1. Tradução de um artigo publicado no Newsletter of the American Family
Academy #88 em maio de 2005
UM MÉTODO SISTÊMICO PARA O TRABALHO COM SONHOS
Desde muito jovem fui fascinada pelo mundo dos sonhos e com o potencial de significados que ele
tem para nossas vidas. Este tópico exerceu uma repercussão em minha vida pessoal e em meu
trabalho enquanto psicóloga clínica. Tornei-me extremamente curiosa sobre como os sonhos,
quando compreendidos, poderiam se ampliar para formar conexões com nossa mente consciente e
subsequentemente, com nossas vidas pessoais e nossas interações com o vasto universo que nos
rodeia. Enquanto uma pensadora sistêmica, comecei a perceber que compreender o mundo interno
dos sonhos é tão importante quanto entender o sistema pessoal, relacional, familiar e social, pois
todos eles são níveis do continuum biopsicosocial, que é essencial a qualquer consideração sobre
sistemas humanos. Contudo, no início do meu treinamento como terapeuta familiar sistêmica, não
encontrei um modelo que levasse em conta os processos internos e assim aproximasse a visão
psicodinâmica do trabalho com sonhos com os sistemas familiares externos.
Quando tive a oportunidade de ser treinada no modelo do Sistema Familiar Interno (SFI) ,
desenvolvido por Richard Schwartz, consegui finalmente visualizar como este modelo, quando
aplicado ao trabalho com sonhos, poderia auxiliar na construção desta conexão. SFI utiliza o
pensamento sistêmico no entendimento dos processos internos, o que permite a compreensão dos
padrões de interação inter e intra-individuais, permitindo vincular os processos internos aos
sistemas externos, tais como sistemas familiares, sociais e culturais. A mudança do foco do nível
interno para o externo pode ser realizado porque estamos utilizando os mesmo pressupostos
sistêmicos.
O modelo do Sistema Familiar Interno não ve a mente como uma entidade única, mas como
formada de múltiplas e, freqüentemente, diferentes subpartes, as quais estão conectadas entre si e ao
mesmo tempo são autônomas umas das outras. Cada parte apresenta características específicas,
estilos de comunicação, propósitos e sentimentos próprios e um modo de compreender o mundo e
as maneiras de sobrevivência no mesmo. Muito similiar aos membros familiares externos, essas
partes formam alianças, polarizações e sequências de interação. Este modelo acredita que cada
parte deseja algo de positivo para o indivíduo e para todo o sistema interno. As partes se tornam
extremas apenas quando sentem necessidade de proteger o indivíduo contra circunstâncias externas
traumáticas como abandono, rejeição, choque, medo, ou quando querem proteger as partes muito
vulneráveis dentro de nós. Algumas partes se tornam extremas quando polarizadas com outras que
têm maneiras diferentes e as vezes opostas, de tentar alcançar o mesmo objetivo. Quando estão
polarizadas, cada parte teme que, caso cedam, as outras vencerão colocando o sistema em perigo.
Por exemplo: uma parte "passiva" pode se tornar radical quando teme a presença de uma parte
"agressiva" e vice-versa.
Este modelo vê o "Self", um outro aspecto presente em todos os seres humanos, como sendo
diferente das partes. Quando o "Self" é totalmente diferenciado das partes, o indivíduo descreve
uma sensação de bem estar, de sentir-se centrado, com muita energia e totalmente voltado ao
presente. O "Self" não é um estado passivo, pelo contrário, ele pode ser um líder ativo para o
sistema, conduzindo-o ao melhor funcionamento possível, devido a sua lucidez, capacidade de
compaixão e compreensão para com todas as partes. Ao invés de forçar as partes a mudarem, ele
irá fortalecê-las e libertá-las de seus papéis extremos e de suas regras auto protetoras, ouvindo-as e
mostrando o quanto são apreciadas e valiosas ao sistema como um todo. Pelo fato do "Self" ser um
líder natural do sistema, o objetivo deste modelo é auxiliar o indivíduo a diferenciar o "Self" das
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2. partes e recuperar sua condição de líder, enquanto as partes proporcionam assistência, conselhos e
direções a serem adotadas.
