Este documento é uma dissertação de mestrado que examina como a interpretação constitucional pode ser usada como um instrumento para promover os direitos fundamentais das mulheres no Brasil à luz do princípio da dignidade humana.
1) A dissertação analisa a construção histórica da identidade feminina e o processo de exclusão das mulheres ao longo da história, desde a antiguidade até a idade moderna.
2) Explora como a dignidade humana e os direitos fundamentais promovem os direitos das mulheres, analisando a posit
Relações raça e gênero em jogo: a questão reprodutiva de mulheres negras e br...
Direitos Mulheres e Interpretação Constitucional
1. UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES
CAMPUS DE SANTO ÂNGELO
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO – MESTRADO
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO INSTRUMENTO DE
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERES NO BRASIL:
UM ESTUDO À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
MESTRANDO: ROGÉRIO MORAES SIKORA
SANTO ÂNGELO
2012
2. ROGÉRIO MORAES SIKORA
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO INSTRUMENTO DE
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERESNO BRASIL:
UM ESTUDO À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Dissertação de Mestrado em Direito
para obtenção do título de Mestre em
Direito, Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e das
Missões – URI – Campus de Santo
Ângelo, Departamento de Ciências
Sociais Aplicadas, Programa de Pós-
Graduação em Direito – Mestrado.
ORIENTADORA: PROF. DRA. ROSÂNGELA ANGELIN
SANTO ÂNGELO
2012
3. ROGÉRIO MORAES SIKORA
A INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO INSTRUMENTO DE
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERES NO BRASIL:
UM ESTUDO À LUZ DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Dissertação de Mestrado submetida à Comissão Julgadora do Programa de Pós-
Graduação em Direito – Mestrado da Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões – URI – Campus de Santo Ângelo como parte dos requisitos
necessários à obtenção do Grau de Mestre em Direito, Área de Concentração:
Direitos Especiais, Linha de Pesquisa II – Cidadania e Novas Formas de Solução de
Conflitos.
Banca Examinadora:
__________________________________________
Profa. Dra. Rosângela Angelin – URI Campus Santo Ângelo-RS
Orientadora
__________________________________________
Profa. Pós Dra. Marli Marlene Morais da Costa - UNISC
Examinadora
__________________________________________
Prof. Dr. Mauro José Gaglietti - URI Campus Santo Ângelo
Examinador
Santo Ângelo (RS), 04 de janeiro de 2012.
4. À minha filha querida, Aisha Borchardt
Sikora, da qual o céu reservou-me a graça de
ser seu pai, com quem construí um caminho de
sonhos e afetos. O amor indizível partilhado
nas ausências, distâncias e silêncios
eloqüentes, reveladores da possibilidade de
amar incondicionalmente.
Ao meu filho querido, William Borchardt
Sikora, meu companheiro e amigo, o qual, com
sua ingenuidade e coração puro, me dá a cada
dia, verdadeira lição de amor, compreensão e
bondade.
5. Ao meu pai, Miguel Sikora Filho, pelo
imensurável apoio e pelo carinho, o qual
sempre esteve ao meu lado, exemplo de
honradez e dignidade, paradigma a ser
seguido.
À minha santa mãezinha, Zilma Moraes
Sikora, imagem de bondade e pureza, por
permitir-me desenvolver minhas próprias
inquietudes e convicções em um clima de amor
e carinho inigualáveis.
6. À Alessandra, com a qual pude, inúmeras
vezes, compartilhar angústias, questionar e
confidenciar sonhos e ideias. Docemente, soube
incentivar-me nos estudos e nas pesquisas; o
meu amor.
À Bibiana, companhia diária, a qual foi
ouvinte atenciosa em muitas das elucubrações,
ao longo do Mestrado, meu carinho paternal.
7. AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, causa primeira de todas as coisas, pelo privilégio de poder
chegar aqui.
À estimada Professora Doutora Rosângela Angelin, cujo caráter e bondade
tive o privilégio de conhecer, a mais profunda gratidão, tanto pelo fato de ter
assumido minha orientação quanto pelas preciosas sugestões e estímulos; e, a sua
decisiva contribuição em minha trajetória acadêmica, na qual encontrei uma
interlocutora sempre interessada e incansável na discussão dos originais deste
trabalho. Com ela tive agradáveis, divertidas e provocativas conversas. Inteligente,
brilhante e entusiasta incentivadora, a qual, desde o início, acreditou no meu
esforço, cujas instigantes aulas provocaram, em mim, grande interesse no fecundo
tema. A ela devo as primeiras inspirações, os dedicados ensinamentos sobre
liberdade, igualdade e respeito humano; que, com seriedade e eloqüência, indicou-
me o difícil caminho das reflexões e da crítica, um repensar do Direito. Meu
reconhecimento pelo tempo dispendido na criteriosa leitura do texto, bem como pelo
constante apoio e pela paciência inquebrantável.
Aos demais professores e professoras do Mestrado em Direito da
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de
Santo Ângelo, pela dedicação e pelo desprendimento com que ministraram suas
aulas; aos quais devo o exemplo de grandes mestres, intelectuais e, acima de tudo,
seres humanos, na mais nobre acepção do termo.
Aos colegas do Mestrado, companheiros da jornada, de quem levo comigo
imorredoura saudade e recordação. No coração para sempre!
A todos aqueles que, de algum modo, estando ao meu lado ou não, próximos
ou distantes, mesmo sem o saberem, contribuíram para o complexo êxito deste
trabalho.
8. RESUMO
O presente trabalho de Dissertação de Mestrado aborda a questão das
mulheres na sociedade, envolvendo a problemática da desigualdade nas relações
de gênero, e da exclusão e opressão sofridas pelas mulheres no Estado de Direito.
Para tanto, o problema abordado no trabalho envolve a seguinte pergunta: É
possível utilizar a interpretação constitucional, à luz do Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana, como instrumento de efetivação dos Direitos Fundamentais das
mulheres, com a finalidade de proporcionar mais isonomia e solucionar conflitos nas
relações de gênero? Diante do questionamento proposto, a hipótese apresentada
para nortear a pesquisa foi que a interpretação constitucional mais aberta e plural,
fundamentada no princípio da Dignidade da Pessoa Humana, seria um meio
adequado e concretizante para solucionar os conflitos nas relações de gênero, à luz
da Constituição Federal de 1988 que proporcionou o tratamento isonômico entre
homens e mulheres, efetivando, dessa forma, as promessas constitucionais e
contribuindo para a construção de um reconhecimento mais digno da identidade das
mulheres. Sendo assim, constatou-se que a opressão das mulheres não é um fator
natural da humanidade, mas sim uma construção histórica que determinou a
identidade destas, e o comportamento do Estado de Direito. Para contribuir com a
equidade nas relações de gênero, a Constituição Federal de 1988 positivou Direitos
Fundamentais para as mulheres, bem como remeteu à criação de políticas públicas,
contribuindo para o alcance da dignidade humana dessas. Enfim, diante da
interpretação dos Direitos Fundamentais das mulheres dentro do Estado
Democrático de Direito, é possível afirmar que a interpretação concretizante e plural,
apregoadas por Hesse e Häberle, contribuem para a um novo olhar aos direitos das
mulheres, bem como para sua emancipação e a construção de equidade nas
relações de gênero, proporcionando, a solução dos conflitos existente. Para essa
pesquisa utilizou-se o método de abordagem hipotético-dedutivo e de abordagem
histórica. Cabe destacar que a pesquisa encontra-se ancorada à linha de pesquisa
“Cidadania e Novas Formas de Solução de Conflitos”, do Programa de Pós-
Graduação em Direito - Mestrado, da Universidade Regional do Alto Uruguai e das
Missões, Campus Santo Ângelo.
Palavras-chave: Direitos das Mulher. Relações de Gênero. Interpretação
Concretizante e Plural. Dignidade da Pessoa Humana
9. ABSTRACT
The present paper of Masters Degree Dissertation approaches the question
of women in society, involving the problematic of inequality of gender relations, and
the exclusion and oppression suffered by women in the State of Law. For that, the
problem approached on the paper involves the following question: Is it possible to
utilize the constitutional interpretation, in the light of the Human Person’s Dignity
Principle, as a tool of effectuation of the Fundamental Rights of women, with the
finality of providing more isonomy and solve conflicts in gender relations? In face of
the proposed questioning, the hypothesis presented to guide the research was that
the constitutional interpretation more open and plural, founded on the Human
Person’s Dignity Principle, would be a more adequate and concretizing way to solve
the conflicts of gender relations, in the light of the Federal Constitution from 1988 that
provided the isonomic treatment between men and women, effectuating, this way,
the constitutional promises and contributing for the construction of a more dignifying
acknowledgment of the women’s identity. Therefore, it was noted that the women’s
oppression is not a natural factor of humanity, but the historical construction that
determined their identity, and the behavior of the State of Law. To contribute with the
equity in gender relations, the Federal Constitution from 1988 assured the
Fundamental Rights of women, as well as remit to the creation of public policies,
contributing for the grasp of their human dignity. Ultimately, in face of the
interpretation of the Fundamental Rights of women inside the Democratic State of
Law, it is possible to affirm that the plural and concretizing interpretation, proclaimed
by Hesse e Häberle, contribute to a new look on the women’s rights, as well as to
their emancipation and the construction of equity in the gender relations, providing
the solution to the existing conflicts. For this research it was utilized the hypothetical-
deductive approach method and historical approach. Is important to note that the
research is anchored to the line of research “Citizenship and New Ways of Conflicts
Solution”, from the Post-Graduation in Law Program – Masters Degree, from the
Universidade Regional do Alto Uruguai e das Missões, Campus Santo Ângelo.
Keywords: Women’s Rights. Gender Relations. Plural and Concretizing
Interpretation. Human Person Dignity.
10. SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS.....................................................................................12
1 A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DAS MULHERES NA HISTÓRIA DA
HUMANIDADE...........................................................................................................17
1.1 O PROCESSO DE EXCLUSÃO DAS MULHERES NA HISTÓRIA: UMA VISÃO
GERAL DO DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES DE GÊNERO........................18
1.2 MULHERES NA IDADE MODERNA: DA EXCLUSÃO PARA UM MUNDO DE
CONQUISTAS E AVANÇOS......................................................................................36
1.3 O PROCESSO DE RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE DAS
MULHERES................................................................................................................63
2 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA
PROMOÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES.....................................................84
2.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO UM PRINCÍPIO FUNDANTE DO
ESTADO DE DIREITO...............................................................................................85
2.2 ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS...............99
2.3 A POSITIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS MULHERES NA
CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E SUA INFLUÊNCIA NO ORDENAMENTO
JURÍDICO E NAS POLÍTICAS PÚBLICAS..............................................................125
2.3.1 As Mulheres no Ordenamento Jurídico Brasileiro...........................................126
2.3.2 Os Direitos da Mulher na Constituição Federal de 1988.................................136
11. 2.3.3 A promoção da igualdade entre Mulheres e Homens por meio de leis e
políticas públicas......................................................................................................145
3 A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DIANTE DA EFETIVIDADE DOS
DIREITOS DAS MULHERES...................................................................................160
3.1 A IMPORTÂNCIA DA HERMENÊUTICA E DA INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONAL...........................................................................................162
3.2 A INTERPRETAÇÃO CONCRETIZANTE EM KONRAD HESSE E A
INTERPRETAÇÃO PLURALISTA EM PETER HÄBERLE................................174
3.2.1 A Interpretação Concretizante da Constituição em Konrad Hesse.................174
3.2.2 A Interpretação Pluralista em Peter Häberle...................................................183
3.3 A NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL COMO TENTATIVA DE
SUPERAÇÃO DO PROCESSO DE EXCLUSÃO FEMININA: UMA ANÁLISE A
PARTIR DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA E DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA
PESSOA HUMANA............................................................................................197
3.3.1 Interpretação e Concretização dos Direitos Fundamentais das Mulheres
..................................................................................................................................198
3.3.2 A Função Transformadora dos que exercem o Direito....................................208
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................221
REFERÊNCIAS........................................................................................................227
ANEXOS
11
12. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A história das mulheres, ao longo de grande parte da trajetória da
humanidade, demonstra que elas sofrem, experimentam e vivenciam uma realidade
marcada pela discriminação e pela exclusão das mais diversas formas, sendo que
mesmo contemporaneamente ainda sofrem, embora muitas vezes veladamente, a
discriminação e a opressão de um mundo machista e patriarcal.
O festejado professor de Filosofia do Direito da Universidade de Sevilla,
David Sánchez Rubio, acertadamente ensina que quando chove, ainda que sendo
meros expectadores, sabemos associar os pingos da chuva com o ruído que
provocam ao cair no asfalto, nas folhas das árvores ou com as poças produzidas
pelas chuvas. A queda das gotas se vincula ao som que produzem. Além disso, pela
paisagem podemos perceber que o destino da água é reunir-se em poças,
nascentes, riachos ou grandes rios, ou seja, sabemos associar todo o processo com
seus resultados.
No entanto, explica Rubio, o mesmo não ocorre quando nos deparamos
com os acontecimentos sociais que nos rodeiam. Embora sendo atores dos
mesmos, tendemos a ficar com parte deles, principalmente com os resultados, sem
saber conectá-los com suas causas, origens e com seu desenvolvimento e sem
considerarmos seus protagonistas. As causas principais estão ausentes ou as
fazemos desaparecer, ou seja, nos limitamos a ficar com determinadas partes do
processo, de forma passiva, sem saber nem ativá-las e nem vinculá-las com todo o
complexo processo que o compõe.1
Com efeito, quando se trata de relações sociais ou relações de poder,
parecemos não ter a mesma capacidade de compreensão e de percepção,
permanecendo, na maioria das vezes, distantes e alheios às causas que as
originaram, sem nos preocuparmos como elas se desenvolvem e, especialmente,
quais os interesses que estão envolvidos e a quem servem.
1
SÁNCHEZ RUBIO, David. Filosofía, derecho y liberación en América Latina. Bilbao: Desclée,
1999, p. 11 e 12.
13. Nas relações de gênero não é diferente; muito pelo contrário, não interessa
ao grupo dominante – masculino, machista e patriarcal –, que as pessoas envolvidas
na relação tomem conhecimento de suas causas, de suas origens e de seu
desenvolvimento e, principalmente, que levem em conta as protagonistas da
relação. Esse tipo de conduta tem o objetivo de perpetuar a dominação, a exclusão
e a opressão do universo masculino no que diz respeito às mulheres.
Nesse ínterim, a presente dissertação ocupa-se com questão das mulheres
na sociedade, envolvendo a problemática da desigualdade nas relações de gênero,
levando em conta a dignidade da pessoa humana, cuja violação abrange desde a
exclusão até imposição de castigos físicos, a condição de vida desumana, além de
toda sorte de discriminações e dos preconceitos.
Assim, o tema proposto tem como escopo conhecer a origem da opressão
das mulheres e como ocorreu a construção da identidade dessas, buscando lançar
um olhar para o espaço que estas têm na sociedade, buscando, também, entender
como o Direito se porta diante de tudo isso, num palco onde reinam a desigualdade,
a exclusão e a intolerância. Nesse diapasão, fundamental se faz examinar as
disposições inscritas na Constituição Federal de 1988 referentes aos direitos das
mulheres sob a ótica do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e o Princípio da
Igualdade, bem como analisar a interpretação constitucional diante desses
contextos.
Assim, a partir dessa perspectiva, foi estabelecido como problema central
dessa pesquisa a seguinte questão: é possível utilizar a interpretação constitucional,
à luz dos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Igualdade, como
instrumento de efetivação dos Direitos Fundamentais das mulheres, com a finalidade
de proporcionar mais isonomia e solucionar conflitos nas relações de gênero?
Diante do problema da pesquisa, a hipótese levantada orienta-se no sentido
de que a interpretação constitucional mais aberta e plural, fundamentada nos
princípios acima descritos, seria um meio adequado e concretizante para solucionar
os conflitos nas relações de gênero à luz da Constituição Federal de 1988 que
concedeu um tratamento isonômico entre homens e mulheres, bem como analisar
com menos preconceito os direitos das mulheres, efetivando as promessas
constitucionais face aos seus princípios e contribuindo para a construção de um
reconhecimento mais digno da identidade das mulheres.
13
14. Com efeito, a escolha do referido tema nasce da percepção do tratamento
injusto concedido às mulheres tanto pela sociedade como um todo, quanto pelo
mundo jurídico, bem como do idealismo de se assegurar às mulheres os direitos
fundamentais e demais direitos de cidadania, previstos na Constituição Federal de
1988, com a intenção de alcançar a justiça social, a inclusão social e a promoção da
dignidade humana para esse público ainda discriminado negativamente.
Contudo, o presente trabalho não pretende se limitar a relatar as
desigualdades e a exclusão experimentadas e vivenciadas pelas mulheres através
dos tempos, fato que, embora inaceitável, é ainda corrente neste século XXI,
agravado por novos conflitos, mas, também e principalmente, analisar se é possível
utilizar a interpretação constitucional mais aberta como forma de solução de novos
conflitos sexistas e de gênero.
Cabe destacar que o tema escolhido encontra-se inserido na linha de
pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Direito – Stricto Sensu, da
Universidade Regional do Alto Uruguai e das Missões, Campus Santo Ângelo, qual
seja, “Cidadania e Novas Formas de Solução de Conflitos”. No presente caso, o
trabalho analisará os direitos de cidadania das mulheres, em especial brasileiras,
relacionando-os aos conflitos gerados pela desigualdade de gênero e ao
reconhecimento equivocado da identidade das mulheres, onde essas são excluídas
e tratadas desigualmente em relação aos homens, enquanto que, como forma de
solução desses conflitos, serão verificados os métodos concretizante e pluralista de
interpretação constitucional.
Destaca-se que, neste trabalho, será utilizado o método de abordagem
hipotético-dedutivo, tendo sido apresentado um problema e, a partir desse, as
hipóteses a fim de verificar se a interpretação constitucional aberta e plural é capaz
de contribuir para a construção de uma identidade emancipada das mulheres e para
a resolução de conflitos nas relações de gênero, à luz dos princípios da Constituição
Federal de 1988, já mencionados. Além disso, utilizou-se o método de procedimento
histórico, buscando nos elementos históricos, fontes para fundamentar o presente
trabalho, bem como recorreu ao método de procedimento monográfico, baseado na
pesquisa bibliográfica, documental e de textos legais envolvendo a questão das
mulheres, sua vida e seus direitos.
14
15. Diante do exposto, a presente dissertação encontra-se estruturada em três
capítulos que buscarão apresentar o contexto da identidade das mulheres, a
opressão por elas sofrida, tendo como embasamento teórico os princípios
constitucionais, calcados na ideia de que uma interpretação mais aberta e plural
contribui para a concretização dos Direitos Fundamentais das mulheres.
Dessa forma, buscando compreender como ocorrem as relações de gênero
e vinculando-as com todo o complexo processo que a compõe, no primeiro capítulo,
inicialmente, será feita uma abordagem histórica do desenvolvimento das relações
de gênero, especialmente no que diz respeito à exclusão das mulheres; num
segundo momento, será feita a análise de como ocorreu o processo da exclusão da
mulher na Idade Moderna, além de se refletir acerca das conquistas e avanços
femininos para, posteriormente, abordar, com mais elementos, o processo de
reconhecimento da identidade das mulheres, cuja compreensão é de capital
importância no contexto geral deste trabalho.
O segundo capítulo deste trabalho inicia com a tentativa de conceituação da
Dignidade da Pessoa Humana, enquanto um valor supremo que atrai o conteúdo de
todos os Direitos Fundamentais dos seres humanos, considerando-se que se trata
do fundamento de todos eles. Mais adiante, na segunda parte do Capítulo, para uma
melhor compreensão de seu desenvolvimento, será realizado um breve resgate
cronológico dos Direitos Fundamentais, por meio de uma análise a partir de seus
aspectos históricos. Por fim, a terceira parte desse segundo capítulo trata mais
especificamente da positivação dos Direitos Fundamentais das mulheres na
Constituição Federal de 1988, bem como sua influência no ordenamento jurídico e
nas políticas públicas inclusivas.
Prosseguindo este estudo, finalmente, coube enfrentar o problema posto, ou
seja, verificar se é possível utilizar a interpretação constitucional, à luz dos Princípios
da Dignidade da Pessoa Humana e da Igualdade, como instrumento de efetivação
dos direitos fundamentais das mulheres, com a finalidade de solucionar conflitos de
gênero. Por consequência, a primeira parte do terceiro capítulo analisará
brevemente o preconceito jurídico contras as mulheres, bem como os avanços
legais e as conquistas destas para, então, adentrar no estudo da Hermenêutica e da
Interpretação constitucional voltada para a concretização dos Direitos Fundamentais
das mulheres.
15
16. Cabe registrar que dentre as matrizes teóricas da Nova Hermenêutica
Constitucional, ou seja, os métodos interpretativos de concretização, serão
abordados com mais ênfase a interpretação concretizante de Konrad Hesse e a
interpretação pluralista de Peter Häberle. Nesse viés, a última parte do capítulo irá
se ater à análise da aplicabilidade de uma interpretação constitucional aberta e
plural para a efetivação do direito das mulheres, ressaltando, para isso, o papel dos
profissionais do Direito para a efetivação dos direitos das mulheres.
Cumpre frisar, portanto, que o escopo precípuo deste trabalho é investigar a
possibilidade de um mundo mais aberto e plural às diferenças e à humanização; um
mundo em que mulheres e homens vivam em um modelo de parceria, prevalecendo
a gilania,2 ao invés de qualquer dominação ou opressão.
