SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 14
O que é um chawan?
                                                                           Akira Umeda
                                                                                   2002




           Desde a época mais remota, objetos destinados a conter alimentos e
bebidas são produzidos e utilizados em todas as culturas. Dentre eles, os de cerâmica
compõem um grupo bastante expressivo. Segundo Harris, os mais antigos fragmentos
de cerâmica identificados até o momento foram localizados em Fukui, no Japão,
datando de aproximadamente 12.700 a.C.


           As transformações sociais, econômicas e tecnológicas ocorridas desde
então afetaram profundamente a cerâmica japonesa. Ao mesmo tempo, estes milênios
consolidaram a cerâmica como uma das grandes tradições do Japão. Assim, existem
objetos cujas formas atingiram seu padrão de excelência já a partir do século XIII e que
continuam sendo produzidos ainda hoje com muito poucas alterações. O chawan, em
seus diversos estilos, é um destes objetos.


           O hábito de consumir o chá verde em pó (matcha) foi introduzido no Japão
pelos monges que se dedicavam aos estudos da filosofia Zen nas proximidades do
Monte Tianmu (conhecido no Japão como Monte Temmoku), localizado na província
chinesa de Zheijiang. Nos monastérios, o chá era apreciado pelas suas propriedades
curativas e estimulantes, sendo bebido em utensílio apropriado chamado chawan, que
significa, literalmente, tigela (wan) para chá (cha). Com o crescimento da influência do
Zen Budismo, o gosto pelo chá difundiu-se pelos vários segmentos da sociedade
japonesa, passando a ser consumido em cerimônias que, com o passar do tempo,
foram codificadas pelos mestres que as coordenavam.


           Segundo Shimizu, o primeiro relato acerca dos utensílios para a cerimônia
do chá foi feito por Nampo Jomyo em 1267. Naquela época, os chawans mais utilizados
pelos shoguns japoneses eram produzidos na China e, como foram trazidos pelos
monges Zen que estudavam no Monte Tianmu, ficaram conhecidos no Japão como
chawans Temmoku. Esta denominação compreende chawans com formas,
esmaltagens e decorações sensivelmente diferentes entre si, embora tenham em
comum a coloração dominante que varia do marrom ao preto.


            No Japão, o tipo clássico e emblemático de chawan Temmoku é o de estilo
Jian (também conhecido como Temmoku "pele de lebre"), cuja forma passou a ser
reproduzida domesticamente nos fornos de Mino a partir do século XV.


            O chawan Temmoku continua a ser produzido ainda hoje no Japão, sendo
uma especialidade rara entre os ceramistas, devido à grande dificuldade de sua
execução. O ceramista Akira Suzuki, um destes poucos, informa que a produção deste
tipo de chawan torna-se muito cara devido a uma alta taxa de perdas. Segundo ele,
dentre 100 chawans produzidos, apenas cerca de 3 ou 4 são absolutamente perfeitos.
Embora o yuteki (do tipo "mancha de óleo") e yohen (esmalte de cinza alterado e
escorrido durante a queima com padrão muito próximo ao do tipo "pele de lebre")
sejam os dois tipos mais comuns de esmalte Temmoku no Japão contemporâneo,
Suzuki trabalha com maior número de variações, cada qual denominada por ele a
partir de suas características: radenyo (madrepérola), kioyo (rosa flor de cerejeira), heki
(azul real) e ki (ouro).


            No ocidente, o termo Temmoku tem sido genericamente utilizado para
designar uma grande gama de esmaltes de coloração entre o marrom e o preto e
apenas raramente remete aos chawans da Dinastia Song. Neste sentido, é importante
salientar o fato de que, entre os séculos XIII e XVI, os chawans Temmoku eram de uso
exclusivo dos shoguns e dos monges em cerimônias bastante formais e exclusivas, ou
seja, eram utensílios destinados às elites japonesas e que não eram acessíveis aos
outros segmentos sociais. Em boa medida, os chawans Temmoku carregam este
significado até os dias de hoje.


           Os grandes mestres japoneses da cerimônia do chá exerciam grande
influência na escolha dos utensílios. Murata Juko (1422-1502), o primeiro mestre, tinha
um estilo bastante formal, definido por alguns especialistas como ostentatório e
exótico, optando principalmente por utensílios de proveniência chinesa, embora
incluísse também a produção dos fornos japoneses de Bizen e Shigaraki.


           Seu sucessor, Takeno Joo (1502-1555), fundador de um estilo semi-formal
nas cerimônias do chá, estimulou inicialmente a utilização da cerâmica produzida no
Japão, especialmente de chawans que reproduziam os Temmoku chineses. A produção
local apresentava esmaltes com colorações que variavam de um marrom claro ou
amarelado (chamado ki-Temmoku) até um branco leitoso (chamado shiro-Temmoku).
Mais tarde, objetivando popularizar a cerimônia do chá, Takeno Joo instituiu um gosto
por utensílios de aparência mais simples. Deu preferência às despojadas tigelas
originalmente destinadas a conter arroz, de origem coreana, chamadas de chawan
Koryo ou Korai chawan, que eram utilizadas cotidianamente pela população de origem
não-aristocrática desde o século XII. A partir de então, as tigelas mais simples passaram
a integrar a cerimônia do chá, sendo também reconhecidas como chawans.


           Muitos especialistas costumam referir-se aos esmaltes utilizados nos
chawans de estilo Korai como sendo "semelhantes a um Celadon", por apresentarem
tons do bege ao castanho ligeiramente azulados ou esverdeados. O termo Celadon
tem origem francesa, sendo utilizado no ocidente para definir um esmalte de
coloração que varia dos sutis tons de azul ao verde-jade. Em 1610, foi publicado o
romance "L'Astrée", de Honoré d'Urfe, que tinha como herói o personagem Celadon,
cujos trajes sempre verdes tornaram-se então a última palavra na moda do vestuário
europeu. Na mesma época, chegaram à Europa os primeiros exemplares da cerâmica
chinesa de tons esverdeados que, seguindo a moda do vestuário, foram aclamados
também como Celadon.


             A tradição da cerâmica de tons azulados e esverdeados remonta ao período
chinês das Cinco Dinastias (907 - 960), quando era conhecida como Longquan Qingci,
que significa "porcelana verde". A cerâmica com estas características foi também
produzida na Coréia, principalmente ao longo da Dinastia Koryo (918 - 1392). No Japão,
esta cerâmica é conhecida como Seiji e é raramente praticada pelos ceramistas, devido
às grandes dificuldades técnicas, como ocorre com o Temmoku.


             As cerimônias do chá informais foram criadas pelo mestre Sen no Rikyu
(1522-1591), que buscou difundi-las ainda mais na sociedade japonesa e aprofundou o
conceito estético relacionado à simplicidade e ao despojamento, chamado Wabi Sabi,
como norteador na escolha dos utensílios. Sen no Rikyu contribuiu enormemente para
reforçar a visão tipicamente japonesa que considera objetos simples de uso cotidiano
como arte.


