Este documento apresenta uma introdução sobre o conceito de corporeidade e como ele pode ser utilizado para entender a construção de identidades. O autor argumenta que o corpo e o espaço, quando se interceptam na dimensão da corporeidade, fundamentam a noção de identidade através da diferenciação e identificação. O texto também discute brevemente como o corpo e o espaço são conceitualizados e como as práticas corporais e espaciais podem ser entendidas.
Esaiando a corporeidade: corpo e espaço como fundamentos da identidade
1. Edited by Foxit Reader
Copyright(C) by Foxit Software Company,2005-2007
For Evaluation Only.
ENSAIANDO A CORPOREIDADE: CORPO
E ESPAÇO COMO FUNDAMENTOS DA
IDENTIDADE
Patrício Pereira Alves de Sousa
Mestrando pelo Programa de Pós Gradua-
ção em Geografia Instituto de Geociências
– Universidade Federal de Minas Gerais
1 – Introdução
(...) o ensaio não resolve, como faz o tra-
tado, o seu assunto. Não explica o seu as-
sunto, e neste sentido não informa os seus
leitores. Pelo contrário, transforma o seu
assunto em enigma. Implica-se no assun-
to, e implica nele seus leitores. Este é o
seu atrativo. (Vilém Flusser, 1998, p. 96)
Este texto se propõe a ser um ensaio, uma experimentação. Penso que esta seja a alternati-
va viável quando nos deparamos com uma identidades e de lugares. Mas um entrave é aí
questão na realidade e não encontramos su- colocado: com que referenciais trabalhar para
ficientes argumentos científicos para proble- pensar as práticas de organização espacial que
matizá-la. Com isso não quero dizer que este não estão estabelecidas somente no nível das
texto se constitua num rascunho, mas antes inscrições? Fatos memoriais e da gestualida-
numa tentativa de organização de reflexões de por muitas vezes se constituem somente
a respeito de uma noção ainda pouquíssimo em expressões fugazes, em contextos que a
trabalhada na geografia: a de corporeidade. espacialidade é estabelecida unicamente pela
presença corporal, como uma dança ou ritual.
Parto de um problema já expresso por intelec-
tuais em outros campos do saber. Paul Conner- É neste sentido que este texto se propõe a en-
ton (1999) chama atenção para o reducionismo saiar a corporeidade, buscando reunir e pro-
criado pela ciência ao eleger a hermenêutica blematizar alguns esforços de interpretação
como única ou hegemônica possibilidade de das identidades a partir das interseções esta-
interpretação de fatos e eventos. A suprema- belecidas entre o corpo e o espaço. Não pre-
cia da lingüística dentro das ciências humanas tende ser, desta forma, um texto conclusivo
consagrou as inscrições como instrumento ou definidor de uma categoria. Almeja antes
exclusivo ou principal através do qual poderí- ser um texto fecundante, contribuindo para a
amos acessar elementos da realidade. As prá- edificação de mais argumentos para constitui-
ticas de incorporação, em decorrência deste ção de uma idéia de corporeidade envolvida
fato, foram relegadas a um segundo plano e na produção de identidades socioespaciais.
estimularam pouca produção de reflexões.
Por isso proponho um ensaio. Este gênero de
No meu caso, como pesquisador das perfor- composição é, como exercício de vida e de
Esaiando a corporiedade:
mances festivas, as práticas de interação entre escrita, como defende Cássio Hissa (2006), corpo e espaço
corpo e espaço são extremamente significa- o estabelecimento de uma possibilidade da como fundamentos
da identidade
tivas para decodificação das construções de provisoriedade, da experimentação e do im-
GEOGRAFARES, nº 7, 2009 • 35
2. Edited by Foxit Reader
Copyright(C) by Foxit Software Company,2005-2007
For Evaluation Only.
proviso; alternativa vislumbrável para quan- terminações das forças físicas da natureza. To-
do as definições nos parecem escassas ou mados de forma simplista corpo e espaço fo-
evasivas. Outra característica do ensaio que ram adotados, pois, como superfícies passivas
me estimula sobremaneira pela escolha do sobre as quais se inscrevem as forças e pro-
estilo é sua imprevisibilidade, que em sua cessos ativos que moldam realidades. Subesti-
aparente imprecisão talvez seja a mais exa- mados como não possuidores de organicidade
ta possibilidade de configuração do novo. ou força endógena, foram tomados muito mais
como resultados de processos do que como
O que modestamente pretendo com o presente agentes ativos na produção da realidade social.
texto é, pois, problematizar o corpo e o espaço
como conceitos importantes para a compreen- Diversas perspectivas, porém, empreenderam
são do debate contemporâneo sobre a cons- tentativas de desconstrução do corpo como
trução das identidades sociais. Proponho que uma realidade essencialmente biológica. Ju-
estas duas dimensões, quando se interceptam dith Butler (2001; 2003), por exemplo, numa
e passam a constituir a dimensão da corporei- postura de superação desta simplificação da
dade, fundamentam grande parte dos supostos idéia de corpo, nos auxilia no entendimento
de criação do par que dá suporte à idéia de de seus significados numa perspectiva não
identidade, qual seja: diferença e identifica- reificadora. O pensamento desta autora é em-
ção. As reflexões que constituem o ensaio se blemático nas tentativas de instituir um enten-
baseiam numa pesquisa realizada junto a um dimento do corpo como uma materialidade
grupo de Congado, ritual festivo de coroamen- construída e permanentemente reconstruída
to de reis negros que se constitui numa das socialmente. Teóricos que compartilham des-
mais importantes expressões da religiosidade ta visão defendem que todo indivíduo nasce
e da cultura afro-brasileira presentes em Mi- imerso numa sociedade onde estão definidos
nas Gerais e que possui espaço e corpo como os significados de seu corpo, dentro de um
elementos fundamentais de sua composição. mundo já culturalmente organizado. Com
este argumento justificam que o corpo nunca
2 – Do corpo e do espaço às práticas de é algo pronto, mas sempre uma contingência
corporeidade apta a ser reconstruída pelas fissuras da his-
tória. De acordo com esta perspectiva, são
Tanto o corpo quanto o espaço são noções de as práticas discursivas que, em contextos di-
difícil definição na teoria social, por estarem versos, dão sentido às significações e abrem,
constituídos tanto nas dimensões ontológicas para os corpos humanos, o campo de possi-
quanto epistemológicas da realidade. Desta bilidades das formas que eles podem assu-
maneira, o corpo humano e o espaço geográ- mir e das transgressões que podem realizar.
fico ao mesmo tempo em que estão presentes
na vida cotidiana dos sujeitos são formulados Connerton (1999), avançando nesta definição,
como abstrações conceituais em tentativas de argumenta que não é satisfatório dizer que o
aproximação teórica dos elementos que consti- corpo é uma construção social ou resultado de
tuem a realidade. Por estarem tão bem acomo- práticas discursivas. Esta perspectiva, de acor-
dados no sistema de valores do senso comum, do com o autor, sugere que o corpo remete a
ambos foram por diversas vezes tomados um conjunto de significações de algo. Para o
como realidades postas e tão evidentes em si teórico, o corpo não seria simplesmente uma
próprias que não foram problematizadas como possibilidade de acesso a algo, um meio de
constituições sociais. Quando problematiza- se chegar ou acessar certa realidade; o cor-
dos por sistemas metódicos de pensamento, po seria em si próprio um processo, passível
como o saber científico, o corpo foi geralmen- de ser explicado por dinâmicas próprias e
te tomado como aquela realidade biológica não como depósito de informações e ações.
que age de acordo com a determinação dos ge- Assim, como o corpo, a concepção corrente
nes, enquanto o espaço foi adotado como uma de espaço no pensamento científico também
realidade que se molda de acordo com as de- foi relegada a um status de receptáculo de for-
36 • GEOGRAFARES, nº 7, 2009
3. Edited by Foxit Reader
Copyright(C) by Foxit Software Company,2005-2007
For Evaluation Only.
