1) O documento discute as visões realista e interdependentista das relações internacionais no pós-Guerra Fria.
2) Defende que ambas as visões podem ser complementares, desde que o realismo reconheça as mudanças no sistema internacional e a crescente importância da interdependência econômica.
3) Aponta três temas centrais da transição no pós-Guerra Fria: o papel em transformação dos Estados-nação, a integração econômica global e a emergência de novos atores e agendas nas relações
Para uma constituição democrática com caráter de urgência – 1
1963 3442-1-pb
1. u
•
o REALISMO DE CADA
interdependência e relações
políticas entre os Estados no
mundo pós- erra fria
•
•
We are presented with a rare
historical momem in which (...) the
transfonnations of economies are
blurring the lines between natwns1
Robert B. Reich
The boss of an internatwnal cempany
who staked everything on a strong
move of the world ecenomy towarda
integration in the next five years
would be a foal.2
The Economist
ivemos numa era de interdepen
dência. Esta frase vaga expressa
um sentimento mal compreendido,
embora generalizado, de que a-própria
natureza da política mundial está mu
dando."
Marcos B. A. Ga/vão
Assim começa, não o último livro da
moda sobre o chamado pás-guerra fria,
mas o já 'clássico' Power and interck
pencknce, lançado ainda nos anos 70.3
Os autores partem do pressuposto de
que nem os 'tradicionalistas', com sua
insistência na atualidade intocada dos
postulados do realismo, nem os 'mo
dernistas" convencidos de que as tele
comunicações e o avião ajato estariam
criando uma 'aldeia global' sem fron
teiras, oferecem uma moldura adequa
da à compreensão da interdependên
cia. Enquanto 05 primeiros insistem na
prevalência do fator estratégico-mili
tar e revelam-ee incapazes de atribuir
o necessário peso ao aprofundamento
da interdependência econômica, social
e ecológica, 08 últimos apreBSam-ee em
considerar que 08 avanços tecnológicos
e o aumento das transações internacio-
Nota:. O presente artigo é escrito 8 Ululo pcsoai e não representa o pen60mento do Ministério dQ8
RelAções Exleriore8. Gelson Fonseca Jr., Luís Fernando Panelli César, Evandro OidoneL, Sérgio DanE!e,
Alexandre Parola e Gisela PQ8Choal contribufram com críticas e sugestões.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 12, 1993, p. 149-161.
2. •
150 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1993/12
nais levariam a um mundo em que 08
Estados e o controle da força armada
perderiam importância.
4
Com a vantagem da perspectiva de
meados de 1993, sabemos que os mo
dernistas acertaram muito mais do
que Keohane e Nye jamais poderiam
supor. Tal fàto não retira, porem, a
utilidade de muitos aspectos desenvol·
vidos em Power anel interdependence,
razão pela qual o presente texto come
ça por um breve apanhado de algumas
idéias centrais do livro.
Os autores partem de raciocínio
simples: interdependência 'significa
dependência mútua e, no caso de polí
tica internacional, refere-se a situa
ções de efeito recíproco entre países ou
atores em diferentes países. Tais efei·
tos decoJ'J'em, com freqüência crescen
te, de transações internacionais - flu
xos de dinheiro, bens, pessoas e men
sagens através das fronteiras. Evitan
do otimism06 infundados, Keohane e
Nye advertem que tal definição não se
restringe a situações em que DCOne
beneficio mútuo (e vão mais além): to
da relação de interdependência envol
ve custos, ao menos na COllUa de limi
tação da autonomia, e não há como
saber a priori se os ganhos serão sufi
cientes para compensá-los. Aliás, tam
pouco haveria razões para assumir que
a possibilidade de ganhos compartidos
ajudaria a diminuir a disputa para
apropriá-los: em 6uma, não estaria
ocorrendoB substituição do velbo mun
do mau do conflito internacional pelo
novo mundo bom da cooperação.
Em geral, observam, as situações de
interdependência não são equilibra·
das; encontram-se geralmente entre os
extremos da simetria perfeita, de um
lado, e da dependência completa, do
outro. A posição ocupada nesse espec·
tro afeta as condições de barganha en
tre os atores envolvidos,pois a interde
pendência assimétrica (em que um de-
pende mais do que o outro) pode, evi·
dentemente, transeOJmAr�e em fonte
elou instrumento de poder. Por si SÓ, no
entanto, essa Assimetria não explica o
desdobramento e o resultado dos pro
cessos específicos de negociação,já que
há diversas modalidades de interde
pendência, as quais se tradurem em
diferentes relações de poder.
Antes de delinearem seu modelo al
ternativo, Keohane e Nye invocam o
'papa' do realismo e sua obra.mestra,
6
para resumir os fundamentos daquela
linha de pensamento:
a) os Estados são05 atores dominan
tes Das relações internacionais e com
portam-se como unidades coerentes;
b) embora outros,instrumentos tam
bém possam ser utilizados, o liSO da
força, ou a ameaça de seu emprego, é a
COlma mais efetiva de exercício do po
der,
c) existe uma hierarquia de temas
na política mundial, com predomínio
das questões de segurança militar so
bre 08 assuntos econômicos e sociais.
Aos parãmetros básicos do realis
mo, Keohane e Nye opõem as linhas
essenciais do modelo que designam 'in_
terdependência complexa':
a) as sociedades são ligadas por 'ca
nais múltiplos'- fOl'lIIais,de governo a
governo; infol"mais,entre elites gover
namentais e não-governamentais, e
entre organizações transnacionais;
b) a agenda das relações interesta
tais não obedece a uma hierarquia clara
e consistente - os temas de segurança
nem sempre predominam; muitas ques
tões têm origem no cenário nacional e
díficultam a distinção entre interno e
externo; matérias diferentes levam a
coalizões também distintas (dentro, fo
ra e entre 06 governos) e acarretam
graus variados de conflito;
c) quando a interdependência com
plexa prevalece numa dada região ou
num determinado tema, os governos
3. o REAUSMO DE CADA UM 151
envolvidos não empregam a força uns
contra os outros.
