Este documento discute como aplicar o pensamento lean à função de manutenção. Primeiramente, define lean maintenance e apresenta sete princípios lean aplicados à gestão da manutenção. Em seguida, discute os desafios de liderança e gestão de uma abordagem lean e como implementá-la, incluindo uma auditoria inicial e definindo um estado futuro desejado.
1. João Paulo Pinto
Comunidade Lean Thinking
Dossier
Repensar a função manutenção
centrando-a no pensamento lean
Este artigo surge no seguimento da conclusão do livro “Lean Maintenance” e de todo o trabalho prático e de investigação realizado
para levar a bom termo a sua conclusão. O livro será publicado no início de 2012 e antevê uma revolução no modo como abordamos
a função manutenção nas empresas. Neste artigo serão apresentados os principais desafios criados com a adopção do paradigma
lean na liderança e gestão da manutenção.
Introdução ra hoje se reconheça que muitas delas não têm qualquer validade
Quando terminei a minha formação inicial em Engenharia fiz prática como viria a demonstrar a RCM (Reliability Centred Mainte-
um estágio de três meses no Departamento de Manutenção numa nance) ao retirar a relação entre o tempo de vida e a fiabilidade ou
Fábrica de Papel no Centro do País. Nesse curto período de tempo ao questionar a validade das rotinas de manutenção preventiva na
tive oportunidade de me aperceber o quão caótica era a actividade melhoria da fiabilidade de sistemas. No mundo real da manuten-
de manutenção, e o quão injusto era o trabalho daquele grupo de ção, as pessoas que lhe estão ligadas não têm tempo nem cabeça
homens que passava uma boa parte do dia a “apagar fogos” e a para modelos matemáticos nem suposições. O cliente não permite
correr de um lado para o outro. folga para tais devaneios.
Nessa empresa, os planos de manutenção tinham uma validade Nos anos 1970/80’s o mundo tem conhecimento da TPM (Total
muito curta dada a instabilidade dos processos e a pressão a que a Produtive Maintenance) ao aperceber-se do sucesso do Japão à es-
manutenção estava sujeita, pressão esta exercida pelo seu cliente cala mundial. A TPM foi “moda” em muitas empresas de classe
directo (Departamento de Produção) e pela Direcção Técnica que, mundial e muitas outras se seguiram. Mas TPM não é algo fácil
para responder aos pedidos do cliente, tinha de intervir com fre- de implementar, até porque exige uma profunda mudança cultu-
quência no equipamento e nos sistemas. ral, exige tempo (anos) de implementação, muita perseverança e a
A função manutenção desta empresa era, de algum modo, re- presença de pessoas, algo que uma boa parte das empresas não
presentativa das situações que encontramos um pouco por toda se apercebeu ou não tinha. E apesar das promessas iniciais, a TPM
a indústria. A manutenção está exposta a uma enorme variedade foi caindo no esquecimento, aproveitaram-se as ferramentas e as
de adversidades que corrompem toda a sua estrutura de gestão. métricas (como por exemplo, OEE ou Overall Equipment Efficiency),
A presença de condicionantes internas e externas tornam “quase” tendo-se publicado textos com opiniões críticas em relação à TPM,
impossível planear as suas actividades de tal modo que muitas “de- alegando a sua incapacidade de aplicação em todos os tipos de
sistem” do planeamento e adoptam a postura de “bombeiro” para processos e questionando os resultados... enfim, quando novas
dar resposta ao que vier. modas aparecem nem tempo damos às que temos em mãos de
Há várias décadas que esta é a imagem usada para descrever provarem a sua real validade.