ças. Geralmente concebido como palco sobre pacial é nitidamente relacionada à idéia de
o qual se desenvolve o teatro da vida social, corpo quando falamos em corporeidade. O
o espaço, como dimensão das práticas huma- que se estabelece aí é a noção de que a partir
nas, foi repetidamente negado ou negligen- do movimento, do deslocamento e das traje-
ciado. Milton Santos (2006), ao propor que o tórias espaciais dos corpos são elaboradas
espaço é o resultado do embate dialético que corporeidades, como se os aspectos do cor-
se estabelece entre a sociedade e a natureza, po se intercambiassem com a extensão espa-
contribuiu significativamente para ressignifi- cial. O trecho a seguir de um questionamento
car este conceito de espaço, trazendo para a sobre a constituição dos corpos por Donna
teoria social a definição desta dimensão como Haraway (2000, p. 101) é ilustrativo desta
um sistema indissociável de objetos e ações, idéia de corporeidade e nos ajuda a elucidar
portanto, um produto social. Este autor che- a questão: “Por que nossos corpos deveriam
gou mesmo a revolucionar o pensamento terminar na pele? Ou por que, além dos se-
sobre as espacialidades humanas ao propor res humanos, deveríamos considerar também
novos aspectos teórico-metológicos que su- como corpos, quando muito, apenas outros se-
geriram uma abordagem mais crítica das for- res também encapsulados pela pele?” A idéia
mas de constituição das estruturas espaciais. proposta pela autora é a de que os elementos
constituintes dos corpos se estendem a outras
Para Alicia Lindón (2008), a perspectiva do dimensões da realidade e delas se nutrem,
espaço como um produto social, que traz como as formações espaciais, por exemplo.
em suas postulações grande ênfase no ma-
terial, teria formulado, entretanto, uma con- Outras correntes teóricas também defendem
cepção do espaço apenas como um objeto, esta postura de que corpo e espaço estabelecem
uma coisa ou um fato social. A proposta da por vezes uma inseparabilidade, que quando
autora é a de que o espaço, quando pensa- se interceptam geram uma realidade terceira,
do como uma constituição social, que agre- que pode ser entendido em termos de uma cor-
ga aspectos materiais e aspectos do mundo poreidade. É o que propõe, por exemplo, Fé-
vivido, representado e experimentado; se lix Guattari (1998) ao sugerir uma abordagem
aproximaria mais da idéia de um conceito fenomenológica do espaço e do corpo vivido.
verdadeiramente ligado às práticas humanas.
Antes, porém, de nos aprofundarmos em
Esta breve reflexão sobre as concepções de nossas sugestões sobre as práticas de corpo-
corpo e espaço não pretendem, entretanto, reidade temos de melhor nos situar no deba-
ser um debruçamento aprofundado sobre te contemporâneo que se estabelece sobre as
estes conceitos. A intenção de situar mini- práticas corporais e das práticas espaciais.
mamente estas noções foi a de introduzir a
idéia de corporeidade como um parâmetro Connerton (1999) define como práticas cor-
possível para debate das intersecções en- porais as atividades realizadas a partir do cor-
tre o corpo e o espaço na constituição das po que acabam por comunicar mensagens ou
identidades sociais. Este estabelecimento de transmitir informações, conhecimentos ou me-
entendimento do corpo e do espaço como mórias. O autor sugere que grande parte das
constituições sociais é, pois, apenas uma elu- atividades humanas são organizadas de acordo
cidação para podermos melhor definir a noção com esta forma de comunicação, mesmo quan-
de corporeidade. Passemos a esta reflexão. do já não está presente a dimensão corporal.
As práticas de inscrição são exemplos disso:
A corporeidade pode ser pensada, baseado museus e bibliotecas seriam esforços de con-
nas proposições de Yu-Fu Tuan (1983), como servar em artefatos as práticas corporais que
o resultado da experiência íntima do ser hu- não mais podem ser executadas ou ritualizadas Esaiando a corporiedade:
mano com seu corpo e junto a outros seres pela impossibilidade da presença de um cor- corpo e espaço
como fundamentos
quando da tentativa de organizar seus luga- po. As cerimônias, convenções e técnicas do
da identidade
res. Neste ponto de vista, uma dimensão es- corpo, guardadas suas devidas especificidades
GEOGRAFARES, nº 7, 2009 • 37
4. Edited by Foxit Reader
Copyright(C) by Foxit Software Company,2005-2007
For Evaluation Only.
de conceituação, formariam em somatório o está relacionada não com a matéria, mas com
conjunto das práticas corporais. Nossas gestu- a experiência que temos da matéria”. Experi-
alidades, posturas e hábitos seriam, dessa ma- ência esta que sempre se dá de forma coletiva.
neira, a conjunção de uma série de aspectos de
nossas experiências sociais do mundo, que se Piaget, por sua vez, de acordo com a inter-
constituindo em nossa memória cognitiva nos pretação de Pino, concebe que embora o
liga como sujeitos pertencentes a um determi- espaço tenha uma realidade concreta, ele
nado contexto social e espaço-temporal. A ma- não possui necessariamente uma existên-
neira de nos portarmos corporalmente diante cia física. Este teórico entende que a idéia
de certas situações, como de desenvolvimento de espaço é construída pelos sujeitos em
de certa habilidade de manuseio de instrumen- sua interação com os objetos, ao organi-
tos ou de manifestações de dança em certos zar as relações estabelecidas entre os corpos
rituais de festividade, é em muito resultado e objetos que percebemos e concebemos.
de nossas socializações com nossos grupos e
lugares de vivência. Acionamos nestas situa- Ao apresentar sua própria concepção de es-
ções aspectos memorialmente incorporados. paço, Pino (1996, p. 62) sugere que este “é
a experiência que um ser tem de seu mo-
Angel Pino (1996), ao se propor a problema- vimento no meio de objetos organizados
tizar a categoria espaço na psicologia, nos de uma certa forma.” E que a corporeida-
fornece elementos para sugerir que as práticas de humana se constitui na relação do sujei-
corporais não terminam em si mesmas, mas se to com o seu mundo, portanto, da realida-
estendem para outras dimensões da realida- de corpórea dos sujeitos com seu espaço.
de. O autor apresenta a forma como diversos
autores clássicos na psicologia indicam que É nesta posição conceitual de corporeida-
a tomada da consciência corpórea do sujeito de que nos apoiamos para mais diretamente
passa necessariamente pela instituição de uma discutir a questão a que nos propomos neste
noção de espacialidade e de práticas espaciais, texto, qual seja, a de pensar como as práti-
são os casos de Merleau-Ponty e de Piaget. cas de corporeidade se constituem como um
Ao analisar as concepções de Merleau-Ponty dos elementos instauradores das identidades.
sobre o espaço, Pino argumenta que este teóri-
co concebe o espaço não como um meio onde 3 – Alteridade e práticas de corporeidade
as coisas se posicionam e nem mesmo como
uma realidade em si ou qualidade das coisas, Como argumentam Denise Jodelet (1998) e
mas como aquilo que permite que as coisas se Kathryn Woodward (2000), identidade e di-
posicionem. Seria a espacialidade, desta ma- ferença são processos sociais que caminham
neira, uma das principais maneiras pela qual juntos. Estes dois processos são, portanto,
o sujeito corpóreo constrói sua experiência de complementares. A idéia de identidade se
mundo. É aí que Merleau-Ponty sugere o con- marca pela compreensão de que existe uma
ceito de corporeidade para que possamos com- diferença que permite o balizamento daquilo
preender as intersecções estabelecidas entre o que é distinto para se estabelecer o que é igual.
corpo e o espaço. De acordo com este pensa- Nesta seção buscamos discutir como esta idéia
dor, a existência de um mundo material neces- de diferença, que possibilita a existência de
sita de um sujeito corpóreo, que por sua vez uma identidade, se fundamenta em grande
só se sente um sujeito corpóreo porque pode medida a partir de aspectos da corporeidade.