Enquanto model06, tal como descri
tos acima, o realismo e a interdepen
dência complexa não são necessaria
mente excludentes e podem mesmo
complementar-.;e. Em certo sentido,
trata-se de duas formas próximas de
analisar arealidade,já que ambas pro
curam revelar o mundo como ele é, não
como deveria ser. A diferença funda
mental entre elas reside na disp06ição
menor ou maior de reconhecer que
houve mudanças e6senciaia nas re
gi85, ou pelo menoe na prática das
relações internacionais..
Os chamados 'realistas' insistem na
atualidade de seus pressupostos, com
uma certa dose de fatalismo: o mundo
é assim, a natureza humana é assim,
8S relações internacionais são assim.
Quando confrontados, por exemplo,
com o fato de que há décadas não ocor
rem guerras entre 05 atores mais rele
vantes do sistema internacional, ou en
tre duas democracias, respondem com
o argumento de que, em primeiro lu
gar, essa paz deveu--se a uma situação
clara de equilíbrio de poder entre as
superpotências, em consonância, por
tanto, com as prescrições do realismo.
E raramente deixam de assinalar que,
em última instância, 06 conflitos ten
derão a ser dirimidos entre Estad06, a
partir do uso, ou ameaça de emprego
da força. Por detrás da visão realista
parece haver sempre um tom de sahe
doria confol'mista: não se iludam com
as aparências, o mundo não mudou
(nem vai mudar) tanto assim.
Já os chamad06 'modernistas', na
designação de Keohane e Nye, exage
ram na ênfase que dão 806 sinais de
mudança. Se isto já ocorria nos anos
70, com muito mais razão acontece ho
je: a guerra fria acabou, a União Sovié
tica dissolveu·se, o comunismo está em•
vias de extinção. E hem mais fácil su-
•
por, idealmente, que vivemos num
mundo novo do que insistir em que, no
essencial, as COi888 continuam iguais.
A maior parte da literatura sobre
relações internacionais ainda é produ
zida n06 Estados Unid06 e dirige...e
prioritariamente ao público daquele
país. Ora, 06 acontecimentos dos ú1ti
m06 quatro an06 afetaram fundamen
talmente a posição d06 EUA no mundo
e alteraram o pepel que lhes cahe no
cenário internacional. Essa circui15-
tãncia, aliada à percepção de perda de
espaço relativo no conjunto da econo
mia mundial, fenômeno que vem sendo
apontado há mais de vinte an06, refor
çou ainda mais a vocação do mundo
acadêmico para tentar identificar no
vas tendências globais e indicar cami
nhos alternativos.
Há mais de quinze anos Keohane e
Nye já alertavam que, para os EUA,
uma questão central seria como exercer
liderança internacional sem capacidade
hegemônica: 'Temos de aprender tanto
a conviver com a interdependência, co
mo a utilizá-la no exercício de lideran
ça".6 Lester Thurow, em 1992, também
anuncia novidades e oferece conselhos:•
"E dificil admitir que o mundo mudou e
que as n0S88� antigas virtudes já não
são virtudes. E muito difícil reconhecer
que novas realidades forçam a criação
de novas virtudes - noV06 procedimen
toe, novas regras, e novas instituições".7
Laura Tyaon é ainda mais explícita: "O
colapso da URSS oferece oportunidade
para reconsiderar prioridadee nacio
nais e para ti"ocar 06 deeafi08 militaiC6
1�t��do pelosdesafioseconômiC06 do
Aliás, essa é uma diferença entre 08
modernistas (sobretudo 06 economis
tas) e 06 realistas. Os primeiroe apon
tam para a interdependência econômi
ca, para o processo da chamada 'globa
lização', e, a partir daí, faum suas
anãlises e recomendações. Os últimos,
4. 152 ESTIJDOS HISTÓRICOS-1993/12
jX)r sua vez, comportam-se como ver·
dadeiroe marxistas às aveesB5, ou seja,
encaram as conelaçóes de poder e se
gurança militar como dado estrutural,
e 88 mudanÇ8B no plano econômico,
como fenômeno8 8upereetruturais.
Contrariam, Assim, evidências inefuw
táveis de que, nas palaVl'88 de Gelson
FoD6eC8. Jr., °8 economia deixa de ser
comandada pelas nece68idades de se
gurança e passa a gerar pautas para a
decisão política".
9
De qualquer modo, não épropósito do
pl'esente trabalho aprofundar a análi.se
das divergêllL'ias de ponto de vista entre
cOl'l'entes teóricas. O objetivo da descri
ção simplificada dos dois modelos é Ie
forçar a idéia, defendida por Keobane e
Nye, de que a compreensão das relações
internacionais no mundo contemJXlrâ
neo não invalida as concepçõestradicio
nais, baseadas no primado das relações
de poder entre Estados, mAS exige que
sejam combinadas com novas fOl"mula
ções, no centro das quais se encontra,
com peso significativo, a noção de inter
dependência, que não se limita à esfera
econômica, e abrange todas as oubas
dimensões da vida coletiva das socieda
des.