a manutenção e assim se manterá se não olharmos para a manu- O século XX termina com a manutenção bombardeada com
tenção de um modo proactivo. Fazer como sempre fizemos até hoje aplicações derivadas da RCM, umas orientadas à disponibilidade,
não poderá trazer mais do que aquilo que temos obtido. à manutibilidade e à segurança (como a RAMS - Reliability Availa-
Nas últimas cinco décadas várias áreas de conhecimento contri- bility Maintainability and Safety). Uma oferta muito vasta e fértil, a
buíram para o desenvolvimento da função. A fiabilidade foi uma de- qual é acompanhada de um impressionante desenvolvimento tec-
las ao revelar à manutenção o comportamento de sistemas e com- nológico nas últimas três décadas. Os equipamentos de suporte à
ponentes, ao relacionar o uso e a manutenção com a probabilidade manutenção predictiva (“condicionada” para muitos) generalizam-
de bom funcionamento e ao sustentar práticas de manutenção as- se, tornam-se mais acessíveis e abrangentes. Os sistemas informá-
sentes em rotinas de inspecção e substituição. Sob a “protecção” ticos (integrados ou não) aventuram-se por novas áreas da gestão
da Fiabilidade, a manutenção viu-se rodeada de equações e assus- da manutenção e muitos deles formam equipa com poderosos sis-
tadores modelos matemáticos que prometiam significativas redu- temas de hardware.
ções de tempos e de paragens e um aumento da disponibilidade. Com tudo isto, os esforços em tornar a manutenção numa fun-
Infelizmente pouco disso aconteceu. Para gládio dos académicos ção integrada nas demais funções da empresa falharam, a ma-
as equações continuam a ser ensinadas nas Universidades, embo- nutenção isolou-se ao orientar-se para os aspectos técnicos da
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2. Dossier
sua acção. Nem mesmo a focalização interna nos aspectos da fia- ganizações (quer seja através da redução de custos ou da criação
bilidade, da manutibilidade e da segurança conseguiram poten- de melhores condições de operacionalidade de equipamentos e
ciar o desempenho da função manutenção e em vários casos os instalações).
custos resultantes foram largamente superiores aos benefícios
conseguidos. A colaboração e a partilha defendida três décadas
antes pela TPM foi deixada de lado porque a força da técnica e a Os princípios lean thinking aplicados à gestão da
técnica da força passou a dominar o pensamento e a acção da manutenção
manutenção. No que à gestão da manutenção diz respeito, implementar os
A crise económica, que entretanto assombrou a indústria, reve- princípios e as ferramentas lean não poderá ser um espelho da im-
lou a incapacidade desses complexos sistemas entretanto desen- plementação lean na produção porque a dinâmica da gestão de
volvidos de tal modo que a função manutenção é hoje chamada recursos de manutenção (bem como a sua actividade) é diferente
para, em conjunto com outras funções-chave do negócio, contri- daquele encontrado num ambiente produtivo.
buir para a redução efectiva de custos e de tempos. Destas funções A abordagem à lean maintenance terá de ser diferente. Assim,
realço a engenharia, as operações (produção e/ou serviços), a lo- os sete princípios inicialmente propostos para o lean management
gística e compras e os recursos humanos. terão de ser adequados à realidade da manutenção. A Tabela 1
As empresas hoje esperam que todas as suas funções orientem apresenta os sete princípios lean thinking e a sua aplicação à ges-
a sua acção para a melhoria do desempenho dos seus processos, tão da manutenção.
eliminando gorduras desnecessárias e criando valor para os seus
clientes e demais partes interessadas. É aqui, nesta fase crítica,
em que a generalidade das empresas se encontra, quando pensar Desafios à liderança e à gestão
magro (lean) e ágil se revela de extrema importância. Este novo pa- A definição anterior bem como os elementos que a suportam
radigma não poderá mais ser desenvolvido ao nível da função mas descrevem as actividades e as responsabilidades dos envolvidos na
sim ao nível do negócio como um todo. Esta trata-se de uma abor- lean maintenance. Esta nova abordagem à gestão da manutenção
dagem global apoiada por acções locais (departamentais). requer também uma fundamental mudança de atitudes e papéis de
A Comunidade Lean Thinking através das suas actividades de liderança. Num ambiente lean as pessoas são tidas como o mais
ID+I, apoiadas na validação prática, pegou nos princípios e ferra- valioso dos recursos de uma organização. O papel da gestão e su-
mentas lean e aplicou-as à função manutenção partindo da abor- pervisão muda do paradigma de direcção e controlo para o papel
dagem global referida anteriormente. O resultado foi o desenvolvi- do apoio e suporte às pessoas.