experenciar um mundo material, tido como a
extensão onde se distribuem os objetos e cor- De acordo com Woodward, o corpo é um dos
pos que servem de referenciais para que um principais lugares envolvidos na afirmação de
sujeito corpóreo tome consciência de si. Nas fronteiras que definem um nós em relação a
palavras de Pino (1996, p. 58) “a corporeidade alguns outros. Isto não somente no sentido es-
é o nome dado à experiência de nossa mate- sencialista da marcação das identidades a partir
rialidade, a experiência que temos do espaço do corpo biológico, a idéia é de que as práticas
38 • GEOGRAFARES, nº 7, 2009
5. Edited by Foxit Reader
Copyright(C) by Foxit Software Company,2005-2007
For Evaluation Only.
corporais é o que de fato marcam a construção justamente isto, uma prática corporal específi-
das identidades. Portar-se de uma ou outra ma- ca marcada por um espaço de marginalização
neira é o que nos liga, por exemplo, a um refe- que define em grande medida as possibilida-
rencial de masculinidade ou feminilidade, de des de vida e as formas de comportamento e
pertencimento a uma certa nação ou etnia. Por postura. Temos aí um exemplo de diferencia-
conseguinte, a dimensão espacial, que permite ção criada por um olhar externo ao grupo, que
a existência de um nós, está configurada nes- o define de acordo com certa representação es-
ta relação. Construir uma prática corporal que tabelecida através de sistemas classificatórios.
marque uma diferença grupal envolve neces-
sariamente uma apropriação espacial e uma Por outro lado, temos também a marcação
qualificação de espaços como pertencente a “voluntária” da diferença. A proliferação da
uma determinada coletividade. Os gestos que grande diversidade de grupos sociais que na
estamos habituados a realizar são, no enten- cidade se reúnem para o encontro com os
dimento de Connerton (1999), uma referência seus “mesmos” é exemplo disso. Grupos jo-
e expressão espacio-visual de nossa memória vens, como de emos, skinheads, funkeiros,
cognitiva ou memória hábito, por exemplo. rockeiros; grupos religiosos, como carismá-
ticos, pentecostalistas, ortodoxos; e outras
Desta maneira, podemos conceber que espaço formas de balizamento da identificação gru-
e corpo são por diversas vezes utilizados como pal, como agremiações de escolas de sam-
marcadores sociais da diferença que funda- ba e de torcidas de futebol; são maneiras de
mentam identidades, seja por opção de um marcação de identidades a partir da tentativa
grupo que quer marcar sua especificidade em de criação de um sistema simbólico baseado
relação a outro utilizando determinadas corpo- em práticas corporais comuns e com asse-
reidades, seja de um grupo externo que a partir guramento de espaços apropriados e territo-
de um olhar define que certas práticas são mar- rialmente delimitados para suas atividades.
cadoras de outro grupo. Em ambos os casos,
como argumenta Woodward, a representação é Para avançarmos neste caminho de reflexões
o que dá subsídios à possibilidade da diferen- temos, entretanto, que indagar os processos
ça, e tanto corpo quanto espaço são alvos da re- que convertem as diferenças em processos
presentação social, seja por meio da marcação de alteridade. De acordo com Jodelet (1998),
de sistemas simbólicos seja através das formas a alteridade é um processo de construção
de exclusão social. O trânsito entre a marca- do outro a partir de sua oposição ao quadro
ção da diferença e os sistemas de classificação de um nós. Neste processo, buscamos tipifi-
estabelece a corporeidade como um compo- car, desvalorizar ou estereotipar as práticas
nente chave para a construção das identidades. do outro a partir da tentativa de proteção e
asseguramento de nossa identidade. É, des-
A título de exemplo podemos pensar como ta maneira, um processo de num contexto de
as metrópoles contemporâneas condensam pluralidade marcar e identificar os sujeitos
formas de marcação da diferença e da identi- que fazem parte de nossas práticas e de dis-
ficação a partir das idéias acima expostas. As tanciar (em termos de identificação) aqueles
favelas são uma forma de construção de uma tidos como diferentes. Este processo de cons-
identidade representada, o imaginário coletivo trução da alteridade se dá, de acordo com a
vem sendo cada vez mais levado a classificar autora, a partir de elementos da representação
as favelas como lugares que concentram um social, que se apóia em processos simbóli-
acúmulo de miseráveis responsáveis por todas cos que configuram em aproximação ou em
as mazelas das grandes cidades, em termos de marginalização a determinados sujeitos ou
violência e de degradação da paisagem estéti- grupos. Mas distintamente da diferenciação,
ca urbana. Os grupos externos a esta realidade que busca marcar o outro como distinto e es- Esaiando a corporiedade:
julgam serem capazes de reconhecer a corpo- vaziado de significado identitário, quando se corpo e espaço
como fundamentos
reidade daqueles que habitam estes espaços, o fala em alteridade busca-se marcar a diferença
da identidade
termo favelado é uma expressão que sinaliza entre o nós e os outros a partir justamente de
GEOGRAFARES, nº 7, 2009 • 39
6. seu caráter identitário. A alteridade explica,
pois, porque somos diferentes dos outros, e Woodward (2000) ao se propor a conceituar
não somente que somos diferentes do outro. a identidade traz alguns elementos fundamen-
tais envolvidos na questão. Examinemo-os.
4 – Identidade e práticas de corporeidade Para a autora a idéia de identidade abarca rei-
vindicações essencialistas, a identificação de
Estabelecida esta noção de alteridade e elu- sujeitos se justificaria por suas semelhanças de
cidada sua importância para as questões elementos constitutivos. Neste ponto de vista,
da pertença de sujeitos e grupos, torna-se a identidade é vista como um atributo fixo e
necessário melhor definir o conceito de imutável dos seres. Estes elementos constitu-
identidade para que possamos discutir sua tivos tanto podem ser de natureza biológica,
vinculação com a noção de corporeidade. como as idéias de parentesco consangüíneo;
ou de natureza social, baseando-se numa ver-
As últimas décadas do século XX foram aco- são essencialista da história e do passado.
metidas por um grande debate sobre a idéia
de identidade. As transformações políticas, Como já enunciado na seção anterior, a alteri-
econômicas e culturais a níveis mundiais re- dade é outro aspecto que possibilita a identida-
organizaram significativamente as formas de de. É, pois, o caráter relacional mais uma das
disposição do espaço-tempo humano. Os no- marcas conceituais das práticas identitárias.
vos processos que dinamizaram a vida dos Este caráter relacional se funda por marcações
sujeitos sociais abalaram suas formas de or- simbólicas que dão caráter de distinção. Usar
ganização social e abriram novos caminhos determinados adereços, utilizar de certas prá-
para a organização das nações. Respondendo ticas corporais ou circular por certos espaços
a isto, os sujeitos sociais constituídos alavan- diz sobre a pertença a determinado segmento
caram novos movimentos sócio-políticos que social. Como alerta Woodward, estes simbolis-
acabaram por ressignificar as idéias de mo- mos têm, pois, tanto dimensões materiais como
vimentos sociais. Velhas bandeiras deram lu- sociais: ligação com determinadas instituições
gares a novas pautas de luta. As políticas de e a detenção de certos bens materiais são as-
identidade passaram a figurar como a expres- pectos distintivos que diferenciam alguns su-
são maior dos movimentos reivindicatórios. jeitos dos demais e os cola a certa identidade.