Três temas da transição
Os eventos dos últimos anos f12eram
com que mesmo 06 analistas mais céti
COS reconheçam algum nível de mu
dança e que, em sua grande maioria,
admitam estanll08 atravessando um
período de transição no qual continui
dades convivem com descontinuida
des, o velho, com o novo: em primeiro
lugar, nem tudo mudou; em segundo,
nem tudo muda no mesmo ritmo. No
ta-ae, por exemplo, uma clara diferen
'ça de 'tempos'- enquanto as ltaDsfor
mações no âmbito político estratégico
ocol"leram mais recentemente e foram
marcadas por acontecimentos de li'an
de impacto efetivo e simbólico (queda
do muro de Berlim, extinção da URSS),
na área econômica estão em curso pro·
ce8808 (transnacionalização e integla·
ção econômica, globalização, aumento•
do peso da Europa e Aeia-Pacífico, que
paessm a ser vistos como novos 'pólos'
das relaÇÔ<ll5 internacionais) que se
vêm aprofundando há IDai. de trinta
anos e não tiveram marcoe divisores
táo I;)Ítidos.
Ainda assim, existe uma razoável
coincidência de opiniões quanto às ca
racterísticas mais marcantes do perío·
do em que vivemos, as quais podem ser
mais claramente visualizadas se con·
siderarw08, entre outroe,os três aspec·
tos mencionados na descrição dos mo
delos do realismo e da interdependên
cia complexa.
I - Papel do Estado
Falar em 'crise do Estado'tornou-se
um verdadeiro clichê na última déca
da. Oe diagnósticos e crítiCAS vieram
das fontes mais variadas: dos neolibe
rais conservadores, que atacaram o
welfare state; da eequerda, que conti
nuou a reclamar o cumprimento das
obrigações sociais do setor público e a
resistir à hegemonia neoliberal; dos
'pós-modernos' (verdes, paCifIStas, ho
m088exuais, ONGs etc.), que int,odu
zÍtam nOVaB reivindicações na agenda
política e não se satisfizeram com a
resposta por parte do Estado; e da pró
pria burocracia estatal, que sofre com
a crescente disparidade entre o volume
de encargos e a escassez de meioe e
anseia por modernizar-se.
Por outro lado, as sociedades torna
ram·se mais complexae e, a cada dia,
novos temas demandam a ação do Es
tado. Nas palaVl'88 de Celso Lafer, "015
governos não estão conseguindo mais
5. o REALISMO DE CADAUM 153
processar ae demandas que lhes che
gam".lO No dizer de Nicoe Poulantzaa,
a legitimação do Estado pa..... a depen
der de uma 'racionalidade instrumen
tal', ou seja, do julgamento da eficiên
cia de suas incurséiee no domínio da
econOlnia (para enfrentar problemaa,
como a inflação e o desempre�, que
não tem capacidade de resolver).ll Es
taríamos,assim,bempróximosdeuma
situação de pelmanente crise de legiti
midade.
Além dessas dificuldades na frente
interna, é amplamente aceito que a
interdependência cada vez mais pro
funda na economia mundial, com a
presença marcante deentidades trsns
nacionais, e a intensificação dos conta
tos e trsnsaçóeB diretas através daa
fronteiras nacionais condicionam, ho
je, a posição do Estado como ator pri
mordial daa relaçóes internacionais.
Há que reconhecer, portanto, o descon
forto dessa posição: havendo perdido
progtessivamente o poder de controlar
os fluxos de dinheiro, de informação e
de mercadorias, O Estado continua a
ser considerado lusponsável por mis.
sões internat5 e externas que depen
dem fortemente da situação econômica
nacional, a qual, por sua vez, está su
jeita a08 efeitos de sua inserção no
contexto global.
12
Mas essa não é uma
tendência unívoca, p:>Í8, de outra par
te, cada vez mais o comércio vem sendo
'administrado' pel08 govern06, que
também atuam intensamentena nego
ciação de normas e 'regimes' interna
cionais. Ai está a eleição de BiII Clinton
(a perda de impulso da onda neolibe
ral) a indicar um desejo de volta da
'mão visível' do governo no estabeleci
mento de políticas industriais e na pro
moção de programas de competitivida
de. Essa demanda por um maior inter
vencionismo resulta, em boa medida,
da compreensível vontade - de seto
Ies, grupoe ou empresas -de conter oe
custosda globalização (conco"ênciade
produtos estrangeiros, perda de tercei
ros mercad08, desemprego etc.) e, se
poesível, permitir melhores condições
de participação no intercâmbio global.
Em resumo, coexistem tendências
de reforço e de condicionamento do pa
peI do Estado nas relaçóeB internacio
nais.Ao contrário do que muitoe anun
ciaram n06 anos 70, 88 empresas mui·
tinacionais não assumiram o controle
do mundo e os vínculos privados e in
for'liiais entre movimentos, organiza::,
ções e indivíduos não puseram em se
gundo plano as fOImaa trsdicionais de
relacionamento entre países, Embora,
como dizem K.eohane e Nye, as socie·
dades estejam ligadaa por múltiplos
canais, o Estado peJ"loanece como o
agente fundamental daa relações in
ternacionais, ainda que opere num
universo onde outros tipos de atores
têm presença cada vez mais importan
te e decisiva.
