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TERRA NATAL
AS MODAS E OS MODOS DA MEMÓRIA
“Quando vim da minha terra
não vim, perdi-me no espaço
na ilusão de ter saído,
Ai de mim, nunca sai”
“Lá estou eu, enterrado
Por baixo de falas mansas
Por baixo de negras sombras”
Carlos Drummond de Andrade
Para Dalila, companheira de travessia.
Meus filhos: Ana Paula e Rafael que cresceram vendo o sonho virar vida.
E meus netos: Ana Carolina - que história engraçada Vô! - e os gêmeos Tiago e
Felipe, alegrando o fim da jornada, iluminando a vida de esperança.
Sumário
UMA EXPLICAÇÀO E VÁRIOS AGRADECIMENTOS DA PRIMEIRA VERSÃO ...... 6
PREFÁCIO EDIÇÃO DIGITAL .............................................................................................................. 8
MIKA – I..........................................................................................................................................................10
MIKA – II.........................................................................................................................................................20
SABOR GLOSTORA..................................................................................................................................24
A PRAÇA........................................................................................................................................................27
As quermesses..........................................................................................................................................27
UMA RUA CHAMADA SAUDADE.................................................................................................30
A BIBLIOTECA, NA ESQUINA...........................................................................................................34
O FOOTING...................................................................................................................................................41
OS LONGES DO BATATA.....................................................................................................................44
ABREM-SE AS CORTINAS....................................................................................................................49
ESTÓRIAS DO FUTEBOL.......................................................................................................................52
A NOITE – I ...................................................................................................................................................59
OS JOGOS DO OBELISCO......................................................................................................................61
OS CINEMAS................................................................................................................................................67
A TABA............................................................................................................................................................72
CIDADE MENINA-MOÇA....................................................................................................................75
TUTTI BUONA GENTE...........................................................................................................................78
Ô NATRA, CADÊ TEU PAI?.................................................................................................................79
A SEIVA DIVINA........................................................................................................................................81
CHICÃO..........................................................................................................................................................84
AS REVOLUÇÕES EM MARCHA......................................................................................................87
O TREM AZUL.............................................................................................................................................94
NOS CAMINHOS DO PARANÁ.....................................................................................................103
MENINO DA PORTEIRA....................................................................................................................106
EH, CHÃO PRETO!.................................................................................................................................109
A NOITE II ..................................................................................................................................................111
AS GALINHADAS..................................................................................................................................117
Receita de Galinhada .........................................................................................................................120
A VIDA CULTURAL..............................................................................................................................123
OS FILMES..................................................................................................................................................129
O REI DO ROCK.......................................................................................................................................137
Z.Y.G..............................................................................................................................................................140
NOS PALANQUES DA VIDA – I.....................................................................................................153
NOS PALANQUES DA VIDA – II...................................................................................................158
OS BAILES...................................................................................................................................................171
SAUDADES DA PROFESSORINHA..............................................................................................178
MINHA ORAÇÃO ..................................................................................................................................184
MEU LENÇO VERMELHO.................................................................................................................188
RODOURO..................................................................................................................................................191
OS CAÇADORES DA MADRUGADA..........................................................................................196
Leitoa à pururuca ................................................................................................................................199
Receita de churrasco...........................................................................................................................199
MAKTUB......................................................................................................................................................204
A GUERRA DOS MASCATES...........................................................................................................206
Receita de cafta:....................................................................................................................................213
Receita de kibe cru..............................................................................................................................214
Receita de Mussauaque:...................................................................................................................215
OS TITIOS....................................................................................................................................................220
FESTA NA ROÇA....................................................................................................................................223
OS CISNES IMPERIAIS.........................................................................................................................229
O REI DO LAÇO.......................................................................................................................................241
A NOITE DOS NAMORADOS..........................................................................................................245
AS CIDADES DOS BÊS .........................................................................................................................255
MAIS DE MEIO SÉCULO DEPOIS..................................................................................................259
EPILOGO .....................................................................................................................................................262
FOTOS DA PRIMEIRA EDIÇÃO......................................................................................................267
ADENDOS...................................................................................................................................................276
Crédito das Músicas...........................................................................................................................276
Referências Bibliográficas................................................................................................................279
Revistas................................................................................................................................................281
Jornais...................................................................................................................................................281
Relação dos Filmes..............................................................................................................................282
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
6
UMA EXPLICAÇÀO E VÁRIOS AGRADECIMENTOS DA
PRIMEIRA VERSÃO
Estas evocações aconteceram ou são fabulações senis do narrador? Tudo
é verdade ou tudo é mentira? Ou uma coisa ou outra; ou nem uma coisa, nem
outra, pois como dizia o mestre Guimarães Rosa pela boca do Riobaldo
Tatarana no livro Grande Sertão, Veredas: "Moço, toda saudade é uma espécie
de velhice".
As pessoas existiram, os acontecimentos não, ou vice-versa - ou versa-
vice como diria o Teixeirinha - mas como ensinou o grande cineasta John Ford
no filme “O homem que matou o facínora”: "quando a lenda é mais
interessante do que a realidade, imprima-se a lenda".
Algumas almas boas evitaram que o narrador perdesse o tino,
mantendo-o através da amizade e da sabedoria nos limites da normalidade;
tão fugaz quanto todas as certezas humanas, pois a memória é cheia de
artimanhas e ilusões.
A minha gratidão e o meu carinho para:
Nas pesquisas musicais: Rosi Ribeiro de Moraes, gerente do Armazém
do C.D.- Curitiba; Marcel Gil Liano Cruz, produtor musical da Radio
Educativa do Paraná; João de Freitas, pesquisador de musica caipira -
Londrina; Leon Barg, produtor musical da Gravadora Revivendo – Curitiba, e
Tarcisio Lourenço Darif, colecionador e esteta do som – Curitiba.
Nas referências bibliográficas: Rubia Oliva, da Bibliotéca Pública do
Parana e Gerson Linhares, da Livraria Curitiba, na Boca Maldita.
Nos caminhos do “maktub” a tribo dos “brimos” de Curitiba:
Professores Mansur Teóphilo Mansur e Jamil Zugueib Neto; Amied Reduan
Ibrahim, empresario; Jorge Zaruch, alfaiate, e Aramis Chaim, livreiro: “As
salâmo á-leikom!” - Que a paz esteja com vocês!
Ana Maria Santana – in memorian -, José Augusto Pavesi e José
Marangoni pelas pesquisas locais.
Fathma Aparecida Salles Abufares, pelos estímulos, conselhos e bons
fluidos; Rafael Rocco Salles, filho; Flavio Henrique Sartorello e Ericson Salles
Abufares, sobrinhos, que através da informática, salvaram do holocausto mais
um velho dinossauro ameaçado pelas novas tecnologias.
Gerson Cavalcanti, Woyne Figner e Wisclef Sacchetin, que fingem terem
saído da Terra Natal, mas vivem à espreita, compartilhando o sonho.
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
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Para todos sem os quais este livro não aconteceria, os versos do poema
”A ilusão do migrante" de Carlos Drummond de Andrade:
“Que carregamos as coisas,
Moldura da nossa vida,
Rígida cerca de arame,
Na mais anônima célula
E um chão, um raio, uma voz
Ressoam incessantemente
Em nossas fundas paredes”.
E finalmente, para a Olímpia eterna, a cidade que resiste na herança
afetiva dos seus filhos, uma presença tão real quanto a "Tabuleta da Casa
Thomé”, e às pessoas, estas mais que tudo, imortais na memória, encantadas
na saudade.
O narrador em nome do Bidulinha, do Teixeirinha, d’Elle, e de todos os
outros.
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
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PREFÁCIO DA EDIÇÃO DIGITAL
Treze anos após o seu lançamento, no dia 10 de maio de 2002, o livro
“Terra Natal – os modos da memória” é relançado versão com algumas
modificações.
Estas adequações acontecem por várias razões: primeiro para uma
adequação cronológica – nem a tabuleta da Casa Thomé que inspirou a capa
da primeira edição existe mais; e segundo por sugestão de vários leitores que
viveram a mesma época e sonharam os mesmos sonhos; amigos a quem sou
muito grato, cujas memórias privilegiadas permitiram corrigir pequenos
enganos na descrição de acontecimentos que inspiraram o autor.
Mudou o subtítulo que passa a ser: “as modas, e os modos da memória”.
No texto algumas partes – poucas – foram retiradas, e outras – menos ainda –
acrescidas.
A versão digital impõe-se pelos novos tempos tecnológicos, esperando
que as novas plataformas facilitem o acesso da geração atual.
Aos agradecimentos da primeira versão quero acrescentar algumas
pessoas que das mais diversas formas colaboraram com o sucesso do
lançamento:
Na divulgação que redundou numa noite de autógrafos com 142
participantes, o eterno agradecimento para: o jornalista Silvio Roberto Mathias
Netto, o nosso Bibi – Radio Menina e jornal Planeta News; o jornalista Nelito
Santos (in memoriam) – jornal Tabloide da Nova Paulista; e na organização a
equipe da Secretaria Municipal de Educação de 2002 liderada pela professora
Maria Eunice Balbo; o apoio institucional do prefeito municipal o colega Luiz
Fernando Carneiro; e a “brima”, a pioneira e histórica cronista social Diva
Thomé (in memoriam).
A Leonardo Concon do Blog “Diário de Olímpia”, um incentivador da
cultura da terra natal que ao ser solicitado prontamente tornou possível
colocar digitalmente esta versão à disposição dos interessados; e,finalmente,
para Ana Carolina Salles e Gabriel Cordeiro responsãveis pela formatação
desta edição.
Desfrutem, e saibam como foi Olímpia, a nossa Terra Natal, que
sobrevive na saudade de quem teve o privilégio de viver aqueles tempos de
sonhos.
Boa leitura!!
Curitiba, setembro de 2015.
Jorge Salles.
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
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A ESCOLA
Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia.
Leon Tolstoi.
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
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MIKA – I
A escola foi construída no lado "nobre" da cidade, o mesmo da matriz.
Reza a lenda que o projeto era para uma cidade maior, Santos, mas o Mando
Político numa demonstração de força conseguiu desviá-lo para a cidade.
Erguida no centro de um terreno terraplanado com declives gramados era
toda cercada por uma mureta encimada por alambrado. No fundo, separava-
se por uma cerca - viva da Pracinha, a rota de fuga mais usada para cabular
aulas.
Por sua imponência destacava-se no meio das casas baixas, visível de
quase todos os cantos da cidade – “enxergável”, como corrigia o solerte
Teixeirinha. No pátio cimentado e coberto ladeado por dois banheiros tinha
um pequeno palco de madeira, onde nas festas cívicas brilhavam os talentos
estimulados pelos professores, e aplaudidos pelo orgulho dos pais
esperançosos.
O nome homenageava uma professora que poucos sabiam quem fora,
mas isso era o que menos importava; ali era a escola deles, o Anitona. De
manhã funcionava o grupo, à tarde o ginásio.
Foi ali, naquelas salas e corredores que tudo começou. Uma classe mista,
meninos e meninas sonhando com um futuro risonho, repleto de certezas e
conquistas; histórias de sonhos e desejos imortalizados na memória de cada
um.
Todas as turmas deixaram suas marcas, umas mais que as outras.
Naquele tempo tudo era imenso, o mundo ainda não tinha começado a
encolher.
Foi um escarcéu quando a Mika I, uma improvisada bomba caseira
arremessada da janela de uma sala de aula do segundo andar explodiu no ar.
Um “cu-de-boi" como disse mais tarde, ainda assustado o Tony com a sonora
voz de futuro locutor.
Na aula prática de Ciências Naturais um gato semi-anestesiado
sacrificado ao Saber era meticulosamente destrinchado por mãos hábeis
provocando esgares nas almas mais sensíveis - “na hora, quase gomitei”. Ele
fora sequestrado dos afagos de uma descuidada solteirona e oferecido como
animal vadio em holocausto à Ciência.
A professora Maria Ubaldina manipulava as vísceras com as mãos
enluvadas evitando sujar as unhas recém-pintadas, e explicava didaticamente
sem nenhum nojo – mulher de médico, quanta coisa ela não vê? – o
funcionamento dos órgãos, as batidas do coração, os movimentos do
diafragma.
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
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Estava um pouco distraída, e executava automaticamente seu trabalho
pensando na festa de aniversário da Rosali, logo à noite - “minha menina vai
fazer treze aninhos, está quase uma moça. E ainda tenho que passar na Baiana
para pegar o presente; ficou tão lindo o vestido novo de organdi estampado,
saia godê, gola alta e manga japonesa. Ela vai usar com a sandália nova de
tiras, tipo escrava, dessas de trançar nas pernas, que o Paulo trouxe de São
Paulo; vai ficar uma graça. Ah, será uma noite inesquecível; a minha
princesinha merece, e esta aula que não termina”.
O professor Izaías a auxiliava manejando o bisturi cheio de cuidados; a
mesma delicadeza com a qual ele segurava nos ensaios à noite no cineteatro as
mãos de Eurídice. Estava atento para não furar os intestinos, senão ia espalhar
bosta para todos os lados.
O barulho muito alto provocou uma grande gritaria. A fumaça
espalhou-se irritando os olhos, aumentando o medo, e num atino todos
correram numa fuga desesperada pela única porta, derrubando cadernos,
chocando-se com as carteiras.
Na posterior reconstituição dos fatos houve quem afirmasse que o pobre
felino, usando a última das suas sete vidas, saiu da quase inconsciência do
clorofórmio, e pulou desvairado da mesa cirúrgica improvisada, derrubando o
material emprestado pelo Dr. Paulo.
E miando desesperado escapuliu pelo vitrô lambendo as vísceras
dependuradas, numa fuga alucinada em busca da sobrevivência. Igual
afirmavam os mais exagerados, quando tinham busca-pés amarrados nos
rabos, nos inocentes folguedos infantis na época das festas juninas.
Mas apesar do dia tumultuado, felizmente, a festa foi um sucesso: “A
Mansão dos Furquim com os jardins enfeitados, escadas feericamente
iluminadas (eu sei que é galicismo, que o Professor Jayme vive reparando, mas
não importa é um adjetivo tão bonito, de uma língua tão romântica – ela
pensou, mas não escreveu), parecia um castelo de contos de fada”, registrou a
inexperiente cronista social que estreara há duas semanas; o Nelito, ainda
tinha duvidas, se ela daria certo.
Na aula de português o parnasiano professor, de inopino - a esperança
do narrador tomara que um dia ele leia isto, e elogie a expressão - indagava:
- Floriano, cite cinco cores.
O sardento italianinho, nascido na “róça”, que andava de “caróça”,
oriundi da Escola mista rural do Tamanduá, lascou:
- Alazão, baio, carijó, “turdio” e “amaron”.
Enquanto a classe ria, o desamparado aluno quase morto de vergonha
esvaia-se atrás da carteira, desejando sumir nas matas do Turvo para nunca
mais aparecer, o professor Jayme explodia de indignação:
- Zero, Sr. Balbo, zero!
Era um Mestre, como gostava de ser tratado, na acepção da palavra;
cultor do português escorreito, afeito às preciosidades do vernáculo, e que
adorava adjetivos, Às vezes abusava de um linguajar prolixo recheado de
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
12
palavras difíceis, e adorava citar expressões idiomáticas pouco corriqueiras, as
mais belas da última Flor do Lácio. Dotado de um vasto conhecimento geral
auxiliado por uma memória privilegiada, permitia-se fazer perguntas
capciosas, rebuscadas, aquelas tiradas do bolso da algibeira. Como advogado
fazia sucesso nos júris – o Forvm ficava repleto para assisti-lo – com defesas
memoráveis, repletas de latinismos e citações dos clássicos. Quando defendeu
o cunhado do Bidulinha, impressionou os jurados, abusando dos: “Senhores
Membros do Conselho de Sentença, como diria o mestre Rui, ínclitos e justos”.
Ele avaliava o nível de ignorância dos seus discípulos por dois únicos
parâmetros: dez ou zero, este, infelizmente, usado com muita frequência.
E lá vinha ele:
- O que significa mangar?
O Rivoiro, ex-seminarista, crânio nas cinco declinações latinas: ae, i, is,
us, ei - e nos adjetivos de 1ª classe: us-dominus, a-rena, um-bellum - o resto da
turma uns pobres coitados não sabiam nem os de segunda – e que era a
salvação da lavoura nas provas do prof. Bianor, ajeitou o óculo fundo de
garrafa e desfilou:
- Ironizar, debochar.
- Dez – enfático - déééz!
- Padreco, cu-de-ferro - sibilou a Múmia.
Sr. Wanderley: fale alto e bom som, não nos prive de sua assertiva que
como soe acontecer, enriquecerá a língua de Machado.
- Não foi nada Mestre, apenas um “lápis” de memória – ele sonhava
humilhar, só pensava no grafite, e nas reações da pólvora.
- Excelsa contribuição, nota compatível: zero, com “lapso” vermelho.
E hiperbólico: Ó tempora! Ó mores!
- E soteropolitano?
O medo dos zeros ciciava as respostas.
- Deve ser parente do Zico – o Zico Sotero era um ex-aluno, destaque do
time de basquete da cidade.
- Onde ficava Pasárgada?
- Pra lá de Palestina, perto de Granada, o fim da linha.
A alma árabe do Bidulinha o fez cantar:
“Granada, tierra sonada por mi
Mi cantar se vuelve gitano (...)
Granada tu tierra está llena
De lindas mujeres, de sangre y sol”.
Mas foi um canto sem voz, só em pensamento.
E assim eles foram aprendendo, aos trancos e barrancos, chorando na
rampa, a riqueza da língua-mãe: as regras da concordância, a conjugação dos
verbos, a prosódia, àààs crases, a “ortográfia” - como numa aula, alto e bom
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
13
som, exclamou o Bidula, e recebeu uma desalentadora resposta: Zero, sua
cavalgadura, ZERO!
Alguns reagiam aos novos saberes:
- Ô! linguinha enrolada, sô. Inda bem que é a “última flor do Lácio,
inculta e bela, desconhecida e obscura”; assim não dá para “amar ela”. Lá fora
é que é bão: nóis vai, nóis fumo; guenta sô, num guento; é mêmo, né; é bebé,
mama na gata, ocê não qué.
Os temas para as redações o mestre retirava do baú de Camões que o
esquecera na biblioteca dele, quando viajou para: "mares nunca d’antes
navegados, em busca da Ilha de Taprobana".
O Caia, talentoso orador, caprichou numa sobre as eleições para o
G.E.C.A.- Grêmio Estudantil Castro Alves; adjetivou tão bem, chamando de
“pinceladas eleitorais” a propaganda que como candidato pintou com cal – é
virgem, porque o pincel é brocha - nas ruas em volta da escola. Foi
elogiadíssimo, citado como exemplo, mas perdeu a eleição. Ninguém vota em
cu-de-ferro. Uma verdade que animou a maioria: “não sou mau aluno, é que
vou ser político”.
Monsieur Le Professeur mesmo antes de fazer a chamada - a seco, sem nem
passar “guspe”, foi logo introduzindo:
Dictée: "La France est aprés la Russie le plus vast des états Européen. Elle
ocupe une situation a la fois continentale, a la fois maritime que lui assure des
precieux avantage.....".
-Bonjour, je suis le professeur Ferdinand.
Ele recentemente assumira no lugar da Madame Affife Latouf, uma
descendente de libaneses de esmerada educação francesa que vinha
respondendo pela disciplina. Ela, embora gostasse muito da classe, andava
perdendo a paciência com a estultice daqueles matutos; irrecuperavelmente
desinteressados pela amada língua. Descontrolava-se, abandonando la finesse,
gritando seu desespero bilíngüe:
-“Lambeciles, carrás de bêtes, fermez la bouche: Zirrôô!. Ah!, Mon Dieu de la
France, onde fui, attachê mon âne", e como era num francés aportuguesado que
poucos entendiam, ninguém reclamava das admoestações. A sua única alegria
eram o Júlio e o Louis, alunos exemplares; talentos inatos para a língua que
faziam biquinho ao declamar o romântico Lamartine:
“O lac! l’année a peine a fini sa carrière
Et prés des flots cheris qu’elle devait revoir
Regarde! Je vieus seul m’asseoir sur cette pierre
Ou tu la vis s’asseoir”(...)
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
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"O temps, suspends tou vol! et vous, heures propices
Suspendez votre cours!
Laissez-nous savourer les rapides délices
Des plus beaux de nos jours!”
Por seus dois melhores alunos que se rivalizavam no seu afeto -“Julian e
Lui, mes petits garçons”- ela continuaria insistindo, mas andava muito cansada:
“Je n’ai plus de tolerance”.
Quando o nouvel professeur escolheu a cidade ele foi minuciosamente
informado pela colega de las dificultés que encontraria. Armado com as mais
modernas técnicas pedagógicas assumiu sonhando vingar todas as históricas
humilhações que historicamente a civilização francesa sofrera naqueles “tristes
trópicos”; da expulsão dos fundadores da Ilha de Villegaignon até o sacrifício
do heroico, e pouco conhecido “Monsieur La Motte”, no litoral de Pernambuco,
Mas como não se constrói um império em “dix lessons”, immédiatement
começou la guerre.
A hora da saída virava um alvoroço, mesmo vigiados pelo olhar arguto
do “Seu” Delolo, bedel responsável pela disciplina que por sua limitação
intelectual a exercia discricionariamente, justificando assim a rejeição da
maioria dos alunos. Como gostava, e muito, de biscoito de polvilho, que ele
pronunciava: “bicoito”, a vingança era saudá-lo, de trás da cerca - viva com o
coro dos perseguidos: "BICOITO! BICOITO!”. Já na rua, a liberdade era
homenageada com as brincadeiras que permitissem a liberação dos
movimentos, depois de horas de comportadamente sentados; como os
improvisados jogos de bola, quando saiam chutando tudo que fosse redondo
ou assemelhado: pedaços de pedra, caroços de manga e de cajá-manga, bolas
de papel, e até inesperadas bolas de meia, camufladas nas bolsas, misturadas à
toda sabedoria do mundo.
Mas a brincadeira preferida eram as lutas à beira dos declives gramados
- a imaginação fértil os transformava em abismos profundos onde viviam
esfaimados crocodilos gigantes; os derrotados eram empurrados e deslizavam
para as profundezas, manchando de verde gosmento os joelhos dos uniformes
de brim caqui.
Na avenida, em frente à entrada dos professores e das autoridades - os
alunos entravam por um portão grande, na rua lateral - o “Seu” Guerra, num
carrinho de rodas de bicicleta vendia suas concorridas guloseimas: quebra-
queixo, um doce de toddy e trêmulas gelatinas; e apesar da grande algazarra,
conseguia atender com muita paciência os inúmeros pedidos, todos ao mesmo
tempo.
Num exibicionismo infantil gritavam-se as novas palavras aprendidas:
Bonjour, good -morning, merci beaucoup, the book is on the table, e as ofensas sutis:
vá tomar no pescoço, em francês. Provas de sedução para atrair à atenção das
garotas, olhando se olhavam; mas elas com la belle indifférence, sempre em
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
15
grupinhos, os cadernos espalhados pelo chão, riam alto, falavam com gestos
atabalhoadas, e não davam nem “tchum” para os nossos apelos irresistíveis.
Não se levava desaforo pra casa, nada ficava sem resposta: “vá tomar no
toba: dobra, redobra e enfia no teu toba; minha mãe está debaixo da terra
pedindo missa, a tua está em cima, pedindo pissa; não põe minha mãe no
meio, que eu ponho no meio da tua; quem guspir aqui, gospe na mãe do
outro”.
- Cala boca!
- Cala boca já morreu quem manda na minha boca sou eu.
E como a cidade cultivava uma tradição de valentia; o seu herói mítico
era o Annibal Vieira, brigava-se muito.