O debate sobre as identidades sociais e coleti- Woodward chama atenção ainda para o cará-
vas ganharam a partir disso novo fôlego de pro- ter de superposição de identidades. Algumas
blematização e investimento intelectual, que diferenças podem ser hierarquizadas em de-
refloresceu os debates sobre os processos iden- terminadas situações, isto ocorre em casos
titários e de constituição de sujeitos. O modelo em que a identidade nacional, por exemplo,
dominante de sujeito – cartesiano - foi a partir obscurece e se sobrepõe a outras questões
disso dissecado e examinado em suas consti- identitárias, como de classe e de gênero. A
tuições que pareciam mais sedimentadas: seu negociação é, em função disto, um dos su-
padrão de etnicidade, masculinidade, heteros- postos da identidade. Assumir certa identida-
sexualidade, posição de classe e todos os seus de num momento pode ser mais interessan-
elementos constituintes passaram a ser inter- te do que assumir outras. Se admitir como
rogados para se questionar a idéia do que exa- católica pode ser mais importante do que se
tamente são os sujeitos e os indivíduos. Como distinguir enquanto mulher em determinadas
argumenta Stuart Hall (2005), é justamente no situações. É esta uma prática por vezes ne-
momento em que entra na mais profunda crise cessária que se negociada não leva sujeitos
que a idéia de identidade passa ter a necessida- ou grupos a uma incoerência em suas vidas.
de de ser bem definida. As instabilidades e as
incertezas são paradoxalmente, ou não, o que A estas proposições de Woodward podemos
fazem com que indaguemos neste momento elencar outras questões envolvidas diretamen-
sobre nossa constituição enquanto sujeitos. te nos processos de constituição da identida-
40 • GEOGRAFARES, nº 7, 2009
7. de. Para Michel Pollak (1992), por exemplo, reidade também são possíveis, podemos citar
o processo de construção do sentimento de como processos inseridos neste mesmo con-
identidade está diretamente relacionado às texto as lutas de grupos indígenas que perdem
questões da memória social, na medida em seus territórios para atividades mineradoras ou
que estas duas questões se aproximam en- de homossexuais que se unem em atividades
quanto tentativa de negociação e da recons- reivindicativas pela possibilidade de exerce-
trução de si. Desdobrando a análise, o autor rem suas sexualidades em espaços públicos.
argumenta que tanto a identidade quanto a
memória são processos de negociação que tem Hall (2005) sugere que haveria um processo
por intenção criar um sentimento de pertença específico nas identidades contemporâneas.
de uma pessoa com outra ou com um grupo. Estaríamos, em função da modernidade tar-
Memória e identidade seriam, assim, mecanis- dia, sofrendo um processo de descentramento
mos de ligar os indivíduos a uma coletividade. de nossas identidades. A idéia que temos de
nós mesmos como sujeitos integrados estaria
O movimento quilombola, expressão de grupo passando por deslocamentos e fragmentações,
político organizado que tem emergido forte- impedindo que tenhamos uma noção sólida e
mente nas últimas décadas no Brasil conquis- precisa dos elementos que nos formam como
tando bons resultados em questões de demar- sujeitos. Estaríamos passando na contem-
cação de território junto ao Estado, é um bom poraneidade por uma crise de identidade. A
exemplo de um processo identitário baseado identidade mestra situada na classe social foi
na corporeidade. A reivindicação principal abalada pelos movimentos de minorias, como
de grupos quilombolas é a de demarcação de os de luta feminista, negra e nacionalista.
terras usurpadas de seu uso por processos de
grilagem. A alegação é de que algumas terras Hall aponta que as transformações na forma
que atualmente estão em posse de grandes la- de concepção do sujeito passaram por cinco
tifundiários e empresas multinacionais na ver- movimentos científicos de grande influência
dade são áreas expropriadas de grupos étnicos no pensamento contemporâneo, que acaba-
de origem negra, que foram invadidas por gru- ram por tornar corrente a idéia de que pouco
pos de maior poderio jurídico e físico. A recla- há de unificação nos diversos indivíduos que
mação de quilombolas junto ao Estado é a de se distribuem pelo planeta e dos elementos
re-apropriação destas terras pelos grupos que que o formam – idéia de descentramento so-
primeiramente a lavraram e nelas construíram frida pelo sujeito universal. As postulações
seus referenciais sócio-culturais de existência. de Marx seriam a primeira delas. Para Hall
as utilizações do pensamento de Marx teriam
A base para reclamação identitária, neste caso, dado novo entendimento sobre o sujeito por
se baseia na questão consangüínea: é quilom- torná-lo situacional, ou seja, por colar direta-
bola quem é negro ou descendente direto des- mente as possibilidade de vida dos grupos e
te grupo. A reivindicação é, entretanto, a de indivíduos às condições materiais de produ-
demarcação de territórios que pelo uso social ção a que estão inseridos. Em outros termos
foram material e simbolicamente apropriados é dizer que o indivíduo não pode ser mais do
por estes grupos. Trata-se, pois, da constitui- que permite seu tempo e seu espaço, a não ser
ção de uma identidade territorial, em que os através da revolução das formas hegemônicas
elementos de pertença se estabelecem tan- de produção material. Com isto Marx fomen-
to por questões ligadas a questões corporais tou a noção de sujeito como um ser de cará-
quanto a extensões espaciais. As manifesta- ter eminentemente grupal, em sua condição
ções quilombolas por demarcação de áreas e de classe. O impacto disso sobre a noção de
asseguramento de direitos políticos se estabe- sujeito foi a de mostrar que este não é assim
lecem, desta maneira, a partir da corporeida- tão universal e que suas práticas no mundo Esaiando a corporiedade:
de, que neste caso é o elemento demarcador não se dão de forma isolada ou num vazio. corpo e espaço
como fundamentos
da identidade. Outros exemplos neste sentido
da identidade
de políticas de identidade baseadas na corpo- O segundo preceito que levou a um descentra-
GEOGRAFARES, nº 7, 2009 • 41
8. mento do sujeito foram as descobertas de Freud falamos bastante sobre como corpo e espaço
sobre o inconsciente, ao mostrar que o sujeito se intercambiam para a geração do sentimento
racional proposto pelo cartesianismo não é tão de pertença. Um processo distinto, mas corre-
coerente, conseqüente ou lógico quanto se con- lacionado à idéia de identidade, tem de ser de-
cebia. Com seus escritos sobre a sexualidade e batido a partir disso. A questão a se colocar é:
os desejos, Freud possibilitou que seus segui- que mudanças na corporeidade levaram a uma
dores ou intérpretes, como Lacan, avançassem crise identitária dos sujeitos contemporâneos?
em sua teoria mostrando como nós enquanto
sujeitos nos formamos também em relação e Acreditamos que o processo principal que
a partir do olhar do outro, vide as postulações surge numa crise identitária é o de estranha-
de Lacan sobre a “fase do espelho” na criança. mento da corporeidade dos próprios sujeitos
que a instituem. Com o descentramento de
Os estudos de Saussure contribuíram tam- nossas identidades passamos a questionar a
bém nesta empreitada de problematizar a que elementos nos ligamos que permitem nos
constituição relacional dos sujeitos. Com constituirmos como sujeitos de uma coletivi-
seus estudos em lingüística este autor con- dade e que nos torna pertencentes a algo. A
tribuiu significativamente para mostrar que idéia da vida nas metrópoles mais uma vez
como sujeitos somos formados por processos pode nos ajudar a pensar a questão. Se vi-
mais gerais. Nossas utilizações individuais vemos tantos espaço-tempo nesta realidade
do sistema lingüístico, que é algo essencial- urbana, o que realmente somos? Ao mesmo
mente coletivo, corroboram com esta idéia. tempo que universitários, somos sujeitos que
assumimos uma ou outras posições de gêne-
Foucault, por sua vez, a partir de suas teorias ro e relações de sexualidade, uma ou outras
sobre o poder disciplinar, trouxe à ciência a no- etnias, religiões, nacionalismo, posturas polí-
ção de que nossos corpos são produzidos por ticas, situações de classe, etc. Neste turbilhão
poderes presentes nas diversas instâncias so- avassalador de possibilidades de nos cons-
ciais; de que nossos corpos assumem determi- tituirmos enquanto sujeitos, o que somos de
nadas práticas em função dos poderes discur- fato em “essência” para dizer que nos identi-
sivos que constituem e disciplinam as relações ficamos ou diferenciamos de algo ou alguém?