mento do conceito “lean maintenance – manutenção centrada no A organização preconizada num ambiente lean é essencialmen-
pensamento lean”, o qual é descrito e apoiado numa obra a publicar te plana, ou seja, com poucos níveis hierárquicos, onde as pesso-
no início do ano de 2012. as estão organizadas em equipas autónomas. As chefias dedicam
uma boa parte do seu tempo junto dos colaboradores, apoiando-os
e intervindo em projectos de resolução de problemas ou de melho-
Definição de lean maintenance ria contínua.
Lean maintenance é uma operação proactiva que emprega ac-
tividades planeadas de manutenção através das práticas TPM,
usando estratégias de manutenção centrada na fiabilidade (RCM, Implementação da lean maintenance
Reliability Centered Maintenance) recorrendo a equipas autónomas Um programa típico de lean maintenance começa com o dese-
(pluridisciplinares) através do uso correcto de sistemas informáti- nho da cadeia de valor da manutenção e a avaliação das forças e
cos de apoio à manutenção. Ao contrário do que aconteceu com fraquezas das actuais práticas (a isto chama-se o estado actual: as
anteriores paradigmas de gestão, a lean maintenance focaliza-se na is). Isto é feito através de uma auditoria lean maintenance. Através
melhoria do desempenho global da empresa (não apenas nos equi- desta auditoria a empresa poderá identificar as áreas onde é ne-
pamentos ou sistemas) através do contributo de todos, recorrendo cessário intervir para que seja possível responder eficazmente aos
à melhoria contínua do desempenho e à aplicação de ferramentas pedidos dos clientes, reduzir lotes de fabrico, reduzir tempos de
e soluções simples e eficazes que dependem do contributo genera- mudança (setup). Como complemento, a auditoria ajudará a iden-
lizado de pessoas de várias funções. tificar lacunas de formação/competências nos colaboradores de
A lean maintenance procura o fornecimento de serviços de manutenção, lacunas ao nível de equipamentos e ferramentas, e a
manutenção com o menor desperdício possível, ou a realização necessidade de alocar recursos de manutenção a áreas críticas ao
do desejado output de manutenção com o menor uso possível de desempenho da empresa.
inputs. Importa referir que a lean maintenance não é simplesmente Feita a auditoria inicial, a empresa estará em condições para
uma abordagem para “fazer mais com menos recursos”. Através identificar oportunidades de melhoria com a implementação lean
da lean maintenance as empresas podem focalizar-se nos recursos maintenance e daí esboçar o estado futuro (to be) que se pretende
críticos, aqueles necessários para ir ao encontro do cumprimento para a manutenção. A definição deste estado não passa apenas
dos requisitos legais e/ou do cliente. Pensar na eliminação do des- pela melhoria do desempenho (interno) da função manutenção
perdício como o único propósito da lean maintenance é desperdiçar mas também pela melhoria do desempenho dos “clientes” da ma-
o enorme potencial desta filosofia na criação de valor para as or- nutenção (isto é, as operações de fabrico e/ou serviço).
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PRINCÍPIO LEAN HINKING APLICAÇÃO À GESTÃO DA MANUTENÇÃO
Conhecer o cliente Quem é o cliente da Manutenção? O Departamento de Produção/Operações, o cliente externo e a generalidade dos
colaboradores no genba1. Conhecer o cliente é o ponto de partida para a jornada lean. Só conhecendo quem se serve é possível
definir valor e trabalhar no sentido da sua criação e entrega.
Definir valor Que valor espera o cliente receber da manutenção?
Zero avarias, zero acidentes, zero paragens, redução de tempos não-produtivos, redução de custos e aumento sustentado da
eficiência das operações. O cliente espera ainda receber uma maior colaboração da manutenção no desenvolvimento de novos
processos e equipamentos.