11 - Poder militar e poder
econômico
A imensa maioria dos analistas do
mundo contemporâneo não tem dúvÍ·
daa de que a força militar perdeu espa
ço para a capacidade econômica como
fonte e instrumento de poder: o 80ft
power tem um peso crescente, em de·
trimento, de certa forma, do hard po
wer, Esse é um fenômeno decol"iente
do extraordinário crescimento das re
lações econômicas internacionais, mas
também, em parte, do próprio poten
cial destrutivo dos aiSenais acumula·
dos desde a 11 Grande Guella, o qual,
somado ao equilíbrio entre as supelP,O
tências, 'imobilizou' esse poderio e le·
vou a quase meio século eem confron
taçõesannadaaentre 08principais ato
res da cena mundial. A88im - e embo
ra, em última inatância, não 86 JXlMB
excluir a poesibilidade de uso, ou
6. 154 ESTIJDOS HISTÓRICOS-199M2
ameaça de emprego da força, e o signi
ficado crucial que o poderio militar ain
da tem nas relações internacionais - a
deter111inação do status e do poder de
cada país passa a fazer"'8e,maia e mais,
a partir de critérioe econÔmicoe.
Não se trata meramente de substi
tuir uma medida por outra. Em pri
meiro lugar, porque a capacidade ec0-
nômica não é tão facilmente mensurá
vel quanto o poderio militar. Se este
último pode ser expresso em número
de homens, navioe, tanques e ogivas
nucleares (ainda que tampouco essa
transposição fosse automática e linear,
como a própria 'imobilização' das ar
mas nucleares confirmou), aquela tem
um número muito maior de indicado
res, que precisam ser selecionados a
partir de critérios, 06 quais, por seu
turno, também são variáveis. Que pa
rámetro deve ser escolhido: PIB (por
qual processo), comércio exterior, ex
portações/PIB, endividamento exter
no, abertuta do mercado doméstico,
taxa anual de crescimento? Em segun
do lugar, porque a 'tradução' que se
fazia da força militar em poder inter
nacional não serve para aferir como a
capacidade econômica se converte em
poseibilidade de influência (que in
fluência têm, por exemplo, alguns paí-o
ses mêdios da Asia que se destacam
pelo desempenho exportador, pelos
giandes superávits comerciais?), pois
esses dados estarão condicionados por
outros (dimensão territorial e demo
gráfica, situação geográfica, posição no
contexto regional etc.) nessa conver
são. Em terceiro, porque a interdepen
dência progressiva na economia mun
dial limita o controle que os governos
nacionais têm condições de exercer so
bre as transações internacionais (dia
riamente, por exemplo, mais de US$
500 bilhões passam pelos princif:j'is
mercados de cámbio do mundo) 3 e
condiciona seu espectro de decisão.
Para concluir, poda.se recorrer a um
trabalho mais recente de Nye:"As fon
tes do poder jamais são estáticas e (...)
continuam a mudar no mundo de hoje.
Numa era de economias baseadru5 na
infOl'lllSçãO e de interdependência
transnacional, o poder está-se tornan
do menos fungível, menos tangível, e
menos coercitivo. O século XXI dará
.
I pod ,,_,
.
um mAIOr pape ao er UllO]'lHa ClO·
na' e institucional, mas a força militar
continuará a ser um fator importante,
assim como a escala econômica, tanto
em terrnos de mercado como de recur
sos naturais:,14
111 - Agenda e prioridades
Durante Q'Jase meio século, o conflito
Leste-Oeste esteve no topo da agenda
internacional, não apeMS porque, em
última instãncia, havia a hipótese de
uma confrontação nuclear, mas tam
bém porque a própria natureza da guer
ra fria subordinava tudo mais à lógíca
da bipolaridade. Eeaa precedência era
cobrada pelas superpotências aos seus
aliados, sobretudo 806 mais revelevan
tes estratêgica ou economicamente.
Nesse contexto, era natural que os as
suntos de segurança tivessem priorida
de, muito embora as considerações de
ordem econômica já viessem ganhando
espaço e, em certas circunstâncias, pre
valecendo sobre os primeiros.
Com o fim da guena fria, coruU'llla
se a avaliação de Keohane e Nye (men
cionada acima) de que a agenda não
obedece a uma hierarquia clara e con
sistente e de que os temas de seguran
ça nem sempre predominam. Convém,
no entanto, evitar a impressão de que
estamos diante de uma agenda aberta,
livre. Em primeiro luga� a agenda das
relações internacionais fi continua a
refletir, quase sempre, a agenda inter
nacional dos países mais importantes,
a qual, por sua vez, deriva geralmente
7. o REAUSMO DE CADA UM 155
de suas agendas nacionais. Em segun
do lugar, consolida...e a tendência, de
vida talvez ao afastamento da ameaça
nuclear e às dificuldades enfrentadas
pelas principais economjas do mundo,
de atribuir--se prioridade às matérias
qte afetam direta e imediatamente a
qualidade de vida das sociedades roais
desenvolvidas (comércio, imigração,
tráfico de drogas, terrorismo, AIDS
etc.). Mesmo um problema como o do
meio ambiente, que dessfm indiscrimi
nadamente o conjunto do planeta e é
um doe grandes símboloe da interde
pendência, perde peso pelo fato de não
haver convicção quanto à urgência de
se mobilizarem recUI'5OS para enfren
tá-lo. Isto para não mencionar as ques
tões que dependem também da solida
riedade, como direitoe humanoe, po
breza e fome; estas só entram na agen
da quando 'traduzidas' em ameaça à
segurança das áreas prósperas da Ter
ra (migrações, epidemias, guenas
etc.), ou quando a força de imagens e
dados transmitidos pelos meios de co
municação desencadeia uma motiva
ção ético-humanitária para movimen
toe de mobilização e preBBão, e até para
ações armadas (como ocorreu na So
mália). A propósito, cabe mencionar o
debate sobre a tese de que, diante des
sas situações, haveria um 'dever de
ingerência' por parte da comunidade
internacional.
