PROJETO DE EXTENSÃO I - AGRONOMIA.pdf AGRONOMIAAGRONOMIA
(24) 14.00 Maria Bernadette Velloso (Louvre IV, 25.04)
1. Representações do Canadá como espaço marcado pela consciência diaspórica no
contexto cultural das Américas
Maria Bernadette Velloso Porto (UFF/CNPq)
Antes de tudo, é preciso definir o lugar de onde emerge minha fala. Há alguns
anos, sou coordenadora do Núcleo de Estudos Canadenses da UFF, primeiro NEC
criado no âmbito das universidades brasileiras. Trata-se de um espaço crítico onde se
desenvolvem pesquisas acadêmicas sedimentadas pela tradição, reconhecidas por sua
qualidade e continuidade no meio universitário brasileiro e canadense. Tive o privilégio,
mais recentemente, de me tornar editora da Revista Interfaces Brasil/Canadá, revista
oficial da ABECAN (Associação Brasileira de Estudos Canadenses)1. Criada em 2001
pela Profa. Zilá Bernd, essa publicação deve muito também à Profa. Nubia Hanciau
(FURG), que se empenhou, como editora, para que tal revista multidisciplinar fosse
classificada como Qualis A1, na área de Letras pela CAPES. Na UFF foram
organizados, até agora, dois números: o12 e o 13. Este último número, que contou,
além de minha participação efetiva, com um editor convidado, o Prof.Arnaldo Vianna
Neto, centrou-se nas comemorações dos 20 anos da ABECAN, tendo reunido
pesquisadores brasileiros, canadenses e canadianistas que muito fizeram pelo
desenvolvimento dos estudos canadenses no Brasil.
Na condição de articulista do primeiro número da Revista Interfaces
Brasil/Canadá, em um texto intitulado “Babel revistada nas Américas“, afirmei o papel
da multidisciplinaridade em pesquisas no âmbito dos estudos canadenses, através da
qual, “fazemos dialogar nossos estranhamentos e realizamos trocas no contexto das
Américas” (PORTO, 2001, p.9). Acreditando que a Interfaces Brasil/Canadá “pode
ainda ser considerada o veículo por excelência do “trans” em nosso território no âmbito
dos estudos canadenses” (HANCIAU, 2012, p.96), a Profa.Nubia Hanciau salienta:
Acessível na rede, a Interfaces reforça o pensamento
de que as perspectivas transversais, os lugares
privilegiados à expressão das trocas que enriquecem cada
1
A partir do número 14, além de mim, atuarão como editores efetivos os professores Arnaldo Vianna
Neto (UFF) e Gunter Axt (UNILASALLE). A Profa. Maria Zilda Cury é a editora convidada do número 14.
1
2. vez mais nossos países, parceiros do Norte e do Sul da
América, também podem refletir as grandes articulações
da sociedade brasileira entrecruzadas às áreas de
excelência canadenses. A experiência multidisciplinar da
Interfaces Brasil/Canadá – aberta à livre manifestação
das ideias de brasileiros, canadenses e canadianistas –
incrementa os estudos comparados em suas interfaces e
traz grande impulso às pesquisas universitárias, para situá-
las tanto no terreno das artes e da cultura, quanto em
várias outras esferas do saber, permitindo renovar as
representações hoje requeridas para afrontar o desafio da
diversidade do mundo contemporâneo.(HANCIAU,
2012, p.97 )
E é pinçando a ideia de diversidade como mote nas considerações da
Profa.Nubia Hanciau que começo propriamente meu texto. Pensar a diversidade no
panorama identitário do mundo contemporâneo, que se deve, em grande parte, às
migrações pós-coloniais, é salientado como uma aprendizagem por Marc Augé, em seu
livro Por uma antropologia da mobilidade. Lembro, de imediato, nesse fórum centrado
na educação internacional, de que somos todos aprendizes, de que nos situamos sempre
em situações plurais de aprendizagem na cena do mundo:
É preciso aprender a sair de si, a sair de seu entorno
(...). É preciso sair do cerco culturalista e promover o
indivíduo transcultural, aquele que, adquirindo o
interesse por todas as culturas do mundo, não se aliena
em relação a nenhuma delas. É chegado o tempo da nova
mobilidade planetária e de uma nova utopia da educação.