– a noção de corpos dóceis. Desta maneira,
Foucault mostra em mais um sistema de idéias Um efeito disso sobre a idéia de corporeidade é
como os sujeitos se produzem relacionalmen- a de pensar que somos sujeitos desterritoriali-
te, a partir do choque de poderes diversos. zados, corpos estranhos a qualquer espaço que
se proponha estável. Sujeitos, desta maneira,
O feminismo, como crítica teórica e como sem lugar. Rogério Haesbaert (2001) diz que
movimento social, foi outro discurso que a noção de desterritorialização pode ser asso-
contribuiu para o deslocamento das identi- ciada à idéia de desenraizamento e ao enfra-
dades sedimentadas do sujeito unificado. As quecimento das identidades territorializadas.
políticas de identidade, em muito fomenta- Estes não territórios, culturalmente falan-
das pelo feminismo, geraram novos estatutos do, perdem o sentido de espaços aglutina-
para o debate sobre as identidades, propondo dores de identidades na medida em que as
que há muito menos de essencialidade na for- pessoas não mais desenvolvem laços sim-
mação dos corpos humanos do que se prega. bólicos e afetivos com os lugares em que
vivem. Além disso, na construção de suas
Estes cinco “sistemas de idéias” acabaram, identidades culturais, cada vez menos ter-
pois, por balançar as certezas quanto aos signi- se-ia participação das referências espaciais
ficados do eu e do nós para os sujeitos. Ques- ou da relação com um espaço de referência
tionar nossas identidades tornou-se impera- identitária. (HAESBAERT, 2001, p. 127)
tivo. Temos de discutir, portanto, como isto
se relaciona com as afinidades estabelecidas Uma outra possibilidade a se pensar seria a de
entre a corporeidade e a identidade social. Já adotar uma perspectiva de que embora nossas
42 • GEOGRAFARES, nº 7, 2009
9. identidades sejam dinâmicas, esta instabilida- por marcadores de gênero e também de etnia.
de trazida pelo movimento não a condena a su- A investigação realizada forneceu elementos
pressão ou aniquilamento. O que os exemplos que permitem sugerir que corpo e espaço se
das formas de re-arranjo de vida dos sujeitos intercambiam e se correlacionam a partir das
que tiveram suas identidades descentradas nos reiterações que marcam diferenças e confir-
mostra é que sua reconfiguração pode ser re- mam desigualdades socialmente construídas
alizada de maneira negociada. Isto passa por entre sujeitos, dotando o espaço de elemen-
admitir que há uma hibridez em nossa “consti- tos de gênero e etnia/raça. O espaço escolhi-
tuição”, que permite que por vezes assumamos do para análise na pesquisa foi o festivo, por
certos elementos ou espaços como os referen- acreditarmos que este agrega uma série de
ciais identitários mais imprescindíveis para um práticas reiterativas das posturas dos sujeitos
determinado contexto ou momento. Podemos participantes de uma coletividade, instauran-
pensar, desta maneira, que nossa corporeidade do a festa como evento construtor de identi-
pode constantemente reterritorializar corporal dades a partir dos aspectos de pedagogização
e espacialmente nossos sentimentos de perten- exercidos por rituais que possuem um caráter
ça. Como exemplo disso podemos sugerir o disciplinador e normativo. Passemos à análise.
sistema simbólico de um lugar que se instaura
em outros espaços, como fazem os estrangei- Os rituais de coroamento de reis negros, ou
ros que se reterritorilizam em outros países Congado, constituem-se numa das mais im-
usando de referenciais que se reportam aos que portantes expressões da religiosidade e da
utilizavam antes de se tornarem estrangeiros. cultura afro-brasileira presentes em Minas
Gerais. O Reinado consiste num ciclo anual
Dessa maneira, corporeidade e identidade de homenagens a Nossa Senhora do Rosário,
se encontram tanto em situações de afirma- São Benedito, Santa Efigênia e São Eslebão
ção da pertença a partir da diferença e da e envolve a realização de novenas, levanta-
alteridade, quanto da dissolução, descen- mento de mastros, procissões, cortejos, co-
tramento ou negação das identidades so- roações de reis e rainhas, cumprimento de
ciais. Isto mais uma vez acaba por aproxi- promessas, leilões, cantos, danças e banque-
mar a idéia de corporeidade à de identidade. tes coletivos. O Congado tem suas origens
relacionadas às interseções estabelecidas en-
6 – Corpo e espaço no Congado Mineiro: a tre o catolicismo europeu, as manifestações
constituição de corporeidades na Festa de Nos- festivas negro-africanas e a religiosidade
sa Senhora do Rosário em São José do Triunfo. popular brasileira; logo se constitui num hí-
brido luso-afro-brasileiro. (MARTINS, 2002)
Nessa seção analisarei a noção de corporei-
dade a partir de uma pesquisa realizada junto De acordo com Glaura Lucas (2002), o culto
à Irmandade de Negros de Nossa Senhora do e a devoção a Nossa Senhora do Rosário entre
Rosário de São José do Triunfo, distrito situa- os negros tiveram início já há longo período,
do na cidade de Viçosa (MG). O foco da pes- data do final do século XV, quando o continen-
quisa esteve em problematizar a constituição te africano conheceu ampla expansão do cato-
de espaços festivos a partir do tensionamento licismo em função da colonização. No Brasil,
entre sujeitos sociais marcados por questões estes elementos estiveram presentes desde
étnico-raciais e de gênero, estas últimas enten- a chegada forçada do negro nesta terra. Esta
didas como discursos gerados para e a partir devoção ganhou corpo no Brasil com as po-
dos corpos que, por serem tão reiterados, pas- líticas de catequese da coroa portuguesa, que
sam a se constituir como a verdade, tomadas estimulava o culto a santos católicos. Santos
mesmo como naturais, para os corpos (FOU- negros, como São Benedito, Santa Efigênia e
CAULT, 1988). Dessa maneira, busquei na São Elesbão, ganharam aí muita popularidade. Esaiando a corporiedade:
pesquisa compreender como a consolidação corpo e espaço
como fundamentos
das espacialidades a partir dos movimentos As irmandades de negros foram espaços onde
da identidade
dos corpos se dá por qualificações do espaço grupos se reuniam para celebrar seus santos.
GEOGRAFARES, nº 7, 2009 • 43
10. A coroa portuguesa pouco preocupou-se em uma ligação com seu passado de além-mar.
coibir tais práticas, uma vez que estas estavam
de acordo com os cultos católicos e serviam Já a partir de meados do século XIX, as ma-
de mecanismo para o controle de escravos. nifestações do Congado deixaram paulatina-
Os negros aproveitavam destes espaços para mente de ter aceitação por parte das elites por-
vivenciar sua cultura e se reencontrar simbo- tuguesas instauradas em território brasileiro, a
licamente, através das festas, com sua terra e Igreja passou a ter maior controle e coibição
povos de origem. Após a abolição da escrava- sobre a religiosidade popular e o Estado im-
tura, as festas religiosas de devoção aos san- perial não mais queria ter sua figura associada
tos negros continuaram com o mesmo fervor. ao passado colonial do país. Esta postura de
O Congado marca, portanto, um processo de não aceitação do catolicismo popular perdu-
cruzamento cultural estabelecido, através da rou até o final do século XIX, quando o ne-
violência física e simbólica, entre a cultura gro brasileiro abandou a condição de escravo
portuguesa e a africana em terras brasileiras. para assumir a condição de pobreza material.