2
Riane Eisler propõe o neologismo gilania para “[...] descrever uma alternativa palpável ao sistema
baseado no escalonamento de uma metade da humanidade sobrepondo-se a outra [...] G deriva da
raiz grega gyne, ou ‘mulher’; na deriva de andros, ou ‘homem’. A letra ‘l’ entre as duas silabas tem
duplo significado: representa a ligação entre as duas metades da humanidade – ou seja, não se trata
de escalonamento, como na androcracia – e em grego deriva do verbo lyein ou lyo, que por sua vez
também tem duplo significado: resolver ou solucionar (como se vê da palavra análise) e dissolver ou
libertar (como na palavra catálise). Nesse sentido a letra ‘l’ represente a solução de nossos
problemas através da libertação das duas metades da raça humana em relação aos papéis
degradantes e distorsivos, que foram rigidamente impostos pelas hierarquias de dominação inerentes
aos sistemas androcráticos”. EISLER, Riane. O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro.
Tradução Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2007, p. 165.
16
17. 1. A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DAS MULHERES NA HISTÓRIA DA
HUMANIDADE
É sabido que as mulheres, ao longo de boa parte da história da humanidade,
têm sofrido, experimentado e vivenciado a discriminação e a exclusão, as quais se
apresentam sob as mais diversas faces, sendo que, ainda na atualidade, elas
sofrem, embora muitas vezes de forma velada, a discriminação do mundo
androcêntrico3. A exclusão vivenciada pelas mulheres foi se modificando,
adequando-se ao momento histórico em que ocorre, como forma de se perpetuar na
sociedade.
Assim, a identidade da mulher é fortemente marcada por inúmeras formas
de discriminação e exclusão, o que impõe um estudo mais aprofundado acerca de
como ocorre a construção da identidade das mulheres na história da humanidade.
Dessa forma, neste primeiro capítulo, inicialmente, será feita uma abordagem
histórica do desenvolvimento das relações de gênero, especialmente no que diz
respeito à exclusão das mulheres.
Num segundo momento, serão tecidas considerações sobre como ocorreu o
processo da exclusão da mulher na Idade Moderna, além de realizar uma detida
reflexão acerca das conquistas e avanços femininos, para, posteriormente, tratar do
processo de reconhecimento da identidade das mulheres na sociedade. Tal
3
Androcentrismo é um termo originado na expressão androcracia. Riane Eisler destaca que “[...]
nossos complexos idiomas modernos, com termos técnicos para tudo que se possa imaginar e mais
um pouco, não têm palavras para descrever a profunda diferença entre aquilo que chamamos até
agora de sociedade de parceria e de dominação. Na melhor das hipóteses, temos palavras como
‘matriarcado’ para descrever o oposto de ‘patriarcado’. Mas essas palavras só reforçam a idéia
prevalecente de realidade (e de ‘natureza humana’), descrevendo os dois lados de uma mesma
moeda [...] a palavra patriarcado não chega a descrever com precisão nosso sistema atual. ‘Parceria’
e ‘dominação’ são termos úteis para descrever os dois princípios contrastantes de organização que
vimos examinando. Mas embora consigam capturar a diferença essencial,não transmitem um ponto
específico e de vital importância: estas duas formas contrastantes de estruturar as relações entre a
metade feminina e a metade masculina da humanidade, e afetam profundamente o sistema social
como um todo. [...] Os dois novos termos que proponho, e que em alguns contextos serão usados
como alternativa paras ‘dominação’ e ‘parceria’. No lugar de patriarcado, para descrever com maior
exatidão um sistema social regido pela força, ou ameaça de uso da força pelos homens, proponho o
neologismo androcracia. Já utilizada por alguns, essa palavra deriva das raízes gregas andros, ou
‘homem’, e kratos, ou ‘governo’”. EISLER, op. cit, 2007, ps. 164-165.
17
18. compreensão é de capital importância dentro do contexto geral deste trabalho, que
pretende abordar a interpretação constitucional à luz dos Princípios da Dignidade da
Pessoa Humana e da Igualdade.
Vale ainda salientar que a presente abordagem considera os principais
aspectos envolvendo as mulheres na história da humanidade, tendo-se presente que
existem muitos outros, os quais não serão abordados nesse capítulo, mas nem por
isso têm menor importância.
1.1 O PROCESSO DE EXCLUSÃO DAS MULHERES NA HISTÓRIA: UMA VISÃO
GERAL DO DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES DE GÊNERO
A exclusão da mulher é secular e diferenciada dentro dos períodos históricos
da humanidade. A compreensão sobre a divisão sexista nas relações sociais
possibilita indicações dos rumos da exclusão, fundamentada, justamente, nessa
diferença. Essa exclusão das mulheres é reproduzida no âmbito econômico, político
e social, tendo desdobramentos específicos nos campos da cultura, da educação, do
trabalho, das políticas sociais, da etnia, da identidade e de vários outros setores.
As relações entre homens e mulheres, ao longo dos séculos, mantêm um
caráter excludente, porquanto assimila, de forma bipolarizada, designando à mulher
uma condição inferioriorizada, a qual tem sido reproduzida pela maioria dos
formadores de opinião e dos que ocupam as esferas de poder na sociedade.4
Entretanto, cabe destacar que esse processo de inferiorização das mulheres não é
somente reproduzido pelos formadores de opinião, pois, na realidade, isso está
incutido no “ser cultural” da humanidade e “naturalizado”, perpassando classes
sociais.
Analisar a trajetória das mulheres é, também, buscar compreender sua
história e seus desdobramentos no reconhecimento da identidade das mulheres,
bem como colaborar com o resgate de suas conquistas, já que raras vezes, com
exceção do período moderno em diante, elas puderam deixar registrada a história de
4
FISCHER, Izaura Rufino. Gênero e exclusão social. Trabalhos para Discussão. Universidade
Estadual de Mossoró, 2001, p. 3.
18
19. sua própria existência. Isso porque o pouco que foi escrito sobre elas foi realizado
por uma elite masculina, branca, proprietária de bens materiais, instruída, dona dos
meios de comunicação, com forte inserção na política, na econômica, bem como no
meio social e cultural.
Diante disso, as relações de gênero avançaram na direção da dominação
masculina por meio de uma construção histórica da identidade assumida por
homens e mulheres envolvendo relações de poder que determinaram
comportamentos diferenciados e excludentes, os quais foram incutidos na
subjetividade humana, dando-lhe um caráter natural e inerente a esses
sexos.5Dessa forma, é fundamental que se faça uma nova abordagem da história da
humanidade para compreender como estas relações de gênero foram sendo
construídas, bem como analisar os fatores que influenciaram nessa construção,
desvendando os mitos que envolvem este tema e, consequentemente, como foram
sendo construídas as identidades dos homens e das mulheres.
Ao analisar a exclusão da mulher é errôneo imaginar que essa condição de
dominação sempre teve lugar na história da humanidade. Mesmo os que se
contrapõem à dominação, cometem ledo engano ao ter a ideia de que a dominação
do homem sobre a mulher sempre existiu. Admitir que a dominação masculina
sempre existiu é admitir que a condição de superioridade e de inferioridade é natural
e inerente aos homens e mulheres, ao invés de ser uma construção social e cultural.
As relações entre o gênero humano, atualmente caracterizadas pela opressão das
mulheres, não podem ser consideradas como um fato “natural” da espécie humana.
A naturalização da opressão das mulheres é resultado de uma construção social e
cultural no decorrer dos milênios, reforçada também pelos mitos, os quais enaltecem
o papel de submissão imposto às mulheres.
Alguns estudos arqueológicos, iniciados no século XIX se prestam para
evidenciar a afirmação de que a opressão das mulheres é uma construção social e
não um fato naturalizado. Estes estudos rapidamente encontraram evidências da
existência de sociedades no período paleolítico e neolítico onde os homens não
dominavam as mulheres, o que levou estes pesquisadores a concluir que essas
5
EAGLETON, Terry. A idéia de Cultura. Tradução: Sandra Castello Branco, revisão técnica Cezar
Mortari. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 76.
19
20. sociedades viveram em organizações sociais matrilineares6. Entretanto, na falta de
maiores evidências neste sentido, a visão de naturalização da dominação masculina,
e o fato de terem que abordar um enfoque totalmente novo das relações humanas,
estes optaram por “concluir” ou seguir sustentando a tese de que a sociedade
sempre foi e sempre será dominada pelos homens.7
Assim, nesses estudos, nos quais as conclusões seguem a tese de que os
homens sempre dominaram as mulheres, prevalecem os preconceitos dos antigos
pesquisadores, os quais viam o homem primitivo como um guerreiro e caçador
sedento de sangue, subjugador da mulher pela força – como se fosse uma caça –
dando margem à mitológica cena em que puxava as mulheres pelos cabelos.8
Esses preconceitos acadêmicos levaram inúmeros pesquisadores a
contradizerem seus próprios achados como, por exemplo, os encontrados entre os
Vedda contemporâneos de Sri Lanka, Ceilão, onde as mulheres e não os homens
eram responsáveis pelas pinturas rupestres. Entretanto, um desses pressupostos
teóricos é que o único responsável pela produção artística do Paleolítico era o
homem pré-histórico.9
No entanto, as evidências arqueológicas reestudadas não apóiam nenhuma
dessas conclusões10, muito pelo contrário, indicam que a sociedade pré-patriarcal
6
A “matrilinearidade” se diferencia do “matriarcado”, uma vez que esse segundo “[...] é a definição de
uma relação de poder onde os homens estão submetidos ao poder das mulheres.” Já a
matrilinearidade não pressupõe a opressão das mulheres sobre os homens e sim o fato de que [...] a
sucessão é contada a partir da mãe.” SIKORA, Rogério Moraes; ANGELIN, Rosângela. Relações de
Gênero e Dignidade da Pessoa Humana no Estado Democrático de Direito: Encontros e
desencontros na promoção da equidade de gênero. In: Revista Direitos Culturais. Programa de
Pós-Graduação em Direito – MESTRADO da URI Campus Santo Ângelo - RS. Universidade Regional
Integrada do Alto Uruguai e Missões – URI – Santo Ângelo v. 5. nº 9. Julho-dezembro 2010, p. 50.
7
EISLER, 2007, ps. 29-30. .
8
EISLER, 2007, p. 42.
9
EISLER, loc. cit.