O Aspano, dos Carusos de Assis, que não tinha nenhuma vocação para
tenor, veio morar com a Nôna, matriarca da tradicional “famiglia” Degasperi.
Por um motivo muito importante que logo foi esquecido, resolveu cantar de
galo, e arrumou uma briga com os irmãos Taka; judocas, quase enfaixados,
sobrinhos do Mestre Sankiti - Ban´zái!, Ban´zái! - faixa- preta e de todas as
cores, um verdadeiro arco-íris, fundador da Academia de Jiu-Jitsu -jurgite,
exclamava o povo admirado com a agilidade e a disciplina daquela luta
esquisita.
A luta foi rápida, um de cada lado, os golpes certeiros: um “nori” e um
“jiro” provocaram um verdadeiro Pearl Harbor. A torcida gritava: “dois contra
um, pau no cu, dum”; o “gaijin” caiu derrotado e com um olho roxo correu
humilhado para a proteção do colo da vovó.
Na volta para casa os dois jovens guerreiros marchavam garbosos,
exibindo o orgulho dos velhos samurais que após vencerem as batalhas
retornavam com os estandartes tremulando ao castelo do xogum, cantando o
hino dos sendais - o-jii-san, o-báa-san:
“Kim = Ga, Yo = Wá/Tchiyo = ni, Yatchiyo = Ni
Sazare – ishi – nô/ Iwao = Tô, Narite Koke = Nô
Mussu – madé”
A Rosali quando soube ficou muito triste, pois desde a noite do
aniversário achava lindos aqueles "ojos verdes", agora matizados pela
violência.
No dia seguinte a leoa napolitana rosnava em defesa da cria, clamando
por vingança no dialeto dos seus ancestrais pescadores:
- Mio Aspaninho, que te fato? Japonêros: mascalzones, lazzarones...
Desse pugilato que rendeu orgulho para uns e humilhação para outro, e
que logo foi substituído por outros acontecimentos – a memória durante a
infância é fugaz, ela só se torna imortal quando se envelhece -, sobraram dois
novos brados de guerra: taka -ataka! e japonêro!, japonêro!.
Terra Natal
As Modas e os Modos da Memória
Jorge Salles
16
Como no Anitona não tinha quadra; as aulas de ginástica calistênica
eram dadas no pátio, e as de basquete na Fundação do “Véio” Neves. Desta
quem tomava conta era a Dona Maria Joana, baixinha, gordinha e difícil de ser
enrolada. Fora das aulas semanais só se conseguia jogar convencendo-a com
alguns presentinhos: um quilinho de arroz, de açúcar, de batata, meio de café -
só meio? É.. tão erradicando os cafezais;...errá, o que?
Os mais velhos para usarem a quadra à noite apelavam para outras
moedas: uns beijinhos com cara de nojo, uns abraços apertados, umas furtivas
encoxadas, e às vezes até uma...em pé mesmo no quartinho onde ela morava -
mens sana, in corpore (...) e ”nhac”...na Maria Joana -, parede e meia com o
vestiário, e a promessa nunca cumprida de pagar no dia seguinte a taxa de luz
na tesouraria do colégio. O que não se fazia pelo esporte.
Ela, sempre atenta:
- Meninos não podem jogar de sapato, estraga o “ciumento”. Quem não
tinha keds, ficava com as solas dos pés, que viviam esfolados, cheias de bolhas.
- Que se fodam, quem manda serem pobres e butinudos.
Os jogos de futebol eram no Brejinho, às margens plácidas do ribeirão
“Olhos D’água”. O complexo esportivo tinha um campo gramado que quando
chovia, sempre alagava; uma quadra de terra onde a bola não quicava direito,
servindo só para bandejas e ao lado a piscina, única da cidade; para usá-la
pagava-se uma taxa mensal controlada por um cartão de frequência que ficava
todo manchado de tanto guardar nos bolsos dos calções molhados. Nela o
Johnny Weissmüller lutou contra crocodilos gigantes assustando os pequenos
girinos que cresciam calmamente, indiferentes às aventuras humanas.
Nas manhãs de domingo, Gêra e seus aqualoucos exibiam-se no
trampolim; os corpos imberbes escandalosamente expostos nos largos shorts
de nylon, eram observados pelos olhares concupiscentes das meninas que
davam gritinhos incentivando seus preferidos, nas disputas para ver quem
conseguia atravessar a piscina, de comprido num só mergulho.
Nos caldos - “cardos” - os pulmões expandiam-se até o limite do
desfalecimento, para provar quem conseguia ficar mais tempo sem respirar. E
daquele enorme trampolim os corpos pareciam voar nos pulos ousados: de
cabeça, de ponta - “De pé não vale! Lá vai bomba: tibum!" - espalhando água,
molhando os que assistiam; eles procuravam se proteger atrás da pequena
mureta, não disfarçando a inveja que sentiam daqueles malucos que não
tinham vergonha de exibir os corpos quase nus. Nas batalhas navais, os
tombos, os gritos eram acompanhados por uma alegria espontânea, como se
eles estivessem ontogeneticamente integrados, de volta ao líquido amniótico.
Uma vez a Secretaria da Educação enviou à escola umas bolas pesadas,
cheias de areia, de formato oblongo, com o estranho nome de medicine-ball,
própria para um diferente e “delicado” jogo. O professor Isauro, ensinando as
regras básicas, caprichou na pronúncia:
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-Vocês vão praticar rúgbi, o jogo preferido pelos jovens americanos.
Justificando o nome o campo virou um lodaçal, uma lameira só.
Mens sana in corpore sano - não, o Sano, irmão do Dió, e seguindo este
princípio o professor de educação física tentava transformar aqueles magrelas
em atletas. No T.G.-32 onde era o sargentão, ele mandava e desmandava:
Ordinário marche! Meia-volta, volver! Dava mijadas nos “recos”, mas com os
paisanos era na base da ordem e progresso: muita ordem, e pouco progresso.
Mas do que ele gostava, mesmo, era de basquete – bóóól – como
pronunciava no forte sotaque cearense bem carregado. Tinha no quintal da sua
casa, ao lado de uma frondosa mangueira, uma bandeja de madeira fixada em
dois caibros, com aro e sem rede. Ali ele ensinava com a determinação peculiar
os fundamentos do amado esporte: arremessos, marcação, fintas; saia poeira
do chão compactado cheio de raízes expostas. Ao ficar ofegante ele inspirava
tão profundamente que quase criava um vácuo, em volta; o Gegê não
perdoava: “assim, vamos desmaiar por falta de oxigênio”. Levava as disputas,
mesmo nas brincadeiras, a sério, e exigia que os filhos, Bira e Jura, dessem
exemplo.
Naquele fundo de quintal eles aprenderam que ninguém vence sozinho;
a importância do esforço conjugado, a necessidade do apoio mútuo, o valor da
disciplina, e do sonho compartilhado.
O Caia que era vizinho atraído pelo barulho atravessava a cerca e já
vinha querendo mandar no jogo:
- Esses caras mais velhos são soda, com ph.
A Amélia, filha caçula, sentada num degrau de cimento na porta da
cozinha, acarinhando uma boneca de pano, olhava sem compreender a gritaria
toda, enquanto a esposa, Dona Beatriz, atenta, ralhava carinhosa:
- Isauro, calma. É tudo brincadeira, toma um refresco.
Ele, a maior liderança kardecista da cidade, propagava o Evangelho e
para dar exemplo vivia de acordo com o que pregava, norteado pelos
princípios da solidariedade cristã; acreditava que fora da caridade não havia
salvação, e como os verdadeiros espiritualistas praticava o bem de forma
discreta.
No Centro Espírita dirigia sessões mediúnicas nas quais entidades
desenvolvidas se incorporavam, aconselhando, dando passes, procurando
diminuir o sofrimento humano. Ele não dava o peixe, mostrava a vara e
ensinava pescar. Foi um exemplo, um verdadeiro Mestre.
A Maria uma seguidora aplicada, desde a infância desenvolvia os seus
dotes mediúnicos, e acreditava que ia desencarnar ainda muito jovem, o que
infelizmente aconteceu. O Bidulinha, seu irmão, não gostava de conversar
sobre essas coisas; afirmava não acreditar, procurava disfarçar, mas ficava
ressabiado.
O Dr. Harry, pai do Patão e do Anginho, também era apaixonado por
basquete e sonhava fazer dos filhos grandes jogadores. Bidulinha na volta da
escola olhava admirado, através do portão de ferro, Fausto, o filho mais novo,
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treinando incontáveis arremessos numa bandeja improvisada dependurada na
entrada da garagem, animado pelos estímulos do pai. Quem via ficava com
dó, e as pessoas admiradas, exclamavam:
- Esse vai longe. E foram. Os três se consagraram; enquanto a Patão e o
Anginho jogaram em grandes times, principalmente Franca e seleção paulista,
o Fausto chegou até a seleção brasileira. Mas naquela época ninguém podia
saber.
Por serem jovens eles viviam despreocupados com o futuro tão distante,
mas o corpo em ebulição permanente exigia jogos que lhes dessem prazeres
mais imediatos.
A investigação sobre a bomba chefiada pelo Colin não responsabilizou
ninguém. Como não houve prejuízo material, lançada pela janela ela explodiu
no ar, do fatídico acontecimento sobrou apenas um sermão do prof. Altino que
respondia pela Direção, feito na hora do “ouvirundum”. E virou fumaça a
difusa suspeita contra várias vocações de jovens cientistas.
De matemática ninguém gostava tirante os “cus-de-ferro”, de sempre. O
professor Rotschield, de aspecto franzino, apesar dos óculos de lentes grossas
enxergava longe, e era muito produtivo. No meio de tantas provas repletas de
exercícios para corrigir– haja besteira, c.q.d.– ainda sobrava disposição para
manter a contabilidade em dia: tinha sete filhos. Mas, em quantidade perdia
para o “Seu” Sylvio Sacchetin que tinha nove; todos com nomes começando
com W, menos a mais velha Odete, para justificar a regra: Walter, Wilter,
Wisclef, Woyne, Waldecir (Quentão), Waldeluir Dublin - cadê o Loloi, foi de
novo, comprar bala “chita” na venda dos Batatas? perguntava preocupada a
mãe Dona Amélia -, William - Eu quero um tulinho de doce – e Winston -
Manhê, hoje já é amanhã? - e apesar dos nomes era uma família italiana. Se
formassem um time o Tony estaria no mato sem cachorro: Wil... Wis... Wa...
Was..., gá... gá... guejante.
E desesperados, sem entender bem qual a utilidade prática daquilo
tudo, eles conseguiram sobreviver às equações, carroções, raiz - só mandioca -
quadrada, trigonometria, log-colog; conhecimentos tão difíceis quanto
aparentavam inúteis. Ainda bem que tinham dois colegas, o Paulinho e o
Ilmar, infiltrados, já seguidos de perto pelo irmão mais novo o “Bibi-Fonfom”
que, garoto precoce, já buzinava pedindo passagem.
E le Professeur Ferdinand, continuava dizimando os curumins. Saudades
da Madame - c’est la vie. Na prova final o desastre anunciado: mais da metade
na 2ª época, a cultura francesa não avançava nos trópicos; os “lambeciles”
continuavam resistindo. E muitos foram sacrificados - c’est la guerre.
Nas matinês do cine Olímpia fazia sucesso o desenho do tourinho
Ferdinando. O diálogo da vaca, mãe dele, era repetido, como vingança contra
o novo Sr. La Motte, pelas desamparadas vitimas do expansionismo francês:
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- Ferdinando, meu filhinho, vá brincar com os outros tourinhos.
- Não mamãe, eu prefiro ficar cheirando as flores do campo.
- Maricas! Homosexuel!
Então os maquis, naquele momento sem nenhuma resistência,
começaram as reuniões secretas no Castelo dos Junqueiras - Si vis pacem, para
bellum – como ensinava o Prof. Bianor. Para não levantar suspeitas os
conciliábulos aconteciam na fria adega. O Luiz e o Astrogildo, preocupados
com a saúde dos combatentes, e para evitar risco de pneumonia distribuíam
doses generosas de liqueur de menta, Bols.
Mas, indiferente à organização da resistência, por ignorá-la, Monsieur
namorava a diretora, e desfilava com “aplomb” pela volta de fora da Praça.
Avec élégance, cheio de donaires ele lembrava um aristocrata da época dos
“Luíses” passeando romanticamente pelos perfumados Jardin des Tuileries às
margens do Sena - “pour Feze’s river” - courageussement seguidos de perto
por um grupo de batedores, chefiados pelo Woyne.
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MIKA – II
A oficina mecânica onde carros eram adaptados para fins militares,
virou o laboratório secreto. A pólvora foi retirada dos busca-pés, o consumo
exagerado para a época, não chamou a atenção, pois voluntários compravam
pequenas quantidades. E mesmo fora da das festas juninas era uma diversão
muito comum durante o ano todo soltá-los amarrados no rabo dos gatos, que
fugiam miando desesperados com a bunda pegando fogo. Para os mais
curiosos a justificativa era que o “Curintia” vinha jogando bem e os
foguetinhos ajudavam espantando os "piriquitos" para o que sapo fumasse em
paz.
Num tubo metálico de Rodouro - recuerdos del carnival – a pólvora foi
compactada e a tampa hermeticamente vedada, ficando de fora só um pavio
de pano que seria embebido em álcool – Atenção: só o pavio – na hora do
Bum. Com a experiência acumulada no teste anterior, e sem economia de
produtos químicos, garantiu-se o estrondoso sucesso, sem dar chabu.
Monsieur, como todo francês civilizado era muito metódico, e seguia
religiosamente um ritual; exatamente às 13h30m, confirmada no seu Longines,
dava uma exoneradinha no banheiro dos alunos para reforçar a imagem
democrática da revolução francesa: “liberté, fraternité, egalité”, e divulgar a
qualidade dos perfumes que ele aspergia, “a la volonté’, olorizando o
ambiente infectocontagioso.
Depois de incontáveis, barulhentas e etilizadas reuniões, foi sorteado o
piloto do Enola Gay que recebeu a ordem militar, como soe acontecer, curta e
grossa: “Acender, atirar pelo vitraux, e recuar para a fila de entrada”.
- Entendeu? Então repita mais de uma vez.
Sentado no trono, sonhando ser coroado um dos Luises do Reino
Tropical, ele cantava La Marseillaise para acelerar as forças intestinas e atingir
o consumatum est. No verso "le jour de gloire est arrivé", o fato se deu.
A explosão cujo diapasão fez lembrar o impacto do meteoro que em
priscas eras foi o responsável pela extinção dos dinossauros - aqui há um
pequeno exagero do narrador ao abusar desta metáfora, somente para dar
ideia da intensidade do estrondo. O “baruião”, como descreveu o assustado
“Seu Bicoito” para a Diretora, violou o silêncio de colégio de freiras reinante, e
espantou os passarinhos que decolaram dos “fícus” desenhando no céu um
ballet alucinado para desviar dos estilhaços de vidro que voavam pelo espaço
sideral. O eco reverberando as ondas sonoras se espalhou pela vizinhança,
atravessou a cidade, e chegou até aos descampados do Batata.
Na vizinha cadeia, o Dr. Delegado - “Respeito é bom e eu gosto seu
meliante safado” – que conferia o contracheque - “mas, que droga de salário!" -
levou um tremendo choque - igual aos que ele, aplicava nos suspeitos que
andavam tendo crises de honestidade, e teimosamente negavam concordar
com os delitos que lhes imputavam, exclamou, mas ninguém ouviu, pois como
sempre estava sozinho: "Imputavam...imputar - Ah! e aproveitando a rima,
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hoje tenho que dar uma batida na casa da Sra Lula de Tal, pois tenho recebido
inúmeras denúncias de que uma morena, nova na cidade, que ali se encontra
homiziada, vem apresentando um comportamento muito esdrúxulo,
incompatível com os padrões cristãos vigentes”. Mas, voltou às preocupações
corriqueiras: “que bosta de profissão, além de ter que trabalhar à noite, não
recebo hora extra. Inda bem que as crises morais dos detidos são passageiras, e
após algumas sessões de convencimento psicológico eles voltam ao normal e
confessam tudo: até os crimes futuros".
Mas, diligente, mesmo sem saber o que acontecia, gritou a pleno
pulmões:
- Cerquem o prédio! estão tentando libertar o Tião Cavalo, sobrinho do
Nego, que foi do bando do Anníbal. Durante uma diligência, no dia anterior,
ele prendera o “155”, quando o larápio tentava atravessar a Galiléia
conduzindo seis árabes puros-sangues, e uma valiosa matriz com sua cria,
roubados do haras do Dr. Badih Aidar. O potrinho era o presente de
aniversário que o grande criador prometera ao seu sobrinho preferido, o Ivan -
que saudades, habib! Sabia que ele era amigo do Homem – presenteara a D.
Leonor com uma linda égua. Se tudo caminhasse como estava esperando,
podia acontecer uma promoçãozinha, portanto todo cuidado era pouco.
- Não deixem ninguém escapar, atirem para matar.
Os guardas que jogavam truco ficaram mais assustados ainda: “O dotô
tá meio esgotado, ele precisa ir mais vezes na casa da nossa benfeitora, a
generosa Madame Lula, pra desafogá o ganso. Quando você tá atrasado: dá
suspensão, sobe pra cabeça”.
- De uma cabeça pra outra, sacaneava o cabo Altair.
Na casa dos gêmeos, em frente à Pracinha, a Leontina, branca de susto,
derrubou a panela de “trogonofi”, que tentava fazer– tirara a receita da revista
“O Cruzeiro” - para agradar a Carmencita que andava meio tristinha porque o
Moacir estava em São Paulo, e não escrevia. “Agora, vai atrasar a janta. Já
passei o pano nas “amufadas” das cadeiras da varanda - os grã-finos chamam
dum jeito tão engraçado: “longui-xéize”- e ainda tenho que lavá a varanda e
esfregá as escadas de mármore. A dona Julieta vai ficá zangada porque o
serviço tá atrasado. Ela é uma patroa tão fina, mesmo quando o Dr. Elói chega
tarde, ela reclama baixinho; não dá nem para ouvir direito. Ah! Meu Deus, já é
quase duas horas”.
Enquanto isso, no pátio, estava um verdadeiro cu-de-boi. As meninas
alvoroçadas gritavam – parecia um bando de maritacas assustadas, caçoava no
dia seguinte o Floriano. A Gudu deu um berro tão alto que acordou em Colina
o “Seu” Coletto, que àquela hora fazia a sesta roncando na cadeira de balanço;
no rádio ele ouvia a “crônica da cidade” do Genolino Amado, na voz do Cesar
Ladeira, quando adormeceu. O Zé Roberto correu pra protegê-la. A Hermelia
assustada abraçou a Emilia, ambas brancas como farinha.
A Anita desesperada gritava com sua indefectível voz rouca, e corria
baratinada pensando nas histórias de perseguições que seus antepassados
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sofreram antes de emigrar: “Vocês vivem num país abençoado, não sabem o
que é preconceito, o ódio racial” - ensinava o pai dela, enquanto espanava a
poeira dos móveis da sua loja.
Uma fumaça preta exalava do banheiro escurecendo tudo, aumentando
a confusão e o pânico. Bicoito berrava, procurando se esconder atrás das latas
de lixo.
- Acóde gente! Fujam, é ataque do bando do Aníba.
O Joãozinho Lamana, já meio gordinho - ele comia muita nata -
amparava a prima Netinha que chorava que nem manteiga derretida. A Lenita
– linda! linda! - ficou estática, fazendo pose; todos queriam socorrê-la.
Monsieur, que naquele momento fazia a toilette anal, saiu do banheiro,
roxo como uma beterraba da Alsacia, bradando: “Formez vous bataillon, Allez!,
Allez!”. As calças arriadas pelas canelas, expondo a cueca com as cores da
amada França manchada pelas imundícies tropicais: La merd c’est fait.
Atrás dele o retardatário Rivoiro, meio perdido, as lentes grossas
embaçadas, tossindo muito pelo efeito adstringente da fumaça, fechou a
braguilha e exclamou já com a voz aveludada de futuro locutor:
- Que peido. Grande peido!
A pedido da diretoria o Dr. delegado chefiou as investigações - agora
mais calmo com a transferência do Tião e a gratidão do Dr. Badih que
prometeu recomendá-lo à Sua Excia - interrogou, pressionou e até ameaçou,
mas nada conseguiu esclarecer; como sempre acontecia, felizmente, quando
ele não abusava dos métodos persuasivos da C.P.F.L.
Nota do Editor: O autor refere-se à Companhia Paulista de Força e Luz
para fazer uma alusão a choques elétricos.
O Colin prestativo mostrava a lista de chamadas, caguetava a ficha
pregressa dos indisciplinados, mas a solidariedade não foi rompida, contra o
inimigo estrangeiro a união nacional é indestrutível.
A diretora lastimou sua pouca sorte: “Logo, no início da na minha
gestão acontece isto”. E, embora triste com a humilhação do seu amado foi
compreensiva, botou panos quentes - não nele, no sentido figurado –
perdoando tudo e todos:
- São coisas da juventude.
E passou a ser mais admirada ainda, não só pelas coxas sensuais; o
Woyne babava: “Parece a Cyd Charisse”.
O Riva justificou, indignado, sua presença no “teatro de guerra”,
abusando do latim.
- Exigências da “vésica urinalis”, vocês queriam que eu mijasse de
canudinho?
Mas, só os iniciados sabiam que a Múmia Mykológica “rides again”.
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SABOR GLOSTORA
Para incutir a noção de patriotismo na consciência dos futuros cidadãos,
além de cantar o Hino Nacional antes do início das aulas, as datas magnas da
pátria eram comemoradas com civismo. No dia 7 de Setembro realizava-se a
grande parada liderada pelo T.G.-32. As escolas concentravam-se bem cedinho
para o início, impreterivelmente às 7horas, como ordenava o “general”, para
desobediência dos civis e a continência dos recos.
Os alunos: de calças de sarja azul, camisas brancas de manga comprida e
as meninas com saiote azul, pregueado, meia soquete branca e blusa branca,
davam um novo colorido às ruas da cidade. Os sapatos pretos bem
engraxados – a engraxateria do Fuso, o jovem parafuso, agradecia tanto
patriotismo -, e os cabelos bem penteados - nos com grandes remoinhos os fios
rebeldes eram assentados na marra, com brilhantina ou gumex - dura lex, sed
lex. Mas, mesmo bonitinhos, tanta elegância e capricho, a aparência não
escondia a origem cabocla, o linguajar típico:
- Manhê: engraxa minha “burtininha preu” ir na disparada.
- Bépo, vá tomá banho. O Bépão, teu irmão já desocupou a tina;
aproveita que a água tá morna e cheia de sabão.
- Manhê! não esfrega com a bucha que eu fico com comichão; cuidado,
mãe, não me entorna se não, eu "moro".
A fanfarra do T.G. saia da sua sede na Rua Bernardino de Campos, em
frente à casa do Bidulinha, e desfilava até ao Anitona, fazendo a alvorada
pelas ruas principais do trajeto, acordando indistintamente, os patriotas e os
nem tanto. E depois, comandada pelo Sargento Isauro ela abriu o desfile com
suas cornetas desarmônicas.
“Arranca! Arranca!
O tampo da matiota!
Arranca! Arranca!”
Para organizar o desfile as professoras trajando roupas domingueiras
suavam para manter enfileiradas as crianças rebeldes; tentavam controlar a
algazarra que era piorada pelo atraso e o calor que judiava na manhã
primaveril.
As famílias ficavam pelas calçadas acompanhando orgulhosamente os
jovens guerreiros que tentavam marchar no compasso do: “um dois, feijão
com arroz, três quatro, feijão no prato”; a cadência da precoce militarização
ecoava pelos paralelepípedos quentes. Com a evolução do desfile, a distância
da fanfarra diluía o som que ficava inaudível para parte final, e para manter
um mínimo de sincronismo as metras cantavam desesperadas:
“Marcha, soldado
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Marcha, soldado
Cabeça de papel
Quem não marchar direito
Vai preso pro quartel”.
