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DADOS DE COPYRIGHT 
Sobre a obra: 
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o 
objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como 
o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. 
É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso 
comercial do presente conteúdo 
Sobre nós: 
O Le Livros e seus parceiros, disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade 
intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem 
ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso 
site: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. 
Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por 
dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.
Lygia 
Fagundes 
Telles 
Antes do 
Baile Verde 
Contos 
POSFÁCIO DE 
Antonio Dimas
Para meu filho Goffredo
Sumário 
ANTES DO BAILE VERDE 
Os Objetos 
Verde Lagarto Amarelo 
Apenas um Saxofone 
Helga 
O Moço do Saxofone 
Antes do Baile Verde 
A Caçada 
A Chave 
Meia-Noite em Ponto em Xangai 
A Janela 
Um Chá Bem Forte e Três Xícaras 
O Jardim Selvagem 
Natal na Barca 
A Ceia 
Venha Ver o Pôr do Sol 
Eu Era Mudo e Só 
As Pérolas 
O Menino 
SOBRE LYGIA FAGUNDES TELLES E ESTE LIVRO 
Posfácio — Garras de Veludo, Antonio Dimas 
Carta — Carlos Drummond de Andrade 
Depoimento — A Beleza Secreta da Vida, 
Urbano Tavares Rodrigues 
A Autora
Antes do 
Baile Verde
Os Objetos 
Finalmente pousou o olhar no globo de vidro e estendeu a mão. 
— Tão transparente. Parece uma bolha de sabão, mas sem aquele colorido de 
bolha refletindo a janela, tinha sempre uma janela nas bolhas que eu soprava. O 
melhor canudo era o de mamoeiro. Você também não brincava com bolhas? Hein, 
Lorena? 
Ela esticou entre os dedos um longo fio de linha vermelha preso à agulha. Deu 
um nó na extremidade da linha e, com a ponta da agulha, espetou uma conta da 
caixinha aninhada no regaço. Enfiava um colar. 
— Que foi? 
Como não viesse a resposta, levantou a cabeça. Ele abria a boca, tentando 
cravar os dentes na bola de vidro. Mas os dentes resvalavam, produzindo o som 
fragmentado de pequenas castanholas. 
— Cuidado, querido, você vai quebrar os dentes! 
Ele rolou o globo até a face e sorriu. 
— Aí eu compraria uma ponte de dentes verdes como o mar com seus 
peixinhos ou azuis como o céu com suas estrelas, não tinha uma história assim? 
Que é que era verde como o mar com seus peixinhos? 
— O vestido que a princesa mandou fazer para a festa. 
Lentamente ele girou o globo entre os dedos, examinando a base pintalgada 
de cristais vermelhos e verdes. 
— Como um campo de flores. Para que serve isto, Lorena? 
— É um peso de papel, amor. 
— Mas se não está pesando em nenhum papel — estranhou ele, lançando um 
olhar à mesa. Pousou o globo e inclinou-se para a imagem de um anjo dourado, 
deitado de costas, os braços abertos. — E este anjinho? O que significa este 
anjinho? 
Com a ponta da agulha ela tentava desobstruir o furo da conta de coral. 
Franziu as sobrancelhas. 
— É um anjo, ora. 
— Eu sei. Mas para que serve? — insistiu. E apressando-se antes de ser 
interrompido: — Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso 
de papel sem papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido 
nenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a 
viver como nós, muito mais importantes do que nós, porque continuam. O cinzeiro 
recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impõe, esse colar que você
está enfiando… É um colar ou um terço? 
— Um colar. 
— Podia ser um terço? 
— Podia. 
— Então é você que decide. Este anjinho não é nada, mas se toco nele vira 
anjo mesmo, com funções de anjo. — Segurou-o com força pelas asas. — Quais são 
as funções de um anjo? 
Ela deixou cair na caixa a conta obstruída e escolheu outra. Experimentou o 
furo com a ponta da agulha. 
— Sempre ouvi dizer que anjo é o mensageiro de Deus. 