10
Neste sentido, Eisler faz importantes considerações e relatos, ao destacar que “[...] em toda a parte
da Europa pré-histórica foram encontradas estatuetas entalhadas em pedra, chamadas de estatuetas
de Vênus ou Vênus esteatopígeas. Essas estatuetas femininas descrevem figuras de quadris largos,
por vezes grávidas, altamente estilizadas e freqüentemente sem rosto. A autora entende que essas
estatuetas são testemunho do assombro de nossos antepassados diante do mistério da vida e da
morte, face à associação do feminino aos poderes que governam a vida e a morte. Essa associação
do feminino ao poder de dar a vida é encontrada nos cemitérios do Paleolítico. Como exemplo, cita o
exemplo do abrigo de rochas conhecido como Cro-Magnon em Les Eyzies, França (onde em 1868
foram encontrados os primeiros restos de nossos ancestrais do Paleolítico superior), em volta e por
cima dos cadáveres havia conchas cuidadosamente dispostas. Estas conchas, com o formato de
vagina, parecem ter sido associadas a algum tipo de culto primitivo a uma deidade feminina. Essas
conchas eram agentes proporcionadores de vida, bem como o ocre vermelho, que em tradições
posteriores substitui o sangue menstrual ou doador de vida da mulher. Assim, era dada grande
ênfase à associação da mulher com o ato de dar e suster a vida. Isso explicaria a colocação ritual das
20
21. era notavelmente igualitária e vivia num regime de parceria e cooperação entre
homens e mulheres.
Isso levou esses pesquisadores a perceberem que, em determinado período
da história, ou seja, no início da humanidade, a sociedade não era dominada pelos
homens. Estudos arqueológicos que os antecederam já haviam apontado um longo
período – milhares de anos – de paz e prosperidade em sociedades sem dominação
masculina, sem violência e hierarquia entre seus membros.11
Além disso, outras evidências pesquisadas demonstravam sociedades em
que a representação do poder divino, em forma humana, era feminina ao invés de
masculina.
A partir de indícios arqueológicos pode-se concluir que a mais
antiga imagem humana do divino era feminina. Desde a época paleolítica
até a neolítica, e estendendo-se aos inícios da civilização antiga,
encontramos a imagem da Deusa [...] Podemos falar da imagem humana
fundamental do divino como a Matriz Primordial, o grande útero dentro do
qual são geradas todas as coisas, Deuses e humanos, céu e terra, seres
12
humanos e não-humanos.
Essas imagens femininas, de representação do divino, amplamente
difundidas e encontradas em todo o mundo mediterrâneo antigo, sugerem como os
povos antigos percebiam a fonte e os poderes da vida.13 Esta compreensão faz
sentido pelo fato de que seria natural que aquelas sociedades imaginassem “[...] o
universo como uma Mãe generosa, de cujo ventre aflora toda a vida [...]14, já que a
vida humana emerge do corpo da mulher.Também as religiões pagãs antigas, como
dos Vikings e Celtas, mantinham uma relação próxima com a natureza e cultuavam
deusas, concedendo um destaque especial para as mulheres, pois estas tinham
conchas em formas de vagina, em torno ou sobre o morto com o ocre vermelho (simbolizando o
poder vitalizante do sangue) parecem ter composto os ritos funerários cujo propósito era trazer de
volta o falecido através do renascimento. Essas estatuetas parecem estar relacionados com a crença
de que toda vida vegetal e animal se origina da mesma fonte de onde brota a vida humana, a Grande
Deusa Mãe ou Doadora de Tudo. Essa consciência, ilustrada enfaticamente por estatuetas de
Deusas, decorre do evidente espanto e deslumbramento diante do grande milagre da condição
humana: o nascimento encarnado através do corpo de uma mulher”. EISLER, 2007, ps. 39-46.
11
EISLER, 2007, p. 28.
12
RUETHER, Rosemary Radford. Sexismo e Religião: rumo a uma teologia feminista. Tradução;
Walter Altmann, Luís Marcos Sander. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1993, ps. 46- 47.
13
RUETHER, loc. cit.
14
EISLER, op. cit., p. 29.
21
22. uma proximidade muito grande com a “Mãe Terra”, possuindo ambas o poder da
fertilidade.15Neste sentido, destaca Eisler:
Em tradições que remontam ao princípio da civilização, a vulva era
venerada como o portal mágico da vida, possuindo o poder tanto de
regeneração física quanto de iluminação espiritual e transformação. Longe
de ser visto como uma ‘vagina obscena’, o triângulo púbico da mulher era a
manifestação sagrada do poder sexual criativo. E longe de ser de uma
ordem inferior, abjeta ou lasciva, era um símbolo primordial da figura
poderosa, conhecida mais tarde na história ocidental como a Grande
16
Deusa: a fonte divina de vida, prazer e amor.
Com efeito, tanto é verdade que aquelas sociedades veneravam a vulva,
como a Grande Deusa, a fonte geradora da vida. As imagens femininas, as quais
proliferaram naquele período civilizatório, realçam, tipicamente, os seios, as nádegas
e o abdômen dilatado, em clara alusão aos poderes da fecundidade, já que
representavam a fêmea humana grávida.17 Também foram encontradas numerosas
estatuetas, pertencentes à era Aurinhacense, mostrando mulheres com atributos
sexuais acentuados exageradamente, com formas opulentas e o especial destaque
dado à vulva.18
Frise-se, também, o fato de que a descendência era matrilinear, ou seja, era
traçada pela linha materna, o que reforçava o culto e a veneração do feminino. Isso
não significa que a relações sociais fossem marcadas pelo matriarcado, e sim pela
matrilinearidade. Sublinhe-se que “[...] o matriarcado é a definição de uma relação
de poder onde os homens estão submetidos ao poder das mulheres”, enquanto a
relação de matrilinearidade é “[...] onde a sucessão é contada a partir das mães.”19
Porém, importante se faz destacar que, mesmo com o culto do feminino, as
mulheres não eram vistas empunhando espadas e submetendo os homens em
condições de subserviência nessas sociedades, o que confundiu os pesquisadores
do século XIX. Esses pesquisadores não perceberam que nas sociedades em que
15
ANGELIN, Rosângela. Gênero e Meio Ambiente: a atualidade do ecofeminismo. Revista Com
Ciência Ambiental. Ano 1. Nº 3. São Paulo: Editora Casa Latina, 2006, p. 14.
16
EISLER, Riane. O prazer sagrado: sexo, mito e a política do corpo.Tradução Ana Luiza Dantas
Borges. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 27.
17
RUETHER, 1993, p. 47.
18
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 97.
19
SIKORA; ANGELIN, 2010, p. 50.
22
23. os homens não dominavam as mulheres, igualmente, as mulheres não dominavam
os homens. Pelo contrário, escavações demonstram que na arte do período
Neolítico, a Deusa não trazia emblemas associados ao poder, tais como lanças,
espadas ou raios, nem mesmo símbolos da obediência mediante a violência,
assassinato e mutilação – como encontrados nas imagens masculinas –, mas nem
por isso a Deusa foi encontrada em pequeno número, pelo contrário, a imagem da
Deusa é encontrada em profusão no Neolítico, associada a símbolos como o sol e à
água.20 Assim, constata-se que no período histórico Paleolítico e Neolítico os seres
humanos viviam em um sistema de parceria entre mulheres e homens, sendo as
mulheres veneradas por seu poder de gerar a vida e, com isso, manter a espécie
humana.21
Esse sistema de parceria se evidencia também pelo fato de que as antigas
civilizações urbanas da Suméria e Babilônia apesar de continuar cultuando a
imagem feminina do divino, passaram a utilizar, também, a imagem da divindade
masculina, porém sem se sobrepor à representação feminina, mas emparelhada à
ela.22 Dessa forma, viviam num ambiente de cooperação e parceria entre os sexos,
embora a divisão do trabalho já fizesse parte do ambiente social, porém, esta não
significava que um trabalho era mais valorizado que o outro, como ocorre na
atualidade.
No período em que vigia um modelo de organização social baseado na
parceria igualitária entre mulheres e homens, a violência, a dor e o medo não eram
incorporados à estrutura social básica ou institucionalizada, contando-se mais com o
prazer do que com a punição para manter a coesão social. Nesse modelo, a
diferença entre mulheres e homens não é equiparada à inferioridade ou
superioridade, a minoria contra a maioria, a dominar ou ser dominado; não
pressupõe misoginia ou aversão à mulher e tampouco a necessidade cultural de
posicionar o homem e a espiritualidade acima da mulher e da natureza.23
Mesmo diante de tantas evidências da existência de um período de
harmonia e valorização mútua entre homens e mulheres, historiadores e ou
pesquisadores seguem tomando por referência o paradigma predominante – o da
20
EISLER, 2007, p. 59.
21
EISLER, 2007, p. 40.
22
RUETHER, 1993, p. 48.
23
EISLER, 1996, p. 16.
23
24. dominação – tendo muita dificuldade de lançar um novo olhar sobre a história e os
fatos materiais levantados.24 Para melhor exemplificar as diferenças entre um
modelo dominador, no qual as hierarquias humanas são mantidas pela força ou
ameaça do uso da força, e um modelo de parceria, onde a igualdade entre os sexos
– e entre todas as pessoas – é a regra geral.25
Assim, a maior força física do homem não servia para a opressão social,
tampouco servia de fundamento para justificar a supremacia dos homens sobre as
mulheres e nem dos valores masculinos sobre os valores femininos. A ideologia que
prevalecia nesse período era a ginocêntrica, ou seja, orientada pelos valores
femininos e a deidade representada na forma de mulher.26
O modelo de organização social baseado na parceria igualitária entre
mulheres e homens perdurou por milênios, entretanto, em determinado período da
história – talvez, iniciado no quinto milênio a.C.27 – ocorreu uma grande mudança,
tão colossal que não se pode comparar a nada que conheçamos da evolução
cultural humana.28 Nesse período começaram a ocorrer grandes transformações
sociais, as quais culminaram com a adoção do ”[...] modelo dominador de
organização social, ou seja, um sistema onde prevalecia a dominação masculina, a
violência e uma estrutura social hierárquica e autoritária”, caracterizando-se,
também, pelo “[...] desenvolvimento de tecnologias de destruição – cada vez mais
eficazes” para adquirir riquezas materiais, ao invés do uso de tecnologias de
produção.29
Essas transformações sociais tiveram início a partir do desenvolvimento da
metalurgia com a fundição de minerais e o trabalho com os metais fundidos.
Fundiam o cobre e o estanho, servindo de liga o bronze, utilizando o produto para a
confecção de ferramentas, utensílios domésticos e, principalmente, armas, embora
24
Neste sentido, Eisler cita o caso do arqueólogo Nicolas Platon, o qual pesquisou e escavou Creta
por mais de cinqüenta anos, e que diante da proeminência feminina em todas as esferas da vida,
afirmou que “[...] não há dúvida de que as mulheres contribuíram de forma notável à arte minóica [...]
o papel dominante desempenhado pelas mulheres na sociedade se evidencia pelo fato de que tinham
parte ativa em todos os aspectos da vida neo-palaciana”. No entanto, mesmo tendo reconhecido
como traço marcante da cultura cretense o grande status das mulheres e sua ativa participação em
todos os aspectos da vida acrescentou que “isso talvez se deva à ausência de homens, que
empreendiam viagens marítimas prolongadas”. (EISLER, 2007, p. 88)
25
Ver no ANEXO I, quadro apresentado por EISLER, 1996, ps. 512-514.
26
Idem., p. 90.
27
A sigla “a.C.” significa “antes de Cristo”.
28
EISLER, op. cit.., 2007, ps. 90-91.