As crianças embaladas pela canção infantil batiam os pés com
entusiasmo, mas o sol de setembro derretia a brilhantina que escorria feito
meleca, lambuzava os lábios ressequidos, e criava uma memória
gustativa/olfativa. A pátria teria para sempre o gosto de brilhantina glostora.
A banda - “a furiosa” - do Maestro Delamanha – Delá tinha uma flauta,
a flauta do Delá, sua mãe sempre dizia...- encerrava a comemoração em
marcha lenta, seguida pelos antigos combatentes, heróis de todas as guerras,
exemplos cultuados da coragem do povo.
Os veteranos de 32, cada ano em menor número, exibindo suas
medalhas cantavam o hino: “O Passo do Soldado”, numa fusão afetiva do “9
de julho” com o “7 de setembro”, transformados numa só data cívica:
“Marcha, Soldado Paulista,
Marca o teu passo na História!
Deixa na terra uma pista
Deixa um rastilho de glória! “
O povo com o sentimento cívico renovado, a maioria emocionada,
aplaudia o desfile, enquanto os alunos sonhavam tirar os rangentes sapatos
apertados, e fugir para a liberdade dos pés descalços.
O verso de um poeta: “A pátria é a infância", muito citado pelo
Professor Jayme e o aroma de brilhantina glostora se transformaram para o
Bidulinha num paradigma; uma memória eterna que ele emocionado, evoca
toda vez que vê um desfile militar, ou escuta o hino nacional.
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A CIDADE
Muito universo, muito espaço sideral, mas o mundo é mesmo uma
aldeia
José Saramago.
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A PRAÇA
As quermesses
No fundo da igreja velha existiam enormes figueiras plantadas quando
o primeiro jardim foi construído em volta da Casa de Deus. O professor Bianor
- acusativo, dativo, nominativo, genitivo, ablativo, vocativo, locativo -
afamado latinista, as chamava: de "centenárias", embora a cidade ainda não
tivesse 100 anos. Como elas cresceram próximas à privada pública, talvez a
sua pujança se devesse ao excesso de ureia produzido pelos recordistas
tomadores de cerveja.
No dia 18 de dezembro, aniversário da cidade, o culto mestre fazia pela
Z.Y. um gongórico discurso citando as famílias pela ordem de chegada à
cidade; era um momento solene, o mais aguardado dos festejos pelos
descendentes dos pioneiros. O Bolô, seu filho mais novo, aproveitava a
liberdade da ausência do pai, e gritava da sacada da mansão: “bolô, fedô, xixi,
cocô”, assuntando os vizinhos com seus precoces dotes oratórios. O Sr. Abe -
Ban'zai!, Ban'zai! - o mais tradicional fotografo da cidade que morava ao lado,
vivia reclamando.
Era embaixo dos frondosos “fícus” que as irmandades religiosas
organizavam as quermesses, passando o picuá para arrecadar mundos e
fundos, para a construção da nova igreja: In nomine Patris, et Filii, et Spiritus
Sancti. Amém.
Ah, as prendas: saborosos frangos recheados, tenras leitoinhas assadas
nas padarias - temperadas por hábeis cozinheiras segundo receitas trazidas
pelos pioneiros, originários de São Paulo, Minas e Goiás, Apetitosos bolos
confeitados, garrafas de vinhos, “wiskies”, cestas com as frutas da terra; todas
as prendas estavam embrulhadas com papel celofane colorido, e brilhavam
aumentando o desejo. E como ficavam expostas no coreto, com cartões que
identificavam os nomes dos doadores, as famílias para não passarem vergonha
ofereciam o mais caro, ou o mais enfeitado.
Na hora do arremate, o leiloeiro esperto, explorava a vaidade dos ricos e
dos metidos à - a grande maioria. Era um piedoso “filho de Maria”, embora
sua mãe se chamasse Marta.
O padre que reinava sobre todos aqueles pecadores, conhecendo do seu
rebanho as muitas fraquezas e as poucas virtudes - o confessionário era uma
fonte inesgotável de poder - sentava-se à mesa das autoridades, não
precisando vencer o “jogo da junta” para escolher o melhor pedaço do frango.
Com os olhos brilhando, mais que os dedos untados de gordura, ele tentava
arrancar mais uma asinha que teimava em permanecer ligada ao corpo inerte
da prenda gentilmente arrematada pelo Dr. Paiva Luz. Desatento aos gestos
messiânicos do padre que oferecia indulgências ao pecado da gula, e absolvia
os perdulários que arrematavam as prendas mais caras, o Plínio, ansioso,
tentava enxergar a Rosali no meio de um grupo de barulhentas adolescentes.
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O pai do “Zé Gambeta”, o generoso Sr. Jesus, que nunca decepcionava a
sua Igreja, arrematou um cacho de bananas por: “uma fortuna, registrou a
Diva; na sua nova coluna: Mundanismo”.
No começo, as quermesses ficavam restritas às festas juninas,
principalmente São João, padroeiro da cidade, mas como as obras sociais
exigiam cada vez mais dinheiro– o padre estava precisando de um carro para
levar a palavra do Senhor, mais rapidamente, aos lares cristãos – elas
passaram a acontecer também nos dias de outros santos. A Providência Divina
tinha um grande estoque de aniversariantes.
- Isso é uma exploração. A religião é o ópio do povo pregava num
“comício” relâmpago o Sr. Brito. A Walkyria que não tinha compromisso com
a ideologia exótica do pai gostava destas festas, para tristeza do único marxista
da cidade.
- E ainda pôr cima, minha filha é uma burguesa.
Sem se importar com a dialética paterna, vestindo um vestido novo,
perfumada com “Cashmere Bouquet”, ela retocava o batom e saia correndo
para encontrar o Toddy; por quem suspirava naquelas noites quentes.
- Comunista, ateu, antiCristo, trucava Sua Reverendíssima no sermão de
domingo apontando o dedo inquisidor, respingando água-benta, para uma
casa nas vizinhanças da Igreja – não conseguira tirar uma pelinha do delicioso
franguinho que penetrara embaixo da unha – em frente ao castelo da Dona
América, onde o príncipe Niko distribuía para os famintos, bandejas de
docinhos, arrancando elogios do santificado pastor.
- Que vocação franciscana, enquanto o vizinho é um quinta-coluna a
serviço de Moscou, e da legião de demônios. Perdão Senhor! mas tenho
saudade dos tempos do Benfeitor Torquemada, suspirava, aspergindo água-
benta “Urbe et Orbe “; a pelinha de frango ainda incomodando.
- Cordeiro de Deus tirai os pecados...
Embora o sabor das cocadinhas crocantes da Confeitaria Central ficasse
para sempre no imaginário do Bidulinha, elas já não adoçavam os encontros
das primeiras libações alcoólicas. Quando eles, alheios às querelas filo-
religiosos, iniciaram o aprendizado de coisas proibidas; em busca do Santo
Graal trocavam o adocicado guaraná Serrano pela amarga Poquer – paga uma,
bem?
Nas mesas dos pais abonados, os engordurados pratos de papelão
cheios de ossos misturados a restos de farofa lembrava a limpeza de uma
estrebaria, onde relinchava um tentador “cavalinho branco”; os mais sedentos
montavam apressados e davam uns galopinhos pelas trilhas entre as pedras
geladas.
Mas era com quentão que eles se protegiam dos perigos das nevascas;
arrotando gengibre, mostravam-se imunes à advertência dos mais velhos:
- Devagar, isso trepa.
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Mas o que cativava nas quermesses eram os correios-elegantes, a chance
dos tímidos, a esperança de no anonimato conquistá-las com o brilho da
própria inteligência. Carregando: trovas, versinhos, alguns da própria verve -
arco ou tarco? Vérva! - os correios cruzavam os ares aterrissando no colo da
morena de blusa verde, da loirinha de cabelos cacheados. Imaginação à solta,
escapulindo da timidez, tentava-se atrair um fugidio interesse da ninfa de
olhos rútilos – o professor Jayme, se exultaria com os adjetivos.
- Bidulinha, chega de quentão; você tá mais vermelho que a camisa do
“Alfandéga”.
Mumú, um pouco mais caolho de tanto galopar, cansado de lançar em
vão, “o olhar 22”; o mais apaixonado que existia, igual o do Tyrone Power
para a Ava Gardner em “Sangue e Areia”, e, como a vítima da sua paixão nem
dava “tchum”, resolveu acelerar o enleio - ou caga ou desocupa a moita -
caprichando na trova, fruto da sua costumeira e apaixonada inspiração:
Desencontro
“Vem-te a mim
Que eu vou-te a ti
Vêm aqui
Que eu vou aí”.
Mumú
Ele não sensibilizou a sua amada que continuou impassível olhando
pros lados, mas virou um novo herói. Efêmero, como tudo naquela idade.
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UMA RUA CHAMADA SAUDADE
A rua em que morava o Bidulinha atravessava a cidade. Ela começava
na “Maquina de Arroz dos Risatis”, cruzava a Rua Síria, passava em frente à
biblioteca, margeava a Praça da Matriz, transpunha o “Ribeirão Olhos D’água”
na altura do Brejinho, e terminava na entrada principal da cidade.
Como na cidade fazia muito calor, principalmente no verão, aos dias de
sol abrasador seguiam-se noites muito abafadas. O ar ficava parado, sem o
sopro de uma misera aragem, que nascida às margens plácidas dos seus rios
aliviasse a sensação de opressão; um silêncio de preguiça só quebrado pelo
zumbido dos pernilongos que dominava tudo.
Como ar condicionado só existia em filme americano e ventilador era
mais raro que geladeira, as famílias tomavam a fresca, nas calçadas: em
cadeiras de descanso, de cano galvanizado e assentos de plástico trançado.
Os vizinhos passavam: “banoite, banoite”, parando para a prosa
previsível, corriqueira, imutável.
- Que calor, né?
- Precisa chover. A lavoura tá sofrendo
- Vamos entrar, pra dentro?
- Aqui fora, tá mais fresco.
- Toma um cafezinho?
- Não se incomode.
- Incomodo nenhum - e o hospitaleiro árabe, pai do Bidulinha, gritava
para a patroa: Jeroma! Jeroma!
E lá vinha ela, contrariada, resmungando baixinho, as xícaras sem pires
na bandeja de flanders; a garrafa térmica – um luxo - na mão direita, e colocava
tudo, antes de servir, no assento da cadeira de madeira marrom. Era uma
rotina que ela cumpria, desconsolada com a mania que ele tinha de oferecer
café para quem passasse. Ainda mais agora, na hora do capítulo de
“Marcelino, pan y vino”; depois não ia entender a continuação da história.
Conformava-se: “mulher de muçulmano nasceu para servir; não era assim que
vivia falando o cunhado Emigdio?”.
O “Seu Calvo”, pai do Geninho e da Conceição, saudoso do inverno da
sua amada España –Arriba! – de frente à sua casa, na esquina da Rua Síria com
a Bernardino de Campos, contribuía para a comunhão das raças.
-“Caliente, mui caliente”.
Nela a paz parecia eterna, e só era quebrada quando o espoleteado João
Louco surgia numa corrida desenfreada, açoitando a pobre égua cuja
ferradura tirava faísca dos paralelepípedos. Ele recolhia lavagem das casas,
num carrinho com rodas de pneu, para a criação de porcos do Teixeirão, pai
do Teixeirinha; à noite já encharcado pelas cachaças que nas vendas as pessoas
generosas lhe ofereciam, ele perdia o tino e ria da zoeira que fazia. Na sua
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tresloucada pressa esparramava os restos de comida pelas ruas por onde
passava.
Parava em frente à casa do Bidulimha, e pedia, transtornado, aos gritos:
- Madrinha, tô com fome; quero comê!
Servido, num prato de alumínio - que era guardado separado, vai que
pega - ele cambaleante, sentava-se no meio fio, e engolia com grandes
colheradas as sobras da janta; os restos de comida escorriam pela sua boca,
manchando a camisa encardida.
As “cavarianis” numa incontida curiosidade corriam para o portão da
casa que ainda continuava em reforma, assustadas com a barulhenta
insanidade.
Da janela da pensão da Dona Tuta, o Bambuí olhava, num misto de
desejo e admiração, as elegantes italianinhas. Mas, elas iludidas pelos sonhos
adolescentes sequer reparavam no mineirinho tímido, de olhar tão
apaixonado.
O domingo preferido do Bidulinha era quando tinha jogo no Tereza
Breda, Ele ia para o campo junto com o craque, carregava a chuteira dele
embrulhada num jornal, e entrava de graça pelo vestiário.
Durante o percurso o centroavante confidenciava que sonhava marcar
um gol que além de salvar o alviceleste do risco de rebaixamento, o ajudaria a
ganhar o cobiçado prêmio: um par de chuteiras oferta da “Fábrica de Calçados
São José” do grande esportista Nenê Fonseca.
Os Irmãos Parisi, sisudos como fidalgos ingleses, abriam a janela
resmungando censuras e voltavam à costumeira discrição monástica;
enquanto a dona Umbelina fechava a janela de madeira voltando para suas
panelas mantidas quentes em cima da chapa do fogão aguardando que o seu
filho Adão chegasse do trabalho.
- É um bom filho, trabalhador, que tem sido o arrimo da minha viuvez.
Quando, à noite ele chegava muito cansado, a roupa manchada de cal, as
unhas encardidas de tinta, ela lhe dava muito leite, para que não ficasse
“intochicado”.
Quase na esquina de baixo, a “brima”, viúva que recém emigrara do
Líbano - ela tinha um sorriso tão triste: “ana hazin ktir - eu estou muito triste”;
assustada olhava pela janela; seu filho, o jovem Rabi que incomodado aparecia
no alpendre e sem entender bem o que estava acontecendo chingava em árabe:
“maj-nún – louco”.
Após dormir, emborcado em frente ao portão de ferro, babando,
roncando como um porco, o João, ainda zonzo, levantava cambaleante. E só
depois de engolir meio na marra uma caneca de café amargo parecia acalmar,
e retomava o caminho da roça onde os porcos o aguardavam esfomeados. Os
restos de comida fermentados nos latões pelo calor do dia exalavam um cheiro
forte anunciando sua chegada, e os capados grunhiam de satisfação.
Muitos se condoíam vê-lo tão moço já perdido nas garras do vício.
Davam conselhos, faziam promessas, levavam para benzer, tomar passes; nas
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sessões espíritas trabalhos eram feitos para afastar os encostos, as almas
penadas que o perturbavam. Colocavam escondido na comida remédio para
“parar-de-beber” que o fazia passar mal, com vômitos e diarreia; chegaram até
a apelar para feitiçaria, das brabas. E nada.
Mas um dia pela conjunção das boas intenções, e melhores vibrações,
além dos esporros que ele vivia levando, o milagre se fez. Virou abstêmio,
aparecia para visitar as madrinhas: quieto, falando baixo, envergonhado; logo
trouxe sua companheira, a Sueli, uma mulata miudinha que esperava seu
primeiro filho, pedindo encarecidamente, quando ele nascesse, que o
aceitassem como afilhado.
- Êh, João! até que enfim você criou juízo, que Deus te mantenha nos
bons caminhos.
E a vida escoava devagar, tediosa e exasperante para aqueles apressados
sonhadores, numa sazonalidade imposta pela natureza, a mesma que fazia a
parreira da casa do Vavá e do Tula, vizinhos do Bidulinha, produzir no mês de
dezembro safras generosas. O cheiro dos cachos adocicados que se
esparramavam por cima do muro que separava as duas casas, enchia de
nostalgia o desterrado beduíno, atavicamente saudoso dos aromas das uvas
maduras, plantadas nas encostas das montanhas da Síria.
Tudo seguia uma rotina que parecia imutável, mas que às vezes era
alterada por algum drama familiar, como no dia em que o Nenê quase morreu,
ao cair da mangueira no fundo do quintal da casa do “Seu” Lourenço
Cavariani, que estava ainda em construção. “Ele voou pra ponta do galho em
busca da manga mais madura, e espatifou-se no chão – exclamava o Bidulinha
apavorado”. Foi uma tristeza da qual, felizmente, ele escapou, depois de
muitos dias internado na Santa Casa, e que a passagem do tempo fez esquecer.
Na simplicidade das coisas, tudo parecia eterno: as pessoas, as vozes, os sons,
e os sonhos.
Para os velhos o tempo tinha outra dimensão: o peso do que já não
sonhavam, só esperavam. Na praça do velho Rui em frente à entrada principal
da Igreja existia alguns bancos, onde todas as manhãs eles se reuniam para
prosear, protegidos do sol forte por chapéus de feltro Ramenzoni, embora
muitos preferissem os da marca Prada.
Era um hábito sagrado, como descreveu o escritor João Guimarães Rosa:
“os velhos sentados nos bancos da praça, velhando, conforme”. Ali
ruminavam suas histórias, falavam dos tempos idos, das safras, da carestia, e
da desesperança. Reclamavam dos filhos que tinham ido embora em busca de
uma vida melhor, menos sacrificada.
- Ah, por que eles não escrevem? - estou abandonado neste mundo,
cada vez mais triste. Eles não sabem como dói viver esquecido.
Quando o relógio da Matriz batia 11 horas, despediam-se, caminhando
circunspectos em busca da rotina protetora das casas. Alguns, já tinham os
passos trôpegos; o sol a pino parecia fundir: corpo e sombra, vida e morte.
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A BIBLIOTECA, NA ESQUINA
Além dos filmes, os programas de rádios, e as raras revistas, foram,
principalmente, os livros que alimentaram os sonhos, e ajudaram a expandir
os limites daquelas vidas acanhadas. Os gibis, comprados na Banca do
Orlando, que antes eram muito disputados: vendidos, trocados, emprestados e
não devolvidos, já não tinham o mesmo encanto, abandonados no fundo das
gavetas.
Na esquina, um quarteirão acima da Praça, perto da casa da Rosali,
ficava a Biblioteca Pública, frequentada no início, somente para as tarefas
escolares, sempre realizadas num burburinho que desafiava o silêncio cheio de
respeito da pequena sala repleta de mesas envernizadas. Mas com a
frequência, aos poucos o sisudo universo cheirando a mofo foi-se
transformando, e o receio substituído por uma sensação de confortável
familiaridade.
Um cartão nominal controlava o empréstimo dos livros, com direito a
renovação do prazo. No fim do ano quem tivesse lido mais – retirado - era
elogiado publicamente. Envaidecia ouvir a bibliotecária proclamar o mérito
conseguido pelo jovem estudante.
- Nossa! Você anda lendo bastante, vai virar uma pessoa muito
inteligente.
Olhando para os lados ele saboreava o reconhecimento, com a modéstia
dos sábios.
O livro mais disputado, lido com a emoção das revelações proibidas, era
“A carne” do Júlio Ribeiro; as páginas libidinosas que excitavam os onanistas
incansáveis foram para muitos o início de uma solitária e fecunda carreira.
Para ludibriar a censura, os “de maior” retiravam a já ensebada obra,
justificando a procura:
- É para tarefa, o professor Jayme pensa que o Júlio, é o novo Camões.
Com os livros uma nova compreensão do mundo foi surgindo;
aventurando-se com os novos heróis por geografias inóspitas eles
transcenderam os limites da pequena cidade; conduzidos pelo talento dos
escritores começaram a compreender as dimensões da alma humana: suas
paixões, heroísmos, e covardias.
Novas palavras, frases, versos, ou nomes exóticos, enriqueciam a
linguagem, estimulando um precoce pedantismo exibicionista que entediava
quem ouvia.
Ao lado dos “Três Mosqueteiros” eles defenderam a Rainha, invejando o
D’Artagnan por suas aventuras galantes; atravessaram com o Jack London, do
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Alaska até o Wild, guiados pelo Buk, à procura do lobo “Caninos Brancos”.
Fugiram dos piratas de Long John Silver, e chegaram à Ilha do Tesouro onde
Robert Louis Stevenson refletia sobre os conflitos da alma humana, a eterna
luta entre o bem e o mal, simbolizada nos imortais: Dr. Jekill e Mr. Hyde.
Navegando pelo Rio Mississipi ouviram o Tom Sawyer ensinar suas
espertezas para a Becky e o Sharp, enquanto, no outro lado do mundo, os
Irmãos Corsos, sofriam as dores da fraternidade – Será que os nossos gêmeos
têm o mesmo destino: o Zé Roberto leva um peteleco, e o Zé Otávio chora?
Clamaram por justiça, condoídos com a solidão do Conde de Monte-
Cristo, enquanto seus perseguidores dançavam minueto na Corte; observados
por Stendall que registrava a triste história de Julien Sorel, sacrificado às
intrigas do amor e da paixão.
Solidários, eles esconderam o Jean Valjean da obstinada perseguição do
Inspetor Javert pelo crime de ter roubado um mísero pão; admirados com a
impunidade dos “capitães da areia” que comandados pelo Pedro Bala viviam
pelas praias fustigadas pelo vento, descabaçando as neguinhas. Ao lado do
otimista Cândido aprenderam com o Arsene Lupin os truques para disfarçar a
identidade, mudando de comportamento.
Mas foi com Júlio Verne, que eles fugiram da vida monótona, da triste
realidade onde nada acontecia: chegaram até o fundo da terra com o geólogo
Otto Lidenbrock e seu sobrinho Axel; ao fundo do mar com o Capitão Nemo,
percorrendo com o Nautilus as “Vinte Mil Léguas Submarinas”; num balão
mágico, com Phileas Fogg e seu criado Passepartout deram a volta ao mundo,
vendo o sonho humano de voar se aproximar das estrelas.
E os gênios literários conduziram a curiosidade adolescente pelos
caminhos da imaginação, revelando a amplitude sem limites da criação
humana, propiciando a construção da saga de uma paixão eterna.
Mas a frustração, provocada pelas proibições dos preconceitos que
vigiam, aumentava ao saberem que lá fora, na “Necrópole do Teixeirinha”,
existia liberdade para viver; estava o sonhado paraíso perdido, a resposta para
todas as dúvidas.
As raras e fugazes experiências sensoriais encontradas nas cada vez
mais frequentes idas às cidades maiores provocavam no retorno, pelo ilusório
das expectativas, mais decepções ainda.
As atitudes rebeldes, as agressões aos valores vigentes, o
descontentamento com a rotina, não eram suficientes para diminuir o
desalento em que viviam. A crise da idade, as pressões biológicas e hormonais
usadas como justificativas para todas as loucuras, não respondiam mais às
indagações mal compreendidas; buscava-se uma explicação existencial, algo
que desse um pouco de grandeza à vida.
Os conceitos existencialistas chegaram de mansinho nas conversas de
fim de noite, nos comentários pretensiosos dos mais velhos que se julgavam
mais intelectualizados, ou na leitura em voz alta de disputados recortes de
revistas.
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Mas foram os filmes da nouvelle-vague que transformaram para sempre
as mentes sequiosas por novidades; quaisquer novidades. Embora a
compreensão não fosse total, eles aprenderam: que cada um era responsável
pelo seu destino; que a angústia e o desencanto não dependiam da fatalidade
de ter nascido na roça, mas eram consequência do direito de escolher; já que
estamos todos condenados à própria liberdade de decidir. Ninguém era
passivo efeito de interações inatas, mas sim agentes na construção da sua
própria história.
E uma nova maneira de viver foi se esboçando: um falso e esnobe
desinteresse pelas coisas materiais – “ser, e não ter” - o informalismo refletido
no jeito de vestir, um certo ar blasé, o desleixo virando moda; os cabelos
grandes caindo pelos ombros, as novas verdades: a igualdade entre os sexos, o
amor livre - “com as irmãs dos outros; a minha é família; Graças a Deus” -
garantia, o sartriano Teixeiran”. E a grande simplificação tentando justificar
tudo: “isso é coisa de burguês”.