             Neste sentido, a partir do final do século XVI, chawans de diferentes estilos
passaram a ser utilizados nas cerimônias, verificando-se a preferência pela produção
nacional e a consolidação de uma estética propriamente japonesa, situação que foi
potencializada pela política de isolamento instituída por Tokugawa Ieyasu que
perduraria de 1639 a 1858. Também houve um aumento da influência dos mestres do
chá nos fornos japoneses que, ao lado do que produziam regularmente, passaram a
incluir os utensílios para as cerimônias.


             O período de transição entre os séculos XVI e XVII, conhecido como
Momoyama, é tido como o apogeu da produção de cerâmica para a cerimônia do chá.
Vários dos exercícios estilísticos iniciados naquela época tornaram-se sólidas tradições,
constituíndo grandes vertentes da cerâmica japonesa até os dias atuais. Embora as
influências chinesa e coreana tenham sido determinantes para o avanço da cerâmica
japonesa, a partir de então os ceramistas concentraram-se principalmente no
desenvolvimento de uma nova linguagem.


           Os chawans Shino, cuja produção iniciou-se nos fornos de Mino e Seto,
estão entre os mais inovadores surgidos na época. As formas cilíndricas baixas
(hantsutsu gata) e altas (tsutsu gata) são dominantes, bem como as linhas assimétricas
e distorcidas. O esmalte base utilizado é chamado de chosekiyu, de coloração
esbranquiçada, tendo como principal componente um feldspato.


           Um estilo bastante próximo do Shino é chamado de Oribe, cujos chawans
têm uma forma bastante peculiar chamada kutsu gata (forma de um calçado utilizado
na época) e são esmaltados em preto (kuro oribe) e branco.


           Outra grande tradição estilística dentre os chawans é chamada de Raku,
iniciada por Sasaki Chojiro, também no período Momoyama. É a perfeita expressão da
simplicidade e da serenidade valorizados por Sen no Rikyu, através do conceito de
Wabi-Sabi. A sua forma cilíndrica e regular é modelada manualmente a partir de um
disco de argila. O esmalte utilizado é de baixa temperatura, à base de chumbo
(namariyu), resultando em duas colorações básicas, preto e avermelhado, obtidas
através do resfriamento brusco das peças, que são retiradas do forno durante o
processo de queima a temperaturas entre 800 e 1000°C. Estudiosos da cerâmica
afirmam que a grande demanda por utensílios para a cerimônia do chá e a necessidade
de produzi-los mais rapidamente deram origem à queima Raku. Mas também é
importante frisar que, apesar do desenvolvimento da cerâmica de alta temperatura no
Japão, ainda no período Momoyama, as peças de baixa temperatura eram largamente
utilizadas no dia-a-dia.


           Com o passar do tempo, as formas desenvolvidas pela família Raku (termo
que significa "tranquilidade") foram se diversificando e continuam sendo produzidas
ainda hoje. No ocidente, o termo Raku é utilizado para designar uma técnica mais
associada à decoração da superfície das peças, não apresentando qualquer referência a
uma forma específica de chawan.


           Os fornos de Bizen e Shigaraki, seguindo a tradição da ancestral cerâmica
Sue, que produzem até hoje uma cerâmica "acidental" ou "naturalmente" esmaltada
pelas cinzas que se depositam nas peças durante a queima, também vinham
desenvolvendo utensílios para a cerimônia do chá. Em Bizen, a argila utilizada é
bastante fina, a forma das peças é mais uniforme e a principal característica estilística
são as "marcas de fogo" (hidasuki) resultantes da utilização de material orgânico (como,
por exemplo, palha) para preencher o espaço entre as peças no forno. Diferentemente,
a argila de Shigaraki é mais grosseira e as formas das peças são mais irregulares,
apresentando superfícies marcadas por grãos aparentes de feldspato e quartzo sob as
áreas "acidentalmente" esmaltadas.


           Bastante tradicionais e apreciados pelos mestres da cerimônia do chá são
também os chawans Hagi e Ido e os de estilo Irabo, todos de inspiração coreana. Os
primeiros fornos de Hagi foram instalados no início do século XVII. Com o passar do
tempo, a influência coreana foi diluída e os ceramistas de Hagi desenvolveram formas
próprias marcadas por grande despojamento e elegância. Ido é um termo que se refere
à cerâmica coreana de baixa temperatura de uso cotidiano, cuja produção iniciou-se no
século XV. Os desdobramentos nas preferências dos mestres do chá fizeram com que
as tigelas para arroz do tipo Ido passassem a ser utilizadas nas cerimônias do chá.
Desde então, consolidaram-se como um dos grandes estilos de chawan. Irabo é um
termo derivado de "ira-ira", algo como "irritação", referência à sensação provocada pela
argila grosseira utilizada em alguns chawans de origem coreana. Esta característica,
muito contrastante em relação ao estilo chinês, é particularmente apreciada no Japão
até os dias de hoje.
O chawan é um dos objetos que integram a cerimônia do chá e, como tal,
tem uma função utilitária -é nele que o chá verde (matcha) é preparado e servido aos
convidados- e, também, uma função ritual. Afinal, trata-se de um objeto inserido no
contexto de uma cerimônia, de um ritual, e não de um objeto cuja utilização vincula-se
ao cotidiano doméstico.


           Mais recentemente, em várias partes do mundo, "chawan" passou a ser um
termo utilizado para designar uma tigela tipicamente japonesa ou oriental
independentemente de sua função. Assim, entende-se que alimentos como arroz,
caldos e sobremesas possam ser servidos em tigelas chamadas de "chawan", ao passo
que a idéia de tomar chá em um chawan costuma provocar estranhamento,
evidenciando o fato de que ele é cada vez menos associado à cerimônia do chá.


           No Japão, existem outros objetos destinados a conter chá para ser bebido.
Tigelas semelhantes ao chawan, também de cerâmica, porém menores, chamadas
"sencha chawan", são utilizadas para servir o chá verde do tipo sencha. Copos de
cerâmica, chamados yunomi, são utilizados para servir chá verde comum ou qualquer
outro tipo de chá.


           Além disto, outras tigelas parecidas com o chawan são utilizadas para
diversas finalidades, algumas não específicas. Elas podem ser chamadas
genericamente de wan ou hachi. Para o arroz, por exemplo, utiliza-se o meishi-jawan
ou gohan-jawan. Outros pratos podem ser servidos em um donburi-bachi. As
pequenas tigelas para soba são chamadas de soba-choko. Até mesmo um copo para
saquê, chamado güinomi ou sake-choko, pode ter a forma de um pequeno wan. Todos
estes objetos têm praticamente a mesma forma em diferentes tamanhos e decorações,
mas possuem funções distintas. Ou seja, sendo a tigela do tipo wan ou hachi uma
forma comum na cerâmica japonesa, é importante atentar para a sua função. No caso
do chawan, é fundamental ter em mente tanto a sua função utilitária como a ritual,
preocupação dispensável nos wans destinados, por exemplo, a servir arroz.




