 em formatação fund e metod de ciencias 7 semestreSandra Guerra
 
Revista Aka Arte edição 0
 Revista Aka Arte edição 0 Revista Aka Arte edição 0
Revista Aka Arte edição 0AKA Arte
 

Similar a Entrevista Patrícia Piccinini (20)

Monografia silvija eidam
Monografia silvija eidamMonografia silvija eidam
Monografia silvija eidam
 
Monografia silvija eidam
Monografia silvija eidamMonografia silvija eidam
Monografia silvija eidam
 
Sobre o espectador e a obra de arte - da participaçãoo a interatividade
Sobre o espectador e a obra de arte - da participaçãoo a interatividadeSobre o espectador e a obra de arte - da participaçãoo a interatividade
Sobre o espectador e a obra de arte - da participaçãoo a interatividade
 
Tcc paula sampedro
Tcc paula sampedroTcc paula sampedro
Tcc paula sampedro
 
Charles Watson - DN - caderno3
Charles Watson - DN - caderno3Charles Watson - DN - caderno3
Charles Watson - DN - caderno3
 
LC 03 Movimento Perceptivo
LC 03 Movimento PerceptivoLC 03 Movimento Perceptivo
LC 03 Movimento Perceptivo
 
Monografia fernanda paixao
Monografia fernanda paixaoMonografia fernanda paixao
Monografia fernanda paixao
 
O_que_e_arte.pdf
O_que_e_arte.pdfO_que_e_arte.pdf
O_que_e_arte.pdf
 
Tcc 2014 francielly tamiozo
Tcc 2014 francielly tamiozoTcc 2014 francielly tamiozo
Tcc 2014 francielly tamiozo
 
Marcellino veracristina (1)
Marcellino veracristina (1)Marcellino veracristina (1)
Marcellino veracristina (1)
 
Abdução revista
Abdução revistaAbdução revista
Abdução revista
 
Técnicas em artes visuais
Técnicas em artes visuaisTécnicas em artes visuais
Técnicas em artes visuais
 
Solução - etapa 1 briefing.pdf
Solução - etapa 1 briefing.pdfSolução - etapa 1 briefing.pdf
Solução - etapa 1 briefing.pdf
 
Apostila de-artes-visuais (1)
Apostila de-artes-visuais (1)Apostila de-artes-visuais (1)
Apostila de-artes-visuais (1)
 
Arteterapia, uma breve introdução
Arteterapia, uma breve introduçãoArteterapia, uma breve introdução
Arteterapia, uma breve introdução
 
Psicopedagogia e Educação Infantil
Psicopedagogia e Educação InfantilPsicopedagogia e Educação Infantil
Psicopedagogia e Educação Infantil
 
A LíNgua Do Mundo
A LíNgua Do MundoA LíNgua Do Mundo
A LíNgua Do Mundo
 
Apresentação1 em formatação fund e metod de ciencias 7 semestre
Apresentação1 em formatação fund e metod de ciencias 7 semestreApresentação1 em formatação fund e metod de ciencias 7 semestre
Apresentação1 em formatação fund e metod de ciencias 7 semestre
 
Revista Aka Arte edição 0
 Revista Aka Arte edição 0 Revista Aka Arte edição 0
Revista Aka Arte edição 0
 
Entrevista Santiago Ribeiro
Entrevista Santiago RibeiroEntrevista Santiago Ribeiro
Entrevista Santiago Ribeiro
 

Más de Alicia Ivanissevich (20)

PWJan17news-p12
PWJan17news-p12PWJan17news-p12
PWJan17news-p12
 
P58-59_CH343_Pelo Brasi
P58-59_CH343_Pelo BrasiP58-59_CH343_Pelo Brasi
P58-59_CH343_Pelo Brasi
 
P8-11_CH343_Entrevista
P8-11_CH343_EntrevistaP8-11_CH343_Entrevista
P8-11_CH343_Entrevista
 
P46-47_CH342_Pelo Brasil
P46-47_CH342_Pelo BrasilP46-47_CH342_Pelo Brasil
P46-47_CH342_Pelo Brasil
 
P8-10_CH342_Entrevista
P8-10_CH342_EntrevistaP8-10_CH342_Entrevista
P8-10_CH342_Entrevista
 
P44-45_CH341_Pelo Brasil
P44-45_CH341_Pelo BrasilP44-45_CH341_Pelo Brasil
P44-45_CH341_Pelo Brasil
 
CH340_P8-11_Entrevista
CH340_P8-11_EntrevistaCH340_P8-11_Entrevista
CH340_P8-11_Entrevista
 
CH340_P48-49_Pelo Brasil
CH340_P48-49_Pelo BrasilCH340_P48-49_Pelo Brasil
CH340_P48-49_Pelo Brasil
 