A revolução já tinha começado, as famílias eram dispensáveis, eles
estavam começando a crescer. As meninas mais reprimidas fingiam imitar os
meninos, encantadas com as novas possibilidades: “Amor livre, nunca! Minha
mãe me mata!”.
Quando Sartre chegou, depois de enfrentar um furacão sobre Cuba,
trazendo as novas bíblias: “A Idade da Razão”, e “A Náusea”, eles já estavam
prontos para o novo apostolado; uma consciência crítica se esboçando, ainda
que pela ironia.
Aos poucos uma mistura caótica de hinos revolucionários mal
aprendidos esboçava as futuras opções ideológicas. E pelas ruas um novo
canto tentava ridicularizar os símbolos religiosos, numa demonstração de
insatisfação que impressionava os desinformados.
“Avanti o popolo alla riscossa
Bandiera rossa, bandiera rossa
Bandiera rossa trionferà
E viva el socialismo e la libertá.
A mezza notte, celo strellato
Il Santo Papa Sara’ nforcato.
Bandiera rossa, colore di vino
Viva Stalino! Viva Stalino!”
Copiado do livro “A idade da razão”, o diálogo do personagem
Mathieu com Marcelle, virou um novo padre-nosso, lido e relido. As meninas
quase entravam em orgasmo com tanta cultura. "Tamém” vivem num atraso
brabo” - comentava o Mumu, que sabia das coisas, já que cada vez enxergava
mais longe.
“Mathieu:
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- Isso de me conhecer não me interessa tanto assim – disse simplesmente.
- Eu sei – atalhou Marcelle – não é um fim, é um meio. É para libertar-se a si
próprio; olhar-se, julgar-se, sua atitude predileta. Quando você se olha,
imagina que não é o que está olhando, que não é nada. No fundo, é o seu ideal:
não ser nada.
- Não ser nada – repetiu lentamente Mathieu. Não. Não é isso.
Escute: eu...eu gostaria de nada dever se não a mim mesmo.
- Sim. Ser livre. Totalmente livre. É seu vício.
- Não é um vício – disse Mathieu – É ... Mas que quer você que a gente faça,
então?
Estava irritado. Tudo isso, ele o explicara com a Marcelle e ela sabia que era o
que mais lhe importava.
- Se...se eu não tentasse viver por conta própria, existir me parecia absurdo...O
dia estava acabado e acabava sua mocidade.
- Não tem dúvida, não tem dúvida, estou na idade da razão”.
A “oração”, sebosa pelo excessivo manuseio, acabou esquecida numa
mesa da Taba. O Sousa que vivia curioso pela importância que aqueles jovens
desocupados davam para aquilo, leu com muita dificuldade, concluindo antes
de arremessá-la na lata de lixo:
- Esse Mateus é “viado”.
Com o tempo, e a influência de outras leituras, aquelas certezas
absolutas começaram a ser questionadas; a linguagem empolada, cheia de
plumas e paetês dos pedantes franceses foi sendo substituída pelo
pragmatismo da “Norte-America”, como diziam os Titios (Habibs!).
Dale Carnegie em “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, com
objetividade mostrava às formulas para vencer na vida; ensinava o novo
mestre: “aquele que conseguir isto, terá todo o mundo a seu lado. Aquele que
não o conseguir, trilhará um caminho errado”.
Outro consagrado autor Norman Vincent Peale tentava convencê-los do
poder do pensamento positivo: "Querer é poder", mas eles queriam tantas
coisas que não podia haver poder para tanto. As seleções do Reader’s Digest,
lidas e colecionadas, falavam das benesses do capitalismo.
E o Bidulinha nunca mais teve certeza de nada; aprendeu a viver na
dúvida, na dialética do contraditório; anos depois quando começou a estudar
os mistérios da mente aprendeu que: “só os delirantes têm verdades
absolutas”.
OS BARES
A Praça da Matriz era dividida por uma rua que dava acesso às
escadarias da Igreja; ali, à sombra dos centenários “fícus” (mas, eu vou), no
ponto de carros de praça, o “Seu” Hipólito com sua ximbica tocada à
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manivela, que alguns invejosos chamavam de “pé-de-bode”, resistia
bravamente à concorrência dos potentes carros novos.
A igreja, bela na simplicidade do seu estilo - lembrava um cartão-postal
das bucólicas pracinhas das cidades do interior – ficava na parte de cima da
praça, cercada por renques de palmeiras imperiais; um cenário idílico que
fazia o Dr. Bruno afirmar enfático: "parece um rosário da natureza abraçando a
Casa de Deus", envergonhando a sua filha, Maria Emília, moça recatada que
não gostava dos arroubos literários do pai.
Mas, ela acabou demolida para o avanço espalhafatoso da nova Matriz,
com as justificativas papagueadas pelos carolas.
- A outra ficou muito pequena; a cidade cresceu, o rebanho aumentou.
Como Sua Eminência não fizera nenhuma homilia em defesa da flora,
muitos fícus e palmeiras foram sacrificados, e a ostentação modernosa
esparramou-se pela praça. O Mumu ficou muito sentido quando derrubaram
as figueiras, centenárias testemunhas das suas trovas de amor.
- Papa-hóstias predadores! Será que Ele engordou? Não cabe mais no
"viejo" templo resmungava o Dr. Sapo com a convicção anarquista exacerbada
pelo terceiro copo de sangria. A nova igreja parece um peru servido num pires
- exagerava, degustando o sétimo copo.
Na parte de baixo da praça, à direita de quem descia, ficava o bar “A
Seleta”, e no fundo da praça o Pinguim, ao lado da casa do Dr Neves. Eram os
pontos de encontro mais frequentados da cidade, até a inauguração da Taba.
Na Seleta, o Mitsuo, nissei com cara de lua, servia generosas porções de
sorvete em grandes e lapidadas taças de vidro. Era o local preferido pelos
casais que podiam namorar no reservado protegidos da curiosidade alheia.
Nas horas de pouco movimento ele fazia massagens no pescoço de alguns
privilegiados; o Gegê era chegadinho, e comentava agradecido:
- Ah! que mãos hábeis. Eu fico com dor no pescoço de tanto estudar
piano.
O vizinho de cima era um salão de sinuca onde o Turcão - o melhor taco
da cidade– se exibia à espera de algum incauto. Os “de menor” só podiam
olhar, embora o ar carregado de fumaça provocasse surpreendente
envelhecimento precoce. Um olho na bola sete e outro no Osvaldinho – “Sr
Osvaldo, olha o respeito à autoridade!” - o vigilante inspetor de menores,
guardião da moral e dos bons costumes.
No vizinho de baixo fazia-se o melhor sorvete: picolés de tamarindo,
milho verde, coco queimado; mas inigualáveis eram as casquinhas de creme,
ou de coco branco, com cobertura de doce de leite que ao contato com a
superfície gelada cristalizava-se formando uma coroa crocante. As meninas,
ávidas, lambiam os picolés, o friozinho provocando arrepios nas almas
inocentes. O sabor compôs uma memória que embora nunca esquecida, jamais
foi reencontrada.
Na Rua Síria ficava o “Ganha Pouco” - mas bebe-se muito - com uma
cancha de bocha onde a italianada se reunia para jogar e falar do “Parmera”.
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O Cebola que morava ali perto, no fim da Rua Síria que terminava no
cemitério, um dia endoidou, e saiu gritando palavras sem nexo, rasgando a
própria roupa. Passou a noite detido na cadeia e depois sumiu, por um bom
tempo. As pessoas diziam que ele tinha ido pro Juqueri. Daí pra frente quando
se discordava de um comportamento diferente, “meio louco”, exclamava-se:
"tá loco, cebola".
Ao lado morava com a sua tia Linda Abdalla, o Edison Corrêa, amigo
dileto do Budulinha. Na parte de cima da cidade eles viveram grandes
aventuras explorando os imensos arredores numa comunhão fraterna, livres
como os sonhos da infância. Mas um dia ele foi embora, restando uma grande
tristeza que só o desejo de também ir, de um dia pegar o trem, amenizou.
Durante um bom tempo o Turquinho caminhou jururu por aquelas já
envelhecidas paisagens; sentimento que, como tudo naquela época, logo
evaporou-se na passagem veloz do tempo.
Mas era no Pinguim que a vida social fluía, as artimanhas políticas e
financeiras aconteciam. Tinha um variado estoque de whiskys, vinhos e
cervejas de várias marcas. Ali, eram habitues os homens do Mando, a maioria
bons de copo. Figuras distintas seguiam o ditado: “alcoólatras sempre,
anônimos nunca”.
E assim eles foram chegando devagarzinho, vendo as preferências,
imitando os estilos; sempre atentos às histórias, verdadeiras ou não; o
importante era o convívio, serem aceitos, estabelecer uma camaradagem. Aos
poucos, os segredos escapavam, tomava-se conhecimento para além das
aparências, o lado avesso da cidade. Sabia-se de tudo.
Com a idade facilitava as bravatas, exibia-se o temerário orgulho de ser
forte, capaz de agüentar varias doses de destilados, acompanhar o ritmo dos
mais velhos.
- Outro sanduíche? preocupava-se o Dr. Ernani com a fome do filho
mais novo, o Caco, que mastigava o segundo, pensando no terceiro. Era o
preço da companhia filial, enquanto o pai tomava o seu “wiskinho” diluído
com clube soda.
- Pai, tá na hora! vamos que a mãe, o “Sargento” como você diz, vai
ficar brava.
- Espera, ainda é cedo.
- Ela vai ficar brava.
- Vamos combinar uma coisa, quando chegar em casa vamos fazer uma
surpresa; eu entro no banheiro e faço muito barulho para acordá-la, enquanto
você esconde o chinelo dela. Quando ela levantar para dar a tradicional bronca
vai pisar no chão frio, e por ser alérgica vai começar a espirrar, e assim para de
reclamar.
O Caco sorria com a sacanagem planejada e pedia outro sanduíche,
como adiantamento. Quem ouvia invejava aquele relacionamento, a
cumplicidade de pai e filho como velhos camaradas.
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Os companheiros de sempre: João Santana, Lamartine e o Vietinho,
placidamente, sorriam, e pediam um reforço:
- Derruba, mais um chorinho.
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O FOOTING
No centro da praça batizada com seu nome, de cima de um pedestal de
granito o majestático sábio baiano - que entre outros grandes feitos virara o
orgulho da raça ao ensinar inglês para a Rainha Vitória - lançava através do
pincenê seu olhar de águia para a porta da matriz, justificando o provérbio:
“um olho no padre, outro na missa”.
Em volta do homenageado ficava a “roda do meio” onde as gerações
desfilavam. Era ali onde tudo começava. A cronista social ao falar dos jovens
nubentes, registrava para a posteridade: “foi no footing que eles trocaram os
primeiros olhares, onde o amor nasceu e floresceu”.
As moças elegantes, com seus melhores vestidos giravam num sentido e
os homens no outro. Muitos formavam rodinhas, parados embaixo das
árvores, numa algazarra contida, falando alto, bulindo com as garotas,
lançando galanteios espirituosos para chamar a atenção das escolhidas; uma
preferência que durou até os “fícus” serem contaminadas pela praga dos
“lacerdinhas” que atacavam, irritando os olhos.
O grande momento era o encontro dos olhares, os sinais quase
imperceptíveis cheios de intenções ocultas; gestos sutis, piscadelas que
reforçadas pela repetição denunciavam a esperança de serem correspondidos.
Já os casais enamorados procuravam lugares mais discretos, os bancos
mais afastados evitando a molecada que “segurava a vela”, ou perturbavam
com ruidosos miaus nos disputados “gatas-pariu”; os mais ousados para
evitar a curiosidade constrangedora das fofoqueiras caminhavam “de bonde”
pelos passeios geométricos que ligavam a calçada externa, menos iluminada,
ao círculo central.
A rádio Z.Y. transmitia o seu mais popular programa “Boa noite meu
amor” o preferido das almas apaixonadas, por 4 alto-falantes acopladas em
forma de X no alto dum poste no centro da Praça; o som estridente, cheio de
microfonias agredia as orelhas do homenageado que suportava com
estoicismo e sábia paciência as agruras das preferencias musicais. As músicas
escolhidas pelos ouvintes - com o auxilio da telefonista que sabia de tudo -
eram dedicadas aos amores ocultos, na voz melodiosa do locutor poliglota que
caprichava no sotaque: “el dia que me quierras; Ai-canote-estopi-lovíngui-iú; onliú;
mai-prai; esmoguete-in-ióór-ais”. Entre as canções ele recitava trovas românticas
de J.G. de Araújo Jorge, lidas de um ensebado exemplar do “Os mais belos
poemas que o amor inspirou”.
“De mãos dadas com as lembranças,
Com o mar, com a noite, com a lua,
Faço versos, como as crianças
Fazem ciranda na rua (...)”
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Mesmo sendo a única emissora da cidade ele repetia o bordão: “a maior
pequena emissora do Vale, falando para a cidade e sussurrando para os
arredores”. Com o fundo musical de uma orquestra húngara, ao som de
violinos ciganos, a Voz caprichava: “Boa Nooite meu Aaamor” é um
patrocínio da Casa Vitória, que vende tecidos tão bons quanto as Casa
Pernambucanas, e tão baratos quanto a Loja das Fábricas”.
O Passareli era o sonoplasta; com movimentos sincronizados abria ou
fechava o microfone do locutor atento aos gestos dele através do isolamento
de vidro do improvisado estúdio. Ao sinal de negativo ele abaixava uma
alavanca ao lado da porta abrindo o microfone para a vitrola, e punha para
tocar as músicas previamente selecionadas. Neste momento A Voz
aproveitava para esticar as pernas, beber água, fazer gargarejos com água
morna e sal - receita do farmacêutico Walter Mazzoti - e fumar um Mistura
Fina, sem filtro. Como de hábito enquanto fazia comentários que nada tinham
a ver com o programa soltava uns peidinhos, justificando-se:
- Sabe como é, muito tempo sentado. Vou acabar sofrendo de
hemorroidas.
O Passa pensava, mas não falava: “Esse tá podre, comeu papo de
urubu”.
No fim da música, ao sinal de positivo a alavanca era empurrada para a
posição anterior, e ele voltava enfático:
“Leve-as! Não quero ver essas fotografias
Que falam de nós dois, que contam nossa história.
Minhas saudades são mais lindas na memória”.
Sempre se comovia ao recitar o poema “Estereoscópio de Paul Geraldy”:
"Quantas saudades.
Ah! esquece coração, esquece."
E agora ouviremos: "El dia que me quieras ..., dedicado à bela Djalva”, e
com o sinal negativo, o Passa liberava o Carlos Gardel, que inundava a praça
com seu sotaque portenho:
“El dia que me quieras
La rosa se engalana
Se vestirá de fiesta
Com su mejor color (...)”.
Ela envaidecida, sorria ¿Quien será ?
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As Modas e os Modos da Memória
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E continuava, caprichando na pronúncia, o romântico comunicador: “E
agora o Mucio oferece para sua musa inspiradora que despetela – será que este
verbo existe? Dúvida do locutor e do narrador - a margarida: bem me quer?,
mal me quer?, embaixo da frondosa figueira: “Lovi-is–a-meni–esplendoréde–
fingué” com Franki Sinaltra”, e a curriola ria da aprontada.
Ele sempre terminava recitando Manuel Bandeira:
“Meu verso é sangue. Volúpia ardente ...
Tristeza esparsa...remorso vão ...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração”.
Por ser muito alto o criativo auxiliar de sonoplasta ficava sentado num
banquinho ao lado da prateleira de discos, e preferia usar as longas pernas
para manobrar a alavanca. Não errava nunca, os movimentos sempre bem
coordenados.
Mas um dia o Passa...errou a pernada e o locutor Rony achando que o
microfone estivesse fechado, ordenou alto e bom som, naquela sedutora voz
empostada:
- Passa, põe um L.P., que eu vou dar uma grande cagada.
Foi um escândalo; o indigitado sonoplasta sentindo a cagada que fizera
saiu de mansinho, perseguido pelo possesso locutor que ao não conseguir
alcançá-lo - era manco - ficou na porta amaldiçoando o irresponsável. O Passa
jurou que abandonaria a promissora carreira; decisão que felizmente não
durou muito, como quase todas as daquela época.
O "Boa noite meu amor", ficou fora do ar, suspenso por duas semanas.
Como sempre a futrica não perdoou, o exagerado poeta das ondas
hertzianas:
- Cagão, precisa de um disco inteiro
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OS LONGES DO BATATA
Nos limites da cidade, ao lado da Santa Casa, em frente ao Abrigo São
José, ficava o celeiro de craques como enfatizava Tony, o mais jovem locutor
da Z.Y.; o Sr. G. ainda não entrara como sócio. O campo na parte mais plana
do pasto que continuava num suave declive ficava ao lado da “curralama”,
onde o “Seu” Álvaro – Arvro, como diziam os seus colonos – prendia o gado
que subia pela estrada boiadeira.
Naquela passarela gramada desfilavam placidamente mansas eguinhas,
boas de barranco; parceiras dos primeiros jogos eróticos de alguns
concupiscentes atletas.
No fundo do vale serpenteava o “córguinho” do matadouro, que nos
dias de abate de reses ficava cheio de pacueras; a água ensanguentada exalava
um cheiro forte de carniça atraindo os urubus que dos moirões voavam ávidos
para o grande festim. Por aquelas águas encarpeladas jangadas de bananeiras
levaram intrépidos navegadores que enfrentando os perigos dos bancos de
areia movediça tentavam alcançar a foz do “Feze’s river”.
Na parte mais alta, do outro lado do córrego, ficava a “Estação da Força
e Luz”, onde trabalhava o “Seu” Tidinho que nos últimos dias andava
cismado, remoendo uma grande preocupação: “Preciso comprar um
liquidificador na Casa Atlas; a patroa vive repetindo: o Dr. Jorge da Santa Casa
mandou dar muita vitamina de frutas pros meninos: o Gessê e o Gerson, que
andam muito mirradinhos”. O problema é o preço: “uma fortuna pra quem
ganha tão pouco".
Há muitos anos trabalhava na companhia, ganhava pouco, mas era bem
tratado. Só não gostava quando faziam troça dela; parece que o
responsabilizavam pela constante falta de luz.
E o coro dos descontentes caprichava:
“Cidade menina - moça,
De dia, falta água
De noite, falta força.
Cidade que nos seduz,
De dia, falta água
De noite, falta luz".
Mas os descampados do Batata tinha uma outra atração; uma
experiência que embora prazerosa, envergonhava. Às margens plácidas do
“matadouro’s river”, perto da ponte da estrada boiadeira, num “ranchinho à
beira chão, todo feito de sapé, onde a lua faz clarão”, vivia "El Paraguayo", a
cuñataí, o quebra-cabacinhos de muitos ingênuos atletas. Após um dia de
muito trabalho na pequena olaria, banhado e perfumado, ele recebia “sus
chicos”, e com trejeitos femininos os conduzia, os mais tímidos com muita
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paciência, pela trilha do desejo em busca do prazer. E alegre cantava com voz
de falsete, numa mistura de guarani e espanhol, sua guarânia de amor:
“Una noche tibia nos conocimos
Junto al lago azul de Ypacaray
Tu cantabas triste por el camiño
Viejas melodias en guarani”.
Os que não escaparam da emblemática iniciação pareciam jovens
“caxias” de espada em riste invadindo o Paraguai - quem for brasileiro, me
siga! Após o gozo fugaz, o arrependimento e a culpa; a memória daquele
momento teria para sempre o cheiro de sabonete carnaval.
Quando passou o filme “O aventureiro do Mississipi”, com o Tyrone
Power e a Piper Laurie, eles resolveram construir um “barco-gaiola” para
avançar rio abaixo até o rio Cachoeirinha. O Gegê trouxe tábuas, pregos,
martelo e serrote, e o estaleiro foi improvisado na casa de “la hermosa”.
Como ninguém sabia fazer, e como sempre todos tinham razão, tudo
terminou numa grande discussão na qual vozes esganiçadas tentavam impor
suas incertezas. Ele escutava as bravatas de olho gordo nos corpos
adolescentes. A “Rainha do Mississipi” rio jamais singrou os “mares nunca
dantes navegados".
Mas voltemos, como dizia Honório de Lemos, aos outros esportes
atléticos, Os rachas eram nos fins das tardes, entrava quem chegasse primeiro
– o Bidulinha que não tinha muita intimidade com a bola chegava bem cedo
para garantir vaga; já nos sábados quem mandavam eram os maiores
escolhendo no “par ou ímpar” os melhores, e os times eram formados: os
“com camisa” x os “sem camisa”.
Aos rejeitados que não eram escalados para completar no gol ou na
ponta esquerda, só restava ir aprender guarani – cuidado, se exagerar vicia, e
viciando pode virar de lado – ou gatunar umas frutinhas do pomar da Santa
Casa.
Com o tempo foram surgindo os craques: Bistinga, becão de espera, que
já agitava as massas – ele virou padeiro; Serraninho, criado na base de
guaraná; os Zaccarellis; os Ribeiros: o Procópio e o Diomédis - Dió - pois o
Sano era perna de pau; o Marcio Garcez - outra vez! eslogam da campanha do
seu pai quando fora candidato a vice-prefeito - irmão do nosso Mumu; o
Elinho Calhado e o Botão, todos já jogavam no Tereza Breda, envergando nos
domingos à tarde a gloriosa camisa alvi-celeste do Olímpia Futebol Clube.
Nas manhãs de domingo aconteciam os amistosos, só como apelido;
eram jogos para valer contra times de outros campos. O do Brejinho era
formado pelos odiados internos do Colégio do “Veio” Neves, alunos que eram
obrigados a se recolherem às 9 da noite, mas eles pulavam o muro voltando ao
footing para bulir com as nossas meninas. Como em quase todo internado
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punham salitre na comida servida para anular o desejo, evitando o pecado do
troca-troca. A Dona Mirtes que lavava as roupas deles no tanque de cimento
do pátio, perto dos banheiros, achava que não estava dando certo. As roupas
de cama trocadas uma vez por semana viviam manchadas pelas bronhas
tocadas embaixo dos lençóis na solidão das noites quentes.
Como o Professor Neves, que morava na parte da frente, fingia não ver
as fugas, e preferia degustar um Adriano Ramos Pinto, ler Camões em voz
alta, saudoso das inigualáveis conquistas do gênio português, e da coragem
dos navegadores da Escola de Sagres, então era na hora dos jogos que as
canelas pagavam pela concorrência desleal.
As disputas com o time da Colônia do Seu "Árvro" sempre terminavam
em confusão. Os “bepos” achavam que eram os donos do campo, mas o que
eles tinham mesmo era ciúme das eguinhas volúveis.
Agora, a maior rivalidade era contra o time do Terrão, um campo de
chão compactado, poeirento, da Vila São José, localizada nos arrabaldes, no
outro lado da cidade, onde os “japoneros” disputavam sua gincana anual com
umas modalidades de provas esquisitas. Acostumados à buraqueira os
pobretões pastariam no tapete verde do Batata, e levariam de goleada. O jogo
virava uma pauleira - esporte de homem -, e no meio dos palavrões, caneladas,
empurrões, bicudas, e o juiz amedrontado parecia ter engolido o apito. Os
adversários vinham possuídos pelo espírito amadorístico de uma competição
fraterna – “perder para estes maricas, filhinhos de papai, nem fudendo, se não
for na bola será no pau" - o Paraguaio ouvia cheio de esperanças. E o juiz,
coitado, apanhava dos dois lados, e jurava nunca mais mediar disputas de
donzelas.