           A forma básica de um chawan pode ser vista na ilustração acima. A
característica de cada uma das partes indicadas costuma ser avaliada e apreciada pelos
especialistas, seja do ponto de vista técnico ou artístico e filosófico. Além disto, o
chawan também é visto como um todo, de forma mais complexa ou metafísica, como
uma espécie de "paisagem". Para estas análises, concorrem tanto as informações visuais
quanto as táteis, além daquilo que pode ser apreendido através de uma certa "poética"
do chawan. De modo geral, estes critérios específicos aplicados ao chawan diferem
bastante daqueles utilizados para avaliar um objeto comum, como um prato para uso
cotidiano no ocidente; eventualmente, podem mesmo opor-se a eles.


           Do ponto de vista da utilização, o chawan deve possibilitar o correto
preparo do matcha em seu interior. Isto significa ter espaço suficiente para o manuseio
do chasen, artefato de bambu utilizado para misturar vigorosamente em movimentos
contínuos a água quente ao chá em pó. O diâmetro da borda de um chawan varia de
acordo com o seu estilo, mas situa-se entre 9,5 cm (para um chawan do tipo cilíndrico
que lembra um yunomi) e 16 cm (para um chawan do tipo mais arredondado e amplo).
A sua profundidade varia entre 5 cm e 8 cm, aproximadamente; a altura, entre 7 e 10
cm. A preparação do chá no chawan requer boa estabilidade e, neste sentido, muita
atenção deve ser conferida à base e ao pé.


           Também é desejável que o chawan seja feito de uma cerâmica
impermeável. Em geral, utilizam-se argilas refratárias para queima em alta temperatura
que são esmaltadas, seja por meio da aplicação de esmaltes compostos ou por
decorrência do processo de queima (esmaltagem "acidental" com cinzas em uma
queima a lenha, por exemplo). Mas também aqui há variações e exceções. Os chawans
do tipo Raku, por exemplo, são exemplos característicos da cerâmica de baixa
temperatura. Segundo Shimizu, a coloração preta do esmalte (kuroraku) é obtida a
uma temperatura de 1000° e a vermelha (akaraku) a 800° em fornos do tipo mufla. Os
chawans mais antigos do tipo Ido também eram queimados em baixa temperatura. A
porosidade de algumas argilas, como as utilizadas nos chawans de estilo Hagi, faz com
que resíduos de chá se acumulem ao longo do tempo, alterando a sua coloração. Ao
contrário do que se poderia pensar, trata-se de uma característica bastante admirada
pelos especialistas e de um fator que pode valorizar enormemente um chawan.


           Um chawan cuja superfície é lisa e uniforme, que não possui reentrâncias
especialmente no seu interior, onde resíduos podem se acumular, e cujo esmalte não
se apresenta craquelado seria o ideal do ponto de vista da higiene. Os chawans mais
próximos desta descrição talvez sejam os do tipo Temmoku. No entanto, é preciso
considerar que quase todos os estilos de chawan apresentam pequenas ou grandes
irregularidades, rugosidades, saliências e texturas. Alguns esmaltes, como o Celadon,
são craquelados; outros, como o Shino e o Hagi, são rugosos e apresentam retrações,
além de fundir de maneira bastante irregular. Os chawans Oribe são extremamente
deformados. As argilas de Shigaraki são grosseiras e apresentam "explosões" de grãos
de feldspato e quartzo na superfície dos chawans. Estas e tantas outras características
que contrariam certos princípios de higiene e limpeza são profundamente admiradas
nos chawans.
Muitos chawans recebem esmaltes plúmbicos, como os do tipo Raku e
Sansai (três cores), que normalmente não são recomendados para peças utilitárias
devido à sua toxicidade. Nem por isto deixam de ser apreciados e utilizados nas
cerimônias do chá. Os chawans Raku, por exemplo, são tidos como um dos mais
apropriados ao espírito da cerimônia, devido ao seu despojamento, a sua sobriedade e,
principalmente, a maneira agradável com que se acomodam entre as palmas das mãos
dos participantes da cerimônia, característica essencial de um chawan.


             Uma outra peculiaridade do chawan é a parte chamada chadamari,
localizada em seu fundo, onde o chá deve ficar acumulado, em pequena quantidade,
após ser consumido. Esta parte costuma receber grande atenção dos ceramistas e dos
especialistas na cerimônia do chá. Não se trata de um "orifício", mas de uma suave
depressão.


             Durante a cerimônia, os convidados costumam observar atentamente o
chawan. Especial atenção é dada ao contraste entre a cor esverdeada intensa do
matcha e a coloração verificada no interior do chawan. Não existe uma preferência
única quanto ao contraste desejado. Assim, as cores escuras e profundas, como as de
um Temmoku, são apreciadas tanto quanto o branco leitoso de um Shino ou toda a
gama de tonalidades terrosas ou aquelas incertas e fugidias.


             O pé de um chawan (kodai) também é cuidadosamente observado ao final
da cerimônia. Normalmente, é apenas nesta parte em que é possível ver a argila de que
é feita um chawan, já que costuma ficar sem a cobertura de um esmalte. O pé também
indica a habilidade, a experiência e o estilo característico de um ceramista.
Tradicionalmente, os tipos de pé variam tanto quanto os estilos de chawan, e os
ceramistas conferem especial atenção à sua confecção, uma espécie de assinatura.


             Como se pode perceber, o chawan é uma tigela simples, mas não é uma
simples tigela. Formas semelhantes a um chawan surgiram em praticamente todas as
sociedades cerâmicas, mas a cultura japonesa conferiu a elas uma dimensão quase
intangível, envolta em yugen, a misteriosa impenetrabilidade das coisas. É por esta
razão que o chawan costuma ser entendido como um objeto expressivo, que reflete a
imperfeição e a inconclusão do homem e do mundo. Em resumo, um objeto de arte.


          Ao longo de vários séculos, a cerâmica consolidou-se como patrimônio
cultural no Japão, situação que não se repete em qualquer parte do mundo. Assim, os
diversos segmentos da sociedade japonesa dispõem de elementos básicos que
possibilitam compreender, apreciar e consumir a cerâmica. É certo que a adoção do
sistema fabril, a partir do século XIX, teve um grande impacto sobre os padrões de
produção e consumo no Japão, introduzindo um gosto tipicamente ocidental. O
período inicial da industrialização japonesa coincide com o declínio da qualidade de
sua cerâmica tradicional e mesmo da reputação dos mestres ceramistas. É conhecido o
caso do mestre Kenzan VI, herdeiro da grande tradição de Ogata Kenzan, que no início
do século XX produzia uma cerâmica medíocre para poder sobreviver nos arredores de
Tokyo e que teve como alunos Bernard Leach e Kenkichi Tomimoto. Por outro lado, a
intensa participação no mercado internacional levou à adoção de políticas de
preservação do patrimônio cultural no Japão e, também, à disseminação de princípios
da estética japonesa e do gosto pela cerâmica mundo afora.