Mas só estamos no começo dessa nova história que será
longa, e como sempre, dolorosa. (AUGÉ, 2010, p.109)
Encontram-se, nessa afirmação do antropólogo francês, pistas que nos orientam
em direção ao conceito de diáspora, ressemantizado nos últimos tempos (BOLAÑOS,
2010). Em vez de ser encarada por teóricos de peso como Stuart Hall (Jamaica) e
2
3. François Paré (Canadá) a partir de uma concepção fechada, como era anteriormente, a
noção de diáspora adquiriu novos significados. “Questão conceitual e epistemológica,
além de empírica” (HALL, 2003, p.28), a diáspora não sugere apenas a dispersão e o
deslocamento – voluntário ou forçado – de comunidades originárias de um lugar
determinado que se dirigem a vários espaços que as acolhem, mas o reconhecimento de
uma multiplicidade de contatos e a necessária releitura da ideia de nação e de território.
Associada a uma nova perspectiva de se ler o mundo e de se relativizar a noção de
fronteira, a consciência diaspórica supõe, aos olhos de François Paré, a plurilocalidade,
ligada a uma lógica plural da história e à fratura da memória coletiva. (PARÉ, 2003,
p.72).
Na literatura quebequense a consciência diaspórica tornou-se mais presente nos
últimos anos, com o advento do que se convencionou chamar de escrita migrante, no
interior da qual, por exemplo, a diáspora haitiana é representada por escritores e
ensaístas de renome como Émile Ollivier, Dany Laferrière, Stanley Péan, Joël
Desrosiers, Jean Jonassaint, entre outros. Faz-se necessário assinalar que mais do que
apontar a produção literária de um grupo étnico, é bom lembrar o número significativo
de subjetividades diaspóricas vindas de todo mundo cujas vozes imprimem novas
marcas da alteridade no campo literário quebequense.2 Mais revelador ainda é constatar,
na obra de autores quebequenses não-migrantes, a presença do exílio, do imaginário da
distância característicos da consciência diaspórica. Nos últimos anos, por exemplo,
Michel Tremblay publicou quatro romances centrados na história da diáspora de uma
família quebequense. Trata-se dos livros La traversée du continent, La traversée de la
ville, La traversée des sentiments, Le passage obligé, que descrevem, com muita
poeticidade, itinerâncias da família Desrosiers, também representada nas célebres
Chroniques du Plateau Mont-Royal, no interior das quais a menina Rhéauna, do
2
É preciso lembrar aqui que a presença do Outro sempre esteve presente na produção literária do Quebec,
como nos mostra Janet Paterson em seu ensaio Figures de l’autre dans le roman québécois. Inspirando-se
no conceito de grupo de referência de Landowski ( 1997 ), Paterson (2004) analisa a presença da
alteridade em vários romances quebequenses,nos quais se identificam figuras plurais do outro . Mas é
com o advento da chamada escrita migrante no campo literário quebequense que a alteridade ganhou
maior visibilidade.
3
4. primeiro livro da série diaspórica do autor, aparece como a personagem da Grosse
Femme. 3
Para ilustrar a presença do imaginário diaspórico em escritores quebequenses de
origem, podemos salientar ainda o livro Les aurores montréales de Monique Proulx,
cujas novelas elegem Montreal como cidade heterogênea, lugar de diferentes
estranhezas e estrangeiridades, não-lugar dos excluídos e dos sem-lugar. Nas novelas
dedicadas a escritores diaspóricos como Dany Laferrière, Ying Chen, Marco Micone,
Monique Proulx explora a multiplicidade de memórias e referências culturais. Deve ser
lembrado que, com a emergência crescente de seres diaspóricos em Montreal, a própria
leitura da cidade sofreu modificações. É o que salienta Sherry Simon em seu ensaio
Traverser Montréal: une histoire culturelle par la traduction (2008) no qual a
pesquisadora interpreta a cidade a partir da travessia entre línguas e da prática da
tradução. Ao recuar na linha temporal, ela identifica a mudança no tecido cultural de
Montreal, que passou da dualidade típica da cidade colonial, marcada pela divisão de
duas referências, à cidade mestiça e cosmopolita da atualidade onde se reinventam
identidades diaspóricas.