Onde se podia jogar o dia inteiro era no campinho do Pissoli, que bebia
muito, xingava mais ainda, e jogava pedras para espantar a garotada, pois
considerava seu o terreno baldio, de chão duro, em frente à sua pobre casa. As
traves improvisadas com pedaços de galhos tortos, as bolas de borracha ou de
meia, as raízes expostas arrancando bifes dos dedões - foi ali que o Bidulinha,
numa jogada inesquecível, quebrou o braço - não impediam o prazer lúdico do
futebol que impregnava os sonhos daqueles moleques livres.
Mas, como a imaginação deles vivia não só de esportes os territórios do
Batata foram palco de outras grandes batalhas: A Brigada Ligeira e suas lutas
na guerra da Criméia, Beau Geste e sua Legião Estrangeira, e a gloriosa
Cavalaria Americana protegendo os primeiros colonos que foram conquistar o
Oeste, lutando contra os índios chefiados por Gerônimo, Cochise, Touro
Sentado. A epopeia do obcecado Ethan- John Wayne – que procurando a
sobrinha perseguiu os ferozes comanches, e marcou com rastros de ódio as
inóspitas montanhas geladas.
Mas foi na batalha final entre o 7º Regimento chefiado pelo ambicioso
General Custer, e a poderosa aliança dos sioux e cheyennes, liderada por
Touro Sentado, Galha e Cavalo Doido, que uma lança de bambu arremessada
por um cara-pálida - filho de um turco da Rua Bernardino - de cima de uma
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Terra Natal - As Modas e os Modos da Memória

  • 1. TERRA NATAL AS MODAS E OS MODOS DA MEMÓRIA “Quando vim da minha terra não vim, perdi-me no espaço na ilusão de ter saído, Ai de mim, nunca sai” “Lá estou eu, enterrado Por baixo de falas mansas Por baixo de negras sombras” Carlos Drummond de Andrade
  • 2. Para Dalila, companheira de travessia. Meus filhos: Ana Paula e Rafael que cresceram vendo o sonho virar vida. E meus netos: Ana Carolina - que história engraçada Vô! - e os gêmeos Tiago e Felipe, alegrando o fim da jornada, iluminando a vida de esperança.
  • 3.
  • 4. Sumário UMA EXPLICAÇÀO E VÁRIOS AGRADECIMENTOS DA PRIMEIRA VERSÃO ...... 6 PREFÁCIO EDIÇÃO DIGITAL .............................................................................................................. 8 MIKA – I..........................................................................................................................................................10 MIKA – II.........................................................................................................................................................20 SABOR GLOSTORA..................................................................................................................................24 A PRAÇA........................................................................................................................................................27 As quermesses..........................................................................................................................................27 UMA RUA CHAMADA SAUDADE.................................................................................................30 A BIBLIOTECA, NA ESQUINA...........................................................................................................34 O FOOTING...................................................................................................................................................41 OS LONGES DO BATATA.....................................................................................................................44 ABREM-SE AS CORTINAS....................................................................................................................49 ESTÓRIAS DO FUTEBOL.......................................................................................................................52 A NOITE – I ...................................................................................................................................................59 OS JOGOS DO OBELISCO......................................................................................................................61 OS CINEMAS................................................................................................................................................67 A TABA............................................................................................................................................................72 CIDADE MENINA-MOÇA....................................................................................................................75 TUTTI BUONA GENTE...........................................................................................................................78 Ô NATRA, CADÊ TEU PAI?.................................................................................................................79 A SEIVA DIVINA........................................................................................................................................81 CHICÃO..........................................................................................................................................................84 AS REVOLUÇÕES EM MARCHA......................................................................................................87 O TREM AZUL.............................................................................................................................................94 NOS CAMINHOS DO PARANÁ.....................................................................................................103 MENINO DA PORTEIRA....................................................................................................................106 EH, CHÃO PRETO!.................................................................................................................................109 A NOITE II ..................................................................................................................................................111 AS GALINHADAS..................................................................................................................................117 Receita de Galinhada .........................................................................................................................120 A VIDA CULTURAL..............................................................................................................................123 OS FILMES..................................................................................................................................................129 O REI DO ROCK.......................................................................................................................................137
  • 5. Z.Y.G..............................................................................................................................................................140 NOS PALANQUES DA VIDA – I.....................................................................................................153 NOS PALANQUES DA VIDA – II...................................................................................................158 OS BAILES...................................................................................................................................................171 SAUDADES DA PROFESSORINHA..............................................................................................178 MINHA ORAÇÃO ..................................................................................................................................184 MEU LENÇO VERMELHO.................................................................................................................188 RODOURO..................................................................................................................................................191 OS CAÇADORES DA MADRUGADA..........................................................................................196 Leitoa à pururuca ................................................................................................................................199 Receita de churrasco...........................................................................................................................199 MAKTUB......................................................................................................................................................204 A GUERRA DOS MASCATES...........................................................................................................206 Receita de cafta:....................................................................................................................................213 Receita de kibe cru..............................................................................................................................214 Receita de Mussauaque:...................................................................................................................215 OS TITIOS....................................................................................................................................................220 FESTA NA ROÇA....................................................................................................................................223 OS CISNES IMPERIAIS.........................................................................................................................229 O REI DO LAÇO.......................................................................................................................................241 A NOITE DOS NAMORADOS..........................................................................................................245 AS CIDADES DOS BÊS .........................................................................................................................255 MAIS DE MEIO SÉCULO DEPOIS..................................................................................................259 EPILOGO .....................................................................................................................................................262 FOTOS DA PRIMEIRA EDIÇÃO......................................................................................................267 ADENDOS...................................................................................................................................................276 Crédito das Músicas...........................................................................................................................276 Referências Bibliográficas................................................................................................................279 Revistas................................................................................................................................................281 Jornais...................................................................................................................................................281 Relação dos Filmes..............................................................................................................................282
  • 6. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 6 UMA EXPLICAÇÀO E VÁRIOS AGRADECIMENTOS DA PRIMEIRA VERSÃO Estas evocações aconteceram ou são fabulações senis do narrador? Tudo é verdade ou tudo é mentira? Ou uma coisa ou outra; ou nem uma coisa, nem outra, pois como dizia o mestre Guimarães Rosa pela boca do Riobaldo Tatarana no livro Grande Sertão, Veredas: "Moço, toda saudade é uma espécie de velhice". As pessoas existiram, os acontecimentos não, ou vice-versa - ou versa- vice como diria o Teixeirinha - mas como ensinou o grande cineasta John Ford no filme “O homem que matou o facínora”: "quando a lenda é mais interessante do que a realidade, imprima-se a lenda". Algumas almas boas evitaram que o narrador perdesse o tino, mantendo-o através da amizade e da sabedoria nos limites da normalidade; tão fugaz quanto todas as certezas humanas, pois a memória é cheia de artimanhas e ilusões. A minha gratidão e o meu carinho para: Nas pesquisas musicais: Rosi Ribeiro de Moraes, gerente do Armazém do C.D.- Curitiba; Marcel Gil Liano Cruz, produtor musical da Radio Educativa do Paraná; João de Freitas, pesquisador de musica caipira - Londrina; Leon Barg, produtor musical da Gravadora Revivendo – Curitiba, e Tarcisio Lourenço Darif, colecionador e esteta do som – Curitiba. Nas referências bibliográficas: Rubia Oliva, da Bibliotéca Pública do Parana e Gerson Linhares, da Livraria Curitiba, na Boca Maldita. Nos caminhos do “maktub” a tribo dos “brimos” de Curitiba: Professores Mansur Teóphilo Mansur e Jamil Zugueib Neto; Amied Reduan Ibrahim, empresario; Jorge Zaruch, alfaiate, e Aramis Chaim, livreiro: “As salâmo á-leikom!” - Que a paz esteja com vocês! Ana Maria Santana – in memorian -, José Augusto Pavesi e José Marangoni pelas pesquisas locais. Fathma Aparecida Salles Abufares, pelos estímulos, conselhos e bons fluidos; Rafael Rocco Salles, filho; Flavio Henrique Sartorello e Ericson Salles Abufares, sobrinhos, que através da informática, salvaram do holocausto mais um velho dinossauro ameaçado pelas novas tecnologias. Gerson Cavalcanti, Woyne Figner e Wisclef Sacchetin, que fingem terem saído da Terra Natal, mas vivem à espreita, compartilhando o sonho.
  • 7. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 7 Para todos sem os quais este livro não aconteceria, os versos do poema ”A ilusão do migrante" de Carlos Drummond de Andrade: “Que carregamos as coisas, Moldura da nossa vida, Rígida cerca de arame, Na mais anônima célula E um chão, um raio, uma voz Ressoam incessantemente Em nossas fundas paredes”. E finalmente, para a Olímpia eterna, a cidade que resiste na herança afetiva dos seus filhos, uma presença tão real quanto a "Tabuleta da Casa Thomé”, e às pessoas, estas mais que tudo, imortais na memória, encantadas na saudade. O narrador em nome do Bidulinha, do Teixeirinha, d’Elle, e de todos os outros.
  • 8. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 8 PREFÁCIO DA EDIÇÃO DIGITAL Treze anos após o seu lançamento, no dia 10 de maio de 2002, o livro “Terra Natal – os modos da memória” é relançado versão com algumas modificações. Estas adequações acontecem por várias razões: primeiro para uma adequação cronológica – nem a tabuleta da Casa Thomé que inspirou a capa da primeira edição existe mais; e segundo por sugestão de vários leitores que viveram a mesma época e sonharam os mesmos sonhos; amigos a quem sou muito grato, cujas memórias privilegiadas permitiram corrigir pequenos enganos na descrição de acontecimentos que inspiraram o autor. Mudou o subtítulo que passa a ser: “as modas, e os modos da memória”. No texto algumas partes – poucas – foram retiradas, e outras – menos ainda – acrescidas. A versão digital impõe-se pelos novos tempos tecnológicos, esperando que as novas plataformas facilitem o acesso da geração atual. Aos agradecimentos da primeira versão quero acrescentar algumas pessoas que das mais diversas formas colaboraram com o sucesso do lançamento: Na divulgação que redundou numa noite de autógrafos com 142 participantes, o eterno agradecimento para: o jornalista Silvio Roberto Mathias Netto, o nosso Bibi – Radio Menina e jornal Planeta News; o jornalista Nelito Santos (in memoriam) – jornal Tabloide da Nova Paulista; e na organização a equipe da Secretaria Municipal de Educação de 2002 liderada pela professora Maria Eunice Balbo; o apoio institucional do prefeito municipal o colega Luiz Fernando Carneiro; e a “brima”, a pioneira e histórica cronista social Diva Thomé (in memoriam). A Leonardo Concon do Blog “Diário de Olímpia”, um incentivador da cultura da terra natal que ao ser solicitado prontamente tornou possível colocar digitalmente esta versão à disposição dos interessados; e,finalmente, para Ana Carolina Salles e Gabriel Cordeiro responsãveis pela formatação desta edição. Desfrutem, e saibam como foi Olímpia, a nossa Terra Natal, que sobrevive na saudade de quem teve o privilégio de viver aqueles tempos de sonhos. Boa leitura!! Curitiba, setembro de 2015. Jorge Salles.
  • 9. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 9 A ESCOLA Se queres ser universal, começa por pintar tua aldeia. Leon Tolstoi.
  • 10. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 10 MIKA – I A escola foi construída no lado "nobre" da cidade, o mesmo da matriz. Reza a lenda que o projeto era para uma cidade maior, Santos, mas o Mando Político numa demonstração de força conseguiu desviá-lo para a cidade. Erguida no centro de um terreno terraplanado com declives gramados era toda cercada por uma mureta encimada por alambrado. No fundo, separava- se por uma cerca - viva da Pracinha, a rota de fuga mais usada para cabular aulas. Por sua imponência destacava-se no meio das casas baixas, visível de quase todos os cantos da cidade – “enxergável”, como corrigia o solerte Teixeirinha. No pátio cimentado e coberto ladeado por dois banheiros tinha um pequeno palco de madeira, onde nas festas cívicas brilhavam os talentos estimulados pelos professores, e aplaudidos pelo orgulho dos pais esperançosos. O nome homenageava uma professora que poucos sabiam quem fora, mas isso era o que menos importava; ali era a escola deles, o Anitona. De manhã funcionava o grupo, à tarde o ginásio. Foi ali, naquelas salas e corredores que tudo começou. Uma classe mista, meninos e meninas sonhando com um futuro risonho, repleto de certezas e conquistas; histórias de sonhos e desejos imortalizados na memória de cada um. Todas as turmas deixaram suas marcas, umas mais que as outras. Naquele tempo tudo era imenso, o mundo ainda não tinha começado a encolher. Foi um escarcéu quando a Mika I, uma improvisada bomba caseira arremessada da janela de uma sala de aula do segundo andar explodiu no ar. Um “cu-de-boi" como disse mais tarde, ainda assustado o Tony com a sonora voz de futuro locutor. Na aula prática de Ciências Naturais um gato semi-anestesiado sacrificado ao Saber era meticulosamente destrinchado por mãos hábeis provocando esgares nas almas mais sensíveis - “na hora, quase gomitei”. Ele fora sequestrado dos afagos de uma descuidada solteirona e oferecido como animal vadio em holocausto à Ciência. A professora Maria Ubaldina manipulava as vísceras com as mãos enluvadas evitando sujar as unhas recém-pintadas, e explicava didaticamente sem nenhum nojo – mulher de médico, quanta coisa ela não vê? – o funcionamento dos órgãos, as batidas do coração, os movimentos do diafragma.
  • 11. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 11 Estava um pouco distraída, e executava automaticamente seu trabalho pensando na festa de aniversário da Rosali, logo à noite - “minha menina vai fazer treze aninhos, está quase uma moça. E ainda tenho que passar na Baiana para pegar o presente; ficou tão lindo o vestido novo de organdi estampado, saia godê, gola alta e manga japonesa. Ela vai usar com a sandália nova de tiras, tipo escrava, dessas de trançar nas pernas, que o Paulo trouxe de São Paulo; vai ficar uma graça. Ah, será uma noite inesquecível; a minha princesinha merece, e esta aula que não termina”. O professor Izaías a auxiliava manejando o bisturi cheio de cuidados; a mesma delicadeza com a qual ele segurava nos ensaios à noite no cineteatro as mãos de Eurídice. Estava atento para não furar os intestinos, senão ia espalhar bosta para todos os lados. O barulho muito alto provocou uma grande gritaria. A fumaça espalhou-se irritando os olhos, aumentando o medo, e num atino todos correram numa fuga desesperada pela única porta, derrubando cadernos, chocando-se com as carteiras. Na posterior reconstituição dos fatos houve quem afirmasse que o pobre felino, usando a última das suas sete vidas, saiu da quase inconsciência do clorofórmio, e pulou desvairado da mesa cirúrgica improvisada, derrubando o material emprestado pelo Dr. Paulo. E miando desesperado escapuliu pelo vitrô lambendo as vísceras dependuradas, numa fuga alucinada em busca da sobrevivência. Igual afirmavam os mais exagerados, quando tinham busca-pés amarrados nos rabos, nos inocentes folguedos infantis na época das festas juninas. Mas apesar do dia tumultuado, felizmente, a festa foi um sucesso: “A Mansão dos Furquim com os jardins enfeitados, escadas feericamente iluminadas (eu sei que é galicismo, que o Professor Jayme vive reparando, mas não importa é um adjetivo tão bonito, de uma língua tão romântica – ela pensou, mas não escreveu), parecia um castelo de contos de fada”, registrou a inexperiente cronista social que estreara há duas semanas; o Nelito, ainda tinha duvidas, se ela daria certo. Na aula de português o parnasiano professor, de inopino - a esperança do narrador tomara que um dia ele leia isto, e elogie a expressão - indagava: - Floriano, cite cinco cores. O sardento italianinho, nascido na “róça”, que andava de “caróça”, oriundi da Escola mista rural do Tamanduá, lascou: - Alazão, baio, carijó, “turdio” e “amaron”. Enquanto a classe ria, o desamparado aluno quase morto de vergonha esvaia-se atrás da carteira, desejando sumir nas matas do Turvo para nunca mais aparecer, o professor Jayme explodia de indignação: - Zero, Sr. Balbo, zero! Era um Mestre, como gostava de ser tratado, na acepção da palavra; cultor do português escorreito, afeito às preciosidades do vernáculo, e que adorava adjetivos, Às vezes abusava de um linguajar prolixo recheado de
  • 12. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 12 palavras difíceis, e adorava citar expressões idiomáticas pouco corriqueiras, as mais belas da última Flor do Lácio. Dotado de um vasto conhecimento geral auxiliado por uma memória privilegiada, permitia-se fazer perguntas capciosas, rebuscadas, aquelas tiradas do bolso da algibeira. Como advogado fazia sucesso nos júris – o Forvm ficava repleto para assisti-lo – com defesas memoráveis, repletas de latinismos e citações dos clássicos. Quando defendeu o cunhado do Bidulinha, impressionou os jurados, abusando dos: “Senhores Membros do Conselho de Sentença, como diria o mestre Rui, ínclitos e justos”. Ele avaliava o nível de ignorância dos seus discípulos por dois únicos parâmetros: dez ou zero, este, infelizmente, usado com muita frequência. E lá vinha ele: - O que significa mangar? O Rivoiro, ex-seminarista, crânio nas cinco declinações latinas: ae, i, is, us, ei - e nos adjetivos de 1ª classe: us-dominus, a-rena, um-bellum - o resto da turma uns pobres coitados não sabiam nem os de segunda – e que era a salvação da lavoura nas provas do prof. Bianor, ajeitou o óculo fundo de garrafa e desfilou: - Ironizar, debochar. - Dez – enfático - déééz! - Padreco, cu-de-ferro - sibilou a Múmia. Sr. Wanderley: fale alto e bom som, não nos prive de sua assertiva que como soe acontecer, enriquecerá a língua de Machado. - Não foi nada Mestre, apenas um “lápis” de memória – ele sonhava humilhar, só pensava no grafite, e nas reações da pólvora. - Excelsa contribuição, nota compatível: zero, com “lapso” vermelho. E hiperbólico: Ó tempora! Ó mores! - E soteropolitano? O medo dos zeros ciciava as respostas. - Deve ser parente do Zico – o Zico Sotero era um ex-aluno, destaque do time de basquete da cidade. - Onde ficava Pasárgada? - Pra lá de Palestina, perto de Granada, o fim da linha. A alma árabe do Bidulinha o fez cantar: “Granada, tierra sonada por mi Mi cantar se vuelve gitano (...) Granada tu tierra está llena De lindas mujeres, de sangre y sol”. Mas foi um canto sem voz, só em pensamento. E assim eles foram aprendendo, aos trancos e barrancos, chorando na rampa, a riqueza da língua-mãe: as regras da concordância, a conjugação dos verbos, a prosódia, àààs crases, a “ortográfia” - como numa aula, alto e bom
  • 13. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 13 som, exclamou o Bidula, e recebeu uma desalentadora resposta: Zero, sua cavalgadura, ZERO! Alguns reagiam aos novos saberes: - Ô! linguinha enrolada, sô. Inda bem que é a “última flor do Lácio, inculta e bela, desconhecida e obscura”; assim não dá para “amar ela”. Lá fora é que é bão: nóis vai, nóis fumo; guenta sô, num guento; é mêmo, né; é bebé, mama na gata, ocê não qué. Os temas para as redações o mestre retirava do baú de Camões que o esquecera na biblioteca dele, quando viajou para: "mares nunca d’antes navegados, em busca da Ilha de Taprobana". O Caia, talentoso orador, caprichou numa sobre as eleições para o G.E.C.A.- Grêmio Estudantil Castro Alves; adjetivou tão bem, chamando de “pinceladas eleitorais” a propaganda que como candidato pintou com cal – é virgem, porque o pincel é brocha - nas ruas em volta da escola. Foi elogiadíssimo, citado como exemplo, mas perdeu a eleição. Ninguém vota em cu-de-ferro. Uma verdade que animou a maioria: “não sou mau aluno, é que vou ser político”. Monsieur Le Professeur mesmo antes de fazer a chamada - a seco, sem nem passar “guspe”, foi logo introduzindo: Dictée: "La France est aprés la Russie le plus vast des états Européen. Elle ocupe une situation a la fois continentale, a la fois maritime que lui assure des precieux avantage.....". -Bonjour, je suis le professeur Ferdinand. Ele recentemente assumira no lugar da Madame Affife Latouf, uma descendente de libaneses de esmerada educação francesa que vinha respondendo pela disciplina. Ela, embora gostasse muito da classe, andava perdendo a paciência com a estultice daqueles matutos; irrecuperavelmente desinteressados pela amada língua. Descontrolava-se, abandonando la finesse, gritando seu desespero bilíngüe: -“Lambeciles, carrás de bêtes, fermez la bouche: Zirrôô!. Ah!, Mon Dieu de la France, onde fui, attachê mon âne", e como era num francés aportuguesado que poucos entendiam, ninguém reclamava das admoestações. A sua única alegria eram o Júlio e o Louis, alunos exemplares; talentos inatos para a língua que faziam biquinho ao declamar o romântico Lamartine: “O lac! l’année a peine a fini sa carrière Et prés des flots cheris qu’elle devait revoir Regarde! Je vieus seul m’asseoir sur cette pierre Ou tu la vis s’asseoir”(...)
  • 14. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 14 "O temps, suspends tou vol! et vous, heures propices Suspendez votre cours! Laissez-nous savourer les rapides délices Des plus beaux de nos jours!” Por seus dois melhores alunos que se rivalizavam no seu afeto -“Julian e Lui, mes petits garçons”- ela continuaria insistindo, mas andava muito cansada: “Je n’ai plus de tolerance”. Quando o nouvel professeur escolheu a cidade ele foi minuciosamente informado pela colega de las dificultés que encontraria. Armado com as mais modernas técnicas pedagógicas assumiu sonhando vingar todas as históricas humilhações que historicamente a civilização francesa sofrera naqueles “tristes trópicos”; da expulsão dos fundadores da Ilha de Villegaignon até o sacrifício do heroico, e pouco conhecido “Monsieur La Motte”, no litoral de Pernambuco, Mas como não se constrói um império em “dix lessons”, immédiatement começou la guerre. A hora da saída virava um alvoroço, mesmo vigiados pelo olhar arguto do “Seu” Delolo, bedel responsável pela disciplina que por sua limitação intelectual a exercia discricionariamente, justificando assim a rejeição da maioria dos alunos. Como gostava, e muito, de biscoito de polvilho, que ele pronunciava: “bicoito”, a vingança era saudá-lo, de trás da cerca - viva com o coro dos perseguidos: "BICOITO! BICOITO!”. Já na rua, a liberdade era homenageada com as brincadeiras que permitissem a liberação dos movimentos, depois de horas de comportadamente sentados; como os improvisados jogos de bola, quando saiam chutando tudo que fosse redondo ou assemelhado: pedaços de pedra, caroços de manga e de cajá-manga, bolas de papel, e até inesperadas bolas de meia, camufladas nas bolsas, misturadas à toda sabedoria do mundo. Mas a brincadeira preferida eram as lutas à beira dos declives gramados - a imaginação fértil os transformava em abismos profundos onde viviam esfaimados crocodilos gigantes; os derrotados eram empurrados e deslizavam para as profundezas, manchando de verde gosmento os joelhos dos uniformes de brim caqui. Na avenida, em frente à entrada dos professores e das autoridades - os alunos entravam por um portão grande, na rua lateral - o “Seu” Guerra, num carrinho de rodas de bicicleta vendia suas concorridas guloseimas: quebra- queixo, um doce de toddy e trêmulas gelatinas; e apesar da grande algazarra, conseguia atender com muita paciência os inúmeros pedidos, todos ao mesmo tempo. Num exibicionismo infantil gritavam-se as novas palavras aprendidas: Bonjour, good -morning, merci beaucoup, the book is on the table, e as ofensas sutis: vá tomar no pescoço, em francês. Provas de sedução para atrair à atenção das garotas, olhando se olhavam; mas elas com la belle indifférence, sempre em
  • 15. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 15 grupinhos, os cadernos espalhados pelo chão, riam alto, falavam com gestos atabalhoadas, e não davam nem “tchum” para os nossos apelos irresistíveis. Não se levava desaforo pra casa, nada ficava sem resposta: “vá tomar no toba: dobra, redobra e enfia no teu toba; minha mãe está debaixo da terra pedindo missa, a tua está em cima, pedindo pissa; não põe minha mãe no meio, que eu ponho no meio da tua; quem guspir aqui, gospe na mãe do outro”. - Cala boca! - Cala boca já morreu quem manda na minha boca sou eu. E como a cidade cultivava uma tradição de valentia; o seu herói mítico era o Annibal Vieira, brigava-se muito. O Aspano, dos Carusos de Assis, que não tinha nenhuma vocação para tenor, veio morar com a Nôna, matriarca da tradicional “famiglia” Degasperi. Por um motivo muito importante que logo foi esquecido, resolveu cantar de galo, e arrumou uma briga com os irmãos Taka; judocas, quase enfaixados, sobrinhos do Mestre Sankiti - Ban´zái!, Ban´zái! - faixa- preta e de todas as cores, um verdadeiro arco-íris, fundador da Academia de Jiu-Jitsu -jurgite, exclamava o povo admirado com a agilidade e a disciplina daquela luta esquisita. A luta foi rápida, um de cada lado, os golpes certeiros: um “nori” e um “jiro” provocaram um verdadeiro Pearl Harbor. A torcida gritava: “dois contra um, pau no cu, dum”; o “gaijin” caiu derrotado e com um olho roxo correu humilhado para a proteção do colo da vovó. Na volta para casa os dois jovens guerreiros marchavam garbosos, exibindo o orgulho dos velhos samurais que após vencerem as batalhas retornavam com os estandartes tremulando ao castelo do xogum, cantando o hino dos sendais - o-jii-san, o-báa-san: “Kim = Ga, Yo = Wá/Tchiyo = ni, Yatchiyo = Ni Sazare – ishi – nô/ Iwao = Tô, Narite Koke = Nô Mussu – madé” A Rosali quando soube ficou muito triste, pois desde a noite do aniversário achava lindos aqueles "ojos verdes", agora matizados pela violência. No dia seguinte a leoa napolitana rosnava em defesa da cria, clamando por vingança no dialeto dos seus ancestrais pescadores: - Mio Aspaninho, que te fato? Japonêros: mascalzones, lazzarones... Desse pugilato que rendeu orgulho para uns e humilhação para outro, e que logo foi substituído por outros acontecimentos – a memória durante a infância é fugaz, ela só se torna imortal quando se envelhece -, sobraram dois novos brados de guerra: taka -ataka! e japonêro!, japonêro!.