A pressuposição básica de que as partes se manifestam na maioria dos sonhos está em
conformidade com a abordagem do Sistema Familiar Interno e também com o pensamento
Junguiano e Humanista/Existencial. Schwartz afirma que "Sonhos pertubadores não são incomuns,
pois são a maneira pela qual as partes se manifestam quando não conseguem fazê-lo diretamente"
(Schwartz, 1995). Jung também acredita que as partes manifestas em alguns sonhos são aspectos
negados e inacessíveis de nós mesmos. Johnson, um teórico Junguiano, sugere que uma boa forma
de se conectar com as partes internas de alguém é considerar cada representação do sonho como
um ser vivo dentro deste indivíduo. (Johnson, 1986). As partes podem ser manifestas em sonhos de
infinitas formas e de diversas maneiras tais como seres humanos, animais, lugares, objetos ou
sentimentos.
Em meu trabalho clínico, venho aplicando a teoria do Sistema Familiar Interno ao trabalho com
sonhos e tenho obtido resultados promissores quando exploro os significados da interação das
partes manifestas nos sonhos, comparando-as com as interações dos clientes com membros de suas
famílias e com outras pessoas significativas. Este trabalho exerce um forte impacto nos clientes ao
conseguirem se relacionar com as imagens de seus sonhos e perceber as relações das imagens entre
si. Esta experiência torna-se uma importante fonte de aprendizagem e crescimento.
Tenho utilizado quatro passos básicos para o trabalho com sonhos:
Primeira Fase: Esta fase é simples. O cliente conta o sonho e pede-se para que ele descreva
sentimentos específicos, sensações e características das imagens.
Segunda Fase: Pede-se para que o cliente entre para dentro de si mesmo, preferencialmente de
olhos fechados e informe o que se destaca no sonho. Pode ser uma pessoa, um objeto, um
sentimento, uma cena ou algo abstrato.
Terceira Fase: Durante esta fase são realizadas as intervenções terapêuticas do Sistema Familiar
Interno. Pergunta-se ao indivíduo o que ele sente sobre a parte ou imagem do sonho que escolheu
inicialmente. As outras partes podem apresentar uma forte reação à parte escolhida, como medo,
raiva ou mesmo um fascínio. Por este motivo, o cliente é orientado a pedir às partes para que
fiquem de lado para não interferirem na capacidade do "Self" de ser curioso, compassivo e assim
permitir o trabalho com a parte inicial. Uma vez que o "Self" é diferenciado, pode interagir com a
parte ou imagem do sonho, pedindo à mesma que se auto-descreva, que expresse o que deseja para
a pessoa, o que teme que poderia acontecer se não fosse tão extrema e explorar sua visão sobre
outras imagens do sonho e sobre o sonho como um todo. O "Self" passará pelo mesmo processo,
com diferentes imagens do sonho ou com qualquer nova imagem que possa aparecer. O "Self"
poderá também resolver polarizações entre as imagens do sonho, auxiliando as partes a chegaram a
um acordo e a compreenderem suas inferências exageradas sobre as partes opostas. Durante todo
este processo, o terapeuta deve continuar monitorando o que o "sonhador" sente em relação à
imagem do sonho que está sendo processada, no intuito de detectar se uma parte se miscuiu com o
Self.
Quarta Fase: Durante esta fase, há uma tentativa de conectar entre si todos os significados
encontrados no sonho, buscando chegar a uma visão global. Pede-se ao cliente que faça uma
revisão do trabalho com o sonho e que detecte qual a parte dele que sente, pensa e age como a
imagem do sonho. Se houver um conflito, pergunta-se ao cliente quais partes dele estão em conflito
umas com as outras e como essas partes se manifestam em sua vida e em seus relacionamentos com
os outros.