— Tenho então uma mensagem para Deus — disse ele e encostou os lábios na 
face da imagem. Soprou três vezes, cerrou os olhos e moveu os lábios 
murmurejantes. Tateou-lhe as feições como um cego. — Pronto, agora sim, agora é 
um anjo vivo. 
— E o que foi que você disse a ele? 
— Que você não me ama mais. 
Ela ficou imóvel, olhando. Inclinou-se para a caixinha de contas. 
— Adianta dizer que não é verdade? 
— Não, não adianta. — Colocou o anjo na mesa. E apertou os olhos molhados 
de lágrimas, de costas para ela e inclinado para o abajur. — Veja, Lorena, veja… 
Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso… Eles precisam ser 
olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais 
triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, 
vazio. É o peso de papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, fico 
aquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito? — 
perguntou e tomou a adaga entre as mãos. Voltou-se, subitamente animado. — É 
árabe, hein, Lorena? Uma meia-lua de prata tão aguda… Fui eu que descobri esta 
adaga, lembra? Estava na vitrina, quase escondida debaixo de uma bandeja, 
lembra? 
Ela tomou entre as pontas dos dedos o fio de coral e balançou-o num 
movimento de rede. 
— Ah, não fale isso! Se você soubesse como gostei daquela bandeja, acho que 
nunca mais vou gostar de uma coisa assim… Se pudesse, tomava já um avião, 
voltava lá no antiquário do grego barbudo e saía com ela debaixo do braço. As 
alças eram cobrinhas se enroscando em folhas e cipós, umas cobrinhas com 
orelhas, fiquei apaixonada pelas cobrinhas. 
— Mas por que você não comprou? 
— Era caríssima, amor. Nossos dólares estavam no fim, o pouco que restou só
deu para essas bugigangas. 
— Fale baixo, Lorena, fale baixo! — suplicou ele num tom que a fez levantar a 
cabeça num sobressalto. Tranquilizou-se quando o viu sacudindo as mãos, afetando 
pânico. — Chamar a adaga e o anjo de bugigangas, que é isso! O anjo vai correndo 
contar para Deus. 
— Não é um anjo intrigante — advertiu, encarando-o. — E antes que me 
esqueça, você diz que se ninguém nos ama, viramos coisa fora de uso, sem 
nenhuma significação, certo? Pois saiba o senhor que muito mais importante do 
que sermos amados é amar, ouviu bem? É o que nos distingue desse peso de papel 
que você vai fazer o favor de deixar em cima da mesa antes que quebre, sim? 
— O vidro já está ficando quente — disse e fechou o globo nas mãos. Levou-o 
ao ouvido, inclinou a cabeça e falou brandamente como se ouvisse o que foi 
dizendo: — Quando eu era criança, gostava de comer pasta de dente. 
— Que marca? 
— Qualquer marca. Tinha uma com sabor de hortelã, era ardido demais e eu 
chorava de sofrimento e gozo. Minha irmãzinha que tinha dois anos comia terra. 
Ela riu. 
— Que família! 
Ele riu também, mas logo ficou sério. Sentou-se diante dela, juntou as pernas 
e colocou o globo nos joelhos. Cercou-o com as mãos em concha, num gesto de 
proteção. Inclinou-se, bafejando sobre o globo. 
— Lorena, Lorena, é uma bola mágica! 
Voltada para a luz, ela enfiava uma agulha. Umedeceu a ponta da linha, 
ergueu a agulha na altura dos olhos estrábicos na concentração e fez a primeira 
tentativa. Falhou. Mordiscou de novo a linha e com um gesto incisivo foi 
aproximando a linha da agulha. A ponta endurecida do fio varou a agulha sem 
obstáculo. 
— A cópula. 
— Que foi? — perguntou ela, relaxando os músculos. Voltou-se satisfeita para 
a caixa de contas. — Que foi, amor? 
Ele cobriu o globo com as mãos. Bafejou sobre elas. 