Os Congados passaram no século XX, quan-
Neste cenário, o sagrado se constituiu num im- do o Brasil já conhecia um novo panorama
portante instrumento de resistência cultural. O social, a serem vistos como cultos das popu-
encontro entre o negro escravizado no Brasil lações pobres. Dessa maneira, as coroações
com seus ancestrais, e com outros aspectos de de reis negros em seus diversos rituais que se
seu sistema de valores, pôde ser realizado de espalham e se territorializam por todo o país,
maneira dissimulada, a fim de não gerar re- encerram muito da complexidade cultural do
pressão do rígido sistema punitivo colonial. Brasil. Os Congados carregam a expressão
dos tensionamentos de importantes segmentos
Num complexo sistema de rituais, que envolve étnicos que construíram o território brasileiro
a coroação de reis e rainhas negros/as, a cons- como nação, expondo os processos conflitivos
tituição de uma espacialidade mítica que dá e de desigualdade envolvidos nesta dinâmica.
forma material à narrativa de origem das festas
do Congado e de celebração aos seus santos (o De acordo com Paulo Dias (2001) a força
que envolve a constituição de paisagens sono- reivindicativa dos rituais festivos negros na
ras, memoriais e sensitivas), os festejos negros atualidade recorre ao processo de sofrimen-
atravessaram séculos resistindo às formas de to negro no cativeiro e de sua desvalorização
subjugação e criando mecanismos para man- após a abolição da escravatura. Os batuques
ter vivo os sistemas culturais destes povos. negros se constituem na atualidade em crôni-
cas sociais, que em sua aparente inocência de
Marina Mello e Souza (2001) completa esta manifestação religiosa muito faz politicamen-
conceituação do Congado ressaltando que a te, dissimulando quando necessário seus códi-
coroação de reis ou capitães foi o mecanismo gos para através da sacralidade dos tambores
encontrado pelos negros escravos na Amé- denunciar e germinar sementes para mudança
rica portuguesa para criação de uma coesão das formas de exclusão e subjugação do negro.
social e identitária. Como estes negros eram
provenientes de diferentes regiões da África, Em estudo realizado junto à Irmandade de
suas diferenças étnicas e culturais eram mui- Negros de Nossa Senhora do Rosário de
tíssimas. A formulação de práticas rituais e São José do Triunfo (SOUSA, 2008) pude
de mecanismos sociais se fez necessária para notar como é relevante a dimensão espacial
criar um sentimento de pertencimento co- dentro dos eventos festivos do Congado e
mum entre os diferentes povos que sofreram como as espacialidades festivas se organi-
diáspora para terras brasileiras. As festas das zam em consonância com as negociações
irmandades dos “homens pretos” no Bra- dos sujeitos que se formulam/confirmam em
sil criavam, desde a chegada dos africanos sua dinâmica. A pesquisa empírica e as re-
no Brasil, além de identidade para os negros flexões teóricas sobre a festa apontaram a
que forçadamente dividiam espaço no Brasil, corporeidade como uma noção que muito
44 • GEOGRAFARES, nº 7, 2009
11. pode contribuir para o entendimento das es- la-Congolês e de grupos da Contra-Costa. A
pacialidades dos festejos populares no Brasil. autora apresenta como evidência da ocupa-
ção desta população na região de Viçosa as
A Irmandade de Negros de Nossa Senhora do “sobrevivências culturais” encontradas por
Rosário de São José do Triunfo, distrito locali- ela em pesquisas na década de 1980. Embora
zado na cidade de Viçosa, está estabelecida na algumas outras manifestações desta cultura, 1
Trabalho de Extensão sobre
mesorregião da Zona da Mata Mineira, porção como a dança jongo, ainda sejam evidentes, é, Saúde Reprodutiva Feminina,
realizado pelo NIEG – Núcleo
espacial do estado de Minas Gerais que teve as diz Paniago, nos grupos de Congos, Congadas Interdisciplinar de Estudos de
origens de sua economia orientadas principal- ou Congados que é mais perceptível a presen- Gênero/UFV – em 2000, junto
aos agentes comunitários de
mente para a agropecuária, possuindo em fun- ça do Bantu, sobretudo nos distritos de São saúde do PSF (Programa Saúde
ção disso, nos dias atuais, grandes traços desta José do Triunfo e de Cachoeira de Santa Cruz. da família) e da população fe-
economia agrária e dos modos de vida rural. minina de São José do Triunfo,
distrito de Viçosa-MG.
Lamas et. al. (2008) explicam que esta mesor- Na pesquisa por mim realizada junto ao Con-
região teve grande importância na história do gado de São José do Triunfo diversos aspectos
Brasil, por se estabelecer como a região prove- foram analisados. A questão central da inves-
dora de grande parte dos suprimentos deman- tigação foi a busca de entendimento de como
dados pela região mineradora de Minas Gerais os Festejos do Rosário cumprem a função de
no auge do Brasil colonial. Sua formação ge- manter na memória do grupo social dela parti-
ográfica é, pois, em parte, fruto desta grande cipante o processo de constituição do espaço e
relação com as áreas auríferas de Ouro Preto e tempo social no lugar analisado. Neste ensaio
Mariana, municípios que tiveram sua opulência chamarei atenção para um dos aspectos identi-
sustentada pela exploração de minas de ouro. ficados na festa que grande relação estabelece
com a noção de corporeidade: a construção
Maria do Carmo Paniago (1990) salienta que de identidades socioespaciais e a problemati-
a ocupação da microrregião de Viçosa por po- zação do gênero e da etnia como dimensões
pulações negras efetuou-se pelas emigrações de tensionamentos espaciais dos sujeitos e
provenientes das decadentes minas de ouro como marcadores socioespaciais da diferença.
de Mariana e Ouro Preto na segunda metade
do século XVIII, movimento que trazia con- A Festa do Rosário é realizada em São José do
sigo os escravos que trabalhavam nas minas. Triunfo desde a década de 1930. Neste quase
O estabelecimento dos antigos empresários um século de existência, este grupo de Con-
auríferos em Viçosa e adjacências, ainda se- gado mantém a masculinidade como elemento
gundo Paniago, efetivou-se pela formação estruturador da festa. Contrariamente a outros
de fazendas com a base econômica orien- grupos de Congo que são compostos tanto
tada para a pecuária e as lavouras de café. por homens quanto por mulheres, a banda de
O distrito de São José do Triunfo figurou neste Congado de São José do Triunfo só admite
cenário como importante território para a fixa- a presença de homens em sua constituição.
ção de negros. Segundo pesquisa realizada pelo Um controle dos corpos é aí nitidamente es-
Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero tabelecido. A mulher, também pertencente à
– NIEG/UFV1, alguns poucos moradores anti- Irmandade de negros do distrito, só participa
gos ainda têm a memória da condição escrava. da festa em seus aspectos não visíveis, estando
Segundo contam os moradores, São José do geralmente confinada no interior de cozinhas,
Triunfo tem o apelido de ‘Fundão’ porque o cômodos de costura e em espaços de orna-
lugar era caminho de fuga de escravos, onde mentação da igreja. Embora esteja integrada
há uma grota que na época servia de refú- à formulação intelectual da festa, não está pre-
gio; grota essa também chamada de ‘fundão’. sente nos espaços mais públicos de celebra-
ção ou nos espaços de poder considerados de
Paniago (1990) ressalta ainda que a popula- maior hierarquia. Podemos sugerir, portanto, Esaiando a corporiedade:
ção negra que se fixou na região de Viçosa é que uma forma de constituição identitária da corpo e espaço
como fundamentos
de origem do grupo Bantu, população negra masculinidade é elaborada a partir da banda
da identidade
formada por inúmeras tribos do grupo Ango- de Congado, que elege um tipo de corpo acei-
GEOGRAFARES, nº 7, 2009 • 45
12. to (corpo do homem como significação mas- dentro de um espaço e tempo festivos. Como
culina que configura um nós) e um outro tipo produção e produtora da realidade social, a
como não pertencente ao espaço da festa (o festa é uma reveladora dos tensionamentos
corpo da mulher como expressão da femini- e conflitos sociais na batalha simbólica pela
lidade que se constitui num outro)2. Uma nor- instauração de um nós em contraposição a
2
As associações entre masculi- matividade de gênero age, neste contexto, na outros: por esta fronteira social se marcaria a
nidade e o corpo do homem ou a
produção de uma periferização, onde aspectos identidade. No estudo realizado compreendi
feminilidade e o corpo da mulher
não são feitas diretamente em do feminino são segregados do espaço festivo. que a festa de São José do Triunfo instaura sua
nossa pesquisa. Consideramos corporeidade marcando que o grupo de Con-
como masculinidade um discurso
objetivado por um tipo de uso da As identidades étnicas, por sua vez, se estabe- gado se reconhece como negro e masculino,
razão fundamentado numa rea- lecem no grupo através da marcação das sin- produzindo fronteiras socioespaciais ao cele-
lidade positivista e moderna. A
gularidades que o formam. Pude constatar que brar estes aspectos identitários e se distanciar
aderência de masculinidades por
um grupo de homens não é au- o grupo se enxerga enquanto singularidade a daquilo com que se confronta ao produzir o
tomaticamente estabelecido. No partir de suas particularidades ante as demais sentimento de pertença. O não-negro e o não-
grupo em análise entendemos que
a configuração simbólica da fes- etnias existentes no Brasil, ante aos povos de masculino são aqui os outros que permitem
ta é masculina não somente por histórias distintas que conformam a cidade de a instauração de um nós, que se estabelece
ser constituída por homens, mas
Viçosa e o distrito de São José do Triunfo, e a partir do corpo e se confirmam no espaço.