          A influência da cerâmica japonesa pode ser percebida fortemente na
Europa já no início do século XX, especialmente na Inglaterra, onde o ceramista
Bernard Leach criou e promoveu a fusão que ficou conhecida como anglo-oriental. Na
França e em outros países, as tendências artísticas da cerâmica e o movimento Art
Nouveau, marcados por uma predileção pelo exótico, fizeram sua interpretação da
estética japonesa, o japonismo. Mesmo no Brasil a influência é verificada, ainda que
tardiamente, a partir da segunda metade do século XX, quando instalaram-se por aqui
ceramistas vindos do Japão.
Embora a cerimônia do chá tenha contribuído para a propagação
internacional da cerâmica japonesa, é importante notar que é a culinária japonesa o
fator determinante para a sua popularização. Pratos como sushi e sashimi, por
exemplo, são elaborados hoje em restaurantes e fast-foods de todo o mundo e, mais
no sentido de reforçar uma ambientação e uma identidade tipicamente japonesas,
costumam ser servidos em aparelhos adaptados ou em cerâmicas apropriadas. Mais
recentemente, existe também uma tendência de utilização doméstica de cerâmicas
japonesas para pratos ocidentais do dia-a-dia.


           É neste processo que se verifica uma certa descontextualização do chawan
e da cerâmica japonesa como um todo. A necessidade da massificação nas sociedades
contemporâneas impõe um modo de ver e de sentir as coisas bastante superficial e
urgente. Os estereótipos que se traduzem em estilos diluídos mostram-se mais
eficientes que os arquétipos quando se trata de identificar algo como sendo
tipicamente japonês. É por isto que chawans Shino ou Oribe originais são menos
associados à cultura japonesa que uma tigela de louça industrial na forma de cumbuca
com a aplicação de um decalque lembrando vagamente um ideograma chinês.


           Também é forçoso reconhecer que, popularmente, as formas industriais
resultantes de processos de injeção a seco tendem a ser preferidas em detrimento das
formas obtidas a partir da argila modelada ou torneada, ainda mais se se considerar a
sua acessibilidade, seja do ponto de vista da quantidade disponível e visível aos olhos
do consumidor, seja do ponto de vista do custo. Pelo menos desde a geração dos
grandes ceramistas ingleses William Staite-Murray, Bernard Leach e Michael Cardew, a
cerâmica propriamente, não apenas a japonesa, é antes um processo de produção de
objetos caros e exclusivos, talvez artísticos. Leach costumava acusar Staite-Murray de
concentrar-se em artigos luxuosos, decorativos, "artísticos", e defendia a produção de
artigos simplesmente personalisados, utilitários, "éticos". Na verdade, os preços das
obras tanto de um quanto de outro eram bastante altos e equivalentes, destinados a
um grupo seleto de colecionadores e aficcionados. Segundo Clark, embora
produzissem peças que eram vendidas por até cem libras, as peças mais consumidas
de ambos não custavam mais de dez, sendo que, na época, o trabalhador britânico
médio recebia cerca de cinco libras por semana.


           No Japão, o chawan propriamente é um objeto ritual que, no contexto de
uma sociedade moderna, é visto como objeto de arte. No resto do mundo, e
particularmente no Brasil, é importante atentar para o fato de que a cerimônia do chá,
embora seja adotada por pequenos grupos interessados tanto na filosofia Zen quanto
em certo exotismo ou por imigrantes que buscam preservar suas raízes, é uma prática
importada e bastante limitada. Mas a dimensão artístico-filosófica do chawan pode
abrir algumas possibilidades de trabalho e pesquisa para os ceramistas de ateliê não-
japoneses, já que se trata de um objeto expressivo e aberto a leituras diversas mesmo
no Japão. Ainda que a sua função seja preservada, pode ser bastante interessante
exercitar o desenvolvimento de chawans realçando interpretações de diferentes
artistas e de diferentes culturas, como a brasileira. O estudo sobre a "poética" do
chawan é outro caminho a ser explorado. Materiais e técnicas de decoração específicos
dos chawans podem ser estudados para aplicação em outros tipos de objetos. A
investigação destas possibilidades pode ser importante também no sentido de reforçar
a diversidade no universo dos utensílios para a mesa, de multiplicar os gostos e as
preferências socialmente estabelecidas e de aprofundar uma cultura visual, ações tão
necessárias ao cenário brasileiro.




REFERÊNCIAS




CLARK, Garth. The Potter's Art: A Complete History of Pottery in Britain. Inglaterra:
Phaedon, 1995.


HARRIS, Victor. Jomon Pottery in Ancient Japan IN FREESTONE, Ian e GAIMSTER, David.
Pottery in the Making: World Ceramic Traditions, Inglaterra: British Museum Press, 1997.


HARRIS, Victor. Ash-Glazed Stoneware in Japan IN FREESTONE, Ian e GAIMSTER, David.
Pottery in the Making: World Ceramic Traditions, Inglaterra: British Museum Press, 1997.


SHIMIZU, Christine. La Céramique de la Cérémonie du Thé IN Japon, Saveurs et
Sérénité: La Cérémonie du Thé dans le Collections du Musée des Arts Idemitsu. França:
Musée Cernuschi, 1995.


SIMPSON, Penny; KITTO, Lucy e SODEOKA, Kanji. The Japanese Pottery Handbook. 3ª
ed. Japão: Kodansha International Ltd., 1981.

Más contenido relacionado

Destacado

2024 State of Marketing Report – by Hubspot
2024 State of Marketing Report – by Hubspot2024 State of Marketing Report – by Hubspot
2024 State of Marketing Report – by HubspotMarius Sescu
 
Everything You Need To Know About ChatGPT
Everything You Need To Know About ChatGPTEverything You Need To Know About ChatGPT
Everything You Need To Know About ChatGPTExpeed Software
 
Product Design Trends in 2024 | Teenage Engineerings
Product Design Trends in 2024 | Teenage EngineeringsProduct Design Trends in 2024 | Teenage Engineerings
Product Design Trends in 2024 | Teenage EngineeringsPixeldarts
 
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental Health
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental HealthHow Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental Health
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental HealthThinkNow
 
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdf
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdfAI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdf
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdfmarketingartwork
 
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024Neil Kimberley
 
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)contently
 
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024How to Prepare For a Successful Job Search for 2024
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024Albert Qian
 
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie Insights
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie InsightsSocial Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie Insights
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie InsightsKurio // The Social Media Age(ncy)
 
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024Search Engine Journal
 
5 Public speaking tips from TED - Visualized summary
5 Public speaking tips from TED - Visualized summary5 Public speaking tips from TED - Visualized summary
5 Public speaking tips from TED - Visualized summarySpeakerHub
 
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd Clark Boyd
 
Getting into the tech field. what next
Getting into the tech field. what next Getting into the tech field. what next
Getting into the tech field. what next Tessa Mero
 
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search Intent
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search IntentGoogle's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search Intent
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search IntentLily Ray
 