Perfil_CH260
Perfil_CH260Perfil_CH260
Perfil_CH260
 
Perfil_CH264
Perfil_CH264Perfil_CH264
Perfil_CH264
 
Entrevista_CH308
Entrevista_CH308Entrevista_CH308
Entrevista_CH308
 
Perfil_CH301
Perfil_CH301Perfil_CH301
Perfil_CH301
 
P 56-57_CH339_peloBrasil
P 56-57_CH339_peloBrasilP 56-57_CH339_peloBrasil
P 56-57_CH339_peloBrasil
 
Ciência para todos
Ciência para todosCiência para todos
Ciência para todos
 
Muito além do futebol
Muito além do futebolMuito além do futebol
Muito além do futebol
 
Por uma 'ciência Mercosul'
Por uma 'ciência Mercosul'Por uma 'ciência Mercosul'
Por uma 'ciência Mercosul'
 
criatividade kiwi
criatividade kiwicriatividade kiwi
criatividade kiwi
 
Entrevista_CH253
Entrevista_CH253Entrevista_CH253
Entrevista_CH253
 
Entrevista_CH306
Entrevista_CH306Entrevista_CH306
Entrevista_CH306
 
CH334_P8-10_Entrevista
CH334_P8-10_EntrevistaCH334_P8-10_Entrevista
CH334_P8-10_Entrevista
 