fundamentalmente por utilizar de
um certo discurso hierarquizador pelas expressões culturais que os dá status po-
e justificador de uma forma de lítico diferenciado religiosamente. O Congado Os instrumentos metodológicos e as técnicas
estruturação da realidade, que
estabelece lugares distintos para de São José do Triunfo realiza atualmente seus de pesquisa utilizadas permitiram a constru-
o que é considerado masculino e festejos numa área considerada periférica, em ção de uma série de elementos que possibi-
para o que é considerado femi-
termos localizacionais, na cidade de Viçosa. litam que concebamos a corporeidade como
nino. Para melhor compreensão
da idéia consultar SCOTT, Joan. As manifestações deste grupo constituíram forma de instauração de identidades. Quanto
Gênero: uma categoria útil de seus primeiros festejos na área central da ci- às metodologias de campo, foram utilizadas
análise histórica. Educação e
real dade, Porto de Alegre, v. dade nas primeiras décadas do século XX, para a realização da investigação a observa-
ao ter sido negada pelo poder religioso e pú- ção participante, entrevistas semi-estruturadas
blico local o grupo foi paulatinamente sendo e técnicas do Diagnóstico Rápido Participati-
empurrado para as bordas da cidade e tendo vo (DRP). A observação participante consti-
todos os seus aspectos simbólicos expurgados tuiu no acompanhamento da preparação das
da área central. Igrejas do Rosário foram der- festas e dos eventos festivos, de maneira que
rubadas e objetos relacionados à festa foram foram realizadas descrições densas do evento,
sendo dispersados por vários cantos da cidade. a apreensão das referências espaciais dos gru-
Dessa forma, outra maneira de controle dos pos em análise e o delineamento das tensões
corpos foi configurada nos tensionamentos entre sujeitos participantes da festa e das sim-
de poder que estabelecem a negação do cor- bolizações e conflitos realizados pelo/no lugar.
po e das espacialidades negras como aspectos
visíveis na constituição do espaço da cidade. Estas observações participantes foram des-
critas em diário de campo, que resultaram
Foi a partir destes dois tipos de eleição do em etnogeografias que permitiram, de acor-
corpo como elemento instituidor do espaço do com a sugestão Ratts (2003) inspirado
festivo que pude compreender o processo de em Paul Claval, para além da descrição da
constituição da corporeidade nos festejos do dinâmica dos sujeitos e grupos envolvidos
Congado de São José do Triunfo e perceber na pesquisa, a elaboração de descrições in-
como esta noção está diretamente relacionada terpretativas de lugares e momentos, de espa-
à instituição de identidades. A festa se cons- cialidades e temporalidades; dos sítios onde
titui num momento de convivência social sujeitos e grupos constroem suas existências.
muito significativo para a produção de iden- Objetivei com isso abarcar as paisagens,
tidades sociais, já que ela ao trabalhar a me- os lugares e as territorialidades do Conga-
mória coletiva dos sujeitos e coletividades ce- do, a partir das manifestações dos grupos
lebrantes institui fronteiras entre aqueles que em diferentes momentos e acontecimentos.
são estranhos e aqueles que são assimilados
46 • GEOGRAFARES, nº 7, 2009
13. As entrevistas semi-estruturadas com os su- nhada Transversal. Para realização do Mape-
jeitos foram elaboradas a partir dos métodos amento Histórico foram reunidos grupos ca-
da história oral. Com estas entrevistas, gra- tegorizados a partir de questões geracionais,
vadas em sua integra, objetivei a apreensão étnico-raciais e de gênero, de maneira que
16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990.
das narrativas memoriais dos grupos investi- estes apresentassem e representassem a orga-
gados a respeito da constituição espaço-tem- nização espacial das festas em análise a partir 3
A análise completa da realiza-
poral das festividades. Para este processo de da confecção de cartografias que expusessem ção das técnicas do Diagnóstico
Rápido Participativo junto aos
apreensão das dimensões espaço-temporais, suas visões de seus lugares. A Caminhada congadeiros e congadeiras de
realizei ainda a anotação das letras de músi- Transversal consistiu em percorrer junto aos São José do Triunfo, incluindo
os mapas inseridos neste ar-
cas entoadas na festa que fazem referências sujeitos participantes do mapeamento o traje-
tigo, foi apresentada em texto
ao espaço das festividades ou às memórias to feito pelos celebrantes das festas. As figu- durante o VIII Encontro Na-
dos espaços de cativeiro em outros tempos ras abaixo se constituem nos mapas sínteses cional da ANPEGE (SOUSA;
BARLETTO, 2009). O texto, que
no Brasil e de além-mar que elas trazem. elaborados durante a realização do DRP3. aponta as potencialidades de
utilização do DRP pela Geogra-
fia e que analisa os resultados
No trabalho, as técnicas do DRP utilizadas
de realização de suas técnicas
foram o Mapeamento Histórico e a Cami- na pesquisa citada no presente
artigo, chama atenção para o
cartesianismo fundamentador
FIG 1 - Croqui confeccionado junto FIG 2 – Representação esquemática do croqui do croqui realizado pelos ho-
aos homens. elaborado junto aos congadeiros. mens, que no caso analisado
concebe e representa seu lugar
a partir de uma racionalidade
calcada na distância métrica
entre os objetos que constituem
o espaço. Já o croqui elaborado
pelas mulheres se fundamentou
muito mais nas relações de vizi-
nhança e nos elementos de suas
histórias de vida para definir as
maneiras de representação de
seus espaços. Além dos mapas
sínteses, foi gravado em ima-
gem e som todo o processo de
desenvolvimento do DRP. Este
processo, bem como a realiza-
ção da etnogeografia e das en-
trevistas na pesquisa, foi descri-
to em um diário de campo que
está disponibilizado no site do
grupo de pesquisa Lux Festas,
do Instituto de Estudos Sócio-
ambientais da Universidade
Federal do Goiás: <http://www.
FIG 3 – Croqui confeccionado junto às mulheres. iesa.ufg.br/festaspopulares>
Esaiando a corporiedade:
corpo e espaço
como fundamentos
da identidade
GEOGRAFARES, nº 7, 2009 • 47
14. A pesquisa revelou, dessa maneira, como ele- 7 - Referências Bibliográficas:
mentos das festas populares, rituais que arti-
culam muitas das dimensões da vida social, BUTLER, J. Corpos que pesam: so-
como aspectos econômicos, sociais, culturais bre os limites discursivos do “sexo”.
e espaço-temporais; podem constituir como In: LOURO, G. L. (org.). O corpo educa-
quadro importante para análise das relações do: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo
identitárias de sujeitos com seus lugares. No Horizonte: Autêntica, 2001. p. 151-172.
caso da festa especificamente analisada pela
pesquisa foi possível perceber ainda como cor- BUTLER, J. Sujeito do sexo/gênero/dese-
po e espaço são elementos fundamentais para jo. In: ______. Problemas de Gênero: Femi-
se compreender a constituição dos sentimentos nismo e subversão da identidade. Rio de Ja-
de pertença e alteridade, que faz com que sujei- neiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 15-75.
tos e grupos organizem sua experiência social
de mundo e se constituam como coletividade. CONNERTON, P. Práticas Corporais.