  • 16. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 16 Como no Anitona não tinha quadra; as aulas de ginástica calistênica eram dadas no pátio, e as de basquete na Fundação do “Véio” Neves. Desta quem tomava conta era a Dona Maria Joana, baixinha, gordinha e difícil de ser enrolada. Fora das aulas semanais só se conseguia jogar convencendo-a com alguns presentinhos: um quilinho de arroz, de açúcar, de batata, meio de café - só meio? É.. tão erradicando os cafezais;...errá, o que? Os mais velhos para usarem a quadra à noite apelavam para outras moedas: uns beijinhos com cara de nojo, uns abraços apertados, umas furtivas encoxadas, e às vezes até uma...em pé mesmo no quartinho onde ela morava - mens sana, in corpore (...) e ”nhac”...na Maria Joana -, parede e meia com o vestiário, e a promessa nunca cumprida de pagar no dia seguinte a taxa de luz na tesouraria do colégio. O que não se fazia pelo esporte. Ela, sempre atenta: - Meninos não podem jogar de sapato, estraga o “ciumento”. Quem não tinha keds, ficava com as solas dos pés, que viviam esfolados, cheias de bolhas. - Que se fodam, quem manda serem pobres e butinudos. Os jogos de futebol eram no Brejinho, às margens plácidas do ribeirão “Olhos D’água”. O complexo esportivo tinha um campo gramado que quando chovia, sempre alagava; uma quadra de terra onde a bola não quicava direito, servindo só para bandejas e ao lado a piscina, única da cidade; para usá-la pagava-se uma taxa mensal controlada por um cartão de frequência que ficava todo manchado de tanto guardar nos bolsos dos calções molhados. Nela o Johnny Weissmüller lutou contra crocodilos gigantes assustando os pequenos girinos que cresciam calmamente, indiferentes às aventuras humanas. Nas manhãs de domingo, Gêra e seus aqualoucos exibiam-se no trampolim; os corpos imberbes escandalosamente expostos nos largos shorts de nylon, eram observados pelos olhares concupiscentes das meninas que davam gritinhos incentivando seus preferidos, nas disputas para ver quem conseguia atravessar a piscina, de comprido num só mergulho. Nos caldos - “cardos” - os pulmões expandiam-se até o limite do desfalecimento, para provar quem conseguia ficar mais tempo sem respirar. E daquele enorme trampolim os corpos pareciam voar nos pulos ousados: de cabeça, de ponta - “De pé não vale! Lá vai bomba: tibum!" - espalhando água, molhando os que assistiam; eles procuravam se proteger atrás da pequena mureta, não disfarçando a inveja que sentiam daqueles malucos que não tinham vergonha de exibir os corpos quase nus. Nas batalhas navais, os tombos, os gritos eram acompanhados por uma alegria espontânea, como se eles estivessem ontogeneticamente integrados, de volta ao líquido amniótico. Uma vez a Secretaria da Educação enviou à escola umas bolas pesadas, cheias de areia, de formato oblongo, com o estranho nome de medicine-ball, própria para um diferente e “delicado” jogo. O professor Isauro, ensinando as regras básicas, caprichou na pronúncia:
  • 17. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 17 -Vocês vão praticar rúgbi, o jogo preferido pelos jovens americanos. Justificando o nome o campo virou um lodaçal, uma lameira só. Mens sana in corpore sano - não, o Sano, irmão do Dió, e seguindo este princípio o professor de educação física tentava transformar aqueles magrelas em atletas. No T.G.-32 onde era o sargentão, ele mandava e desmandava: Ordinário marche! Meia-volta, volver! Dava mijadas nos “recos”, mas com os paisanos era na base da ordem e progresso: muita ordem, e pouco progresso. Mas do que ele gostava, mesmo, era de basquete – bóóól – como pronunciava no forte sotaque cearense bem carregado. Tinha no quintal da sua casa, ao lado de uma frondosa mangueira, uma bandeja de madeira fixada em dois caibros, com aro e sem rede. Ali ele ensinava com a determinação peculiar os fundamentos do amado esporte: arremessos, marcação, fintas; saia poeira do chão compactado cheio de raízes expostas. Ao ficar ofegante ele inspirava tão profundamente que quase criava um vácuo, em volta; o Gegê não perdoava: “assim, vamos desmaiar por falta de oxigênio”. Levava as disputas, mesmo nas brincadeiras, a sério, e exigia que os filhos, Bira e Jura, dessem exemplo. Naquele fundo de quintal eles aprenderam que ninguém vence sozinho; a importância do esforço conjugado, a necessidade do apoio mútuo, o valor da disciplina, e do sonho compartilhado. O Caia que era vizinho atraído pelo barulho atravessava a cerca e já vinha querendo mandar no jogo: - Esses caras mais velhos são soda, com ph. A Amélia, filha caçula, sentada num degrau de cimento na porta da cozinha, acarinhando uma boneca de pano, olhava sem compreender a gritaria toda, enquanto a esposa, Dona Beatriz, atenta, ralhava carinhosa: - Isauro, calma. É tudo brincadeira, toma um refresco. Ele, a maior liderança kardecista da cidade, propagava o Evangelho e para dar exemplo vivia de acordo com o que pregava, norteado pelos princípios da solidariedade cristã; acreditava que fora da caridade não havia salvação, e como os verdadeiros espiritualistas praticava o bem de forma discreta. No Centro Espírita dirigia sessões mediúnicas nas quais entidades desenvolvidas se incorporavam, aconselhando, dando passes, procurando diminuir o sofrimento humano. Ele não dava o peixe, mostrava a vara e ensinava pescar. Foi um exemplo, um verdadeiro Mestre. A Maria uma seguidora aplicada, desde a infância desenvolvia os seus dotes mediúnicos, e acreditava que ia desencarnar ainda muito jovem, o que infelizmente aconteceu. O Bidulinha, seu irmão, não gostava de conversar sobre essas coisas; afirmava não acreditar, procurava disfarçar, mas ficava ressabiado. O Dr. Harry, pai do Patão e do Anginho, também era apaixonado por basquete e sonhava fazer dos filhos grandes jogadores. Bidulinha na volta da escola olhava admirado, através do portão de ferro, Fausto, o filho mais novo,
  • 18. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 18 treinando incontáveis arremessos numa bandeja improvisada dependurada na entrada da garagem, animado pelos estímulos do pai. Quem via ficava com dó, e as pessoas admiradas, exclamavam: - Esse vai longe. E foram. Os três se consagraram; enquanto a Patão e o Anginho jogaram em grandes times, principalmente Franca e seleção paulista, o Fausto chegou até a seleção brasileira. Mas naquela época ninguém podia saber. Por serem jovens eles viviam despreocupados com o futuro tão distante, mas o corpo em ebulição permanente exigia jogos que lhes dessem prazeres mais imediatos. A investigação sobre a bomba chefiada pelo Colin não responsabilizou ninguém. Como não houve prejuízo material, lançada pela janela ela explodiu no ar, do fatídico acontecimento sobrou apenas um sermão do prof. Altino que respondia pela Direção, feito na hora do “ouvirundum”. E virou fumaça a difusa suspeita contra várias vocações de jovens cientistas. De matemática ninguém gostava tirante os “cus-de-ferro”, de sempre. O professor Rotschield, de aspecto franzino, apesar dos óculos de lentes grossas enxergava longe, e era muito produtivo. No meio de tantas provas repletas de exercícios para corrigir– haja besteira, c.q.d.– ainda sobrava disposição para manter a contabilidade em dia: tinha sete filhos. Mas, em quantidade perdia para o “Seu” Sylvio Sacchetin que tinha nove; todos com nomes começando com W, menos a mais velha Odete, para justificar a regra: Walter, Wilter, Wisclef, Woyne, Waldecir (Quentão), Waldeluir Dublin - cadê o Loloi, foi de novo, comprar bala “chita” na venda dos Batatas? perguntava preocupada a mãe Dona Amélia -, William - Eu quero um tulinho de doce – e Winston - Manhê, hoje já é amanhã? - e apesar dos nomes era uma família italiana. Se formassem um time o Tony estaria no mato sem cachorro: Wil... Wis... Wa... Was..., gá... gá... guejante. E desesperados, sem entender bem qual a utilidade prática daquilo tudo, eles conseguiram sobreviver às equações, carroções, raiz - só mandioca - quadrada, trigonometria, log-colog; conhecimentos tão difíceis quanto aparentavam inúteis. Ainda bem que tinham dois colegas, o Paulinho e o Ilmar, infiltrados, já seguidos de perto pelo irmão mais novo o “Bibi-Fonfom” que, garoto precoce, já buzinava pedindo passagem. E le Professeur Ferdinand, continuava dizimando os curumins. Saudades da Madame - c’est la vie. Na prova final o desastre anunciado: mais da metade na 2ª época, a cultura francesa não avançava nos trópicos; os “lambeciles” continuavam resistindo. E muitos foram sacrificados - c’est la guerre. Nas matinês do cine Olímpia fazia sucesso o desenho do tourinho Ferdinando. O diálogo da vaca, mãe dele, era repetido, como vingança contra o novo Sr. La Motte, pelas desamparadas vitimas do expansionismo francês:
  • 19. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 19 - Ferdinando, meu filhinho, vá brincar com os outros tourinhos. - Não mamãe, eu prefiro ficar cheirando as flores do campo. - Maricas! Homosexuel! Então os maquis, naquele momento sem nenhuma resistência, começaram as reuniões secretas no Castelo dos Junqueiras - Si vis pacem, para bellum – como ensinava o Prof. Bianor. Para não levantar suspeitas os conciliábulos aconteciam na fria adega. O Luiz e o Astrogildo, preocupados com a saúde dos combatentes, e para evitar risco de pneumonia distribuíam doses generosas de liqueur de menta, Bols. Mas, indiferente à organização da resistência, por ignorá-la, Monsieur namorava a diretora, e desfilava com “aplomb” pela volta de fora da Praça. Avec élégance, cheio de donaires ele lembrava um aristocrata da época dos “Luíses” passeando romanticamente pelos perfumados Jardin des Tuileries às margens do Sena - “pour Feze’s river” - courageussement seguidos de perto por um grupo de batedores, chefiados pelo Woyne.
  • 20. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 20 MIKA – II A oficina mecânica onde carros eram adaptados para fins militares, virou o laboratório secreto. A pólvora foi retirada dos busca-pés, o consumo exagerado para a época, não chamou a atenção, pois voluntários compravam pequenas quantidades. E mesmo fora da das festas juninas era uma diversão muito comum durante o ano todo soltá-los amarrados no rabo dos gatos, que fugiam miando desesperados com a bunda pegando fogo. Para os mais curiosos a justificativa era que o “Curintia” vinha jogando bem e os foguetinhos ajudavam espantando os "piriquitos" para o que sapo fumasse em paz. Num tubo metálico de Rodouro - recuerdos del carnival – a pólvora foi compactada e a tampa hermeticamente vedada, ficando de fora só um pavio de pano que seria embebido em álcool – Atenção: só o pavio – na hora do Bum. Com a experiência acumulada no teste anterior, e sem economia de produtos químicos, garantiu-se o estrondoso sucesso, sem dar chabu. Monsieur, como todo francês civilizado era muito metódico, e seguia religiosamente um ritual; exatamente às 13h30m, confirmada no seu Longines, dava uma exoneradinha no banheiro dos alunos para reforçar a imagem democrática da revolução francesa: “liberté, fraternité, egalité”, e divulgar a qualidade dos perfumes que ele aspergia, “a la volonté’, olorizando o ambiente infectocontagioso. Depois de incontáveis, barulhentas e etilizadas reuniões, foi sorteado o piloto do Enola Gay que recebeu a ordem militar, como soe acontecer, curta e grossa: “Acender, atirar pelo vitraux, e recuar para a fila de entrada”. - Entendeu? Então repita mais de uma vez. Sentado no trono, sonhando ser coroado um dos Luises do Reino Tropical, ele cantava La Marseillaise para acelerar as forças intestinas e atingir o consumatum est. No verso "le jour de gloire est arrivé", o fato se deu. A explosão cujo diapasão fez lembrar o impacto do meteoro que em priscas eras foi o responsável pela extinção dos dinossauros - aqui há um pequeno exagero do narrador ao abusar desta metáfora, somente para dar ideia da intensidade do estrondo. O “baruião”, como descreveu o assustado “Seu Bicoito” para a Diretora, violou o silêncio de colégio de freiras reinante, e espantou os passarinhos que decolaram dos “fícus” desenhando no céu um ballet alucinado para desviar dos estilhaços de vidro que voavam pelo espaço sideral. O eco reverberando as ondas sonoras se espalhou pela vizinhança, atravessou a cidade, e chegou até aos descampados do Batata. Na vizinha cadeia, o Dr. Delegado - “Respeito é bom e eu gosto seu meliante safado” – que conferia o contracheque - “mas, que droga de salário!" - levou um tremendo choque - igual aos que ele, aplicava nos suspeitos que andavam tendo crises de honestidade, e teimosamente negavam concordar com os delitos que lhes imputavam, exclamou, mas ninguém ouviu, pois como sempre estava sozinho: "Imputavam...imputar - Ah! e aproveitando a rima,
  • 21. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 21 hoje tenho que dar uma batida na casa da Sra Lula de Tal, pois tenho recebido inúmeras denúncias de que uma morena, nova na cidade, que ali se encontra homiziada, vem apresentando um comportamento muito esdrúxulo, incompatível com os padrões cristãos vigentes”. Mas, voltou às preocupações corriqueiras: “que bosta de profissão, além de ter que trabalhar à noite, não recebo hora extra. Inda bem que as crises morais dos detidos são passageiras, e após algumas sessões de convencimento psicológico eles voltam ao normal e confessam tudo: até os crimes futuros". Mas, diligente, mesmo sem saber o que acontecia, gritou a pleno pulmões: - Cerquem o prédio! estão tentando libertar o Tião Cavalo, sobrinho do Nego, que foi do bando do Anníbal. Durante uma diligência, no dia anterior, ele prendera o “155”, quando o larápio tentava atravessar a Galiléia conduzindo seis árabes puros-sangues, e uma valiosa matriz com sua cria, roubados do haras do Dr. Badih Aidar. O potrinho era o presente de aniversário que o grande criador prometera ao seu sobrinho preferido, o Ivan - que saudades, habib! Sabia que ele era amigo do Homem – presenteara a D. Leonor com uma linda égua. Se tudo caminhasse como estava esperando, podia acontecer uma promoçãozinha, portanto todo cuidado era pouco. - Não deixem ninguém escapar, atirem para matar. Os guardas que jogavam truco ficaram mais assustados ainda: “O dotô tá meio esgotado, ele precisa ir mais vezes na casa da nossa benfeitora, a generosa Madame Lula, pra desafogá o ganso. Quando você tá atrasado: dá suspensão, sobe pra cabeça”. - De uma cabeça pra outra, sacaneava o cabo Altair. Na casa dos gêmeos, em frente à Pracinha, a Leontina, branca de susto, derrubou a panela de “trogonofi”, que tentava fazer– tirara a receita da revista “O Cruzeiro” - para agradar a Carmencita que andava meio tristinha porque o Moacir estava em São Paulo, e não escrevia. “Agora, vai atrasar a janta. Já passei o pano nas “amufadas” das cadeiras da varanda - os grã-finos chamam dum jeito tão engraçado: “longui-xéize”- e ainda tenho que lavá a varanda e esfregá as escadas de mármore. A dona Julieta vai ficá zangada porque o serviço tá atrasado. Ela é uma patroa tão fina, mesmo quando o Dr. Elói chega tarde, ela reclama baixinho; não dá nem para ouvir direito. Ah! Meu Deus, já é quase duas horas”. Enquanto isso, no pátio, estava um verdadeiro cu-de-boi. As meninas alvoroçadas gritavam – parecia um bando de maritacas assustadas, caçoava no dia seguinte o Floriano. A Gudu deu um berro tão alto que acordou em Colina o “Seu” Coletto, que àquela hora fazia a sesta roncando na cadeira de balanço; no rádio ele ouvia a “crônica da cidade” do Genolino Amado, na voz do Cesar Ladeira, quando adormeceu. O Zé Roberto correu pra protegê-la. A Hermelia assustada abraçou a Emilia, ambas brancas como farinha. A Anita desesperada gritava com sua indefectível voz rouca, e corria baratinada pensando nas histórias de perseguições que seus antepassados
  • 22. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 22 sofreram antes de emigrar: “Vocês vivem num país abençoado, não sabem o que é preconceito, o ódio racial” - ensinava o pai dela, enquanto espanava a poeira dos móveis da sua loja. Uma fumaça preta exalava do banheiro escurecendo tudo, aumentando a confusão e o pânico. Bicoito berrava, procurando se esconder atrás das latas de lixo. - Acóde gente! Fujam, é ataque do bando do Aníba. O Joãozinho Lamana, já meio gordinho - ele comia muita nata - amparava a prima Netinha que chorava que nem manteiga derretida. A Lenita – linda! linda! - ficou estática, fazendo pose; todos queriam socorrê-la. Monsieur, que naquele momento fazia a toilette anal, saiu do banheiro, roxo como uma beterraba da Alsacia, bradando: “Formez vous bataillon, Allez!, Allez!”. As calças arriadas pelas canelas, expondo a cueca com as cores da amada França manchada pelas imundícies tropicais: La merd c’est fait. Atrás dele o retardatário Rivoiro, meio perdido, as lentes grossas embaçadas, tossindo muito pelo efeito adstringente da fumaça, fechou a braguilha e exclamou já com a voz aveludada de futuro locutor: - Que peido. Grande peido! A pedido da diretoria o Dr. delegado chefiou as investigações - agora mais calmo com a transferência do Tião e a gratidão do Dr. Badih que prometeu recomendá-lo à Sua Excia - interrogou, pressionou e até ameaçou, mas nada conseguiu esclarecer; como sempre acontecia, felizmente, quando ele não abusava dos métodos persuasivos da C.P.F.L. Nota do Editor: O autor refere-se à Companhia Paulista de Força e Luz para fazer uma alusão a choques elétricos. O Colin prestativo mostrava a lista de chamadas, caguetava a ficha pregressa dos indisciplinados, mas a solidariedade não foi rompida, contra o inimigo estrangeiro a união nacional é indestrutível. A diretora lastimou sua pouca sorte: “Logo, no início da na minha gestão acontece isto”. E, embora triste com a humilhação do seu amado foi compreensiva, botou panos quentes - não nele, no sentido figurado – perdoando tudo e todos: - São coisas da juventude. E passou a ser mais admirada ainda, não só pelas coxas sensuais; o Woyne babava: “Parece a Cyd Charisse”. O Riva justificou, indignado, sua presença no “teatro de guerra”, abusando do latim. - Exigências da “vésica urinalis”, vocês queriam que eu mijasse de canudinho? Mas, só os iniciados sabiam que a Múmia Mykológica “rides again”.
  • 23. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 23
  • 24. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 24 SABOR GLOSTORA Para incutir a noção de patriotismo na consciência dos futuros cidadãos, além de cantar o Hino Nacional antes do início das aulas, as datas magnas da pátria eram comemoradas com civismo. No dia 7 de Setembro realizava-se a grande parada liderada pelo T.G.-32. As escolas concentravam-se bem cedinho para o início, impreterivelmente às 7horas, como ordenava o “general”, para desobediência dos civis e a continência dos recos. Os alunos: de calças de sarja azul, camisas brancas de manga comprida e as meninas com saiote azul, pregueado, meia soquete branca e blusa branca, davam um novo colorido às ruas da cidade. Os sapatos pretos bem engraxados – a engraxateria do Fuso, o jovem parafuso, agradecia tanto patriotismo -, e os cabelos bem penteados - nos com grandes remoinhos os fios rebeldes eram assentados na marra, com brilhantina ou gumex - dura lex, sed lex. Mas, mesmo bonitinhos, tanta elegância e capricho, a aparência não escondia a origem cabocla, o linguajar típico: - Manhê: engraxa minha “burtininha preu” ir na disparada. - Bépo, vá tomá banho. O Bépão, teu irmão já desocupou a tina; aproveita que a água tá morna e cheia de sabão. - Manhê! não esfrega com a bucha que eu fico com comichão; cuidado, mãe, não me entorna se não, eu "moro". A fanfarra do T.G. saia da sua sede na Rua Bernardino de Campos, em frente à casa do Bidulinha, e desfilava até ao Anitona, fazendo a alvorada pelas ruas principais do trajeto, acordando indistintamente, os patriotas e os nem tanto. E depois, comandada pelo Sargento Isauro ela abriu o desfile com suas cornetas desarmônicas. “Arranca! Arranca! O tampo da matiota! Arranca! Arranca!” Para organizar o desfile as professoras trajando roupas domingueiras suavam para manter enfileiradas as crianças rebeldes; tentavam controlar a algazarra que era piorada pelo atraso e o calor que judiava na manhã primaveril. As famílias ficavam pelas calçadas acompanhando orgulhosamente os jovens guerreiros que tentavam marchar no compasso do: “um dois, feijão com arroz, três quatro, feijão no prato”; a cadência da precoce militarização ecoava pelos paralelepípedos quentes. Com a evolução do desfile, a distância da fanfarra diluía o som que ficava inaudível para parte final, e para manter um mínimo de sincronismo as metras cantavam desesperadas: “Marcha, soldado
  • 25. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 25 Marcha, soldado Cabeça de papel Quem não marchar direito Vai preso pro quartel”. As crianças embaladas pela canção infantil batiam os pés com entusiasmo, mas o sol de setembro derretia a brilhantina que escorria feito meleca, lambuzava os lábios ressequidos, e criava uma memória gustativa/olfativa. A pátria teria para sempre o gosto de brilhantina glostora. A banda - “a furiosa” - do Maestro Delamanha – Delá tinha uma flauta, a flauta do Delá, sua mãe sempre dizia...- encerrava a comemoração em marcha lenta, seguida pelos antigos combatentes, heróis de todas as guerras, exemplos cultuados da coragem do povo. Os veteranos de 32, cada ano em menor número, exibindo suas medalhas cantavam o hino: “O Passo do Soldado”, numa fusão afetiva do “9 de julho” com o “7 de setembro”, transformados numa só data cívica: “Marcha, Soldado Paulista, Marca o teu passo na História! Deixa na terra uma pista Deixa um rastilho de glória! “ O povo com o sentimento cívico renovado, a maioria emocionada, aplaudia o desfile, enquanto os alunos sonhavam tirar os rangentes sapatos apertados, e fugir para a liberdade dos pés descalços. O verso de um poeta: “A pátria é a infância", muito citado pelo Professor Jayme e o aroma de brilhantina glostora se transformaram para o Bidulinha num paradigma; uma memória eterna que ele emocionado, evoca toda vez que vê um desfile militar, ou escuta o hino nacional.