Analisar a cadeia de valor Quais as etapas envolvidas na criação do valor que a manutenção entrega aos seus clientes? Observando os processos de
planeamento e controlo das operações de manutenção bem como todas as actividades directas e de suporte é possível
identificar a cadeia (sequência) de valor e desta identificar o que realmente contribui com valor ou com desperdícios.
Optimizar os fluxos Procurar optimizar fluxos de informação, de materiais/peças e de pessoas de forma a acelerar os processos de criação de valor.
Todos os obstáculos ao fluxo devem ser removidos (como processos demasiado burocráticos, tempos de espera, e outros).
Aplicar a lógica pull Este princípio pode ser aplicado à gestão de materiais e peças de reserva, evitando acumular stocks de materiais ou ainda
aplicado à gestão de fornecedores (de materiais e serviços). Pode ainda ser aplicado na melhoria da comunicação e integração
da função manutenção com as demais funções da empresa (como Engenharia e Operações).
Procurar a perfeição Incutir nos colaboradores (técnicos e operadores) de manutenção a constante necessidade de melhorar o desempenho,
adoptando os princípios kai-zen.
Inovar sempre Procurando inovar práticas de gestão dos equipamentos, identificando oportunidades de melhoria de processos, produtos e
serviços, colaborando com outras funções na empresa na procura de processos e bens inovadores.
Tabela 1. Os princípios lean aplicados à gestão da manutenção (adaptado de Pinto, 2009).
O processo de implementação é demorado, não se prevendo im- - uma maior coordenação e consistência de projectos transver-
plementações com duração inferior de dois a três anos. É processo sais na empresa; projectos de melhoria contínua, de redução
realizado em paridade com a implementação lean em outras áreas de custos ou ainda de criação de valor para todas as partes
da empresa comungando de uma visão comum. interessadas;
- medidas de desempenho definidas através da combinação de
aspirações de (gestão) topo com o diagnóstico operacional;
Conclusão - aumento da qualidade e da conformidade através de siste-
Após várias décadas de experimentação e posterior esqueci- mas/processos simples, baseado em pessoas, e ênfase nos
mento de várias abordagens à gestão da manutenção eis que surge equipamentos e sistemas críticos;
a oportunidade de aplicar um novo paradigma de gestão: o pen- - melhoria do nível de serviço ao cliente através da ênfase nos
samento magro, que apesar de ter nascido fora do âmbito da ma- processos operacionais;
nutenção encontra nesta mais uma oportunidade para melhorar a - maior envolvimento e motivação das pessoas (a começar pe-
eficiência global do negócio. Sem rejeitar o que de melhor ficou das los que estão associados à manutenção);
anteriores abordagens à gestão, a lean maintenance assenta a sua - ligação da contribuição individual (ao nível de cada um ou de
intervenção no trabalho em equipa e no desenvolvimento de uma cada departamento) ao desempenho global da empresa;
cultura de melhoria contínua. - redução de tempos e de custos, menores stocks e menos es-
A adopção dos princípios e soluções lean à moderna função ma- paço ocupado necessário.
nutenção cria novos desafios à gestão empresarial. Muitas vezes a
cultura empresarial terá de ser mudada e novos paradigmas terão A lean maintenance como desafio empresarial não pode ser as-
de ser adoptados (não apenas por aqueles directamente relaciona- sumida como um projecto isolado dentro da empresa. Pensar ma-
dos com a manutenção). As empresas que enfrentam dificuldades, gro na manutenção deverá ser uma das componentes da lean or-
quer estas sejam resultantes da pressão dos mercados ou da cri- ganization, tal como acontecerá em outras áreas da empresa. Uma
se económica, poderão encontrar na lean maintenance uma porta lean organization não se constrói com retalhos mas sim com uma
aberta para a redução de custos e melhoria do desempenho global visão integrada e de longo prazo.
da empresa.
Além disso, a manutenção centrada no pensamento lean con-
tribui para: 1
– Genba: termo em Japonês usado para fazer referência ao local de trabalho.
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