No desenvolvimento de minhas reflexões, gostaria de evocar duas figuras
exemplares da consciência diaspórica no âmbito do Quebec: Gabrielle Roy e Marco
Micone aos quais podemos associar três lugares identitários: o do ser em trânsito, o do
criador/a e do professor/a. Embora marcados por percursos identitários diversos – Roy é
canadense e Micone nasceu na Itália –, ambos se vinculam, de perto, à questão das
mobilidades culturais e às interrogações sobre a problemática identitária que põem sob
suspeita a concepção de uma sociedade homogênea.
Nascida em 1909 na pequena cidade francófona de Saint-Boniface, no interior
da província anglófona do Manitoba, Gabrielle Roy é considerada por Jean Morency
como uma escritora cuja obra é marcada pela “visão cosmopolita da experiência
canadense francesa” (MORENCY, 2009, p.152) e pela representação dos grandes
espaços, o que equivale à noção de americanidade. Segundo o mesmo pesquisador,
trata-se de uma autora profundamente canadense que conseguiu muito prestígio junto a
um duplo leitorado. Seus leitores, de língua francesa ou de língua inglesa – através da
3
Na verdade, o leitor de Tremblay conhece primeiro a Grosse Femme, para, muitos anos mais tarde da
publicação do romance com seu nome, vê-la como a menina Rhéauna (Nana) em La traversée du
continent e nos outros livros sobre a diáspora dos Desrosiers.
4
5. tradução – percebem, em muitos de seus textos, seu interesse pelos deslocados de seus
lugares de origem. Em um texto intitulado “Mon héritage du Manitoba”, a autora faz o
balanço do legado recebido dessa província anglófona: “(...) esse espetáculo dos
desterritorializados que o Manitoba me ofereceu quando eu era muito jovem tornou-se
inseparável de meu sentimento da vida” (ROY, 1996, p.191).
Embora muitas personagens femininas de Gabrielle Roy se encontrem
prisioneiras das representações de gênero, desempenhando funções tradicionalmente
atribuídas à mulher, há na poética royana o constante apelo aos deslocamentos que
permitem a realização de sonhos, a descoberta da imensidão do mundo em sua
pluralidade paisagística e humana. No romance memorial da família de Gabrielle Roy,
uma lembrança compartilhada por todos através de relatos de vida transmitidos ao longo
de gerações, remete a uma experiência vivida pelos avós maternos da autora. Como
outros casais de sua geração, um belo dia, seduzidos pelas promessas de uma vida
melhor no Oeste, os avós de Roy decidem deixar a região das Laurentides, no norte de
Montreal, para se instalarem na província anglófona do Manitoba. As peripécias e
obstáculos superados durante o périplo, realizado de trem e no interior de uma carroça
abarrotada de objetos e pessoas, constituíram uma verdadeira aventura para a família
que teve de se embrenhar na planície ainda selvagem de uma região inóspita em direção
à montanha Pembina que, segundo o avô, poderia consolar a mulher da perda das
colinas quebequenses. Do dilaceramento4 causado pela duplicidade de uma geografia do
afeto, representada através do amor pelas colinas e do amor pelas planícies -
desenvolvido posteriormente no Manitoba – surgiram belos textos da autora, como La
Route d’Altamont.5 No conjunto da obra royana o apelo do espaço diaspórico se
manifesta como “a transmissão de narrativas fundadoras entre gerações” (PARÉ, 2007,
p,50), o que confirma os vínculos entre mobilidades geográficas e mobilidades textuais.
Representante expressivo da diáspora italiana no Quebec, ao lado de autores
como Fulvio Caccia, Antonio d’Alfonso, entre outros, em uma entrevista publicada no
livro Sous le signe du Phénix, Marco Micone diz ter sofrido as consequências da
4
Para uma melhor compreensão dessa temática, o texto “Mon héritage du Canada”, inserido no interior
de Fragiles lumières de la terre: écrits divers 1942-1970, oferece maiores detalhes.
5
O amor pelas colinas longínquas da terra natal, interiorizadas nos recônditos das paisagens da memória
afetiva, também aparece na novela “Où vas-tu Sam Lee Wong?”, publicada no livro Un jardin au bout
du monde.