  • 26. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 26 A CIDADE Muito universo, muito espaço sideral, mas o mundo é mesmo uma aldeia José Saramago.
  • 27. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 27 A PRAÇA As quermesses No fundo da igreja velha existiam enormes figueiras plantadas quando o primeiro jardim foi construído em volta da Casa de Deus. O professor Bianor - acusativo, dativo, nominativo, genitivo, ablativo, vocativo, locativo - afamado latinista, as chamava: de "centenárias", embora a cidade ainda não tivesse 100 anos. Como elas cresceram próximas à privada pública, talvez a sua pujança se devesse ao excesso de ureia produzido pelos recordistas tomadores de cerveja. No dia 18 de dezembro, aniversário da cidade, o culto mestre fazia pela Z.Y. um gongórico discurso citando as famílias pela ordem de chegada à cidade; era um momento solene, o mais aguardado dos festejos pelos descendentes dos pioneiros. O Bolô, seu filho mais novo, aproveitava a liberdade da ausência do pai, e gritava da sacada da mansão: “bolô, fedô, xixi, cocô”, assuntando os vizinhos com seus precoces dotes oratórios. O Sr. Abe - Ban'zai!, Ban'zai! - o mais tradicional fotografo da cidade que morava ao lado, vivia reclamando. Era embaixo dos frondosos “fícus” que as irmandades religiosas organizavam as quermesses, passando o picuá para arrecadar mundos e fundos, para a construção da nova igreja: In nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amém. Ah, as prendas: saborosos frangos recheados, tenras leitoinhas assadas nas padarias - temperadas por hábeis cozinheiras segundo receitas trazidas pelos pioneiros, originários de São Paulo, Minas e Goiás, Apetitosos bolos confeitados, garrafas de vinhos, “wiskies”, cestas com as frutas da terra; todas as prendas estavam embrulhadas com papel celofane colorido, e brilhavam aumentando o desejo. E como ficavam expostas no coreto, com cartões que identificavam os nomes dos doadores, as famílias para não passarem vergonha ofereciam o mais caro, ou o mais enfeitado. Na hora do arremate, o leiloeiro esperto, explorava a vaidade dos ricos e dos metidos à - a grande maioria. Era um piedoso “filho de Maria”, embora sua mãe se chamasse Marta. O padre que reinava sobre todos aqueles pecadores, conhecendo do seu rebanho as muitas fraquezas e as poucas virtudes - o confessionário era uma fonte inesgotável de poder - sentava-se à mesa das autoridades, não precisando vencer o “jogo da junta” para escolher o melhor pedaço do frango. Com os olhos brilhando, mais que os dedos untados de gordura, ele tentava arrancar mais uma asinha que teimava em permanecer ligada ao corpo inerte da prenda gentilmente arrematada pelo Dr. Paiva Luz. Desatento aos gestos messiânicos do padre que oferecia indulgências ao pecado da gula, e absolvia os perdulários que arrematavam as prendas mais caras, o Plínio, ansioso, tentava enxergar a Rosali no meio de um grupo de barulhentas adolescentes.
  • 28. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 28 O pai do “Zé Gambeta”, o generoso Sr. Jesus, que nunca decepcionava a sua Igreja, arrematou um cacho de bananas por: “uma fortuna, registrou a Diva; na sua nova coluna: Mundanismo”. No começo, as quermesses ficavam restritas às festas juninas, principalmente São João, padroeiro da cidade, mas como as obras sociais exigiam cada vez mais dinheiro– o padre estava precisando de um carro para levar a palavra do Senhor, mais rapidamente, aos lares cristãos – elas passaram a acontecer também nos dias de outros santos. A Providência Divina tinha um grande estoque de aniversariantes. - Isso é uma exploração. A religião é o ópio do povo pregava num “comício” relâmpago o Sr. Brito. A Walkyria que não tinha compromisso com a ideologia exótica do pai gostava destas festas, para tristeza do único marxista da cidade. - E ainda pôr cima, minha filha é uma burguesa. Sem se importar com a dialética paterna, vestindo um vestido novo, perfumada com “Cashmere Bouquet”, ela retocava o batom e saia correndo para encontrar o Toddy; por quem suspirava naquelas noites quentes. - Comunista, ateu, antiCristo, trucava Sua Reverendíssima no sermão de domingo apontando o dedo inquisidor, respingando água-benta, para uma casa nas vizinhanças da Igreja – não conseguira tirar uma pelinha do delicioso franguinho que penetrara embaixo da unha – em frente ao castelo da Dona América, onde o príncipe Niko distribuía para os famintos, bandejas de docinhos, arrancando elogios do santificado pastor. - Que vocação franciscana, enquanto o vizinho é um quinta-coluna a serviço de Moscou, e da legião de demônios. Perdão Senhor! mas tenho saudade dos tempos do Benfeitor Torquemada, suspirava, aspergindo água- benta “Urbe et Orbe “; a pelinha de frango ainda incomodando. - Cordeiro de Deus tirai os pecados... Embora o sabor das cocadinhas crocantes da Confeitaria Central ficasse para sempre no imaginário do Bidulinha, elas já não adoçavam os encontros das primeiras libações alcoólicas. Quando eles, alheios às querelas filo- religiosos, iniciaram o aprendizado de coisas proibidas; em busca do Santo Graal trocavam o adocicado guaraná Serrano pela amarga Poquer – paga uma, bem? Nas mesas dos pais abonados, os engordurados pratos de papelão cheios de ossos misturados a restos de farofa lembrava a limpeza de uma estrebaria, onde relinchava um tentador “cavalinho branco”; os mais sedentos montavam apressados e davam uns galopinhos pelas trilhas entre as pedras geladas. Mas era com quentão que eles se protegiam dos perigos das nevascas; arrotando gengibre, mostravam-se imunes à advertência dos mais velhos: - Devagar, isso trepa.
  • 29. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 29 Mas o que cativava nas quermesses eram os correios-elegantes, a chance dos tímidos, a esperança de no anonimato conquistá-las com o brilho da própria inteligência. Carregando: trovas, versinhos, alguns da própria verve - arco ou tarco? Vérva! - os correios cruzavam os ares aterrissando no colo da morena de blusa verde, da loirinha de cabelos cacheados. Imaginação à solta, escapulindo da timidez, tentava-se atrair um fugidio interesse da ninfa de olhos rútilos – o professor Jayme, se exultaria com os adjetivos. - Bidulinha, chega de quentão; você tá mais vermelho que a camisa do “Alfandéga”. Mumú, um pouco mais caolho de tanto galopar, cansado de lançar em vão, “o olhar 22”; o mais apaixonado que existia, igual o do Tyrone Power para a Ava Gardner em “Sangue e Areia”, e, como a vítima da sua paixão nem dava “tchum”, resolveu acelerar o enleio - ou caga ou desocupa a moita - caprichando na trova, fruto da sua costumeira e apaixonada inspiração: Desencontro “Vem-te a mim Que eu vou-te a ti Vêm aqui Que eu vou aí”. Mumú Ele não sensibilizou a sua amada que continuou impassível olhando pros lados, mas virou um novo herói. Efêmero, como tudo naquela idade.
  • 30. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 30 UMA RUA CHAMADA SAUDADE A rua em que morava o Bidulinha atravessava a cidade. Ela começava na “Maquina de Arroz dos Risatis”, cruzava a Rua Síria, passava em frente à biblioteca, margeava a Praça da Matriz, transpunha o “Ribeirão Olhos D’água” na altura do Brejinho, e terminava na entrada principal da cidade. Como na cidade fazia muito calor, principalmente no verão, aos dias de sol abrasador seguiam-se noites muito abafadas. O ar ficava parado, sem o sopro de uma misera aragem, que nascida às margens plácidas dos seus rios aliviasse a sensação de opressão; um silêncio de preguiça só quebrado pelo zumbido dos pernilongos que dominava tudo. Como ar condicionado só existia em filme americano e ventilador era mais raro que geladeira, as famílias tomavam a fresca, nas calçadas: em cadeiras de descanso, de cano galvanizado e assentos de plástico trançado. Os vizinhos passavam: “banoite, banoite”, parando para a prosa previsível, corriqueira, imutável. - Que calor, né? - Precisa chover. A lavoura tá sofrendo - Vamos entrar, pra dentro? - Aqui fora, tá mais fresco. - Toma um cafezinho? - Não se incomode. - Incomodo nenhum - e o hospitaleiro árabe, pai do Bidulinha, gritava para a patroa: Jeroma! Jeroma! E lá vinha ela, contrariada, resmungando baixinho, as xícaras sem pires na bandeja de flanders; a garrafa térmica – um luxo - na mão direita, e colocava tudo, antes de servir, no assento da cadeira de madeira marrom. Era uma rotina que ela cumpria, desconsolada com a mania que ele tinha de oferecer café para quem passasse. Ainda mais agora, na hora do capítulo de “Marcelino, pan y vino”; depois não ia entender a continuação da história. Conformava-se: “mulher de muçulmano nasceu para servir; não era assim que vivia falando o cunhado Emigdio?”. O “Seu Calvo”, pai do Geninho e da Conceição, saudoso do inverno da sua amada España –Arriba! – de frente à sua casa, na esquina da Rua Síria com a Bernardino de Campos, contribuía para a comunhão das raças. -“Caliente, mui caliente”. Nela a paz parecia eterna, e só era quebrada quando o espoleteado João Louco surgia numa corrida desenfreada, açoitando a pobre égua cuja ferradura tirava faísca dos paralelepípedos. Ele recolhia lavagem das casas, num carrinho com rodas de pneu, para a criação de porcos do Teixeirão, pai do Teixeirinha; à noite já encharcado pelas cachaças que nas vendas as pessoas generosas lhe ofereciam, ele perdia o tino e ria da zoeira que fazia. Na sua
  • 31. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 31 tresloucada pressa esparramava os restos de comida pelas ruas por onde passava. Parava em frente à casa do Bidulimha, e pedia, transtornado, aos gritos: - Madrinha, tô com fome; quero comê! Servido, num prato de alumínio - que era guardado separado, vai que pega - ele cambaleante, sentava-se no meio fio, e engolia com grandes colheradas as sobras da janta; os restos de comida escorriam pela sua boca, manchando a camisa encardida. As “cavarianis” numa incontida curiosidade corriam para o portão da casa que ainda continuava em reforma, assustadas com a barulhenta insanidade. Da janela da pensão da Dona Tuta, o Bambuí olhava, num misto de desejo e admiração, as elegantes italianinhas. Mas, elas iludidas pelos sonhos adolescentes sequer reparavam no mineirinho tímido, de olhar tão apaixonado. O domingo preferido do Bidulinha era quando tinha jogo no Tereza Breda, Ele ia para o campo junto com o craque, carregava a chuteira dele embrulhada num jornal, e entrava de graça pelo vestiário. Durante o percurso o centroavante confidenciava que sonhava marcar um gol que além de salvar o alviceleste do risco de rebaixamento, o ajudaria a ganhar o cobiçado prêmio: um par de chuteiras oferta da “Fábrica de Calçados São José” do grande esportista Nenê Fonseca. Os Irmãos Parisi, sisudos como fidalgos ingleses, abriam a janela resmungando censuras e voltavam à costumeira discrição monástica; enquanto a dona Umbelina fechava a janela de madeira voltando para suas panelas mantidas quentes em cima da chapa do fogão aguardando que o seu filho Adão chegasse do trabalho. - É um bom filho, trabalhador, que tem sido o arrimo da minha viuvez. Quando, à noite ele chegava muito cansado, a roupa manchada de cal, as unhas encardidas de tinta, ela lhe dava muito leite, para que não ficasse “intochicado”. Quase na esquina de baixo, a “brima”, viúva que recém emigrara do Líbano - ela tinha um sorriso tão triste: “ana hazin ktir - eu estou muito triste”; assustada olhava pela janela; seu filho, o jovem Rabi que incomodado aparecia no alpendre e sem entender bem o que estava acontecendo chingava em árabe: “maj-nún – louco”. Após dormir, emborcado em frente ao portão de ferro, babando, roncando como um porco, o João, ainda zonzo, levantava cambaleante. E só depois de engolir meio na marra uma caneca de café amargo parecia acalmar, e retomava o caminho da roça onde os porcos o aguardavam esfomeados. Os restos de comida fermentados nos latões pelo calor do dia exalavam um cheiro forte anunciando sua chegada, e os capados grunhiam de satisfação. Muitos se condoíam vê-lo tão moço já perdido nas garras do vício. Davam conselhos, faziam promessas, levavam para benzer, tomar passes; nas
  • 32. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 32 sessões espíritas trabalhos eram feitos para afastar os encostos, as almas penadas que o perturbavam. Colocavam escondido na comida remédio para “parar-de-beber” que o fazia passar mal, com vômitos e diarreia; chegaram até a apelar para feitiçaria, das brabas. E nada. Mas um dia pela conjunção das boas intenções, e melhores vibrações, além dos esporros que ele vivia levando, o milagre se fez. Virou abstêmio, aparecia para visitar as madrinhas: quieto, falando baixo, envergonhado; logo trouxe sua companheira, a Sueli, uma mulata miudinha que esperava seu primeiro filho, pedindo encarecidamente, quando ele nascesse, que o aceitassem como afilhado. - Êh, João! até que enfim você criou juízo, que Deus te mantenha nos bons caminhos. E a vida escoava devagar, tediosa e exasperante para aqueles apressados sonhadores, numa sazonalidade imposta pela natureza, a mesma que fazia a parreira da casa do Vavá e do Tula, vizinhos do Bidulinha, produzir no mês de dezembro safras generosas. O cheiro dos cachos adocicados que se esparramavam por cima do muro que separava as duas casas, enchia de nostalgia o desterrado beduíno, atavicamente saudoso dos aromas das uvas maduras, plantadas nas encostas das montanhas da Síria. Tudo seguia uma rotina que parecia imutável, mas que às vezes era alterada por algum drama familiar, como no dia em que o Nenê quase morreu, ao cair da mangueira no fundo do quintal da casa do “Seu” Lourenço Cavariani, que estava ainda em construção. “Ele voou pra ponta do galho em busca da manga mais madura, e espatifou-se no chão – exclamava o Bidulinha apavorado”. Foi uma tristeza da qual, felizmente, ele escapou, depois de muitos dias internado na Santa Casa, e que a passagem do tempo fez esquecer. Na simplicidade das coisas, tudo parecia eterno: as pessoas, as vozes, os sons, e os sonhos. Para os velhos o tempo tinha outra dimensão: o peso do que já não sonhavam, só esperavam. Na praça do velho Rui em frente à entrada principal da Igreja existia alguns bancos, onde todas as manhãs eles se reuniam para prosear, protegidos do sol forte por chapéus de feltro Ramenzoni, embora muitos preferissem os da marca Prada. Era um hábito sagrado, como descreveu o escritor João Guimarães Rosa: “os velhos sentados nos bancos da praça, velhando, conforme”. Ali ruminavam suas histórias, falavam dos tempos idos, das safras, da carestia, e da desesperança. Reclamavam dos filhos que tinham ido embora em busca de uma vida melhor, menos sacrificada. - Ah, por que eles não escrevem? - estou abandonado neste mundo, cada vez mais triste. Eles não sabem como dói viver esquecido. Quando o relógio da Matriz batia 11 horas, despediam-se, caminhando circunspectos em busca da rotina protetora das casas. Alguns, já tinham os passos trôpegos; o sol a pino parecia fundir: corpo e sombra, vida e morte.
  • 33. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 33
  • 34. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 34 A BIBLIOTECA, NA ESQUINA Além dos filmes, os programas de rádios, e as raras revistas, foram, principalmente, os livros que alimentaram os sonhos, e ajudaram a expandir os limites daquelas vidas acanhadas. Os gibis, comprados na Banca do Orlando, que antes eram muito disputados: vendidos, trocados, emprestados e não devolvidos, já não tinham o mesmo encanto, abandonados no fundo das gavetas. Na esquina, um quarteirão acima da Praça, perto da casa da Rosali, ficava a Biblioteca Pública, frequentada no início, somente para as tarefas escolares, sempre realizadas num burburinho que desafiava o silêncio cheio de respeito da pequena sala repleta de mesas envernizadas. Mas com a frequência, aos poucos o sisudo universo cheirando a mofo foi-se transformando, e o receio substituído por uma sensação de confortável familiaridade. Um cartão nominal controlava o empréstimo dos livros, com direito a renovação do prazo. No fim do ano quem tivesse lido mais – retirado - era elogiado publicamente. Envaidecia ouvir a bibliotecária proclamar o mérito conseguido pelo jovem estudante. - Nossa! Você anda lendo bastante, vai virar uma pessoa muito inteligente. Olhando para os lados ele saboreava o reconhecimento, com a modéstia dos sábios. O livro mais disputado, lido com a emoção das revelações proibidas, era “A carne” do Júlio Ribeiro; as páginas libidinosas que excitavam os onanistas incansáveis foram para muitos o início de uma solitária e fecunda carreira. Para ludibriar a censura, os “de maior” retiravam a já ensebada obra, justificando a procura: - É para tarefa, o professor Jayme pensa que o Júlio, é o novo Camões. Com os livros uma nova compreensão do mundo foi surgindo; aventurando-se com os novos heróis por geografias inóspitas eles transcenderam os limites da pequena cidade; conduzidos pelo talento dos escritores começaram a compreender as dimensões da alma humana: suas paixões, heroísmos, e covardias. Novas palavras, frases, versos, ou nomes exóticos, enriqueciam a linguagem, estimulando um precoce pedantismo exibicionista que entediava quem ouvia. Ao lado dos “Três Mosqueteiros” eles defenderam a Rainha, invejando o D’Artagnan por suas aventuras galantes; atravessaram com o Jack London, do
  • 35. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 35 Alaska até o Wild, guiados pelo Buk, à procura do lobo “Caninos Brancos”. Fugiram dos piratas de Long John Silver, e chegaram à Ilha do Tesouro onde Robert Louis Stevenson refletia sobre os conflitos da alma humana, a eterna luta entre o bem e o mal, simbolizada nos imortais: Dr. Jekill e Mr. Hyde. Navegando pelo Rio Mississipi ouviram o Tom Sawyer ensinar suas espertezas para a Becky e o Sharp, enquanto, no outro lado do mundo, os Irmãos Corsos, sofriam as dores da fraternidade – Será que os nossos gêmeos têm o mesmo destino: o Zé Roberto leva um peteleco, e o Zé Otávio chora? Clamaram por justiça, condoídos com a solidão do Conde de Monte- Cristo, enquanto seus perseguidores dançavam minueto na Corte; observados por Stendall que registrava a triste história de Julien Sorel, sacrificado às intrigas do amor e da paixão. Solidários, eles esconderam o Jean Valjean da obstinada perseguição do Inspetor Javert pelo crime de ter roubado um mísero pão; admirados com a impunidade dos “capitães da areia” que comandados pelo Pedro Bala viviam pelas praias fustigadas pelo vento, descabaçando as neguinhas. Ao lado do otimista Cândido aprenderam com o Arsene Lupin os truques para disfarçar a identidade, mudando de comportamento. Mas foi com Júlio Verne, que eles fugiram da vida monótona, da triste realidade onde nada acontecia: chegaram até o fundo da terra com o geólogo Otto Lidenbrock e seu sobrinho Axel; ao fundo do mar com o Capitão Nemo, percorrendo com o Nautilus as “Vinte Mil Léguas Submarinas”; num balão mágico, com Phileas Fogg e seu criado Passepartout deram a volta ao mundo, vendo o sonho humano de voar se aproximar das estrelas. E os gênios literários conduziram a curiosidade adolescente pelos caminhos da imaginação, revelando a amplitude sem limites da criação humana, propiciando a construção da saga de uma paixão eterna. Mas a frustração, provocada pelas proibições dos preconceitos que vigiam, aumentava ao saberem que lá fora, na “Necrópole do Teixeirinha”, existia liberdade para viver; estava o sonhado paraíso perdido, a resposta para todas as dúvidas. As raras e fugazes experiências sensoriais encontradas nas cada vez mais frequentes idas às cidades maiores provocavam no retorno, pelo ilusório das expectativas, mais decepções ainda. As atitudes rebeldes, as agressões aos valores vigentes, o descontentamento com a rotina, não eram suficientes para diminuir o desalento em que viviam. A crise da idade, as pressões biológicas e hormonais usadas como justificativas para todas as loucuras, não respondiam mais às indagações mal compreendidas; buscava-se uma explicação existencial, algo que desse um pouco de grandeza à vida. Os conceitos existencialistas chegaram de mansinho nas conversas de fim de noite, nos comentários pretensiosos dos mais velhos que se julgavam mais intelectualizados, ou na leitura em voz alta de disputados recortes de revistas.