29
Idem., p. 92.
24
25. não tenham suplantado os instrumentos de pedra, o que somente seria possível com
o ferro, mas ainda não sabiam como obtê-lo.30 O ferro, por sua vez, depois de
descoberto, passou a ser utilizado para a confecção de armas, especialmente, a
espada e o machado, além de utensílios, tais como o arado, desempenhando na
história um papel revolucionário, redirecionando o curso da evolução cultural da
sociedade.31
No entanto, o que desencadeou essas mudanças tão radicais, em verdade,
não foi a descoberta desses metais, mas, isto sim, a utilização que foi dada a eles,
porquanto foram utilizados primeira e principalmente como armas, ou seja, não foi o
metal em si, mas sua aplicação ao desenvolvimento de tecnologias de destruição
30
ENGELS, Friedrich. A origem da Família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997, p. 176.
31
ENGELS, 1997, p. 177. Nesse sentido, no que diz respeito à descoberta do bronze e do ferro – e,
conseqüentemente a utilização que foi dada a ele – importante trazer a seguinte citação, na qual faz
referência também ao culto da imagem feminina (e da Deusa) através de imagens talhadas nesses
metais: “Conforme a pesquisadora Monika Ottermann (2004), que traça o panorama da presença da
Deusa em Israel, da Idade do Bronze à Idade do Ferro, no Oriente Médio, datando a Idade do Bronze
Médio (1800-1500 a.E.C), a representação da Deusa é caracterizada como “Deusa-Nua”, destacando
o triângulo púbico, emergindo também representações em forma de ramos ou pequenas árvores
estilizadas, combinação que vem a ser denominada “Deusa-Árvore”. Na Idade do Bronze Tardio
(1550-1250/1150 a.E.C), a Deusa-Árvore apresenta duas mudanças, aparecendo em forma de uma
árvore sagrada flanqueada por cabritos ou como um triângulo púbico, que substitui a árvore. Neste
período, já se nota a tendência de substituição do corpo da Deusa pelos seus atributos, em especial a
árvore. Aparece, na passagem do BM para o BT uma mudança decisiva no campo das figuras de
material mais precioso: as Deusas Nuas foram substituídas em grande parte por deuses guerreiros
como Baal e Reshef (...) o encontro dos sexos fica claramente relegado ao segundo plano e é
substituído por representações de legitimação, luta, dominação e lealdade político-imperial
(Ottermann, 2004: 5). A Deusa continua perdendo representatividade na religião oficial, onde
divindades masculinas ganham cada vez mais força, principalmente a partir de características
dominadoras e guerreiras. Na Idade do Ferro I (1250/1150-1000), a forma corporal da Deusa-Árvore
vai desaparecendo enquanto que formas de animais que amamentam filhotes, às vezes com a
presença de uma árvore estilizada, ganham cada vez mais espaços na glíptica, significando a
prosperidade e a fertilidade. A presença da Deusa fica relegada aos espaços de religiosidade das
mulheres. Na Idade do Ferro IIA (1000-900 a.E.C), início da formação do javismo as Deusas passam
a ser simbolizadas por seus atributos. A forma vegetal da Deusa confunde-se com seu símbolo, a
árvore estilizada, sendo que muitas vezes é substituída por ele. Entendemos essas imagens como
representações da Deusa Asherah. Na Idade do Ferro IIB (925-720/700 a.E.C), Israel e Judá
apresentam diferenças no âmbito simbólico. Os documentos epigráficos de KuntilletAdjrud e de
Khirbetel-Qom destacam um vínculo estreito entre Asherah e Yahweh, o que acima de tudo
demonstra um contexto politeísta, onde se adoravam a várias divindades femininas e masculinas. Na
Idade do Ferro IIC (720/700-600 a.E.C), a Babilônia derruba a Assíria e passa a dominar Israel e
Judá. Neste período encontramos o símbolo tradicional da Deusa, a árvore e o ramo. Vários selos ou
impressões de selos que associam símbolos astrais com árvores estilizadas foram encontrados na
Palestina e na Transjordânia, o que reforça interpretações sobre a existência de um culto a Deusa
Asherah ao lado do Deus Yahweh. É principalmente na forma de árvore estilizada que, ao longo de
séculos, Asherah esteve presente em Israel. Mas é sobretudo na época pós-exílica que as vertentes
políticas e religiosas dominantes vão excluir e proibir a presença de uma divindade feminina dentro
do javismo (Ottermann, 2005:.52)”. CORDEIRO, Ana Luisa Alves. ASHERAH: A Deusa Proibida.
Revista Atlas. ISSN 1981-1225 Dossiê Religião N.4 – abril 2007/julho 2007.
25
26. que desempenhou papel importante nessa transformação que estabeleceu o modelo
dominador de organização social.32
Além disso, com a descoberta desses metais, a agricultura é ampliada,
exigindo um trabalho intenso para tornar os campos produtivos, obrigando o homem
a socorrer-se do trabalho de outros homens, os quais são reduzidos a escravos,
com isso surge a propriedade privada, assim, o homem julgando-se proprietário das
terras e dos escravos, torna-se também proprietário da mulher, nisso consistindo
“[...] a grande derrota histórica do sexo feminino”.33
A mudança do modelo de organização social de parceria para o de
dominação, apesar de inicialmente gradual, teve início com o uso da força e da
violência, com as guerras e invasões. Com o aparecimento desses invasores, a
Deusa e as mulheres foram reduzidas a consortes ou concubinas dos homens;
tornando-se a regra a dominação masculina, a guerra e a escravização das
mulheres.34 Nesse período, o valor supremo era o poder de tirar a vida, o qual era
simbolizado pela espada masculina, ao invés do poder de dar a vida, simbolizado
pela Deusa, ou pelo cálice feminino.35
Dessa forma, a radical mudança na evolução cultural da sociedade ocidental
se consolidou, estabelecendo o modelo de organização social de dominação, onde
as mulheres passaram a ser consideradas e tratadas como inferiores aos homens,
sendo que tudo que estivesse associado à mulher ou ao feminino era
automaticamente visto como secundário ou “coisa de mulher” – como algo que será
levado em consideração, só depois que os “problemas mais importantes”, seja da
sociedade ou familiar, já tiverem sido resolvidos.36 Com a adoção do modelo de
dominação, a exclusão e a submissão das mulheres passou a ter lugar comum em
todas as sociedades, acentuando-se cada vez mais com o passar dos séculos,
destinando à mulher uma posição de subserviência e inferioridade ao homem.
Assim, a exclusão da mulher, decorrente da adoção do modelo de dominação, é
social, cultural, econômica e histórica, entre outras.37
32
EISLER, 2007, ps. 93-94.
33
BEAUVOIR, 2002, p. 74.
34
EISLER, 2007, p. 96.
35
EISLER, loc. cit.
36
Idem., p. 31.
37
Ao tratarmos do tema da exclusão das mulheres na sociedade, importante se faz adentrar mais
profundamente no significado que o termo “exclusão social” abrange. Assim, a expressão “exclusão
26
27. Beauvoir38, importante feminista do século XX, apresentando uma posição
bastante pessimista, afirma que o mundo sempre pertenceu aos machos39,
destacando que nenhuma das razões que propuseram para explicar essa situação
pareceu suficiente. A história, de acordo com a autora citada, foi escrita pelos
homens e pelos poderosos, de sorte que a história dos pobres, dos oprimidos e,
especialmente das mulheres, sempre foi negligenciada pela historiografia. Ao
mesmo tempo em que a afirmação de Simone de Beauvoir é pessimista e remete a
um entendimento de naturalização da dominação masculina, ela aponta para o fato
de que os homens foram os que escreveram a história e, portanto, podem ter
negligenciado partes importantes, nesse caso, partes que se referiam às mulheres.
Neste sentido, Marcílio, ao prefaciar importante obra acerca das mulheres
pobres na história da Igreja Latino-americana, frisa esta situação:
Considerada quase sempre um ser inferior, incapaz de se
autogerir, a mulher sempre foi ainda vista pelo homem e também pela Igreja
numa visão dicotômica, que por si só é opressora. Ou era ela a santa,
dignificada, sublimada enquanto mãe, esposa fiel, servidora de seu marido.
E, se ainda reunisse a condição de consagrada, de branca, proprietária, da
elite, sua figura ideal estaria completa. Ou, de outro lado, a mulher era a
geradora do mal, fonte dos vícios e pecados do homem, causa de toda
perdição da humanidade. Ela é então, a prostituta, a feiticeira, a danada-
possuída do diabo, a adúltera, o objeto do prazer sexual do macho.
Freqüentemente, estes “vícios” vêm associados às condições das camadas
subalternas de opressão, marginalização, sendo, pois quase sinônimos de
mulher escrava, mestiça, negra ou índia. Mal necessário com o qual a
social” é de origem francesa, como explica Fischer e “[...] toma vulto a partir do livro Les Exclus
(1974), de autoria de Lenoir. (René Lenoir é um sociólogo e político francês que publicou a obra “Les
exclus: um français sur dix”, ou seja: “Os excluídos: um em cada dez franceses”, publicado em Paris,
em 1974, pela editora Seuil. Foi Secretário de Estado da Ação Social do governo de Jacques Chirac,
de 08 de junho de 1974 a 31 de março de 1978.) A exclusão social, a partir dessa obra, passa a ser
vista como um constante processo, visível socialmente e que ameaça excluir aqueles que compõem
a grande parte da população num apartheid informal, expressão que dá lugar ao termo “apartação
social”, evidenciando a divisão entre o pobre e rico, onde o pobre é miserável e ousado enquanto o
outro se caracteriza como rico, minoritário e temeroso. É sabido, entretanto, que a exclusão não é
provocada unicamente pelo setor econômico, embora se admita que este seja um dos principais
pilares de sustentação desse fenômeno. A exclusão, portanto, é gerada no âmbito econômico,
político e social, tendo desdobramentos específicos nos campos da cultura, da educação, do
trabalho, das políticas sociais, da etnia, da identidade e de vários outros setores”. FISCHER, 2001, p.
2.
38
BEAUVOIR, 2002, p. 81.
39
Parece-nos que, certamente, Simone de Beauvoir ao utilizar a expressão “sempre” o faz no sentido
coloquial e não no sentido histórico do termo, procurando dar ênfase à longevidade da dominação
masculina.
27
28. sociedade deveria conviver e ao mesmo tempo controlar, execrar,
40
ridicularizar, oprimir, exorcizar.
Como é possível constatar, a mulher foi, no decorrer da história, oprimida,
submissa, tendo que abrir, com extremas dificuldades, um espaço próprio onde
pudesse atuar, mostrar sua força, personalidade e potencialidades. Importante
constatar que a mulher ficou muitos séculos à margem de praticamente todo acesso
à cultura e ao saber, como forma do mundo masculino manter a dominação.41 Essas
eram subestimadas e afirmava-se que não poderiam ter condições de participar do
universo dos letrados e bem pensantes, reservado à elite colonial masculina. As
escolas, seminários e universidades fundadas pelas ordens religiosas foram apenas
pensadas e criadas para os homens, salvo pouquíssimas exceções.