5
6. emigração de seu pai que deixou a Itália quando ele tinha seis anos de idade. O
reencontro dos dois se deu quando ele era um adolescente de treze anos, o que sugere a
necessária aprendizagem da dor causada pela distância. (CACCIA, 1985, p.261). As
dificuldades relativas à experiência do exílio e, em particular, à adaptação ao novo país
aparecem no conjunto das obras de Micone que acredita na missão dos escritores de
origem italiana no Quebec: a de desenvolver uma consciência crítica que ultrapasse a
comunidade italiana, uma vez que suas questões não concernem a um grupo específico,
mas dizem respeito a outras realidades quebequenses. (CACCIA, 1985, p.271-272)
Em momentos distintos da história quebequense, Gabrielle Roy e Marco Micone
exerceram o magistério no Canadá, lidando, em seu cotidiano, com a experiência da
alteridade. Segundo Paola Puccini, foi como professor de italiano6 em um colégio inglês
frequentado por filhos de imigrantes que Micone aprofundou o estudo do fenômeno da
imigração (PUCCINI, 2008, p.280). Na formação do intelectual interessado pela análise
de uma sociedade marcada pela diversidade, sua própria trajetória de estudante
desempenhou um papel significativo.. Graças a suas intervenções públicas, Micone
forneceu a seus leitores e espectadores dados sobre sua biografia linguística (PUCCINI,
2008, p.280). Desde cedo, foi alvo de marginalização no meio escolar. Recusado, assim
que chegou a Montreal, nos anos cinquenta, por uma escola francesa de seu bairro,
passou por diferentes instituições de ensino até que foi aceito por uma espécie de escola
francesa frequentada unicamente por jovens italófonos. Após algum tempo inscreveu-e
na escola inglesa de seu bairro onde conheceu de fato a marginalização. Segundo Paola
Puccini, para o jovem Micone, a instituição escolar passou a ser vista como lugar
fechado que se opunha à rua, lugar da aprendizagem informal, dos contatos e da
socialização que lhe abriram as portas de acesso à língua francesa.
A experiência do magistério – presente em alguns textos de cunho
autobiográfico onde se entrelaçam memória e ficção – também permitiu a Gabrielle
Roy, muitos anos antes de Marco Micone, a descoberta da alteridade, expressa nos
rostos, na expressão linguística e nos hábitos de seus pequenos alunos, na maioria recém
chegados ao Canadá. É o que aparece no livro Ces enfants de ma vie, publicado em
1977, considerado como uma obra de maturidade da autora que aí recria ficcionalmente
6
Inspirada pela obra de Marco Micone, em uma das novelas de seu livro Les aurores montréales,
Monique Proulx homenageia o autor, através da dedicatória e da escolha do personagem de um escritor de
italiano que, como Micone, reflete sobre a complexidade da cultura imigrada.
6
7. sua experiência no magistério. Como jovem professora primária de inglês em uma
pequena escola perdida nas planícies do Manitoba, teve a oportunidade de se deparar
com a multiplicidade e a riqueza de povos que compõem o Canadá. Deve ser também
ressaltado que o interesse pela diversidade e o desenvolvimento de uma consciência
diaspórica se manifestaram muito cedo em Gabrielle Roy, nascida no seio de uma
família de “procuradores de horizonte” (ROY, 1996, p.180). No seu livro Fragiles
lumières sur la terre, ela ressalta o papel exercido por seus pais nesse sentido.