In: ______. Como as sociedades recor-
6 - Considerações Finais dam. 2 ed. Oeiras: Celta, 1999. p. 83-119
Embora atraente, o trabalho com a idéia de DIAS, P. A “outra” festa negra. In: JANC-
corporeidade e o estabelecimento de sua apro- SÓ, I.; KANTOR, I. (orgs). Festa: cultura
ximação com a de identidade ainda apresen- & sociabilidade na América portuguesa.
ta alguns entraves. Tanto conceitual como São Paulo: Hucitec/Edusp/FAPESP/ Im-
metodologicamente ainda são rarefeitos os prensa Oficial do Estado, 2001. p. 859-888
investimentos intelectuais nesta categoria de
corporeidade. Retomando a proposição de FOUCAULT, M. História da se-
Connerton (1999) podemos sugerir que esta xualidade I: a vontade de saber.
dificuldade se estabelece pela hegemonia ocu- 17 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
pada pelas práticas de inscrição e pelos siste-
mas lingüísticos dentro dos aportes teóricos FLUSSER, V. Ensaios. In: ______. Ficções
que substancializam as ciências sociais e as Filosóficas. São Paulo: EdUSP, 1998. p. 93-97
humanidades, como ocorre no caso da herme-
nêutica. Ainda carecemos de bases teóricas e GEERTZ, C. A interpretação das cul-
de instrumentais metodológicos para estabele- turas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
cer as maneiras como o corpo se encontra com
o espaço para gerar corporeidades e a partir GUATTARI, F. Espaço e corporeidade. In:
disso interpretar e buscar compreender a for- ______. Caosmose: um novo paradigma esté-
mulação de determinadas identidades sociais. tico. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 153-165
Esta dificuldade pode ser vista, entretanto, HAESBAERT, R. Território, cultu-
em dois níveis. Um de inviabilização de tra- ra e des-territorialização. In: ROSEN-
balhos com a corporeidade, por acreditarmos DAHL, Z., CÔRREA, R. L. (orgs.). Re-
que não podemos construir junto a pares inte- ligião, identidade e território. Rio de
lectuais parâmetros para renovar estudos so- Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 115-144
bre esta temática, ou apostando que os hiatos
conceituais e metodológicos são justamente o HALL, S. A identidade cultural na Pós-Mo-
que impulsionam que a mola da ciência per- dernidade. 10 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
maneça dinâmica e criativa. Propostas fasci-
nantes como a de que Clifford Geertz (1989), HARAWAY, D.. Manifesto ciborgue: ciência,
de estabelecimento de uma descrição densa tecnologia e feminismo-socialista no final do
e interpretativa da realidade a partir da etno- século XX. In: SILVA, T. T. da (org.). Antropo-
grafia, nos inspira e nos faz acreditar que a logia do ciborgue: as vertigens do pós-huma-
empreitada é possível, instigante e necessária. no. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 39-129
48 • GEOGRAFARES, nº 7, 2009
15. Edited by Foxit Reader
Copyright(C) by Foxit Software Company,2005-2007
For Evaluation Only.
POLLAK, M. Memória e Identidade So-
HISSA, C. E. V. A mobilidade das frontei- cial. Estudos Históricos. Rio de Ja-
ras: inserções da geografia na crise da mo- neiro, v. 5, n.10, p. 200-212, 1992.
dernidade. Belo Horizonte: EdUFMG, 2006.
RATTS, A. J.P. A geografia entre aldeias e
JODELET, D. A alteridade como pro- quilombos: territórios etnicamente dife-
duto e processo psicossocial. In: AR- renciados. In: ALMEIDA, M. G. de; RAT-
RUDA, A. (org.). Representando a alte- TS, A. J.P. (orgs.) Geografia: leituras cultu-
ridade. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 47-67 rais. Goiânia: Alternativa, 2003. p. 29-48.
LAMAS, F. G; SARAIVA, L. F.; ALMICO, R. SANTOS, M. A natureza do espa-
C. S. A Zona da Mata Mineira: Subsídios ço: técnica e tempo, razão e emo-
para uma historiografia. Disponível em: ção. 4 ed. São Paulo: EdUSP, 2006.
<www.abphe.org.br/congresso2003/Textos/
Abphe_2003_09.pdf>, acesso em 08 maio 2008. SOUSA, P. P. A. de. As Geo-grafias da Me-
mória: gênero e etnia na constituição do
LINDÓN, A. De las geografías construc- lugar festivo do Congado de São José do
tivistas a las narrativas de vida espacia- Triunfo, Viçosa-MG. 2008. 96 f. Monografia
les como metodologias cualitativas. Re- (Bacharelado em Geografia) - Departamento
vista da ANPEGE, v. 4, p. 03-27, 2008. de Geografia, Universidade Federal de Viçosa.
LUCAS, G. Congado: O Reinado de Nossa Se- SOUSA, P. P. A. de ; BARLETTO, M.
nhora do Rosário. In: ______. Os sons do Ro- O Diagnóstico Rápido Participativo
sário: o Congado mineiro dos Arturos e Jato- (DRP) como Instrumento Metodológi-
bá. Belo Horizonte: EdUFMG, 2002. p.43-74 co para Abordagem da Dimensão Cultu-
ral do Espaço. In: ENCONTRO NACIO-
MARTINS, L. M. Performances do tempo NAL DA ANPEGE, VIII, 2009, Curitiba.
espiralar. In: ARBEX, M.; RAVETTI, G. Anais... Curitiba: ANPEGE, 2009. p. 01-15
(Org.). Performance, exílio, fronteiras, errân-
cias territoriais e textuais. Belo Horizonte: Fa- TUAN, Y. F. Espaço e lugar: a perspectiva
culdade de Letras da UFMG, 2002. p. 69-92. da experiência. São Paulo: DIFEL, 1983.
MELLO E SOUZA, M. História, mito e WOODWARD, K. Identidade e diferen-
identidade nas festas de reis negros no ça: uma introdução teórica e concei-
Brasil – séculos XVIII e XIX. In: JANC- tual. In: SILVA, T. T. (org). Identidade e
SÓ, I.; KANTOR, I. (orgs.). Festa: cultu- diferença: a perspectiva dos Estudos Cul-
ra & sociabilidade na América portuguesa. turais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 07-72
São Paulo: Hucitec/Edusp/FAPESP/ Im-
prensa Oficial do Estado, 2001. p. 249-260 RESUMO
PANIAGO, M. do C. T.. Viçosa - Mu- Este texto propõe problematizar corpo e es-
danças sociais e socioculturais; evo- paço como conceitos importantes para com-
lução histórica e tendências. Vi- preensão do debate contemporâneo sobre
çosa: Imprensa Universitária, 1990. identidades sociais. Propomos que estas duas
dimensões, quando se interceptam e passam a
PINO, A. A categoria de “espaço” em constituir a corporeidade, fundamentam gran-
psicologia. In: MIGUEL, A.; ZAMBO- de parte dos supostos de criação do par que
NI, E. (orgs.). Representações do espaço: dá suporte à idéia de identidade: diferença e Esaiando a corporiedade:
multidisciplinaridade na educação. Cam- identificação. As reflexões que constituem o corpo e espaço
como fundamentos
pinas: Autores associados, 1996. p. 51-68 ensaio se baseiam numa pesquisa realizada
da identidade
junto a um grupo de Congado, ritual festivo
GEOGRAFARES, nº 7, 2009 • 49
16. de coroamento de reis negros presente em Mi- comme des concepts importants pour com-
nas Gerais que possui espaço e corpo como prendre le débat contemporain sur les iden-
elementos fundamentais de sua composição. tités sociales. Nous proposons que ces deux
dimensions, quand elles se coupent et devien-
PALAVRAS-CHAVE: Corporeidade; identi- nent la corporéité, constituent une grande par-
dade; Congado. tie de la paire qui soutient l’idée d’identité:
différence et l’identification. Les réflexions
RÉSUMÉ sont basées sur un recherche auprès d’un
groupe du Congado, rituel festif du couron-
Ce text vise à examiner le corps et l’espace nement des rois noire situé en Minas Ge-
rais qui dispose l’espace et le corps comme
éléments fondamentaux de sa composition.
MOTS CLÉS : Corporéité ; identités ; Congado.