Sendo assim, gerou-se uma situação em que as mulheres, em quase sua
totalidade, eram analfabetas, permaneciam ocultadas no interior de suas casas, só
podendo sair para as missas dominicais ou as festas religiosas. Consequentemente,
elas não puderam deixar registros escritos sobre sua própria história. No entanto,
sua atuação foi variada, importante, não apenas como mãe, esposa ou
companheira, educadora da infância e juventude no lar, como religiosa ou beata,
mas igualmente enquanto força de trabalho atuante na vida econômica do país.42
Portanto, efetivamente, a mulher foi impedida de escrever sua própria
história, já que, a partir de determinado período histórico, foi oprimida pelo universo
masculino, tendo de enfrentar as enormes diferenças de tratamento e as mais
variadas formas de discriminação, de exclusão e opressão, além de todos os tabus
que a sociedade machista tenta conservar. Desse modo, a história, registrada por
esse universo masculino, voluntariamente deixa de lado muitos aspectos históricos
ligados à participação das mulheres, deixando consolidada somente a participação
40
MARCÍLIO, Maria Luiza. A mulher pobre na história da igreja latino-americana. São Paulo:
Edições Paulinas, 1984, p. 03.
41
Vale lembrar que, “[...] os famosos filósofos Sócrates e Pitágoras foram educados por sacerdotisas.
Descobertas reportam a evidências que no próprio Egito houve faraós mulheres, assim como na
Grécia existiram juízas.” ANGELIN (a), Rosângela. Relações de Gênero do Ordenamento Jurídico
Brasileiro: A Busca por Direitos de Cidadania diante de um Ordenamento Jurídico Preconceituoso.
Revista Iuris Tantum. Ano XXV, nº 21, Terceira Época. Estado do México: Universidad Anáhuac
México Norte, 2010, p. 296.
42
MARCÍLIO, 1984, p. 09.
28
29. masculina, vista a partir da perspectiva dos homens, os quais chamam para si os
grandes acontecimentos e os momentos mais importantes do passado.
Quanto a este aspecto, vale lembrar que na Grécia Clássica o filósofo
Sócrates foi sentenciado à morte por defender ideias que continham fundamentos
gilânicos, as quais foram entendidas como heresias, tais como a educação igual
para as mulheres e uma noção de justiça que desafiava os fundamentos
androcráticos que predominavam na época nas relações entre o poder e a justiça.43
Ora, esse patrulhamento ideológico foi uma maneira utilizada pelo mundo
androcêntrico para coibir a propagação de ideias que defendiam a gilania ou que
permitissem respeitar a participação das mulheres na sociedade. Nesse contexto,
importante se faz mencionar a participação das mulheres, em posição de destaque
na história, porém omitida ou ocultada pela cultura machista e preconceituosa, as
quais são elucidadas por sólidas evidências de mulheres faraós, Meryrt-Nit, no Egito,
e Nit-Hotep, em Nagadeh, embora ignorada pela egiptologia androgênica.44
Na sociedade grega, após o fim da sociedade de parceria, a mulher já era
discriminada e tida como um “segundo sexo”45, a qual servia apenas para ter filhos,
porquanto o supremo amor era o amor entre os semelhantes, o amor de varões por
varões, ou seja, o amor supremo era a homossexualidade.46 O amor supremo era,
43
EISLER, 2007, p. 179.
44
EISLER, 2007, p. 87. O preconceito acadêmico fica explícito nesta passagem relatada pela autora:
“A pré-história é como um quebra-cabeça gigante, em que mais da metade das peças está perdida ou
destruída. É impossível reconstruí-la completamente. Mas o maior obstáculo não é a falta de muitas
peças, mas o paradigma vigente, pois ele dificulta muito a interpretação correta das peças que temos
a inserção no verdadeiro cenário onde se encaixariam. Por exemplo, no primeiro relato de Sir
FlindersPetrie sobre as escavações da tumba de Meryet-Nit no Egito, ele presumiu automaticamente
que Meryet-Nit era um rei. Pesquisas posteriores provaram, entretanto, que Meryet-Nit era mulher e,
a julgar pela opulência de seu túmulo, uma rainha. O mesmo erro foi cometido em relação ao
gigantesco túmulo descoberto em Nagadeh pelo professor Morgan. Também este foi considerado
sepulcro do rei, Hor-Aha da primeira dinastia. Mas, como escreve o egiptolólogo Walter Emery,
pesquisas posteriores mostraram que era o sepulcro de Nit-Hotep, mãe de Hor-Aha. Como observa a
historiadora da arte Merlin Stone, tais exemplos de como o viés cultural levou a erros são
excepcionais apenas pelo fato de terem sido corrigidos posteriormente. Stone viajou pelo mundo todo
examinando escavação por escavação, arquivo por arquivo, objeto por objeto, reexaminando as
fontes primárias e depois conferindo como tinham sido interpretadas. Nas maioria das vezes, quando
havia evidência de um tempo em que as mulheres e homens viviam como iguais, o fato foi
simplesmente ignorado [...] esse viés levou a uma visão incompleta e bastante distorcida de nossa
evolução cultural e também do desenvolvimento de civilizações mais evoluídas”. EISLER, 2007, ps.
73-74.
45
Expressão, aliás, que deu nome ao livro de Simone de Beauvoir: BEAUVOIR, Simone de. O
segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
46
“Platão em sua obra O banquete trata muito explicitamente desse assunto. Explica Platão que o
amor supremo é entre varões, mas o amor entre homem e mulher se justifica através de um mito que
explica que na origem havia um ser andrógino que era, ao mesmo tempo, homem e mulher, mas era
29
30. então, o amor do “mesmo” pelo “mesmo” e como a mulher é diferente – o “outro” –
ficava de fora do valioso pensamento grego. Tratando do pensamento grego e da
dominação da mulher, Dussel explica que
O amor da totalidade a si própria era o que justificava um
Eros homossexual. A mulher, diz Platão, só se justifica para ter filhos. E o
filho o que é? É "o mesmo" que os pais, essa identidade permite a
sobrevivência da espécie. Este conceito que o filho é "igual" aos pais, é o
fundamento da "pedagogia de dominação", porque se o filho
é "Outro" diferente do pai, este lhe vai ter respeito, mas se o filho é "o
mesmo" que o pai, então vai ensinar-lhe o que ele já é: o filho vai repetir as
idéias de seu pai: dominação pedagógica. Mas também é a dominação das
mulheres. A questão é muito grave, porque a libertação das mulheres irá
47
aumentar a liberação do pai e do filho.
Em se tratando de preconceito, este se resta evidente também quando o
mundo masculino omite a participação das mulheres em destacadas áreas como a
da justiça. Porquanto, há evidências de que, desde os tempos ancestrais, há a
associação da feminilidade com a justiça, a sabedoria e a inteligência, tanto que,
mesmo depois da imposição da dominação masculina, a Deusa egípcia Ísis e a
Deusa grega Deméter continuaram conhecidas como sábias provedoras da justiça.
Assim, registros arqueológicos mostram que as mulheres serviam como juízas nas
cortes de justiça.48 Resta bastante claro que, embora a história tradicional não relate,
estas mulheres existiram e estavam em situação de comando e de grande destaque
tão poderoso que os deuses o dividiram e, então, apareceu um varão e uma mulher. Este tipo de
homem que descende do andrógino é mais desprezível que os varões que descendem de varões, e
como é mais desprezível, os que descendem do primitivo andrógino, amam a mulher, a amam porque
amam a unidade primogênita, de tal maneira que o amor somente se justifica porque antes haviam
estado unidos, assim, o amor supremo será sempre o dos varões”. DUSSEL, Liberación de la mujer
y erótica latino americana. Bogotá, Colombia: Editorial Nueva America, 1990, ps. 14-15.
47
DUSSEL, 199, p. 15. “El amor de La totalidad a La totalidad misma era El que justificaba un Eros
homosexual. La mujer, dice Platón, sólo se justificaba para tener hijos, y el hijo hijos, y el hijo ¿qué
es? Es “lo Mismo” que los padres; esta mismidad permite la subsistencia de la especie. Este concepto
de que el hijo es “igual” que los padres, es el fundamento de la “pedagogía de la dominación”, porque,
si el hijo es “Otro” que el padre, éste le va a tener respeto, pero si el hijo es “lo Mismo” que el padre,
entonces le va a enseñar lo que él ya es: el hijo va a repetir el ideario de su padre: dominación
pedagógica. Pero es además dominación de la mujer. La cuestión es muy grave, porque la liberación
de la mujer va a plantear la liberación del padre y del hijo.”
48
EISLER, 2007, ps. 121-122.
30
31. nas sociedades em que viveram, muitas vezes até veneradas, demonstrando
cabalmente que a dominação não foi sempre masculina.49
Beauvoir, ao analisar a exclusão da mulher na história, além de destacar que
toda a história das mulheres foi feita pelos homens, como citado acima, chama a
atenção para o fato de que a mulher sempre foi vista mais como uma figura
exemplar do que como um agente histórico, sendo estas mais notáveis pela
singularidade de seus destinos do que pela importância de suas ações. A autora
enfatiza que não foi a inferioridade feminina que determinou sua insignificância
histórica, mas foi sua insignificância histórica que as votou à inferioridade.50 Nesse
sentido,Beauvoir observa:
[...] em Paris, dentre cerca de mil estátuas, as quais cercam o
Luxemburgo, somente dez foram erguidas às mulheres, sendo três
consagradas à Joana D’Arc, e as demais são de Madame de Ségur, George
Sand, Sarah Bernhardt, Madame Boucicaut, Baronesa de Hirsch, Maria
51
Deraismes e Rosa Bonheur.
Com efeito, se a história é escrita pelos homens, os quais se julgam os
grandes personagens dos grandes acontecimentos históricos, à mulher somente foi
permitido um lugar insignificante na periferia da história. Com esse mesmo enfoque,
Bidegain de Urán ao analisar essa questão da exclusão da mulher na história,
destaca:
A história tradicional foi a história dos grandes personagens,
excluindo a mulher em particular e os pobres em geral. Excluí-los é um
modo de manifestar que tão pouco fizeram eles na história da humanidade
que sequer devem ser considerados como objetos da história e muito
menos como sujeitos. Este é um modo de fazer com que a história
desempenhe um papel dominador de homens e mulheres do povo na
medida em que assim ajuda a convencer o povo de que nada contribuiu
49
Ao se afirmar que a dominação não foi sempre masculina, não se está dizendo que houve período
histórico em que havia dominação das mulheres, pelo contrário, se está afirmando que, inexistindo a
dominação masculina, homens e mulheres viviam em sistema de parceria, no qual havia condições
de tanto um quanto outro se encontrar em situação de comando, o que é muito mais difícil, senão
impossível, para a mulher sob a dominação masculina.