Mas se, por um lado, não estamos
diante de uma agenda táo aberta quan
to conviria, por exemplo, aos países em
desenvolvimento, por outro, não se po
de negar que houve algumas mudan
ças significativas:
- ao contrário do que ocorria oom o
marco ideológico da guerra fria, a pre
valência do econômico terá um efeito
dia
. 16
(di 'da� d
.
pel'81VO venn ..e e temas e in-
telb8Be6 na-c:;,ee campo gera dispersão en
tre peíses e dentro doe países, pois, en
quanto as questões ideológicas e estra-
tégiCRS uniam e mobilizavam, manten
do alianças dumdouras 'acima' desses
'te
.
ifi
"
m resses malS espec lC06, as maténas
econômicas n:asaltam as diferenças e
até divergências de perspectiva, tanto
no plano internacional, como no nacio
nal - a vantagem comparativa de um
pode ser a desvantagem do outro; o ne
gócio de uma empresa pode significar
prejuÍzo para a outra; um emprego aqui
talvez produ71I um desempregado do
outro lado da fronteira etc.);
- a transposição de boa parte das
preocupações com segurança militar
do plano global para o regional, e a
diversidade de interesses no teneno
sóci�conômico dificulta a conciliação
das agendas nacionais e regionais num
temário global (antes haviauma estru
tura mundial de segurança, a ordem
da guerra fria, que fornecia a moldura
para o 5ogo' internacional; agora, com
a tendência para a adoção de esquemas
de segurança com ênfase regional - o
processo em curso de definição de uma
'arquitetura' européia de segurança,
por exemplo -, e a presença de apenas•
uma superpotência com interesses
verdadeiramente globais, torna...e
mais dificil fazer com que a romunida
de das nações tenha prioridades coin
cidentes, além do domínio da retórica);
- a determinação da agenda e das
prioridades passa a obedecer à influên
cia crescente de agentes não-governa
mentais (empresas, moviinentos so
ciais, ONGs, imprensa etc.), entre os
quais existem, evidentemente, con
trastes e contradições;
- em função do tema, tendem a for
mar-se coalizões Ide geometria variá
vel', sob lideranças igualmente variá
veis, que convivem com outras coali
zões, formadas, não a partir de ques
tões específicas, mas de dados como
vizinhança geográfica, semelhança de
nível de desenvolvimento etc.
8. •
156 ESTUDOS HISTORICOS- 1993/12
Em síntese, como é típico do período
de transição que vivemos hoje, tem·
bém no que se refere à agenda e às
prioridades internacionais há elemen
tos de continuidade e de mudança. A
propósito, valem algumAS observações:
primeiro, o avanço da g1obalização eco
nômica e o aprofundamento da inter
dependência em todoe 08 campos fa
zem com que a solução d"" problemas
nacionais de cada país passe cada vez
mais pelo ajuste de seus vínculos inter
nacionais; torna--se, assim, mais im
portante ter acesso ou participar ativa
mente das instâncias que defmem a
agenda das relações internacionais
(tanto para buscar incluir temas e prio
ridades do próprio interesse como para
evitar inclusões e ênfases contrárias a
tal interes.se); além disso, embora con
tinuem a prevalecer a vontade dos 'for
tes' e suas preocupações (agora prefe
rencialmente com questões passíveis
de afetar-lhes a ·segurança sócio--eco
nômica'), novos espaços se abriram a
partir da substituição da agenda da
guerra fria (na qual as prioridades e
lideranças eram flXas, embora muitos
considerem, por exemplo, que os temas
de interesse dos países em desenvolvi
mento tinham mais espaço naquela
época do que loje) por outra que se
transforma ao longo do tempo, sob li
deranças também variáveis.
Cabe uma indagação fina: se, por um
lado, a dispersão cansada pela preva
lência da economia sobre a segurança
pode aumentar a diversidade e flexibi
lidade das alinças, da agenda e das prio
ridades, por outro, talvez sejustifique o
temor de que ....sa mesma dispersão de
interesses e vontades (e o particulari.s
mo 'egoísta' dos cálculos fundados em
perspectivas exclusivamente indivi
duais e nacionais, que deixam de lado
considerações ideológiei,,' e estratégi
cas), além de dificultar a formação de
alianças duradouras, acabe por impedir
a construção de consensos, sobretudo
aqueles 'consensos ativ06', que envol·
vam mobilização de recursoe hUmSIlO6,
materiais e políticos,indispensáveispa
ra que a comunidade internacional con
siga lusolver alguns de seus maiores
problemas. A frustração das expectati
vas geradas pela Conferencia do Rio, a
paralisia da Rodada Uruguai do GA'IT
e o tratamento da crise na ex-Iugoslávia
são exemplos distintos'e eloqüentes des
sa dificuldade.
Realismo e interdependência
A observação desses três aspectos
da realidade contemporânea - os mes
mos três empregados por Keohane e
Nye para a caracterização do realismo
e da interdependência complexa - con
frrma que os dois modelos podem ser
úteis para a compreensão das relações
internacionais nos dias de hoje. Porque
nem tudo mudou, nem tudo vai mudar,
o reali.smo conserva sua atualidade.
Porque muito já mudou, e muito ainda
vai mudar, a visão da interdependên
cia, por refletir tendências que conti
nuam a aprofundar--se, torna.-ee cãda
vez mais essencial.
Para ilustrar de forma mais clara
como o realismo e a interdependência
podem combinar-se, estabelecem-se
daqui por diante três 'tipos' de a�res:
o das superJX>tências, que, estritamen�
te, conesponderia agora apenas a08
EUA; o das glandes poténcias econô
micas, como Alemanha, Japão, e a pró·
pria Comunidade Européia; o dos paí
ses em desenvolvimento de maior peso.