Time Management & Productivity - Best Practices
Time Management & Productivity -  Best PracticesTime Management & Productivity -  Best Practices
Time Management & Productivity - Best PracticesVit Horky
 
The six step guide to practical project management
The six step guide to practical project managementThe six step guide to practical project management
The six step guide to practical project managementMindGenius
 
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...RachelPearson36
 

Destacado (20)

2024 State of Marketing Report – by Hubspot
2024 State of Marketing Report – by Hubspot2024 State of Marketing Report – by Hubspot
2024 State of Marketing Report – by Hubspot
 
Everything You Need To Know About ChatGPT
Everything You Need To Know About ChatGPTEverything You Need To Know About ChatGPT
Everything You Need To Know About ChatGPT
 
Product Design Trends in 2024 | Teenage Engineerings
Product Design Trends in 2024 | Teenage EngineeringsProduct Design Trends in 2024 | Teenage Engineerings
Product Design Trends in 2024 | Teenage Engineerings
 
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental Health
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental HealthHow Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental Health
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental Health
 
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdf
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdfAI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdf
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdf
 
Skeleton Culture Code
Skeleton Culture CodeSkeleton Culture Code
Skeleton Culture Code
 
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024
 
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)
 
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024How to Prepare For a Successful Job Search for 2024
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024
 
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie Insights
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie InsightsSocial Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie Insights
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie Insights
 
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024
 
5 Public speaking tips from TED - Visualized summary
5 Public speaking tips from TED - Visualized summary5 Public speaking tips from TED - Visualized summary
5 Public speaking tips from TED - Visualized summary
 
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd
 
Getting into the tech field. what next
Getting into the tech field. what next Getting into the tech field. what next
Getting into the tech field. what next
 
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search Intent
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search IntentGoogle's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search Intent
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search Intent
 
How to have difficult conversations
How to have difficult conversations How to have difficult conversations
How to have difficult conversations
 
Introduction to Data Science
Introduction to Data ScienceIntroduction to Data Science
Introduction to Data Science
 
Time Management & Productivity - Best Practices
Time Management & Productivity -  Best PracticesTime Management & Productivity -  Best Practices
Time Management & Productivity - Best Practices
 
The six step guide to practical project management
The six step guide to practical project managementThe six step guide to practical project management
The six step guide to practical project management
 
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...
 