50
BEAUVOIR, 2002, p. 8.
51
BEAUVOIR, 2002, p. 171.
31
32. para o progresso da humanidade [...] nem como cidadãos [...]portanto, não
52
merecem ter história.
Efetivamente, excluir a mulher na história é um modo de incutir no imaginário
das pessoas que essa não possui valor histórico algum e, em última instância, de
que se trata de um ser inferior e insignificante, o qual deve se submeter ao homem e
por ele ser subjugado e dominado. Dessa forma, cerceando-lhe espaços para sua
emancipação e evitando que possa assumir seu verdadeiro papel na sociedade, ou
seja, em plena igualdade ao homem, respeitando as diferenças.53
Analisando a história da mulher, verifica-se que na alta Idade Média, a
condição das mulheres floresce e elas têm acesso às artes, às ciências, à literatura.
Uma monja, por exemplo, Hrosvitha de Gandersheim, foi a única poetiza da Europa
durante cinco séculos. Isso acontece durante as cruzadas, período em que não só a
igreja alcança seu maior poder temporal como, também, o mundo se prepara para
as grandes transformações que viriam séculos mais tarde, com a Renascença.54
Não se pode olvidar o período que vai do fim do século XIV até meados do século
XVIII, no qual aconteceu o fenômeno generalizado em toda a Europa: a repressão
sistemática do feminino. Estamos nos referindo aos quatro séculos de “caça às
bruxas”.55
Efetivamente, nesse período a Inquisição se dedica a eliminar fisicamente
todas as mulheres que haviam alcançado algum grau de conhecimento. Cumpre
frisar que o sistema inquisitivo não foi criado pela Igreja Católica, porquanto já
vigente no Império Romano no ano de 380 d.C,56 quando o Cristianismo foi elevado
à condição de religião oficial. Em verdade, a Inquisição Católica se trata de uma
distorção do sistema inquisitivo, como forma de manutenção do poder, face ao
surgimento de inúmeras seitas, o que exigiu a necessidade de uma perseguição
52
BIDEGAIN DE URÁN, Ana Maria. A mulher pobre na história da igreja latino-americana. São
Paulo: Edições Paulinas, 1984, p. 10.
53
BEAUVOIR, 2002, p. 170.
54
MURARO, Rose Marie. Malleus maleficarum – o martelo das feiticeiras. In: Direitos Humanos Net.
São Paulo, 2005. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/dados/livros/memoria/mundo/feiticeira/introducao.html. Acesso em: 19 Ago.
2005.
55
MURARO, 2005.
56
A “d.C.” significa “depois de Cristo”.
32
33. religiosa a todos aqueles indivíduos que negavam a fé cristã como sendo a única e
verdadeira palavra de Deus.57 Muraro, ao abordar o tema da “caça às bruxas”,
ensina:
Nos dão estatísticas aterradoras do que foi a queima de mulheres
feiticeiras em fogueiras durante quatro séculos. A extensão da caça às
bruxas é espantosa. No fim do século XV e no começo do século XVI,
houve milhares e milhares de execuções – usualmente eram queimadas
vivas na fogueira – na Alemanha, na Itália e em outros países. A partir de
meados do século XVI, o terror se espalhou por toda a Europa, começando
pela França e pela Inglaterra. Um escritor estimou o número de execuções
em seiscentos por ano para certas cidades, uma média de duas por dia,
‘exceto aos domingos’. Novecentas bruxas foram executadas num único
ano na área de Wertzberg, e cerca de mil na diocese de Como. Em
Toulouse, quatrocentas foram assassinadas num único dia; no arcebispado
de Trier, em 1585, duas aldeias foram deixadas apenas com duas mulheres
moradoras cada uma. Muitos escritores estimaram que o número total de
mulheres executadas subia à casa dos milhões, e as mulheres constituíam
58
85 % de todos os bruxos e bruxas que foram executados.
As bruxas foram fruto de uma campanha de terror realizada pela classe
dominante. Poucas dessas mulheres pertenciam, efetivamente, à bruxaria.
Entretanto,
[...] criou-se uma histeria generalizada na populaç ão , de forma
que muitas das mulheres acusadas passavam a acreditar que eram mesmo
bruxas e que possuíam um “pacto com o demônio”. Oestereótipo das
bruxas era caracterizado, principalmente, por mulheres de aparência
desagradável ou com alguma deficiência física, idosas, mentalmente
perturbadas, mas também por mulheres bonitas que haviam ferido o ego de
poderosos ou que despertavam desejos em padres celibatários ou homens
59
casados.
Segundo retrata Angelin, “A caça às bruxas coincidiu com grandes
mudanças sociais que vinham ocorrendo na Europa, aliadas à nova conjuntura
gerou instabilidade e descentralizaçã o no poder da Igreja.” Além disso, o continente
57
ANDRADE, Mauro Fonseca. Inquisição Espanhola e seu Processo Criminal. As Instruções de
Torquemada e Valdés. Curitiba: Juruá, 2006, p. 11.
58
MURARO, op. cit., 2005..
59
ANGELIN, Rosângela. A “caça às bruxas”: uma interpretação feminista. In: Revista Espaço
0
Acadêmico. n. 53, 2005. Disponível: <http://www.espacoacademico.com.br/053/53angelin.htm> Acesso
em 02 Mar. 2011.
33
34. europeu foi tomado neste “[...] período por muitas guerras, cruzadas, pragas e
revoltas camponesas, e se buscava culpados para tudo isso. Sendo assim, nã o foi
difícil para a Igreja encontrar motivos para a perseguição das bruxas”60 e criar os
Tribunais da Inquisição.
Para reconquistar o centro das atenç õ e s e o poder, a Igreja
Católica efetivou a conhecida “caça às bruxas”. Com o apoio do Estado,
criou tribunais, os chamados “Tribunais da Inquisiç ã o” ou “Tribunais do
Santo Ofício”, os quais perseguiam, julgavam e condenavam todas as
pessoas que representavam algum tipo de ameaç a às doutrinas cristã s,em
especial, mulheres. As penas variavam entre a prisã o temporária até a
61
morte na fogueira.
Em meados do século XVI começaram a circular numerosos tratados sobre
o diabo e as práticas da bruxaria onde a mulher é considerada o agente privilegiado
de satanás por sua insaciável lascívia que as leva a copular com os demônios.62 O
mais popular desses tratados foi o Malleus Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras –
o qual foi escrito pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger em 1484.63 O
Malleus Maleficarum, por ser a continuação popular do Segundo Capítulo do
Gênesis, torna-se a testemunha mais importante da estrutura do patriarcado e de
como esta estrutura funciona concretamente sobre a repressão da mulher e do
prazer, destacando que durante três séculos o Malleus Maleficarum foi a “bíblia” dos
inquisidores e esteve na banca de todos os julgamentos.64
Procurando compreender como funcionava a estrutura da caça às bruxas,
explica-se que num mundo teocrático, a transgressão da fé era também
transgressão política. Mais ainda, a transgressão sexual grassava solta entre as
massas populares. Assim, os inquisidores tiveram a sabedoria de ligar a
60
Idem..
61
MENSCHIK, Jutta. apud ANGELIN, 2005.
62
MURARO, 2005.
63
Nesse período surgiram também outros manuais e instruções aos inquisidores, sendo os mais
conhecidos, além do Malleus Maleficarum, a Practica officci Inquisitionis heretice pra vitatis, de
Bernard Gui (1323); o Directorum Inquisitorum, de Nicolau Eymerich (1376); as instruções de
Torquemada (de 1484 a 1537); e as instruções de Valdés (1561), como explica ANDRADE (2006, p.
11).
64
MURARO, 2005.
34
35. transgressão sexual à transgressão da fé e punir as mulheres por tudo isso.65 As
mulheres passaram a ser punidas por sua capacidade orgástica, sendo
consideradas as causadoras de todos os flagelos, porque as feiticeiras se encontram
somente entre as mulheres orgásticas e ambiciosas.66 Neste sentido, cabe destacar
que o corpo da mulher é descrito, na misógina clerical, como a imagem da
decadência, sendo que sua presença física é responsável por arrastar as almas dos
homens para a luxúria carnal e, consequentemente, para a condenação eterna.67
Quando cessou a caça às bruxas houve grande transformação da condição
feminina. A sexualidade se normatiza e as mulheres se tornam frígidas, pois o
orgasmo era coisa do diabo e, portanto, passível de punição. As mulheres, então,
recolhem-se ao âmbito doméstico, pois a ambição também era passível de punição.
O saber feminino passa à clandestinidade. As mulheres não têm mais acesso ao
estudo e passam a transmitir a seus filhos valores patriarcais já então introjetados
pela maioria delas. Talvez, essa época seja o mais feroz período da história no que
tange à exclusão da mulher, porque não se limitou a uma discriminação velada,
igualmente nociva, tratando-se de uma declarada e virulenta perseguição, sempre
culminada com a tortura e a execução das mulheres.
A partir dessa nova conduta adotada pelas mulheres, foi desencadeada uma
série de tabus e preconceitos, que deram origem a uma série de formas de exclusão
das mulheres, muitas delas existentes até os tempos atuais e ratificadas pelo
65
“As grandes teses que permitiram esse expurgo do feminino e que foram as teses centrais do
Malleus Maleficarum, foram: ”[...] a) O demônio, com a permissão de Deus, procura fazer o máximo
de mal aos homens a fim de apropriar-se do maior número possível de almas; b) Este mal é feito
prioritariamente através do corpo, único lugar onde o demônio pode entrar, pois o espírito (do
homem) é governado por Deus, a vontade por um anjo e o corpo pelas estrelas. E porque as
estrelassão inferiores aos espíritos e o demônio é um espírito superior, só lhe resta o corpo para
dominar; c) Este domínio lhe vem através do controle e da manipulação dos atos sexuais. Pela
sexualidade o demônio pode apropriar-se do corpo e da alma dos homens. Foi pela sexualidade que
o primeiro homem pecou e, portanto, a sexualidade é o ponto mais vulnerável de todos os homens; d)
Como as mulheres estão essencialmente ligadas à sexualidade, elas se tornam as agentes por
excelência do demônio (as feiticeiras). As mulheres têm mais conivência com o demônio porque Eva
nasceu de uma costela torta de Adão, portanto nenhuma mulher pode ser reta; e) A primeira e maior
característica, aquela que dá todo o poder às feiticeiras, é copular com o demônio. Satã é, portanto, o
senhor do prazer; f) Uma vez obtida a intimidade com o demônio, as feiticeiras são capazes de
desencadear todos os males, especialmente a impotência masculina, a impossibilidade de livrar-se
de paixões desordenadas, abortos, oferendas de crianças a Satanás, estrago de colheitas, doenças
nos animais, etc. [...] Esses pecados eram mais hediondos ao que os próprios pecados de Lúcifer
quando da rebelião dos anjos e dos primeiros pais por ocasião da queda, porque agora as bruxas
pecam contra Deus e o Redentor, e, portanto, este crime é imperdoável e isso só pode ser resgatado
com a tortura e a morte” (MURARO, 2005).