Funcionário do governo, seu pai, que, jovem, havia deixado o Quebec para viver nos
Estados Unidos7, antes de conhecer sua esposa e de se instalar com ela no Manitoba, e
mais precisamente, na cidade francófona de Saint-Boniface onde nasceu Gabrielle Roy,
era responsável pela instalação de imigrantes nas terras virgens de Saskatchewan e de
Alberta (ROY, 1996, p.187). Assim, muito nova Gabrielle Roy mostrou-se atenta aos
relatos paternos construídos em torno das famílias de imigrantes. Por sua vez,
apavorada e fascinada pela onda mesclada de humanidade que se deslocava à sua porta,
a mãe de Gabrielle Roy levava seus filhos menores para fazerem uma travessia de barco
no rio Rouge para lhes mostrar, mesmo de longe, as comunidades de imigrantes já
instalados em solo canadense. Aos olhos da menina, sensível à revelação da alteridade:,
essas pequenas viagens abriram as portas de um mundo distante, ao mesmo tempo,
acessível a seu olhar:
As Mil e Uma noites de minha infância foram
essas viagens nas pequenas Valônias, as
pequenas Ucrânias, as pequenas Auvergnes, as
pequenas Escóssias, as pequenas Bretanhas do
Manitoba, e também as réplicas quase exatas do
Quebec distribuídas na planície. Eu adquiria aí
talvez esse sentimento de deslocamento, essa
sensação de deriva de nossos hábitos que, pela
leve angústia que ela engendra, não tem nada
igual para nos impor a tarefa de tudo ver, de
tudo captar e de tudo reter ao menos um
instante. (ROY, 1996, p.192)
7
No texto “Mon héritage du Manitoba”, a autora se refere à condição exilar de seu pai que, ao cantar
músicas como “ Il était un petit navire” e “Le Canadien errant”, aí imprimia “a confissão meio velada de
seu próprio desenraizamento’. (ROY, 1996, p.186)
7
8. Em uma passagem do livro Ces enfants de ma vie, de modo simbólico, a
professora coloca em prática um gesto que evoca o da autora, ao ajudar seus alunos
imigrantes a se situar no novo país onde suas famílias tinham acabado de se instalar. No
início do ano letivo, desenhou no quadro-negro a escola perdida no meio da imensidão e
pediu a cada aluno para desenhar sua própria casa. Traçou, então, um caminho entre o
prédio da instituição escolar e as pequenas habitações. Os estudantes se incluíram nesse
cenário através de desenhos em que se representaram no meio da rede criada pela
mestra. Essa representação pictórica confirma o vínculo estabelecido pelo antropólogo
Georges-Hubert Radkowski (2002) entre o sentimento do existir e a consciência da
localização.
Em outra obra de caráter autobiográfico, La Petite Poule d’Eau, Gabrielle Roy
ressalta os vínculos entre o exercício do magistério e a experiência do deslocamento.
Muito jovem, pensando em juntar algum dinheiro para completar suas economias que
lhe permitiriam embarcar, pela primeira vez, para a Europa, procurou o Departamento
de Educação de Winnipeg em busca de uma vaga de professora em uma escola de verão
do Manitoba. Assim em 1937, realiza uma viagem cheia de riscos e de peripécias que a
levam a,uma região de lagos, deltas e rios, afastada de tudo, chamada La Petite Poule
d’eau, como aparece no romance citado. Como a jovem mestra dessa narrativa, Mlle
Côté, a autora experimentou a sensação de “extrême dépaysement”(ROY, 1996, p.240)
Inspirando-se em André Gide, que um dia afirmara: “Antes de descobrir terras novas,é
preciso consentir em perder de vista toda margem”, ela declara: “Bem, a partir daí, perdi
de vista minhas margens familiares e ganhei para toda a vida o sentimento que nenhum
lugar no mundo é o seu centro,” (ROY, 1996, p..241). Assim, a consciência diaspórica
se configurou desde cedo para ela vinculada à ideia de descentramento e como convite
às viagens.8
8
A atração exercida pelas viagens e pelas mudanças explica a decisão tomada muito cedo por Gabrielle
Roy que logo desiste do magistério. Na primavera de 1939, ao retornar de sua estadia de dezoito meses na
Europa, resolve não voltar ao Manitoba onde a espera sua função de professora primária. (Heureux les
nomades et autres reportages. 1940-1945 (ROY, 2007, p.7) Na novela “L’alouette” ,do livro Ces enfants
de ma vie, a jovem professora se sente desanimada diante do futuro que a espera se continuar como
professora. Ao olhar suas colegas envelhecidas no exercício de uma função desgastante, antecipa o que a
aguardaria se continuasse na área pedagógica.(ROY, 1993 a, p.40-41). De qualquer modo, mesmo tendo
deixado sua primeira profissão, essa lhe trouxe inspiração para textos ligados à descoberta da alteridade.