Entrevista Patrícia Piccinini

  • 1. Quando decidiu inspirar seu trabalho na biotecnologia e na engenharia genética? Minha mãe foi diagnosticada com câncer quando eu era adolescente e, apesar de ela ter vivido por mais 10 anos após o diagnós- tico, a sombra da doença e a esperança de que surgisse algum tipo de tratamento mé- dico revolucionário foram uma constante na minha vida. Depois que ela morreu, co- mecei a acompanhar as notícias e os resul- tados do Projeto Genoma Humano [que bus- ca sequenciar todos os genes que codificam as proteínas do corpo humano, assim como as sequências de DNA que não são genes], que parecia ser a última esperança de cura para as diversas enfermidades. No entanto, minhas experiências com a medicina me tornaram uma pessoa cética. E a maior parte do meu trabalho gira em torno dessa tensão entre o altruísmo da pesquisa científica e o ceticismo e o pragmatismo cruel do mundo industrializado. Sua obra está no limiar entre a ficção e a realidade, e muitas de suas esculturas provocam, ao mesmo tempo, atração e repulsa. O que pretende mostrar com essa abordagem limítrofe? Para mim, as minhas criações são todas muito belas, mas elas são muito diferentes daquilo que o público está acostumado a ver. As pessoas tendem a temer a diferença, e esse medo leva, com frequência, a resulta- dos negativos. Entretanto, todas as minhas criaturas reservam uma beleza e vulnerabi- lidade por trás da estranheza que desper- tam quando as pessoas entram em contato com elas pela primeira vez. Eu adoro ver o público nessa viagem que vai da aversão à simpatia. Gosto de assistir à empatia que surge depois de passado o choque inicial de estranhamento. Ser testemunha desse pro- cesso me dá esperança. Se as criaturas fos- sem apenas ‘fofinhas’, penso que meu tra- balho seria muito brando; mas é justamente seu lado grotesco que o faz forte. Que tipo de público pretende atingir com sua obra, e de que forma? Todo mundo me interessa. Embora meu traba- lho seja fruto, definitivamente, da arte mun- dial contemporânea, acho que ele ecoa além do público especializado. Procuro alcançar pessoas que tenham olhos, corações e mentes. Como tem sido a reação das pessoas a sua obra ao redor do mundo? Meu trabalho tem provocado respostas fortes em todos os lugares onde foi exibido. Acredi- to que ele opera em uma série de níveis. Em um determinado nível, pode ser considerado apenas como uma história estranha que quase todos po- dem apreciar. Entrevista PATRICIA PICCININI Elas podem ser doces, estranhas, sedutoras, até repulsivas. Uma série de emoções vêm à tona quando se está frente a frente com as criaturas da artista australiana Patricia Piccinini. Sua vasta imaginação, impregnada das inúmeras possibilidades que a engenharia genética oferece, se materializa em seres facilmente reconhecíveis como reais. É essa proximidade com a vida cotidiana que assusta – ativa um sinal de alerta em – e provoca os espectadores. Se para alguns parece desconcertante e para outros, elucidativa, sua obra é, definitivamente, inquietante e perturbadora. Ela habita o limiar entre ficção e realidade, entre ciência e ética, entre o palpável e o inatingível. O trabalho de Piccinini já foi exposto em diversas galerias ao redor do mundo, com destaque nas bienais de Liverpool (Inglaterra), Berlim (Alemanha), Havana (Cuba) e Veneza (Itália). Agora, é a vez de ser apresentado ao público brasileiro na exposição individual intitulada ‘ComCiência’ no Centro Cultural Banco do Brasil, de São Paulo, até o fim do ano. Nesta entrevista ao sobreCultura, Piccinini fala sobre o que inspira sua obra, suas influências artísticas, sua relação com o público. Segundo ela, não há nada de ‘especulativo’ sobre as tecnologias genéticas que imagina em seu trabalho. “Tudo isso está acontecendo a nossa volta.” Entrevista concedida a Alicia Ivanissevich |sobreCultura | RJ | fotosdivulgação
  • 2. Em outro nível, minha obra se conecta com ideias da vida contemporânea – ideias sobre ciência, ética ou meio ambiente. Ainda em outro patamar, apresenta reflexões sobre pre- ocupações artísticas, como forma e matéria, abstração e figuração. Muitas dessas reações parecem surpreendentemente universais, e eu tenho obtido respostas muito fortes e se- melhantes dos diversos públicos, seja na Coreia, na Austrália ou no Peru. É claro que sempre há diferenças sutis, e estou animada para ver como será a reação dos brasileiros a minha obra. O que espera do público brasileiro nesta primeira exposição no país? Realmente, não sei o que esperar. Mas as ideias com as quais trabalho e os modos de expressão que uso para discuti-las, assim como meu foco na empatia com o público, são todas coisas que atravessam as culturas. Espero que as pessoas recebam meu trabalho com abertura e honestidade, e isso poderia começar, ou expandir, o debate sobre uma série de questões presentes no mundo hoje. Que tipo de materiais utiliza para fazer suas esculturas? Quanto tempo leva para construir uma peça? Meu trabalho é criado a partir de uma varieda- de de materiais e técnicas, que vão do simples desenho ao vídeo e à escultura. Minhas escul- turas figurativas são construídas com técnicas especiais, que usam silicone, fibra de vidro e cabelo humano. Outros trabalhos são feitos em bronze, fibra de vidro e tinta automotiva. Todas as minhas peças começam com ideias e desenhos. Depois, eu decido qual será o meio que vai representar melhor as ideias que estou interessada em desenvolver. Eu conto com um fantástico grupo de téc- nicos que trabalham comigo em meu ateliê para me ajudar a fabricar as peças. Uma coisa comum a todos os meus trabalhos é que eles são produzidos com muita dedicação e extre- mo cuidado, independentemente de se tratar de um desenho ou de uma escultura. As obras podem levar de semanas a meses para serem feitas; até anos, se considerar todo o tempo investido em sua concepção. Quais são suas influências artísticas? Minhas principais influências são o surrea- lismo e os artistas contemporâneos que herdaram essa abordagem: a francesa Louise Bourgeois, o alemão Hans Bellmer e os norte-americanos Man Ray e Matthew Barney são alguns deles. Eu adoro a combinação de estranha- mento e interesse na vida contemporâ- nea. Também me interessa a pintura barroca da italiana Artemesia Gentiles- chi e o realismo social inglês do século 19. Estou realmente conectada com as características emotivas e em- páticas desses trabalhos. Duas das minhas pinturas favoritas são O pesadelo, do anglo-suíço Henry Fuseli [1741–1825], e Angústia, do teuto-fran- cês August Schenck [1828-1901]. Quando sabe que teve ou está tendo um insight? Como meus trabalhos requerem muito tempo e esforço para serem criados, te- nho que ter plena certeza do que quero fazer antes de decidir fazê-lo. Levo muito tempo pensando, esboçando e desenhan- do. É um processo demorado e deliberado. Como os críticos de arte avaliam as suas obras? O que pensa sobre as resenhas e críticas de arte? Como elas afetam seu trabalho? Para ser honesta, não é, realmente, algo sobre o que pense muito. Minha vida gira mesmo em torno da minha casa e de meu ateliê. Você acredita que seu trabalho levante questões éticas e filosóficas? Sem dúvida. Esse é o ponto crucial da minha obra. Não há nada de particular- mente ‘especulativo’ sobre os tipos de tecnologias genéticas que eu imagino no meu trabalho. Tudo isso está acon- tecendo a nossa volta. Minhas obras não dizem às pessoas o que pensar sobre essas tecnologias, mas as con- vida a fazê-lo por conta própria e procura lembrá-las de que não exis- tem respostas simples. ENTRE DELÍRIOS E MONSTROS Mix Na página ao lado, The Long Awaited (2008). À esquerda, The Welcome Guest (2011) e abaixo The Observer (2010). As obras estão em exposição no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo até dezembro deste ano e seguem para o CCBB de Brasília no início de 2016.