— É uma bola de cristal, Lorena — murmurou com voz pesada. Suspirou 
gravemente. — Por enquanto só vejo assim uma fumaça, tudo tão embaçado… 
— Insista, Miguel. Não está clareando? 
— Mais ou menos… espera, a fumaça está sumindo, agora está tão mais claro, 
puxa, que nítido! O futuro, Lorena, estou vendo o futuro! Vejo você numa sala… é 
esta sala! Você está de vermelho, conversando com um homem. 
— Que homem?
— Espera, ele ainda está um pouco longe… Agora vejo, é seu pai. Ele está 
aflito e você procura acalmá-lo. 
— Por que está aflito? 
— Porque ele quer que você me interne e você está resistindo, mas tão sem 
convicção. Você está cansada, Lorena querida, você está quase chorando e diz que 
estou melhor, que estou melhor… 
Ela endureceu a fisionomia. Limpou a unha com a ponta da agulha. 
— E daí? 
— Daí seu pai disse que não melhorei coisa nenhuma, que não há esperança 
— repetiu ele inclinando-se, as mãos nos olhos em posição de binóculo postado no 
globo. — Espera, está entrando alguém de modo tão esquisito… eu, sou eu! Estou 
entrando de cabeça para baixo, andando com as mãos, plantei uma bananeira e 
não consegui voltar. 
Ela enrolou o fio de contas no pescoço, segurando firme a agulha para as 
contas não escaparem. Riu, alisando as contas. 
— Plantar bananeira justo nessa hora, amor? Por que você não ficou 
comportadinho? Hum?… E o que foi que meu pai fez? 
— Baixou a cabeça para não me ver mais. Você então me olhou, Lorena. E não 
achou nenhuma graça em mim. Antes você achava. 
Vagarosamente ela foi recolhendo o fio. Deslizou as pontas dos dedos pelas 
contas maiores, alinhando-as. 
— Fico sempre com medo que você desabe e quebre o vaso, os copos. E 
depois, cai tudo dos seus bolsos, uma desordem. 
Ele recolocou o peso na mesa. Encostou a cabeça na poltrona e ficou olhando 
para o teto. 
— Tinha um lustre na vitrina do antiquário, lembra? Um lustre divertido, cheio 
de pingentes de todas as cores, uns cristaizinhos balançando com o vento, blim-blim… 
Estava ao lado da gravura. 
— Que gravura? 
— Aquela já carunchada, tinha um nome pomposo, Os Funerais do Amor, em 
italiano fica bonito, mas não sei mais como é em italiano. Era um cortejo de 
bailarinos descalços carregando guirlandas de flores, como se estivessem indo para 
uma festa. Mas não era uma festa, estavam todos tristes, os amantes separados e 
chorosos atrás do amor morto, um menininho encaracolado e nu, estendido numa 
rede. Ou num coche?… Tinha flores espalhadas pela estrada, o cortejo ia indo por 
uma estrada. Um fauno menino consolava a amante tão pálida, tão dolorida… 
Ela concentrou-se. 
— Esse quadro estava na vitrina?
— Perto do lustre que fazia blim-blim. 
— Não sei, mas assim como você descreveu é triste demais. Juro que não 
gostaria de ter um quadro desses em casa. 
— Mais triste ainda era o anão. 
— Tinha um anão na gravura? 
— Não, ele não estava na gravura, estava perto. 
— Mas… era um anão de jardim? 
— Não, era um anão de verdade. 
— Tinha um anão na loja? 
— Tinha. Estava morto, um anão morto, de smoking, o caixão estava na 
vitrina. Luvas brancas e sapatinhos de fivela. Tudo nele era brilhante, novo, só as 
rosas estavam velhas. Não deviam ter posto rosas assim velhas. 
— Eram rosas brancas? — perguntou ela guardando o fio de contas na caixa. 
Baixou a tampa com um baque metálico. — Eram rosas brancas? 
— Brancas. 
— As rosas brancas murcham mais depressa. E fazia calor. 
Ele inclinou a cabeça para o peito e assim ficou, imóvel, os olhos cerrados, as 
pálpebras crispadas. O cigarro apagou-se entre seus dedos. 