8
9. Cabe-nos agora ressaltar a representação do intelectual assumida por Gabrielle
Roy e Marco Micone. Ser dos trânsitos por excelência, sensível à experiência do exílio,
conhecido enquanto condição real ou metafórica, o intelectual se reveste de um olhar
orientado pela consciência diaspórica. Um dos mais importantes críticos literários e
culturais da atualidade, Edward Said, nascido em Jerusalém e educado no Cairo e em
Nova York, nos oferece pistas interessantes para a compreensão do lugar e do papel do
intelectual na cena do mundo. Associando a figura do intelectual à do exilado – mesmo
se não se tratar de uma real desterritorialização – Said insiste no fato de se sentir fora do
mundo familiar:
Para o intelectual, o exílio nesse sentido
é o desassossego, o movimento, a condição
de estar sempre irrequieto e causar
inquietação nos outros. Não podemos voltar a
uma condição anterior, e talvez mais estável,
de nos sentirmos em casa; e, infelizmente,
nunca podemos chegar por completo à nova
casa, nos sentir em harmonia com ela ou com
a nova situação.(SAID, 2005, p.60-61)
É também o sentimento do desassossego que se depreende na leitura do ensaio
de François Paré intitulado Le fantasme d’Escanaba, publicado em 2007. Construído
como uma utopia do espaço, o mito de Escanaba é baseado em uma cidade real que faz
parte da história genealógica franco-americana: instalada no estado de Michigan, aí se
encontrava, no passado, uma comunidade canadense francesa com suas escolas, seu
jornal e suas associações. Em 2001, uma outra Escanaba, situada em um não-lugar,
aparece como cidade inacessível no romance Une ville lointaine de Maurice Henrie, no
qual ela deixa de ser a cidade real do Michigan setentrional para sugerir“ o símbolo
fugidio de todas as destinações migrantes.” (HENRIE, 2001, p.27). O romance de
Maurice Henrie gira em torno do imaginário do desaparecimento: um dia, seu
personagem principal some de casa, assim como muitos outros habitantes da cidade
Espérance. Os que ficam imaginam que eles teriam ido para Escanaba, cidade-lugar de
passagem, em eterno trânsito, onde seria impossível o enraizamento. Curiosamente,
encontra-se na obra Le figuier enchanté de Marco Micone a estética do desaparecimento
em um relato no qual, cansada de assistir às sucessivas partidas de seus habitantes, uma
9
10. aldeia italiana resolve também partir, fugindo do mapa das certezas identitárias (“Le
village envolé”).
O fantasma de Escanaba - visto como a busca de um lugar mais promissor -
aparece na escrita royana associada a uma ética da memória e ao imaginário do espaço
migrante (PARÉ, 2007, p.38) que fazem parte, como já foi ressaltado, da memória
familiar da autora. Lugar simbólico de todos os recomeços identitários no espaço
diasporal francófono na América, segundo Paré (2007, p.28), Escanaba seria, na poética
de Roy, a promessa de um mundo melhor, talvez uma Pasárgada de certo modo, capaz
de permitir a concretização de todos os possíveis. Na leitura proposta por François Paré,
como sinal de abertura para um outro lugar, Escanaba representa a ruptura da
exiguidade quebequense (2007,p.173), que se refere menos à extensão geográfica do
que a uma certa concepção imaginária de um povo que, durante séculos, resistiu à
assimilação, fechando-se em si mesmo. No que concerne às personagens femininas de
Gabrielle Roy o desejo de partir – com seus riscos e atrativos – seria uma atualização do
mito de Escanaba, sinônimo de desassossego segundo Paré, sugerindo a quebra de
interditos e limites emocionais que as confinavam no espaço doméstico.
Nos momentos finais desta apresentação, permito-me voltar a refletir sobre o
lugar de onde falo: a de professora de língua e culturas estrangeiras em uma instituição
no interior da qual se desenvolveu o espírito do desassossego na abordagem pedagógica
da francofonia e, em particular, da literatura quebequense. Mais uma vez, em sintonia
com Edward Said, acredito que, à maneira do intelectual descrito por esse crítico, o
professor deve fugir a uma concepção esclerosada da identidade como algo fixo e
estável e abrir-se para a prática da Relação (GLISSANT, 1990). Respondendo “ao risco
da ousadia, à representação da mudança” (SAID, 2005, p.70), estimula seus alunos a
escaparem à tentação do conformismo e da acomodação, de modo a investirem seus
sonhos e seu potencial em outros lugares desse mundo, “vasto mundo” como já disse
nosso poeta maior.
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