Essa tipologia, evidentemente, deixa
de fora, não apenas Estados que não
podem ser incluídos nessas categorias,
como outros tipos de atores (organia
IDOS internacionais, empresas traI18·
nacionais, entidades como o G-7 e ()C..
9. o REAUSMO DE CADA UM 157
DE. grupos regionais. ONGs etc.) que.
cada vez mais, interagem entre si e
com os Estados:l7 Essa .implificação
justificase apenas por facilitar a expo
sição do raciocínio que o presente arti·
go pretende explicitar.
Já se di..... que a literatura tratada
no presente artigo versa especialmen
te sobre a situação dos EUA, ou .eja.
de uma superpotência. Neste caso. evi
dentemente. a proposta do moelelo da
interdependência pretende 'temperar'
as percepções do realismo. tentando
fazer ver à sociedade norte-americana
que o mundo mudou equeessa mudan
ça estabelece novos parâmetros e limi
tes para o exercício do poder, além de
novos desafios internos e extern06.
Sem entrar no debate entre os que
percebem o declínio da posição relativa
dos EUA e aqueles que apontam seu
reforço. trata-se de chegar a uma visáo
que sirva a quem ainda tem poder.
muito poder (com supremacia absoluta
em termos de hard power e liderança
no que se refere ao 80ftpower como um
todo, apesar da concorrência e até da
vantagem do Japão ou Comunidade
Européia em certas áreas) numa era
em que os parâmetros de poder se
transfol"mam. Para o futuro, entre vá
rias soluções, duas seriam mais evi
dentes para a superpotência: ou atuar
para que o hardpower 000 se desvalo
rize tão rapidamente no jogo interna
cional (tomando. por exemplo. iniciati
vas uni e multilaterais de emprego da
força militar, que assim continuaria
presente e 'necessária'no cotidiano das
nações), ou concentrar-se no desenvol
vimento da capacidade de vencer na
competiçâo do 80ft power. .eja pela
modernização das estruturas econômi
cas e sociais, seja pelos caminhos nem
sempre 80ft do protecionismo. das re
taliações unilaterais e do comércio ad
ministrado.l8 Como os fatos vêm indi
cando, também neste caso a escolha
deverá ser a conciliaçãodas várias pos.
•ibilidad.... inclusive porque. na reali
dade. 000 existe essa divisâo tão nítida
entre hardpower e 80ftpower: enquan
to as nações e os indivlduos usarem a
força uns contra oe oUtl'06, a maior
capacidadedefazê-Io será .empre lima
fonte de poder, assim como, no domínio
da eoonomja,06 diferenciaia de riqueza
e dependência também o seráo. Além
disso. o poder militar poder servir a
objetiv08 de poder econômico, e vice·
versa.
No quese refereásglandespotências
econômicas, podese dizer que a equa
ção anterior se inverte. Para elas, ao
contrário do que OCOIIe com a superpo
tência. a interdependência aponta o seu
crescente peso relativo, enquanto o re
alismo serviria para indicar 08 limites
de seu poder. De certo moelo. o ceOOrio
da interdependência é o habitat ideal
desse tipo de ator. Leeter Thurow. por
exemplo, chega a exagerar nesse senti
do quando diz que. aonegociar as regras
para seu mercado comum e decidir co
mo se relacionam com parceU'08 defora,
oseuropeus estaráo efetivamenteescre
vendo 85 regIas do comércio comum no
próximo século.l9 Isto para 000 citar as
previsões de predomínio universal do
Japão.Já quandosepassa paraa'chave'
do realismo. o peso desses ato,es apare
ce mais qualificado. sobretudo quando
se pensa em tel'lI108 de possível lideran
ça de açÕ€6 internacionais (atê este mo
mento. somenteos EUAtêm funcionado
como articulador e líder de grandes coa
lizões). Em resumo. a situação seria a
de quem tem algum poder (fortemente
concentrado no80ftpower). num mundo
em que esse poder conta cada vez mais,
embora o hard power ainda seja o de
última instância. Para o fututo. como no
exemplo da superpotência. também se
poderiam aventar algumas hipóteses:
as glandes p:>tências podem continUAr
a investir prioritariamente no 80ft p<;
10. 158 ESTUDOS HISTÓRICOS-19931l2
wer econômico, centrando suas iniciati
vas políticas apenae na eefera regional
e mantendo lima postura cautel0l'!9
diante da 'cobrança' de um papel global
mais ativo, sobretudo em queetões de
segurança (esse caminho não exclui ris
COS de conflito decommtee da competi
ção econômica, porlicuJaImente no
triângulo EUA-Europa-Japão/pacífi
co); podem, por outro lado, partir para a
conversão de seu soft power em hord
power. Essa não é uma escolha inteira
mente livre, pois oe países em questão
poderiam ver-se obrigadoe, por exem
plo, a responder pela força a desofioe de
segurança em 81'9S áreas, ou, por outro
lado, caso decidiR8CID aumentar seu per
derio militar, poderiam ser impedidoe
de fazê-Io, além de um certo limite, pela
atual superpotência, ou até pela 'ex-5u
perpoténcia' (ou pelas duas juntas), ou
ainda pela impossibilidade de conciliar
maiores despe5A8 militares com equilí
brio sócioeconômico interno. A propósi
to, como afirma J.AGuilbon Albuquer
que, oe EUA são hoje "a única poténcia
ainda com capacidade de intervenção
mundial, sem que iaso implique risco de
desordem doméstica".
20
Em síntRoo, 06
caminhoe estarão balizados pela confi
guração mundial do poder. Uma coisa,
porém, é certa: o caminho a ser seguido
por este conjunto de atores terá impor.
tância decisiva para a configuração do
cenário internacional no século XXI.