— Lorena… 
— Hum? 
— Vamos tomar um chá. Um chá com biscoitos, quero biscoitos. 
Ela levantou-se. Fechou o livro que estava lendo. 
— Ótimo, faço o chá. Só que o biscoito acabou, posso arrumar umas torradas, 
bastante manteiga, bastante sal. Hum? 
— Eu vou comprar os biscoitos — disse ele, tomando-lhe a cabeça entre as 
mãos. — Minha linda Lorena. Biscoitos para a linda Lorena. 
Ela desvencilhou-se rápida. 
— Vou pôr água para ferver. Pega o dinheiro, está na minha bolsa. 
— No armário? 
— Não, em cima da cama, uma bolsa verde. 
Ele foi ao quarto, abriu a bolsa e ficou olhando para o interior dela. Tirou o 
lenço manchado de ruge. Aspirou-lhe o perfume. Deixou cair o lenço na bolsa, 
colocou-a com cuidado no mesmo lugar e voltou para a sala. Pela porta 
entreaberta da cozinha pôde ouvir o jorro da torneira. Saiu pisando leve. No 
elevador, evitou o espelho. Ficou olhando para os botões, percorrendo com o dedo 
um por um até chegar ao botão preto com a letra T, invisível de tão gasta. O 
elevador já descia e ele continuava com o dedo no botão, sem apertá-lo, mas
percorrendo-o num movimento circular, acariciante. Quando ela gritou, só seus 
olhos se desviaram na direção da voz vindo lá de cima e tombando já meio 
apagada no poço. 
— Miguel, onde está a adaga?! Está me ouvindo, Miguel? A adaga! 
Ele abriu a porta do elevador. 
— Está comigo. 
O porteiro ouviu e foi-se afastando de costas. Teve um gesto de exagerada 
cordialidade. 
— Uma bela noite! Vai passear um pouco? 
Ele parou, olhou o homem. Apressou o passo na direção da rua.
Verde Lagarto Amarelo 
Ele entrou com seu passo macio, sem ruído, não chegava a ser felino: apenas um 
andar discreto. Polido. 
— Rodolfo! Onde está você?… Dormindo? — perguntou quando me viu levantar 
da poltrona e vestir a camisa. Baixou o tom de voz. — Está sozinho? 
Ele sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sempre estou sozinho. 
— Estava lendo. 
— Dostoiévski? 
Fechei o livro e não pude deixar de sorrir. Nada lhe escapava. 
— Queria lembrar uma certa passagem… Só que está quente demais, acho que 
este é o dia mais quente desde que começou o verão. 
Ele deixou a pasta na cadeira e abriu o pacote de uvas roxas. 
— Estavam tão maduras, olha só que beleza — disse tirando um cacho e 
balançando-o no ar como um pêndulo. — Prova! Uma delícia. 
Com um gesto casual, atirei meu paletó em cima da mesa, cobrindo o 
rascunho de um conto que começara naquela manhã. 
— Já é tempo de uvas? — perguntei colhendo um bago. 
Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa 
sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente 
apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a 
semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente 
resguardada lá no fundo como um feto. 
— Trouxe também uma coisa… Mostro depois. 
Encarei-o. Quando ele sorria ficava menino outra vez. Seus olhos tinham o 
mesmo brilho úmido das uvas. 
— Que coisa? 
— Mas se eu já disse que é surpresa! Mostro depois. 
Não insisti. Conhecia de sobra aquela antiga expressão com que vinha me 
anunciar que tinha algo escondido no bolso ou debaixo do travesseiro. Acabava 
sempre por me oferecer seu tesouro: a maçã, o cigarro, a revistinha pornográfica, o 
pacote de suspiros, mas antes ficava algum tempo me rondando com aquele ar de 
secreto deslumbramento. 
— Vou fazer um café — anunciei. 
— Só se for para você, tomei há pouco na esquina. 
Era mentira. O bar da esquina era imundo e para ele o café fazia parte de um
ritual nobre, limpo. Dizia isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar. 