  • 36. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 36 Mas foram os filmes da nouvelle-vague que transformaram para sempre as mentes sequiosas por novidades; quaisquer novidades. Embora a compreensão não fosse total, eles aprenderam: que cada um era responsável pelo seu destino; que a angústia e o desencanto não dependiam da fatalidade de ter nascido na roça, mas eram consequência do direito de escolher; já que estamos todos condenados à própria liberdade de decidir. Ninguém era passivo efeito de interações inatas, mas sim agentes na construção da sua própria história. E uma nova maneira de viver foi se esboçando: um falso e esnobe desinteresse pelas coisas materiais – “ser, e não ter” - o informalismo refletido no jeito de vestir, um certo ar blasé, o desleixo virando moda; os cabelos grandes caindo pelos ombros, as novas verdades: a igualdade entre os sexos, o amor livre - “com as irmãs dos outros; a minha é família; Graças a Deus” - garantia, o sartriano Teixeiran”. E a grande simplificação tentando justificar tudo: “isso é coisa de burguês”. A revolução já tinha começado, as famílias eram dispensáveis, eles estavam começando a crescer. As meninas mais reprimidas fingiam imitar os meninos, encantadas com as novas possibilidades: “Amor livre, nunca! Minha mãe me mata!”. Quando Sartre chegou, depois de enfrentar um furacão sobre Cuba, trazendo as novas bíblias: “A Idade da Razão”, e “A Náusea”, eles já estavam prontos para o novo apostolado; uma consciência crítica se esboçando, ainda que pela ironia. Aos poucos uma mistura caótica de hinos revolucionários mal aprendidos esboçava as futuras opções ideológicas. E pelas ruas um novo canto tentava ridicularizar os símbolos religiosos, numa demonstração de insatisfação que impressionava os desinformados. “Avanti o popolo alla riscossa Bandiera rossa, bandiera rossa Bandiera rossa trionferà E viva el socialismo e la libertá. A mezza notte, celo strellato Il Santo Papa Sara’ nforcato. Bandiera rossa, colore di vino Viva Stalino! Viva Stalino!” Copiado do livro “A idade da razão”, o diálogo do personagem Mathieu com Marcelle, virou um novo padre-nosso, lido e relido. As meninas quase entravam em orgasmo com tanta cultura. "Tamém” vivem num atraso brabo” - comentava o Mumu, que sabia das coisas, já que cada vez enxergava mais longe. “Mathieu:
  • 37. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 37 - Isso de me conhecer não me interessa tanto assim – disse simplesmente. - Eu sei – atalhou Marcelle – não é um fim, é um meio. É para libertar-se a si próprio; olhar-se, julgar-se, sua atitude predileta. Quando você se olha, imagina que não é o que está olhando, que não é nada. No fundo, é o seu ideal: não ser nada. - Não ser nada – repetiu lentamente Mathieu. Não. Não é isso. Escute: eu...eu gostaria de nada dever se não a mim mesmo. - Sim. Ser livre. Totalmente livre. É seu vício. - Não é um vício – disse Mathieu – É ... Mas que quer você que a gente faça, então? Estava irritado. Tudo isso, ele o explicara com a Marcelle e ela sabia que era o que mais lhe importava. - Se...se eu não tentasse viver por conta própria, existir me parecia absurdo...O dia estava acabado e acabava sua mocidade. - Não tem dúvida, não tem dúvida, estou na idade da razão”. A “oração”, sebosa pelo excessivo manuseio, acabou esquecida numa mesa da Taba. O Sousa que vivia curioso pela importância que aqueles jovens desocupados davam para aquilo, leu com muita dificuldade, concluindo antes de arremessá-la na lata de lixo: - Esse Mateus é “viado”. Com o tempo, e a influência de outras leituras, aquelas certezas absolutas começaram a ser questionadas; a linguagem empolada, cheia de plumas e paetês dos pedantes franceses foi sendo substituída pelo pragmatismo da “Norte-America”, como diziam os Titios (Habibs!). Dale Carnegie em “Como fazer amigos e influenciar pessoas”, com objetividade mostrava às formulas para vencer na vida; ensinava o novo mestre: “aquele que conseguir isto, terá todo o mundo a seu lado. Aquele que não o conseguir, trilhará um caminho errado”. Outro consagrado autor Norman Vincent Peale tentava convencê-los do poder do pensamento positivo: "Querer é poder", mas eles queriam tantas coisas que não podia haver poder para tanto. As seleções do Reader’s Digest, lidas e colecionadas, falavam das benesses do capitalismo. E o Bidulinha nunca mais teve certeza de nada; aprendeu a viver na dúvida, na dialética do contraditório; anos depois quando começou a estudar os mistérios da mente aprendeu que: “só os delirantes têm verdades absolutas”. OS BARES A Praça da Matriz era dividida por uma rua que dava acesso às escadarias da Igreja; ali, à sombra dos centenários “fícus” (mas, eu vou), no ponto de carros de praça, o “Seu” Hipólito com sua ximbica tocada à
  • 38. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 38 manivela, que alguns invejosos chamavam de “pé-de-bode”, resistia bravamente à concorrência dos potentes carros novos. A igreja, bela na simplicidade do seu estilo - lembrava um cartão-postal das bucólicas pracinhas das cidades do interior – ficava na parte de cima da praça, cercada por renques de palmeiras imperiais; um cenário idílico que fazia o Dr. Bruno afirmar enfático: "parece um rosário da natureza abraçando a Casa de Deus", envergonhando a sua filha, Maria Emília, moça recatada que não gostava dos arroubos literários do pai. Mas, ela acabou demolida para o avanço espalhafatoso da nova Matriz, com as justificativas papagueadas pelos carolas. - A outra ficou muito pequena; a cidade cresceu, o rebanho aumentou. Como Sua Eminência não fizera nenhuma homilia em defesa da flora, muitos fícus e palmeiras foram sacrificados, e a ostentação modernosa esparramou-se pela praça. O Mumu ficou muito sentido quando derrubaram as figueiras, centenárias testemunhas das suas trovas de amor. - Papa-hóstias predadores! Será que Ele engordou? Não cabe mais no "viejo" templo resmungava o Dr. Sapo com a convicção anarquista exacerbada pelo terceiro copo de sangria. A nova igreja parece um peru servido num pires - exagerava, degustando o sétimo copo. Na parte de baixo da praça, à direita de quem descia, ficava o bar “A Seleta”, e no fundo da praça o Pinguim, ao lado da casa do Dr Neves. Eram os pontos de encontro mais frequentados da cidade, até a inauguração da Taba. Na Seleta, o Mitsuo, nissei com cara de lua, servia generosas porções de sorvete em grandes e lapidadas taças de vidro. Era o local preferido pelos casais que podiam namorar no reservado protegidos da curiosidade alheia. Nas horas de pouco movimento ele fazia massagens no pescoço de alguns privilegiados; o Gegê era chegadinho, e comentava agradecido: - Ah! que mãos hábeis. Eu fico com dor no pescoço de tanto estudar piano. O vizinho de cima era um salão de sinuca onde o Turcão - o melhor taco da cidade– se exibia à espera de algum incauto. Os “de menor” só podiam olhar, embora o ar carregado de fumaça provocasse surpreendente envelhecimento precoce. Um olho na bola sete e outro no Osvaldinho – “Sr Osvaldo, olha o respeito à autoridade!” - o vigilante inspetor de menores, guardião da moral e dos bons costumes. No vizinho de baixo fazia-se o melhor sorvete: picolés de tamarindo, milho verde, coco queimado; mas inigualáveis eram as casquinhas de creme, ou de coco branco, com cobertura de doce de leite que ao contato com a superfície gelada cristalizava-se formando uma coroa crocante. As meninas, ávidas, lambiam os picolés, o friozinho provocando arrepios nas almas inocentes. O sabor compôs uma memória que embora nunca esquecida, jamais foi reencontrada. Na Rua Síria ficava o “Ganha Pouco” - mas bebe-se muito - com uma cancha de bocha onde a italianada se reunia para jogar e falar do “Parmera”.
  • 39. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 39 O Cebola que morava ali perto, no fim da Rua Síria que terminava no cemitério, um dia endoidou, e saiu gritando palavras sem nexo, rasgando a própria roupa. Passou a noite detido na cadeia e depois sumiu, por um bom tempo. As pessoas diziam que ele tinha ido pro Juqueri. Daí pra frente quando se discordava de um comportamento diferente, “meio louco”, exclamava-se: "tá loco, cebola". Ao lado morava com a sua tia Linda Abdalla, o Edison Corrêa, amigo dileto do Budulinha. Na parte de cima da cidade eles viveram grandes aventuras explorando os imensos arredores numa comunhão fraterna, livres como os sonhos da infância. Mas um dia ele foi embora, restando uma grande tristeza que só o desejo de também ir, de um dia pegar o trem, amenizou. Durante um bom tempo o Turquinho caminhou jururu por aquelas já envelhecidas paisagens; sentimento que, como tudo naquela época, logo evaporou-se na passagem veloz do tempo. Mas era no Pinguim que a vida social fluía, as artimanhas políticas e financeiras aconteciam. Tinha um variado estoque de whiskys, vinhos e cervejas de várias marcas. Ali, eram habitues os homens do Mando, a maioria bons de copo. Figuras distintas seguiam o ditado: “alcoólatras sempre, anônimos nunca”. E assim eles foram chegando devagarzinho, vendo as preferências, imitando os estilos; sempre atentos às histórias, verdadeiras ou não; o importante era o convívio, serem aceitos, estabelecer uma camaradagem. Aos poucos, os segredos escapavam, tomava-se conhecimento para além das aparências, o lado avesso da cidade. Sabia-se de tudo. Com a idade facilitava as bravatas, exibia-se o temerário orgulho de ser forte, capaz de agüentar varias doses de destilados, acompanhar o ritmo dos mais velhos. - Outro sanduíche? preocupava-se o Dr. Ernani com a fome do filho mais novo, o Caco, que mastigava o segundo, pensando no terceiro. Era o preço da companhia filial, enquanto o pai tomava o seu “wiskinho” diluído com clube soda. - Pai, tá na hora! vamos que a mãe, o “Sargento” como você diz, vai ficar brava. - Espera, ainda é cedo. - Ela vai ficar brava. - Vamos combinar uma coisa, quando chegar em casa vamos fazer uma surpresa; eu entro no banheiro e faço muito barulho para acordá-la, enquanto você esconde o chinelo dela. Quando ela levantar para dar a tradicional bronca vai pisar no chão frio, e por ser alérgica vai começar a espirrar, e assim para de reclamar. O Caco sorria com a sacanagem planejada e pedia outro sanduíche, como adiantamento. Quem ouvia invejava aquele relacionamento, a cumplicidade de pai e filho como velhos camaradas.
  • 40. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 40 Os companheiros de sempre: João Santana, Lamartine e o Vietinho, placidamente, sorriam, e pediam um reforço: - Derruba, mais um chorinho.
  • 41. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 41 O FOOTING No centro da praça batizada com seu nome, de cima de um pedestal de granito o majestático sábio baiano - que entre outros grandes feitos virara o orgulho da raça ao ensinar inglês para a Rainha Vitória - lançava através do pincenê seu olhar de águia para a porta da matriz, justificando o provérbio: “um olho no padre, outro na missa”. Em volta do homenageado ficava a “roda do meio” onde as gerações desfilavam. Era ali onde tudo começava. A cronista social ao falar dos jovens nubentes, registrava para a posteridade: “foi no footing que eles trocaram os primeiros olhares, onde o amor nasceu e floresceu”. As moças elegantes, com seus melhores vestidos giravam num sentido e os homens no outro. Muitos formavam rodinhas, parados embaixo das árvores, numa algazarra contida, falando alto, bulindo com as garotas, lançando galanteios espirituosos para chamar a atenção das escolhidas; uma preferência que durou até os “fícus” serem contaminadas pela praga dos “lacerdinhas” que atacavam, irritando os olhos. O grande momento era o encontro dos olhares, os sinais quase imperceptíveis cheios de intenções ocultas; gestos sutis, piscadelas que reforçadas pela repetição denunciavam a esperança de serem correspondidos. Já os casais enamorados procuravam lugares mais discretos, os bancos mais afastados evitando a molecada que “segurava a vela”, ou perturbavam com ruidosos miaus nos disputados “gatas-pariu”; os mais ousados para evitar a curiosidade constrangedora das fofoqueiras caminhavam “de bonde” pelos passeios geométricos que ligavam a calçada externa, menos iluminada, ao círculo central. A rádio Z.Y. transmitia o seu mais popular programa “Boa noite meu amor” o preferido das almas apaixonadas, por 4 alto-falantes acopladas em forma de X no alto dum poste no centro da Praça; o som estridente, cheio de microfonias agredia as orelhas do homenageado que suportava com estoicismo e sábia paciência as agruras das preferencias musicais. As músicas escolhidas pelos ouvintes - com o auxilio da telefonista que sabia de tudo - eram dedicadas aos amores ocultos, na voz melodiosa do locutor poliglota que caprichava no sotaque: “el dia que me quierras; Ai-canote-estopi-lovíngui-iú; onliú; mai-prai; esmoguete-in-ióór-ais”. Entre as canções ele recitava trovas românticas de J.G. de Araújo Jorge, lidas de um ensebado exemplar do “Os mais belos poemas que o amor inspirou”. “De mãos dadas com as lembranças, Com o mar, com a noite, com a lua, Faço versos, como as crianças Fazem ciranda na rua (...)”
  • 42. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 42 Mesmo sendo a única emissora da cidade ele repetia o bordão: “a maior pequena emissora do Vale, falando para a cidade e sussurrando para os arredores”. Com o fundo musical de uma orquestra húngara, ao som de violinos ciganos, a Voz caprichava: “Boa Nooite meu Aaamor” é um patrocínio da Casa Vitória, que vende tecidos tão bons quanto as Casa Pernambucanas, e tão baratos quanto a Loja das Fábricas”. O Passareli era o sonoplasta; com movimentos sincronizados abria ou fechava o microfone do locutor atento aos gestos dele através do isolamento de vidro do improvisado estúdio. Ao sinal de negativo ele abaixava uma alavanca ao lado da porta abrindo o microfone para a vitrola, e punha para tocar as músicas previamente selecionadas. Neste momento A Voz aproveitava para esticar as pernas, beber água, fazer gargarejos com água morna e sal - receita do farmacêutico Walter Mazzoti - e fumar um Mistura Fina, sem filtro. Como de hábito enquanto fazia comentários que nada tinham a ver com o programa soltava uns peidinhos, justificando-se: - Sabe como é, muito tempo sentado. Vou acabar sofrendo de hemorroidas. O Passa pensava, mas não falava: “Esse tá podre, comeu papo de urubu”. No fim da música, ao sinal de positivo a alavanca era empurrada para a posição anterior, e ele voltava enfático: “Leve-as! Não quero ver essas fotografias Que falam de nós dois, que contam nossa história. Minhas saudades são mais lindas na memória”. Sempre se comovia ao recitar o poema “Estereoscópio de Paul Geraldy”: "Quantas saudades. Ah! esquece coração, esquece." E agora ouviremos: "El dia que me quieras ..., dedicado à bela Djalva”, e com o sinal negativo, o Passa liberava o Carlos Gardel, que inundava a praça com seu sotaque portenho: “El dia que me quieras La rosa se engalana Se vestirá de fiesta Com su mejor color (...)”. Ela envaidecida, sorria ¿Quien será ?
  • 43. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 43 E continuava, caprichando na pronúncia, o romântico comunicador: “E agora o Mucio oferece para sua musa inspiradora que despetela – será que este verbo existe? Dúvida do locutor e do narrador - a margarida: bem me quer?, mal me quer?, embaixo da frondosa figueira: “Lovi-is–a-meni–esplendoréde– fingué” com Franki Sinaltra”, e a curriola ria da aprontada. Ele sempre terminava recitando Manuel Bandeira: “Meu verso é sangue. Volúpia ardente ... Tristeza esparsa...remorso vão ... Dói-me nas veias. Amargo e quente, Cai, gota a gota, do coração”. Por ser muito alto o criativo auxiliar de sonoplasta ficava sentado num banquinho ao lado da prateleira de discos, e preferia usar as longas pernas para manobrar a alavanca. Não errava nunca, os movimentos sempre bem coordenados. Mas um dia o Passa...errou a pernada e o locutor Rony achando que o microfone estivesse fechado, ordenou alto e bom som, naquela sedutora voz empostada: - Passa, põe um L.P., que eu vou dar uma grande cagada. Foi um escândalo; o indigitado sonoplasta sentindo a cagada que fizera saiu de mansinho, perseguido pelo possesso locutor que ao não conseguir alcançá-lo - era manco - ficou na porta amaldiçoando o irresponsável. O Passa jurou que abandonaria a promissora carreira; decisão que felizmente não durou muito, como quase todas as daquela época. O "Boa noite meu amor", ficou fora do ar, suspenso por duas semanas. Como sempre a futrica não perdoou, o exagerado poeta das ondas hertzianas: - Cagão, precisa de um disco inteiro
  • 44. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 44 OS LONGES DO BATATA Nos limites da cidade, ao lado da Santa Casa, em frente ao Abrigo São José, ficava o celeiro de craques como enfatizava Tony, o mais jovem locutor da Z.Y.; o Sr. G. ainda não entrara como sócio. O campo na parte mais plana do pasto que continuava num suave declive ficava ao lado da “curralama”, onde o “Seu” Álvaro – Arvro, como diziam os seus colonos – prendia o gado que subia pela estrada boiadeira. Naquela passarela gramada desfilavam placidamente mansas eguinhas, boas de barranco; parceiras dos primeiros jogos eróticos de alguns concupiscentes atletas. No fundo do vale serpenteava o “córguinho” do matadouro, que nos dias de abate de reses ficava cheio de pacueras; a água ensanguentada exalava um cheiro forte de carniça atraindo os urubus que dos moirões voavam ávidos para o grande festim. Por aquelas águas encarpeladas jangadas de bananeiras levaram intrépidos navegadores que enfrentando os perigos dos bancos de areia movediça tentavam alcançar a foz do “Feze’s river”. Na parte mais alta, do outro lado do córrego, ficava a “Estação da Força e Luz”, onde trabalhava o “Seu” Tidinho que nos últimos dias andava cismado, remoendo uma grande preocupação: “Preciso comprar um liquidificador na Casa Atlas; a patroa vive repetindo: o Dr. Jorge da Santa Casa mandou dar muita vitamina de frutas pros meninos: o Gessê e o Gerson, que andam muito mirradinhos”. O problema é o preço: “uma fortuna pra quem ganha tão pouco". Há muitos anos trabalhava na companhia, ganhava pouco, mas era bem tratado. Só não gostava quando faziam troça dela; parece que o responsabilizavam pela constante falta de luz. E o coro dos descontentes caprichava: “Cidade menina - moça, De dia, falta água De noite, falta força. Cidade que nos seduz, De dia, falta água De noite, falta luz". Mas os descampados do Batata tinha uma outra atração; uma experiência que embora prazerosa, envergonhava. Às margens plácidas do “matadouro’s river”, perto da ponte da estrada boiadeira, num “ranchinho à beira chão, todo feito de sapé, onde a lua faz clarão”, vivia "El Paraguayo", a cuñataí, o quebra-cabacinhos de muitos ingênuos atletas. Após um dia de muito trabalho na pequena olaria, banhado e perfumado, ele recebia “sus chicos”, e com trejeitos femininos os conduzia, os mais tímidos com muita
  • 45. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 45 paciência, pela trilha do desejo em busca do prazer. E alegre cantava com voz de falsete, numa mistura de guarani e espanhol, sua guarânia de amor: “Una noche tibia nos conocimos Junto al lago azul de Ypacaray Tu cantabas triste por el camiño Viejas melodias en guarani”. Os que não escaparam da emblemática iniciação pareciam jovens “caxias” de espada em riste invadindo o Paraguai - quem for brasileiro, me siga! Após o gozo fugaz, o arrependimento e a culpa; a memória daquele momento teria para sempre o cheiro de sabonete carnaval. Quando passou o filme “O aventureiro do Mississipi”, com o Tyrone Power e a Piper Laurie, eles resolveram construir um “barco-gaiola” para avançar rio abaixo até o rio Cachoeirinha. O Gegê trouxe tábuas, pregos, martelo e serrote, e o estaleiro foi improvisado na casa de “la hermosa”. Como ninguém sabia fazer, e como sempre todos tinham razão, tudo terminou numa grande discussão na qual vozes esganiçadas tentavam impor suas incertezas. Ele escutava as bravatas de olho gordo nos corpos adolescentes. A “Rainha do Mississipi” rio jamais singrou os “mares nunca dantes navegados". Mas voltemos, como dizia Honório de Lemos, aos outros esportes atléticos, Os rachas eram nos fins das tardes, entrava quem chegasse primeiro – o Bidulinha que não tinha muita intimidade com a bola chegava bem cedo para garantir vaga; já nos sábados quem mandavam eram os maiores escolhendo no “par ou ímpar” os melhores, e os times eram formados: os “com camisa” x os “sem camisa”. Aos rejeitados que não eram escalados para completar no gol ou na ponta esquerda, só restava ir aprender guarani – cuidado, se exagerar vicia, e viciando pode virar de lado – ou gatunar umas frutinhas do pomar da Santa Casa. Com o tempo foram surgindo os craques: Bistinga, becão de espera, que já agitava as massas – ele virou padeiro; Serraninho, criado na base de guaraná; os Zaccarellis; os Ribeiros: o Procópio e o Diomédis - Dió - pois o Sano era perna de pau; o Marcio Garcez - outra vez! eslogam da campanha do seu pai quando fora candidato a vice-prefeito - irmão do nosso Mumu; o Elinho Calhado e o Botão, todos já jogavam no Tereza Breda, envergando nos domingos à tarde a gloriosa camisa alvi-celeste do Olímpia Futebol Clube. Nas manhãs de domingo aconteciam os amistosos, só como apelido; eram jogos para valer contra times de outros campos. O do Brejinho era formado pelos odiados internos do Colégio do “Veio” Neves, alunos que eram obrigados a se recolherem às 9 da noite, mas eles pulavam o muro voltando ao footing para bulir com as nossas meninas. Como em quase todo internado
  • 46. Terra Natal As Modas e os Modos da Memória Jorge Salles 46 punham salitre na comida servida para anular o desejo, evitando o pecado do troca-troca. A Dona Mirtes que lavava as roupas deles no tanque de cimento do pátio, perto dos banheiros, achava que não estava dando certo. As roupas de cama trocadas uma vez por semana viviam manchadas pelas bronhas tocadas embaixo dos lençóis na solidão das noites quentes. Como o Professor Neves, que morava na parte da frente, fingia não ver as fugas, e preferia degustar um Adriano Ramos Pinto, ler Camões em voz alta, saudoso das inigualáveis conquistas do gênio português, e da coragem dos navegadores da Escola de Sagres, então era na hora dos jogos que as canelas pagavam pela concorrência desleal. As disputas com o time da Colônia do Seu "Árvro" sempre terminavam em confusão. Os “bepos” achavam que eram os donos do campo, mas o que eles tinham mesmo era ciúme das eguinhas volúveis. Agora, a maior rivalidade era contra o time do Terrão, um campo de chão compactado, poeirento, da Vila São José, localizada nos arrabaldes, no outro lado da cidade, onde os “japoneros” disputavam sua gincana anual com umas modalidades de provas esquisitas. Acostumados à buraqueira os pobretões pastariam no tapete verde do Batata, e levariam de goleada. O jogo virava uma pauleira - esporte de homem -, e no meio dos palavrões, caneladas, empurrões, bicudas, e o juiz amedrontado parecia ter engolido o apito. Os adversários vinham possuídos pelo espírito amadorístico de uma competição fraterna – “perder para estes maricas, filhinhos de papai, nem fudendo, se não for na bola será no pau" - o Paraguaio ouvia cheio de esperanças. E o juiz, coitado, apanhava dos dois lados, e jurava nunca mais mediar disputas de donzelas. Onde se podia jogar o dia inteiro era no campinho do Pissoli, que bebia muito, xingava mais ainda, e jogava pedras para espantar a garotada, pois considerava seu o terreno baldio, de chão duro, em frente à sua pobre casa. As traves improvisadas com pedaços de galhos tortos, as bolas de borracha ou de meia, as raízes expostas arrancando bifes dos dedões - foi ali que o Bidulinha, numa jogada inesquecível, quebrou o braço - não impediam o prazer lúdico do futebol que impregnava os sonhos daqueles moleques livres. Mas, como a imaginação deles vivia não só de esportes os territórios do Batata foram palco de outras grandes batalhas: A Brigada Ligeira e suas lutas na guerra da Criméia, Beau Geste e sua Legião Estrangeira, e a gloriosa Cavalaria Americana protegendo os primeiros colonos que foram conquistar o Oeste, lutando contra os índios chefiados por Gerônimo, Cochise, Touro Sentado. A epopeia do obcecado Ethan- John Wayne – que procurando a sobrinha perseguiu os ferozes comanches, e marcou com rastros de ódio as inóspitas montanhas geladas. Mas foi na batalha final entre o 7º Regimento chefiado pelo ambicioso General Custer, e a poderosa aliança dos sioux e cheyennes, liderada por Touro Sentado, Galha e Cavalo Doido, que uma lança de bambu arremessada por um cara-pálida - filho de um turco da Rua Bernardino - de cima de uma