66
Idem.
67
RUETHER, 1993, p. 73.
35
36. patriarcado, pela família, pela igreja e pelo Estado de Direito. Porém, na
modernidade, o papel das mulheres começa a ser alterado e elas iniciam um
processo de avanços na sua condição de seres humanos, como poderá ser visto a
seguir.
1.2 MULHERES NA IDADE MODERNA: DA EXCLUSÃO PARA UM MUNDO DE
CONQUISTAS E AVANÇOS
Com o avanço da humanidade ocorreram mudanças culturais e sociais, nas
quais as mulheres acentuaram a luta pela efetivação de seus direitos, especialmente
pelo reconhecimento da existência de igualdade de direitos entre os sexos.
Entretanto, a luta das mulheres não se limita à luta pela igualdade de direitos entre
os sexos, porquanto muitos outros de seus direitos são sonegados ou
desrespeitados cotidianamente. A mulher foi excluída, até mesmo enquanto pessoa
humana, porquanto até o fato de possuir alma somente foi “reconhecido” em 1563,
através do Concílio de Trento.68 Excluída, ela teve que lutar pelo direito ao voto, pelo
direito ao trabalho fora do lar, pelo direito à prática de esportes, de se instruir, de
entrar no mercado de trabalho, de usar contraceptivos, de usar calças compridas, de
se matricular em curso superior, em sendo casada, de ter os mesmos direitos do
marido, entre outros.
Contemporaneamente, a mulher tem enfrentado outras formas de exclusão e
discriminação, as quais têm sido temas constantes de debates em todas as partes
do mundo. Algumas dessas formas de exclusão são visíveis, outras não, sendo que
as menos perceptíveis acabam trazendo verdadeiros prejuízos e sofrimentos para as
vítimas. Isso se dá pelo fato de que formas veladas de preconceito e exclusão
68
RODRIGUES, Almira. A história do movimento feminista, conquistas e avanços. In: Seminário
Nacional de Formação Política – Mulheres Socialistas. Brasília: Fundação João Mangabeira,
2001.
36
37. produzem uma baixa auto-estima e subliminarmente incute na sociedade e,
principalmente, nas mulheres um sentimento de inferioridade.69
Por meio do “[...] desenvolvimento do capitalismo, as diferenças de gênero
foram intensificadas. ”No capitalismo, inicialmente, “[...] as mulheres foram,
estrategicamente, encarregadas do trabalho doméstico, cuidando da casa, das
crianças, dos velhos e doentes, além de ‘servirem’ o marido [...]”, sendo
caracterizadas como “rainhas do lar”.70Sendo assim,
[...] O trabalho doméstico foi considerado gratuito e denominado
como trabalho não produtivo. Ao capitalismo, a submissão social da mulher
serviu inicialmente para diminuir os custos de reprodução do trabalho, uma
vez que o salário do homem não precisava ser tão alto, pois ele não
71
necessitava pagar pelos serviços domésticos.
A realidade das mulheres, com o passar dos tempos, modificou-se um
pouco. Entretanto, à exclusão sofrida se juntaram tantas outras, pois com sua
entrada ao mercado de trabalho, ocorreu a dupla jornada de trabalho, a
diferenciação salarial, o assédio sexual e moral.
A mulher moderna foi brutalmente arrancada de dentro de casa, onde esteve
por séculos trancada e submetida ao marido e às obrigações domésticas, em
decorrência das relações de produção, com a adoção do capitalismo, e jogada no
mercado de trabalho. Isso ocorreu especialmente em se tratando da necessidade de
força de trabalho em decorrência da I Guerra Mundial, a qual fez com que a mulher
ingressasse no mercado de trabalho em substituição aos homens. Essa mulher,
frágil e despreparada, então, é submetida à “dependência econômica do capital” e a
suas exigências.72
Diante dessa nova situação, a mulher descobre que tem de abandonar as
virtudes consideradas femininas, as quais lhes foram ensinadas durante séculos,
tais como “a passividade, submissão e doçura”, sob pena de não sobreviver à dura
69
BRAGA, Ana Patrícia Araújo. Os desafios e as conquistas das mulheres. In: Direitos Humanos
Net. São Paulo, 2005. Disponível:
http://www.dhnet.org.br/dados/cursos/dh/br/pb/dhparaiba/5/mulher2.html. Acesso em 19 Ago. 2011.
70
ANGELIN (a), 2010, p. 297.
71
ANGELIN, loc. cit..
72
KOLANTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: expressão Popular, 2000, p.
17.
37
38. realidade do capitalismo.73 Junto a isso, o medo de passar por privações e fome
obriga a mulher a adaptar-se rapidamente às exigências do capitalismo, forçando
uma transformação da mentalidade da mulher, de sua estrutura interior, espiritual e
sentimental.
Há, porém, algo ainda mais essencial; é que esse processo de
transformação da estrutura interior da mulher não se reduz unicamente a
personalidades correspondendo a grandes massas. A vontade individual
submerge no esforço coletivo de milhões de mulheres da classe operária,
74
para adaptar-se às novas condições de vida.
Desse sentimento de coletividade emerge uma nova mulher: a mulher
operária, que tem consciência de sua personalidade e de seus direitos, carregando
consigo “o sentimento do companheirismo”. A nova mulher é “interiormente livre e
independente”. Ao contrário disso, isolada, a mulher crente do individualismo será
esmagada pela “pesada carga do capitalismo”.75 Com o nascimento dessa nova
mulher, acentua-se a luta das mulheres por seus direitos, uma luta desigual e
ferrenha, porém, com alvissareiros resultados ao longo dos séculos.
Uma das principais bandeiras de luta das mulheres, atualmente, tem como
eixo o combate à violência doméstica. Quanto à forma comumente da violência
contra a mulher, destaca-se que historicamente é definida como espancamentos,
estupros e assassinatos.
Entre as formas de violência contra a mulher estão o feminicídio, o
assédio sexual e físico no local de trabalho, o estupro, a mercantilização do
corpo das mulheres, a prostituição, a exploração do corpo pela pornografia,
a escravidão, a lesbofobia, o tráfico de mulheres, a escravidão, além da
esterilização forçada, da negação do aborto seguro e da possibilidade de
decidir sobre questões reprodutivas, de saúde e vida, ou seja, existe a
76
negação do exercício da autodeterminação. Consideram-se, também,
como formas de violência contra a mulher, a violência física, violência
73
KOLANTAI, 2000, p. 17.
74
Idem, p. 20.
75
Idem, ps. 21-23..
76
VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES. Semprevida Organização Feminista. Disponível em:
<http://www.sof.org.br> Acesso em 10 Jun. 2011.
38
39. sexual, violência psicológica e moral, violência patrimonial e violência
77
institucional.
Atos violentos como o machismo e o racismo atuais, visam desumanizar as
mulheres, negar-lhes a condição de pessoas e transformá-las em coisas.78O
crescimento dos índices de violência contra a mulher preocupa a sociedade, como
destaca a Sempreviva Organização Feminista (SOF).79 É alarmante o número de
mulheres, as quais são espancadas por seus próprios maridos.80Assim, referida
organização feminista ressalta a propagação da violência contra as mulheres em
todo o mundo, através de dados da Secretaria de Políticas Públicas para as
Mulheres do Governo Federal:
77
FARIAS, Stela. Lei Maria da Penha: Pra mudar a vida das mulheres. Porto Alegre: Assembléia
Legislativa do Rio Grande do Sul, 2010, p. 6.
78
BRAGA, 2005, p. 03.
79
“De janeiro a setembro de 2010, 27 mulheres foram assassinadas no estado de São Paulo. Entre
os casos, alguns ganharam repercussão na mídia, como o da advogada Mércia Nakashima. A Central
de Atendimento à Mulher - Ligue 180, que recebe queixas de violência contra a mulher, registrou alta
de 112% de janeiro a julho de 2010 em comparação com o mesmo período do ano passado. Dados
fornecidos pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República apontam
343.063 atendimentos nos sete primeiros meses de 2010 - pelo disque denúncia (180). São Paulo foi
o Estado com maior número de denúncias. Segundo o Mapa da Violência 2010, organizado pelo
Instituto Sangari, uma mulher é assassinada a cada duas horas no Brasil, o que faz do país o 12° no
ranking mundial de assassinatos de mulheres. 40% dessas mulheres têm entre 18 e 30 anos e a
maioria é morta por parentes, maridos, namorados, ex-companheiros ou homens que foram
rejeitados por elas. Em São Paulo a taxa é de assassinatos de mulheres é de 2,8 por cem mil
habitantes. Uma pesquisa realizada em 2009 pelo IBOPE e Instituto Avon mostrou que a violência
contra a mulher é a maior preocupação para 56% das mulheres entrevistadas, aparecendo antes de
temas como saúde e desemprego”. ATO CONTRA A VIOLÊNCIA SEXISTA MARCA O 25 DE
NOVEMBRO. Sempreviva Organização Feminista - SOF. Disponível em:
<http://www.sof.org.br/_sistema/noticia.php?idNoticia=530>. Acesso em 10 Jun. 2011.
80
“Cinco anos após a entrada em vigor da legislação, o Juizado da Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher de Porto Alegre possui cerca de 20 mil processos em tramitação. O maior número de
casos envolve ameaça e lesão corporal. Nas demais comarcas do Estado são as varas criminais que
atendem os casos que envolvem a Lei Maria da Penha. Outros dados apresentados pelo Juízo, com
base em estatísticas, também chamam a atenção: a violência doméstica consome 10% do PIB,
sendo responsável por cinco dias por ano de falta da mulher ao trabalho, pela aposentadoria precoce,
por um maior índice de suicídio, pela repetência escolar dos filhos e pela disseminação de uma
cultura da violência. O Brasil foi o 18º país da América Latina a adotar uma legislação para punir
agressores de mulheres. A Lei Maria da Penha cumpre determinações estabelecidas por uma
convenção específica da Organização dos Estados Americanos (OEA), intitulada Convenção para
punir, prevenir e erradicar a violência contra a mulher, realizada em Belém do Pará em 1995 e
ratificada pelo Estado Brasileiro. Desde 2008, a Secretaria de Reforma do Judiciário, do Ministério da
Justiça, realiza ações para efetivar a Lei Maria da Penha. Até agora, já se apoiou a criação de 104
equipamentos públicos em 60 municípios de 23 Estados brasileiros. São espaços como Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Núcleos especializados de Atendimento à Mulher da
Defensoria Pública e 34 Promotorias e Núcleos Especializados do Ministério Público”. CINCO ANOS
DA LEI MARIA DA PENHA, A PRESTAÇÃO DE CONTAS DE ATENDIMENTOS DEVE OCORRER
EM TODO O PAÍS?Jornal Espaço Mulher. Disponível em:
<http://www.espacomulher.com.br/jem/jem_edicao115.html>. Acesso em 25 Ago. 2011.
39