O que é um chawan? Uma breve história da xícara de chá japonesa

  • 1. O que é um chawan? Akira Umeda 2002 Desde a época mais remota, objetos destinados a conter alimentos e bebidas são produzidos e utilizados em todas as culturas. Dentre eles, os de cerâmica compõem um grupo bastante expressivo. Segundo Harris, os mais antigos fragmentos de cerâmica identificados até o momento foram localizados em Fukui, no Japão, datando de aproximadamente 12.700 a.C. As transformações sociais, econômicas e tecnológicas ocorridas desde então afetaram profundamente a cerâmica japonesa. Ao mesmo tempo, estes milênios consolidaram a cerâmica como uma das grandes tradições do Japão. Assim, existem objetos cujas formas atingiram seu padrão de excelência já a partir do século XIII e que continuam sendo produzidos ainda hoje com muito poucas alterações. O chawan, em seus diversos estilos, é um destes objetos. O hábito de consumir o chá verde em pó (matcha) foi introduzido no Japão pelos monges que se dedicavam aos estudos da filosofia Zen nas proximidades do Monte Tianmu (conhecido no Japão como Monte Temmoku), localizado na província chinesa de Zheijiang. Nos monastérios, o chá era apreciado pelas suas propriedades curativas e estimulantes, sendo bebido em utensílio apropriado chamado chawan, que significa, literalmente, tigela (wan) para chá (cha). Com o crescimento da influência do Zen Budismo, o gosto pelo chá difundiu-se pelos vários segmentos da sociedade japonesa, passando a ser consumido em cerimônias que, com o passar do tempo, foram codificadas pelos mestres que as coordenavam. Segundo Shimizu, o primeiro relato acerca dos utensílios para a cerimônia
  • 2. do chá foi feito por Nampo Jomyo em 1267. Naquela época, os chawans mais utilizados pelos shoguns japoneses eram produzidos na China e, como foram trazidos pelos monges Zen que estudavam no Monte Tianmu, ficaram conhecidos no Japão como chawans Temmoku. Esta denominação compreende chawans com formas, esmaltagens e decorações sensivelmente diferentes entre si, embora tenham em comum a coloração dominante que varia do marrom ao preto. No Japão, o tipo clássico e emblemático de chawan Temmoku é o de estilo Jian (também conhecido como Temmoku "pele de lebre"), cuja forma passou a ser reproduzida domesticamente nos fornos de Mino a partir do século XV. O chawan Temmoku continua a ser produzido ainda hoje no Japão, sendo uma especialidade rara entre os ceramistas, devido à grande dificuldade de sua execução. O ceramista Akira Suzuki, um destes poucos, informa que a produção deste tipo de chawan torna-se muito cara devido a uma alta taxa de perdas. Segundo ele, dentre 100 chawans produzidos, apenas cerca de 3 ou 4 são absolutamente perfeitos. Embora o yuteki (do tipo "mancha de óleo") e yohen (esmalte de cinza alterado e escorrido durante a queima com padrão muito próximo ao do tipo "pele de lebre") sejam os dois tipos mais comuns de esmalte Temmoku no Japão contemporâneo, Suzuki trabalha com maior número de variações, cada qual denominada por ele a partir de suas características: radenyo (madrepérola), kioyo (rosa flor de cerejeira), heki (azul real) e ki (ouro). No ocidente, o termo Temmoku tem sido genericamente utilizado para designar uma grande gama de esmaltes de coloração entre o marrom e o preto e apenas raramente remete aos chawans da Dinastia Song. Neste sentido, é importante salientar o fato de que, entre os séculos XIII e XVI, os chawans Temmoku eram de uso exclusivo dos shoguns e dos monges em cerimônias bastante formais e exclusivas, ou seja, eram utensílios destinados às elites japonesas e que não eram acessíveis aos
  • 3. outros segmentos sociais. Em boa medida, os chawans Temmoku carregam este significado até os dias de hoje. Os grandes mestres japoneses da cerimônia do chá exerciam grande influência na escolha dos utensílios. Murata Juko (1422-1502), o primeiro mestre, tinha um estilo bastante formal, definido por alguns especialistas como ostentatório e exótico, optando principalmente por utensílios de proveniência chinesa, embora incluísse também a produção dos fornos japoneses de Bizen e Shigaraki. Seu sucessor, Takeno Joo (1502-1555), fundador de um estilo semi-formal nas cerimônias do chá, estimulou inicialmente a utilização da cerâmica produzida no Japão, especialmente de chawans que reproduziam os Temmoku chineses. A produção local apresentava esmaltes com colorações que variavam de um marrom claro ou amarelado (chamado ki-Temmoku) até um branco leitoso (chamado shiro-Temmoku). Mais tarde, objetivando popularizar a cerimônia do chá, Takeno Joo instituiu um gosto por utensílios de aparência mais simples. Deu preferência às despojadas tigelas originalmente destinadas a conter arroz, de origem coreana, chamadas de chawan Koryo ou Korai chawan, que eram utilizadas cotidianamente pela população de origem não-aristocrática desde o século XII. A partir de então, as tigelas mais simples passaram a integrar a cerimônia do chá, sendo também reconhecidas como chawans. Muitos especialistas costumam referir-se aos esmaltes utilizados nos chawans de estilo Korai como sendo "semelhantes a um Celadon", por apresentarem tons do bege ao castanho ligeiramente azulados ou esverdeados. O termo Celadon tem origem francesa, sendo utilizado no ocidente para definir um esmalte de coloração que varia dos sutis tons de azul ao verde-jade. Em 1610, foi publicado o romance "L'Astrée", de Honoré d'Urfe, que tinha como herói o personagem Celadon, cujos trajes sempre verdes tornaram-se então a última palavra na moda do vestuário europeu. Na mesma época, chegaram à Europa os primeiros exemplares da cerâmica
  • 4. chinesa de tons esverdeados que, seguindo a moda do vestuário, foram aclamados também como Celadon. A tradição da cerâmica de tons azulados e esverdeados remonta ao período chinês das Cinco Dinastias (907 - 960), quando era conhecida como Longquan Qingci, que significa "porcelana verde". A cerâmica com estas características foi também produzida na Coréia, principalmente ao longo da Dinastia Koryo (918 - 1392). No Japão, esta cerâmica é conhecida como Seiji e é raramente praticada pelos ceramistas, devido às grandes dificuldades técnicas, como ocorre com o Temmoku. As cerimônias do chá informais foram criadas pelo mestre Sen no Rikyu (1522-1591), que buscou difundi-las ainda mais na sociedade japonesa e aprofundou o conceito estético relacionado à simplicidade e ao despojamento, chamado Wabi Sabi, como norteador na escolha dos utensílios. Sen no Rikyu contribuiu enormemente para reforçar a visão tipicamente japonesa que considera objetos simples de uso cotidiano como arte. Neste sentido, a partir do final do século XVI, chawans de diferentes estilos passaram a ser utilizados nas cerimônias, verificando-se a preferência pela produção nacional e a consolidação de uma estética propriamente japonesa, situação que foi potencializada pela política de isolamento instituída por Tokugawa Ieyasu que perduraria de 1639 a 1858. Também houve um aumento da influência dos mestres do chá nos fornos japoneses que, ao lado do que produziam regularmente, passaram a incluir os utensílios para as cerimônias. O período de transição entre os séculos XVI e XVII, conhecido como Momoyama, é tido como o apogeu da produção de cerâmica para a cerimônia do chá. Vários dos exercícios estilísticos iniciados naquela época tornaram-se sólidas tradições, constituíndo grandes vertentes da cerâmica japonesa até os dias atuais. Embora as
  • 5. influências chinesa e coreana tenham sido determinantes para o avanço da cerâmica japonesa, a partir de então os ceramistas concentraram-se principalmente no desenvolvimento de uma nova linguagem. Os chawans Shino, cuja produção iniciou-se nos fornos de Mino e Seto, estão entre os mais inovadores surgidos na época. As formas cilíndricas baixas (hantsutsu gata) e altas (tsutsu gata) são dominantes, bem como as linhas assimétricas e distorcidas. O esmalte base utilizado é chamado de chosekiyu, de coloração esbranquiçada, tendo como principal componente um feldspato. Um estilo bastante próximo do Shino é chamado de Oribe, cujos chawans têm uma forma bastante peculiar chamada kutsu gata (forma de um calçado utilizado na época) e são esmaltados em preto (kuro oribe) e branco. Outra grande tradição estilística dentre os chawans é chamada de Raku, iniciada por Sasaki Chojiro, também no período Momoyama. É a perfeita expressão da simplicidade e da serenidade valorizados por Sen no Rikyu, através do conceito de Wabi-Sabi. A sua forma cilíndrica e regular é modelada manualmente a partir de um disco de argila. O esmalte utilizado é de baixa temperatura, à base de chumbo (namariyu), resultando em duas colorações básicas, preto e avermelhado, obtidas através do resfriamento brusco das peças, que são retiradas do forno durante o processo de queima a temperaturas entre 800 e 1000°C. Estudiosos da cerâmica afirmam que a grande demanda por utensílios para a cerimônia do chá e a necessidade de produzi-los mais rapidamente deram origem à queima Raku. Mas também é importante frisar que, apesar do desenvolvimento da cerâmica de alta temperatura no Japão, ainda no período Momoyama, as peças de baixa temperatura eram largamente utilizadas no dia-a-dia. Com o passar do tempo, as formas desenvolvidas pela família Raku (termo