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3. Um exemplo clínico sobre meu trabalho pode ser útil. A cliente era uma mulher recém casada, de
25 anos que estava em terapia a vários meses. Sua queixa era que, embora amasse o marido que era
muito carinhoso e sempre presente , não sentia atração sexual por ele sentindo-se “morta” neste
relacionamento. Ela se sentia incomodada com as fantasias frequentes que tinha em relação a um
ex-amante que, por outro lado, nunca esteve emocionalmente disponível a ela. Ela descreveu o
seguinte sonho.:
Ela se encontrava à beira de um rio luminoso, que refletia a luz do sol, ladeado por uma verdejante
vegetação. Ela sabia que seu amante tinha comprado um lote no outro lado do rio, para onde ele
se mudara com sua família com o propósito de ficar mais perto dela e ter encontros secretos. Ela
estava observando uma pequena e atraente cabana feita de palha, com a porta entreaberta, com
muitas janelas que ele construíra para que pudessem se encontrar. Em contraste com o charme
externo da cabana, seu interior era frio e vazio. Tudo o que ela conseguia ver era uma cama com
lençóis brancos. Seu amante estava próximo à cabana, esperando por ela. Ela só precisava
atravessar o rio em um barco para encontrá-lo. Ela anciava por
ele e ao mesmo tempo sentia raiva dele estragar seu casamento, tornando impossível para ela
continuar com seu marido. Ela olhava para a água, sabendo que este encontro inevitavelmente
ocorreria.
A cliente optou por iniciar o trabalho com a imagem da "JovemMulher". Quando ela estava em
Self, aquela parte disse-lhe que ela apenas poderia se sentir sensual e apaixonada por um homem
quando era controlada e sentia-se inferior à ele. Ela não acreditava que a sensualidade poderia
ocorrer de outra forma , e sentia-se numa armadilha.
Quando o Self da cliente começou a interagir com a imagem do "Amante", ele disse a ela que
procurava por uma "mulher jovem" por causa de sua fraqueza. Ele disse que só conseguia ficar
apaixonado pela vulnerabilidade de uma mulher. Disse que aprendera a ser egoista e conseguir o
que queria na vida, independente das consequências, que sentia raiva e que não confiava em
ninguém.
A imagem da “Cabana”, disse que a razão de sua existência era providenciar um local para estes
amantes, que se sentiam desesperados em suas tentativas de terem um ao outro e de se sentirem
vivos. Esta imagem descreveu também o “Amante” como sempre necessitando estar em controle
para que não se sentisse vulnerável e machucado como uma criança de doze anos.
Quando requisitada a acessar a imagem do “Rio”, a cliente entrou em contato com uma sabedoria
interna. O “Rio” descreveu-se como aquele que tudo sabia , pois estava presente em todas as
circunstâncias. Ele tinha compreensão e compaixão para com todos e não julgava ninguém. Ele
descreveu a vulnerabilidade do “Amante” como o resultado de sua necessidade do afeto materno
que nunca obteve. Neste momento, a cliente reportou que a "Jovem Mulher" transformou-se numa
deusa que amava o “Amante” como uma mãe, irmã e amante. Repentinamente a cliente se tornou
vibrante e emocionalmente viva . Ela se sentiu vigorosa, completa e sensual e disse ter
experimentado a essência da feminilidade.
Ao revisar o trabalho com o sonho, (Quarta Fase), a cliente foi capaz de reconhecer não somente a
"Jovem Mulher" como parte de si mesma (do que ela já tinha consciência), mas também o
"Amante" como outra parte de si mesma, que às vezes a fazia agir de maneira auto-suficiente e
controladora com os homens que ela precisava mas não respeitava, por eles não conseguirem
controlá-la. Ela conseguiu ver como essas partes formavam uma complementariedade rígida entre
si, impedindo-a de conseguir um relacionamento satisfatório. Quando estava em Self, ela conseguiu
acessar um conhecimento interior maior, que possibilitou a compreensão de si mesma em seu
relacionamento com a figura masculina , de uma perspectiva completamente diferente. Ela não era
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4. capaz apenas de saber, mas também de experimentar a si mesma como uma mulher madura e
sensual, capaz de amar e aceitar a vulnerabilidade de um homem, sem precisar de sua força para se
sentir viva. Desta maneira, este trabalho com sonhos proporcionou à cliente uma poderosa fonte
adicional de conhecimento sobre o trabalho com suas partes internas vivenciadas em terapia.
Em sessões posteriores, a cliente relatou como havia conseguido, pela primeira vez, se sentir
sensual com seu marido e pedir o que queria, enquanto se tornara ciente de suas necessidades. Este
momento tornou-se um ponto chave de mudança na terapia. Ela começou a trabalhar seu casamento
e se motivou a iniciar uma terapia de casal.