Para os países em desenvolvimento
(PEDs) de maior relevo, finalmente, o
exercício especulativo aqui esboçado é
bem mais complexo. Neste caso, ambos
os modelos sempre apontaram muito
mais para 08 limites do que para as
possibilidades: de um prisma realista,
ressalta-se a escassez relativa de po
der, ao menos em termos de projeção
mundial; da perspectiva da interde
pendência, sobressai a assimetria dos
vínculos com os principais atores do
cenário internacional. Mas também há
possibilidades, a partir de ambos 08
pontoe de vista: na guetIa fria, alguns
paísee em desenvolvimento, eobretudo
aquelee localízadoe em área8 de mAior
significado estratégico, obtiveram ga
nhoe pelo desempenho de papéis coad
juvantes em esquemas de segurança
(hoje em dia, oe exemploe são raroe);
mais recentemente, outroe (ou os mee·
moe, em certos ca806) tém conseguido
benefícios no processo de globalização
econômica, ou seja, no aprofundamen.
to da interdependência, fato que vem
acentuando a diferenciação entre os
PEDs (diferenciação que sempre hou
ve, é claro, mas que, no passado, não
dificultava tanto quanto hoje a conver
gência de posições entre eles). E com
isso se inverteria a ótica da 'dependên
cia' (que aconselhava a busca de mode
los mais autônomos de desenvolvimen
to, e, portanto, menos inteSlados à eco
nomia internacional), jã que atual
mente "o reforço da condição periférica
parece ocorrer pelo afastamento, pelo
enfraquecimento das articulações cen
tro-periferia".
21
De qualquer forma, a
situação é a de quem tem pouco poder
(quer hard power, quer 80ft power),
num mundo que ainda é de poder, mas
em que a força militar vai perdendo
espaço para a capacidade econômica.
Em relação ao futuro, para concluir,
fazem-se, a seguir, algumas considera
ções. Se os atores incluídos nesta cate
goria não quiseram, ou não puderam,
afirmar-se pela via do hard power no
passado, menos razões teriam para
tentar fazê-lo agora que esse tipo de
poder serve cada vez menos para resol
ver os seus verdadeiros problemas.
Haveria, pois, que explorar os espa
ços abertos pelas transfoIluaçóes polí
ticas no cenário internacional e pelo
avanço do proce88o de globalização, e
trabalhar no sentido de que as oportu
nidades se multipliquem. Neste cam
po, enquanto a perspectiva da interde-
11. o REALISMO DE CADA UM 159
pendência indicaria o acinamento da
disputa por investimentos e mercados,
e ainda o fechamento da maioria das
'portas conceSBionais'a08 países em de
senvolvimento, dando ênfBBe à melho- .
ra das condições de participação mais
intensa e proveitosa na economia mun
dial (capacitação econômica e tecnoló
gica, competitividade, atração de in
vestimentos etc.), o realismo ensinaria
algumas coisas: primeiro, que os paí·
Se8 em desenvolvimento, mesmo 06
maÍB importante., têm poder limitado
para influir na definição e alteração
da. reglBB do jogo; segundo, que, jus
tamente por isso, é seu interesse prio
ritário que a globalização tenha regl'BB
clarBB e UJÚversaÍB, multilateralmente
acordadas, para que não esteja sujeita
às vontades circunstanciais daqueles
que, sim, já (ou ainda) têm poder; ter
ceiro, que, tal como a globalização, o
regionalismo veio para ficar e, espe
cialmente para os países em desenvol
vimento, é uma fOl'll18 de aumentar
sua capacidade de articulação, proje
ção e influência no meio internacional;
quarto, que alguns desses países em
desenvolvimento de maior relevo terão
de vincular-se preferencialmente a um
dos 'pólos' da economia global (EUA,
Comunidade Européia e Japão/Pacífi
co), enquanto outros, por SUBB dimen
sões, peso político e/ou tradição de in
tercámbio distribuído de modo equili
brado (sem parceiros com predomínio
absoluto em SUBB relações econômicBB
externas) não poderão, ou não terão
interesse em fazê-lo.
Como se vê, também no caso d06
PEDe não existe 11m modelo único a
seguir, nem opções fechadas por esta ou
aquela fânnula. O natural é que cada
país busque realizar os seus objetivos,
os quais, sobretudo no C.SO de socieda
des em desenvolvimento, deveriam dar
prioridade à superação da pobreza e das
deficiências estruturais que BB impe-
dem de fruir plenamente 06 beneficios
do progles.;o da humanidade.
Conclusão
A interdependência não elirninou o
dado do poder nas relações internacio
nais, mas vai alterando proglessiva
mente essa realidade. O s/ai"" das na
ções na comunidade mundi.l resulta
cada vez mais da posição que ocupam
na VBBta e intricada malha dos inter
câmbios econômiC:06, embora a capaci
dade militar e a situação estratêgica
continuem a ser um fator importante. O
poder é hoje 1Ima combinação de hard
power e 80ftpower, e não há qualquer
receita fiXB para a mescla desses ingre
dientes. Haverá variações de acordo
com o tema, com o momento, com os
interesses específicos dos atoles. Den
tro das pc>56ibilidades de cada 11m, prin
cipalmente d06 que procuram influir
nas decisões internacionais, existirá al
guma margem de flexibilidade (talvez
decrescente) na escolha de caminh06.•
E neceSBário considerar, além disso,
que a chamada interdependência não
se limita hoje à atividade econômica, e
atinge praticamente todos os aspectos
do cotidiano das sociedades: o político,
no qual a fronteira entre o externo e o
interno se torna menos nítida; o social,
no '1ual o tratamento de questões como
direitos humanos e meio ambiente tem
uma dimensão internacional que se
acentua; o cultural, no qual os padrões
'globalizad05' de comportamento e de
consumo de bens materiais e culturais
se 5uperpãem às diferenças históricas.