  • 6. que significa "tranquilidade") foram se diversificando e continuam sendo produzidas ainda hoje. No ocidente, o termo Raku é utilizado para designar uma técnica mais associada à decoração da superfície das peças, não apresentando qualquer referência a uma forma específica de chawan. Os fornos de Bizen e Shigaraki, seguindo a tradição da ancestral cerâmica Sue, que produzem até hoje uma cerâmica "acidental" ou "naturalmente" esmaltada pelas cinzas que se depositam nas peças durante a queima, também vinham desenvolvendo utensílios para a cerimônia do chá. Em Bizen, a argila utilizada é bastante fina, a forma das peças é mais uniforme e a principal característica estilística são as "marcas de fogo" (hidasuki) resultantes da utilização de material orgânico (como, por exemplo, palha) para preencher o espaço entre as peças no forno. Diferentemente, a argila de Shigaraki é mais grosseira e as formas das peças são mais irregulares, apresentando superfícies marcadas por grãos aparentes de feldspato e quartzo sob as áreas "acidentalmente" esmaltadas. Bastante tradicionais e apreciados pelos mestres da cerimônia do chá são também os chawans Hagi e Ido e os de estilo Irabo, todos de inspiração coreana. Os primeiros fornos de Hagi foram instalados no início do século XVII. Com o passar do tempo, a influência coreana foi diluída e os ceramistas de Hagi desenvolveram formas próprias marcadas por grande despojamento e elegância. Ido é um termo que se refere à cerâmica coreana de baixa temperatura de uso cotidiano, cuja produção iniciou-se no século XV. Os desdobramentos nas preferências dos mestres do chá fizeram com que as tigelas para arroz do tipo Ido passassem a ser utilizadas nas cerimônias do chá. Desde então, consolidaram-se como um dos grandes estilos de chawan. Irabo é um termo derivado de "ira-ira", algo como "irritação", referência à sensação provocada pela argila grosseira utilizada em alguns chawans de origem coreana. Esta característica, muito contrastante em relação ao estilo chinês, é particularmente apreciada no Japão até os dias de hoje.
  • 7. O chawan é um dos objetos que integram a cerimônia do chá e, como tal, tem uma função utilitária -é nele que o chá verde (matcha) é preparado e servido aos convidados- e, também, uma função ritual. Afinal, trata-se de um objeto inserido no contexto de uma cerimônia, de um ritual, e não de um objeto cuja utilização vincula-se ao cotidiano doméstico. Mais recentemente, em várias partes do mundo, "chawan" passou a ser um termo utilizado para designar uma tigela tipicamente japonesa ou oriental independentemente de sua função. Assim, entende-se que alimentos como arroz, caldos e sobremesas possam ser servidos em tigelas chamadas de "chawan", ao passo que a idéia de tomar chá em um chawan costuma provocar estranhamento, evidenciando o fato de que ele é cada vez menos associado à cerimônia do chá. No Japão, existem outros objetos destinados a conter chá para ser bebido. Tigelas semelhantes ao chawan, também de cerâmica, porém menores, chamadas "sencha chawan", são utilizadas para servir o chá verde do tipo sencha. Copos de cerâmica, chamados yunomi, são utilizados para servir chá verde comum ou qualquer outro tipo de chá. Além disto, outras tigelas parecidas com o chawan são utilizadas para diversas finalidades, algumas não específicas. Elas podem ser chamadas genericamente de wan ou hachi. Para o arroz, por exemplo, utiliza-se o meishi-jawan ou gohan-jawan. Outros pratos podem ser servidos em um donburi-bachi. As pequenas tigelas para soba são chamadas de soba-choko. Até mesmo um copo para saquê, chamado güinomi ou sake-choko, pode ter a forma de um pequeno wan. Todos estes objetos têm praticamente a mesma forma em diferentes tamanhos e decorações, mas possuem funções distintas. Ou seja, sendo a tigela do tipo wan ou hachi uma forma comum na cerâmica japonesa, é importante atentar para a sua função. No caso
  • 8. do chawan, é fundamental ter em mente tanto a sua função utilitária como a ritual, preocupação dispensável nos wans destinados, por exemplo, a servir arroz. A forma básica de um chawan pode ser vista na ilustração acima. A característica de cada uma das partes indicadas costuma ser avaliada e apreciada pelos especialistas, seja do ponto de vista técnico ou artístico e filosófico. Além disto, o chawan também é visto como um todo, de forma mais complexa ou metafísica, como uma espécie de "paisagem". Para estas análises, concorrem tanto as informações visuais quanto as táteis, além daquilo que pode ser apreendido através de uma certa "poética" do chawan. De modo geral, estes critérios específicos aplicados ao chawan diferem bastante daqueles utilizados para avaliar um objeto comum, como um prato para uso cotidiano no ocidente; eventualmente, podem mesmo opor-se a eles. Do ponto de vista da utilização, o chawan deve possibilitar o correto preparo do matcha em seu interior. Isto significa ter espaço suficiente para o manuseio do chasen, artefato de bambu utilizado para misturar vigorosamente em movimentos contínuos a água quente ao chá em pó. O diâmetro da borda de um chawan varia de acordo com o seu estilo, mas situa-se entre 9,5 cm (para um chawan do tipo cilíndrico que lembra um yunomi) e 16 cm (para um chawan do tipo mais arredondado e amplo). A sua profundidade varia entre 5 cm e 8 cm, aproximadamente; a altura, entre 7 e 10
  • 9. cm. A preparação do chá no chawan requer boa estabilidade e, neste sentido, muita atenção deve ser conferida à base e ao pé. Também é desejável que o chawan seja feito de uma cerâmica impermeável. Em geral, utilizam-se argilas refratárias para queima em alta temperatura que são esmaltadas, seja por meio da aplicação de esmaltes compostos ou por decorrência do processo de queima (esmaltagem "acidental" com cinzas em uma queima a lenha, por exemplo). Mas também aqui há variações e exceções. Os chawans do tipo Raku, por exemplo, são exemplos característicos da cerâmica de baixa temperatura. Segundo Shimizu, a coloração preta do esmalte (kuroraku) é obtida a uma temperatura de 1000° e a vermelha (akaraku) a 800° em fornos do tipo mufla. Os chawans mais antigos do tipo Ido também eram queimados em baixa temperatura. A porosidade de algumas argilas, como as utilizadas nos chawans de estilo Hagi, faz com que resíduos de chá se acumulem ao longo do tempo, alterando a sua coloração. Ao contrário do que se poderia pensar, trata-se de uma característica bastante admirada pelos especialistas e de um fator que pode valorizar enormemente um chawan. Um chawan cuja superfície é lisa e uniforme, que não possui reentrâncias especialmente no seu interior, onde resíduos podem se acumular, e cujo esmalte não se apresenta craquelado seria o ideal do ponto de vista da higiene. Os chawans mais próximos desta descrição talvez sejam os do tipo Temmoku. No entanto, é preciso considerar que quase todos os estilos de chawan apresentam pequenas ou grandes irregularidades, rugosidades, saliências e texturas. Alguns esmaltes, como o Celadon, são craquelados; outros, como o Shino e o Hagi, são rugosos e apresentam retrações, além de fundir de maneira bastante irregular. Os chawans Oribe são extremamente deformados. As argilas de Shigaraki são grosseiras e apresentam "explosões" de grãos de feldspato e quartzo na superfície dos chawans. Estas e tantas outras características que contrariam certos princípios de higiene e limpeza são profundamente admiradas nos chawans.