A diferença básica entre o trabalho com sonhos baseado na teoria do Sistema Familiar Interno (SFI)
e outras teorias, é que o SFI é baseado na construção de uma relação de confiança entre a parte ou
imagem do sonho e o Self. Assim como um terapeuta familiar auxilia os pais a exercerem uma
posiçao de liderança dentro da família, a teoria do SFI ajuda o cliente que trabalha um sonho, a
diferenciar o Self das partes extremas que sentem necessidade de proteger o sistema, para que assim
o Self possa exercer sua função natural de líder. Quando existe a liderança do Self, todas as partes
ou imagens dos sonhos são valorizadas e, consequentemente cooperam mais facilmente entre si para
formarem um sistema interno mais equilibrado e harmonioso.
Segundo a teoria da Gestalt, o terapeuta consegue conhecer a parte ou a imagem do sonho quando o
cliente "se torna aquela parte". Diálogos entre as imagens do sonho também são estabelecidos
quando se solicita ao cliente escolher entre "ser" ou dar voz a um ou mais personagens do sonho.
Esta abordagem, porém, não tem o intuito de melhorar a confiança entre as imagens do sonho e o
Self. Da mesma forma, por não diferenciar e criar um limite claro entre a imagem do sonho original
e outras partes extremas do sistema, que podem sentir medo ou raiva em relação à imagem do sonho
que está sendo processada, corre-se o risco de não se oferecer um contextod onde aquela imagem
possa se sentir aceita e valorizada.
Na visão Junguiana o sonho é compreendido como uma forma em que os aspectos psíquicos
negados à consciência possam vir a tona. Portanto, o trabalho com sonhos é uma tentativa de trazer
esses aspectos para a consciência para então criar um movimento em direção ao equilíbrio e a
totalidade. Esta teoria utiliza a amplificação das imagens do sonho, explorando as conexões
pessoais, culturais e possívelmente arquétipicas das imagens. Contudo, ela não busca mudar a
relação interna entre as imagens do sonho ou criar uma relação entre estas e o Self.
A premissa básica adotada neste artigo é que a maioria dos sonhos não são apenas aspectos negados
de nós mesmos, mas também revelam seus padrões de interação. Isto nos permite compreender o
estágio de desenvolvimento da imagem do sonho e, através de uma posição de liderança do Self,
avaliar o papel desta imagem no sistema interno. No trabalho com sonhos, o Self pode trabalhar
com as coligações das partes representadas no sonho, com as suas polarizações, alianças e
sequências de interações. Os sonhos são aqui vistos como um teatro onde as interações dramáticas
entre as diversas partes que compreendem nosso mundo interno são reveladas. No trabalho com
sonhos, o diálogo entre a mente desperta e a mente que sonha, permite que a função transcendente
do Self se posicione como síntese das duas. O trabalho com sonhos não se encaixa apenas na terapia
do Sistema Familiar Interno, mas em todas as terapias sistêmicas individuais.
Gostaria de finalizar este artigo citando Luis Buñuel, o renomado cineasta espanhol em sua
autobiografia Meu Último Suspiro (1985), "Dê-me duas horas de atividades diárias e eu vivenciarei
as outras vinte e duas sonhando", na certeza de que ele poderia se lembrar de seus sonhos durante
aquele período.
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5. BIBLIOGRAFIA
• Johnson, R. A. (1989) Inner Work: Using Dreams and Active Imagination for Personal Growth.
San Francisco, Harper: Harper Collins Publisher.
• Schwartz, R.C. (1995). Internal Family Systems Therapy. New York, N.Y.: Guilford Press
• Van de Castle, R. (1994). Our Dreaming Mind. New York: Ballantine
www.selfleadership.org
Heloisa Garman, é Psy.D. em psicologia e terapeuta famíliar. Atende em clínica particular na
cidade de Chicago-IL , onde trabalha com indivíduos, casais e famílias. Ela também é afiliada ao
Instituto de Família da Universidade de Northwestern. Tem lecionado sobre Terapia Familiar e
feito supervisões na Escola Paulista de Medicina e na Pontifícia Universidade Católica em São
Paulo - Brasil , por muitos anos.
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