Como aftrma Ignacio Ramonet: ''Na
história da humanidade, jamais BB
práticas próprias a uma cultura se im·
puseram como modelos universais 'tão
rapidamente. Modelos (...) admitidos
em todos 06 lug&ree como cracionais' e
12. •
160 ESTUDOS HISTORICOS - 1993/12
'naturais' e que participem, de fato, da
ocidentalização do mundo".
22
Daí resulta, entre muitas oubas,
uma conseqüência essencial: num mun
do em que as distâncias geográficas con
tam cada vez menos, em que a democra
cia prevalece, em que as economias na
cionais se complementam e, ao mesmo
tempo, competem entre si, em que se
torna mais transparente a ligação entre
fatos externos e efeitos internos, em que
os meios de comunicação pel'mitem a
divulgação imediata e ampla do dia-a
dia nacional e internacional, terá que
haver um vínculo, cada vez mais claro
para o público em geral, entre política
extenaa e concretos para as
populações. Na medida.em que os paí
tenham seus destinos unidos por
laços cada vez mais estreitos, seja de
cooperação, seja de concorrência, as I'e
lações internacionais tornam-se mais
complexas e, sobretudo, mais delicadas,
pois sua condução dependerá crescente
mente da difícil harmonização (ou sim
plesmente da frustração) de interesses
distintos, e muitas vezes opostos, arti
culados em escala local, nacional e
transnacional. •
Não existem mapas para essa via-,
gemo E preciso avançar ora com pru-
dência, ora com ousadia, sempre com
equilíbrio e criatividade.
•
Notas
1. Robert B.Reich, The work ofnations:
preparing ourselves for 21St century capi
talism (Nova York: Vintage Books, 1992),
p.315.
2. "A survey of multinationals", The
Economist, 27 de março de 1993.
3. Robert O. Keohane e Joseph S. Nye,
Power and interdependence: worldpolitica
in transition (Boston: Little, BrowIl and
Company Inc., 1977).
4. Como exemplo do realismo dos tradi
cionalistas, os autores citam, entre outroo
textos, Hans J. Morgenthau, Politica
among nations: the st/Uggle ofpower and
peace (Nova York: Knopf, 1948); entre os
modernistas , mencionam Lester R.
Brown, Worldwithout borders: the interde
pendence ofnations (Nova York: Foreign
PolicyAssociation, Headline Series, 1972).
5. Morgenthau, op.cit.
•
6. Keohane e Nye, op.cit., p.242.
7. Lester Thurow, Head to head: the
coming economic battle wnongJapan, Eu
rope and America (Nova York: Wllliam
Mol"l'oW and Co., Inc., 1992), p.16.
8. Laura D'Andrea 'l)rson, Whos bashing
whom? 'Irade oonflict in high-technology in
dustries (Washington, D.C.: Institute for In
ternational Economics, 1992), p.296.
9. Extraído de texto não destinado a
publicação.
10. Citado na Folha de S. Paulo,
11/07/93, p.6-4.
,
11. Nicos Poulantzas, L'Etat, lepouvoir,
lesocialisme, 2f!ed. (Paris: Presses Univer
sitaires de France, 1981), p.238 e 243.
12. O argumento consta do artigo de
Ignacio Ramonet, ''Mondialisation et sé
grégations", em Maniere de voir 18 - Le
Monde diplomatique, maio 1993.
13. Richard J. Barnet e John Cavanagh,
"National interests and global realities", em
Institute for Policy Studies-Briefing Paper,
Security Series, n2 2,janeiro 1992.
14. Joseph S. Nye, Bound to lead: the
changing nature ofAmericanpower (Nova
York: Basic Books, Inc., 1990), p.33-34.
15. Entende-se por 'agenda das relações
internacionais' não a lista ampla das ques
tões arl'oladas f0l11lalmente para discus
são nos organismos multilaterais, mas o
conjunto dos assuntos que efetivamente
mobilizam a atenção e os esforços da comu
nidade das nações.
16. Gelson Fonseca Jr., "Aspectos da
multipolaridade contemporânea (notas
preliminares)", em Contexto Internacio
nal, ano 6/ n2 11,janeiro-junho 1990, p.21.
13. •
o REAJJSMO DE CADA UM 161
•
17. Nessa divisão, deixou-se também de
incluiruma categoria que abarL"'8SSe atores
fundamentais, sobretudo a Rússia e a Chi-
na, que continuam a ter, por razões cada
vez mais distintas, importância crucial na
definição do futuro da ordem internacio
nal.
,
18. E o que defendem Lester Thurow,
Robert Reich e Laura 1Yson (os dois últi
mos ocupam funções de primeira linha no
goveI'IlO do presidente Bill Clinton, o pri
meil'O como secretário do 'frabalho e a se
gunda como chefe do Council of Economic
Advisers) nos recentes livllJS acima cita
dos.
19. Lester Thurow, op.cit., p.65-66.
20. JoséAugusto GuilhonAlbuquerque,
"O fim da guerra fria e os novos conflitos
internacionais", em O futuro do Brasil,,
organizado por José Alvaro Moisés (São
Paulo, EDUSP, 1992).
21. Fonseca, op.cit., p.8
22. Ramonet, op.cit.
(Reoebidoparapublicação emjullw de 1993)
Mal:us B. A Galváo é diplomata, mes
tre em relações internacionais pela
American University (Washington, D.C.) e
professor do Instituto Rio Branco.