  • 10. Muitos chawans recebem esmaltes plúmbicos, como os do tipo Raku e Sansai (três cores), que normalmente não são recomendados para peças utilitárias devido à sua toxicidade. Nem por isto deixam de ser apreciados e utilizados nas cerimônias do chá. Os chawans Raku, por exemplo, são tidos como um dos mais apropriados ao espírito da cerimônia, devido ao seu despojamento, a sua sobriedade e, principalmente, a maneira agradável com que se acomodam entre as palmas das mãos dos participantes da cerimônia, característica essencial de um chawan. Uma outra peculiaridade do chawan é a parte chamada chadamari, localizada em seu fundo, onde o chá deve ficar acumulado, em pequena quantidade, após ser consumido. Esta parte costuma receber grande atenção dos ceramistas e dos especialistas na cerimônia do chá. Não se trata de um "orifício", mas de uma suave depressão. Durante a cerimônia, os convidados costumam observar atentamente o chawan. Especial atenção é dada ao contraste entre a cor esverdeada intensa do matcha e a coloração verificada no interior do chawan. Não existe uma preferência única quanto ao contraste desejado. Assim, as cores escuras e profundas, como as de um Temmoku, são apreciadas tanto quanto o branco leitoso de um Shino ou toda a gama de tonalidades terrosas ou aquelas incertas e fugidias. O pé de um chawan (kodai) também é cuidadosamente observado ao final da cerimônia. Normalmente, é apenas nesta parte em que é possível ver a argila de que é feita um chawan, já que costuma ficar sem a cobertura de um esmalte. O pé também indica a habilidade, a experiência e o estilo característico de um ceramista. Tradicionalmente, os tipos de pé variam tanto quanto os estilos de chawan, e os ceramistas conferem especial atenção à sua confecção, uma espécie de assinatura. Como se pode perceber, o chawan é uma tigela simples, mas não é uma
  • 11. simples tigela. Formas semelhantes a um chawan surgiram em praticamente todas as sociedades cerâmicas, mas a cultura japonesa conferiu a elas uma dimensão quase intangível, envolta em yugen, a misteriosa impenetrabilidade das coisas. É por esta razão que o chawan costuma ser entendido como um objeto expressivo, que reflete a imperfeição e a inconclusão do homem e do mundo. Em resumo, um objeto de arte. Ao longo de vários séculos, a cerâmica consolidou-se como patrimônio cultural no Japão, situação que não se repete em qualquer parte do mundo. Assim, os diversos segmentos da sociedade japonesa dispõem de elementos básicos que possibilitam compreender, apreciar e consumir a cerâmica. É certo que a adoção do sistema fabril, a partir do século XIX, teve um grande impacto sobre os padrões de produção e consumo no Japão, introduzindo um gosto tipicamente ocidental. O período inicial da industrialização japonesa coincide com o declínio da qualidade de sua cerâmica tradicional e mesmo da reputação dos mestres ceramistas. É conhecido o caso do mestre Kenzan VI, herdeiro da grande tradição de Ogata Kenzan, que no início do século XX produzia uma cerâmica medíocre para poder sobreviver nos arredores de Tokyo e que teve como alunos Bernard Leach e Kenkichi Tomimoto. Por outro lado, a intensa participação no mercado internacional levou à adoção de políticas de preservação do patrimônio cultural no Japão e, também, à disseminação de princípios da estética japonesa e do gosto pela cerâmica mundo afora. A influência da cerâmica japonesa pode ser percebida fortemente na Europa já no início do século XX, especialmente na Inglaterra, onde o ceramista Bernard Leach criou e promoveu a fusão que ficou conhecida como anglo-oriental. Na França e em outros países, as tendências artísticas da cerâmica e o movimento Art Nouveau, marcados por uma predileção pelo exótico, fizeram sua interpretação da estética japonesa, o japonismo. Mesmo no Brasil a influência é verificada, ainda que tardiamente, a partir da segunda metade do século XX, quando instalaram-se por aqui ceramistas vindos do Japão.
  • 12. Embora a cerimônia do chá tenha contribuído para a propagação internacional da cerâmica japonesa, é importante notar que é a culinária japonesa o fator determinante para a sua popularização. Pratos como sushi e sashimi, por exemplo, são elaborados hoje em restaurantes e fast-foods de todo o mundo e, mais no sentido de reforçar uma ambientação e uma identidade tipicamente japonesas, costumam ser servidos em aparelhos adaptados ou em cerâmicas apropriadas. Mais recentemente, existe também uma tendência de utilização doméstica de cerâmicas japonesas para pratos ocidentais do dia-a-dia. É neste processo que se verifica uma certa descontextualização do chawan e da cerâmica japonesa como um todo. A necessidade da massificação nas sociedades contemporâneas impõe um modo de ver e de sentir as coisas bastante superficial e urgente. Os estereótipos que se traduzem em estilos diluídos mostram-se mais eficientes que os arquétipos quando se trata de identificar algo como sendo tipicamente japonês. É por isto que chawans Shino ou Oribe originais são menos associados à cultura japonesa que uma tigela de louça industrial na forma de cumbuca com a aplicação de um decalque lembrando vagamente um ideograma chinês. Também é forçoso reconhecer que, popularmente, as formas industriais resultantes de processos de injeção a seco tendem a ser preferidas em detrimento das formas obtidas a partir da argila modelada ou torneada, ainda mais se se considerar a sua acessibilidade, seja do ponto de vista da quantidade disponível e visível aos olhos do consumidor, seja do ponto de vista do custo. Pelo menos desde a geração dos grandes ceramistas ingleses William Staite-Murray, Bernard Leach e Michael Cardew, a cerâmica propriamente, não apenas a japonesa, é antes um processo de produção de objetos caros e exclusivos, talvez artísticos. Leach costumava acusar Staite-Murray de concentrar-se em artigos luxuosos, decorativos, "artísticos", e defendia a produção de artigos simplesmente personalisados, utilitários, "éticos". Na verdade, os preços das
  • 13. obras tanto de um quanto de outro eram bastante altos e equivalentes, destinados a um grupo seleto de colecionadores e aficcionados. Segundo Clark, embora produzissem peças que eram vendidas por até cem libras, as peças mais consumidas de ambos não custavam mais de dez, sendo que, na época, o trabalhador britânico médio recebia cerca de cinco libras por semana. No Japão, o chawan propriamente é um objeto ritual que, no contexto de uma sociedade moderna, é visto como objeto de arte. No resto do mundo, e particularmente no Brasil, é importante atentar para o fato de que a cerimônia do chá, embora seja adotada por pequenos grupos interessados tanto na filosofia Zen quanto em certo exotismo ou por imigrantes que buscam preservar suas raízes, é uma prática importada e bastante limitada. Mas a dimensão artístico-filosófica do chawan pode abrir algumas possibilidades de trabalho e pesquisa para os ceramistas de ateliê não- japoneses, já que se trata de um objeto expressivo e aberto a leituras diversas mesmo no Japão. Ainda que a sua função seja preservada, pode ser bastante interessante exercitar o desenvolvimento de chawans realçando interpretações de diferentes artistas e de diferentes culturas, como a brasileira. O estudo sobre a "poética" do chawan é outro caminho a ser explorado. Materiais e técnicas de decoração específicos dos chawans podem ser estudados para aplicação em outros tipos de objetos. A investigação destas possibilidades pode ser importante também no sentido de reforçar a diversidade no universo dos utensílios para a mesa, de multiplicar os gostos e as preferências socialmente estabelecidas e de aprofundar uma cultura visual, ações tão necessárias ao cenário brasileiro. REFERÊNCIAS CLARK, Garth. The Potter's Art: A Complete History of Pottery in Britain. Inglaterra:
  • 14. Phaedon, 1995. HARRIS, Victor. Jomon Pottery in Ancient Japan IN FREESTONE, Ian e GAIMSTER, David. Pottery in the Making: World Ceramic Traditions, Inglaterra: British Museum Press, 1997. HARRIS, Victor. Ash-Glazed Stoneware in Japan IN FREESTONE, Ian e GAIMSTER, David. Pottery in the Making: World Ceramic Traditions, Inglaterra: British Museum Press, 1997. SHIMIZU, Christine. La Céramique de la Cérémonie du Thé IN Japon, Saveurs et Sérénité: La Cérémonie du Thé dans le Collections du Musée des Arts Idemitsu. França: Musée Cernuschi, 1995. SIMPSON, Penny; KITTO, Lucy e SODEOKA, Kanji. The Japanese Pottery Handbook. 3ª ed. Japão: Kodansha International Ltd., 1981.