— Na esquina? 
— Quando comprei as uvas… 
Meu irmão. O cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua. E 
aquela cor nas pupilas. 
— Mamãe achava que seus olhos eram cor de violeta. 
— Cor de violeta? 
— Foi o que ela disse à tia Débora, meu filho Eduardo tem os olhos cor de 
violeta. 
Ele tirou o paletó. Afrouxou a gravata. 
— Como é que são olhos cor de violeta? 
— Cor de violeta — eu respondi abrindo o fogareiro. 
Ele riu apalpando os bolsos do paletó até encontrar o cigarro. 
— Meu Deus, tinha um canteiro de violetas no jardim de casa… Não eram 
violetas, Rodolfo? 
— Eram violetas. 
— E uma parreira, lembra? Nunca conseguimos um cacho maduro daquela 
parreira — disse amarfanhando com um gesto afetuoso o papel das uvas. — Até 
hoje não sei se eram doces. Eram doces? 
— Também não sei, você não esperava amadurecer. 
Vagarosamente ele tirou as abotoaduras e foi dobrando a manga da camisa 
com aquela arte toda especial que tinha de dobrá-la sem fazer rugas, na exata 
medida do punho. Os braços musculosos de nadador. Os pelos dourados. Fiquei a 
olhar as abotoaduras que tinham sido do meu pai. 
— A Ofélia quer que você almoce domingo com a gente. Ela releu seu romance 
e ficou no maior entusiasmo, gostou ainda mais do que da primeira vez, você 
precisa ver com que interesse analisou as personagens, discutiu os detalhes… 
— Domingo já tenho um compromisso — eu disse enchendo a chaleira de 
água. 
— E sábado? Não me diga que sábado você também não pode. 
Aproximei-me da janela. O sopro do vento era ardente como se a casa 
estivesse no meio de um braseiro. Respirei de boca aberta agora que ele não me 
via, agora que eu podia amarfanhar a cara como ele amarfanhara o papel. 
Esfreguei nela o lenço, até quando, até quando?!… E me trazia a infância, será que 
ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? 
Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar nada, não quero 
saber de nada! Fecho os olhos. Está amanhecendo e o sol está longe, tem brisa na 
campina, cascata, orvalho gelado deslizando na corola, chuva fina no meu cabelo, a
montanha e o vento, todos os ventos soprando. Os ventos! Vazio. Imobilidade e 
vazio. Se eu ficar assim imóvel, respirando leve, sem ódio, sem amor, se eu ficar 
assim um instante, sem pensamento, sem corpo… 
— E sábado? Ela quer fazer aquela torta de nozes que você adora. 
— Cortei o açúcar, Eduardo. 
— Mas saia um pouco do regime, você emagreceu, não emagreceu? 
— Ao contrário, engordei. Não está vendo? Estou enorme. 
— Não é possível! Assim de costas você me pareceu tão mais magro, palavra 
que eu já ia perguntar quantos quilos você perdeu. 
Agora a camisa se colava ao meu corpo. Limpei as mãos viscosas no peitoril da 
janela e abri os olhos que ardiam, o sal do suor é mais violento do que o sal das 
lágrimas. “Esse menino transpira tanto, meus céus! Acaba de vestir roupa limpa e 
já começa a transpirar, nem parece que tomou banho. Tão desagradável!…” Minha 
mãe não usava a palavra suor que era forte demais para seu vocabulário, ela 
gostava das belas palavras. Das belas imagens. Delicadamente falava em 
transpiração com aquela elegância em vestir as palavras como nos vestia. Com a 
diferença que Eduardo se conservava limpo como se estivesse numa redoma, as 
mãos sem poeira, a pele fresca. Podia rolar na terra e não se conspurcava, nada 
chegava a sujá-lo realmente porque mesmo através da sujeira podia se ver que 
estava intacto. Eu não. Com a maior facilidade me corrompia lustroso e gordo, o 
suor a escorrer pelo pescoço, pelos sovacos, pelo meio das pernas. Não queria 
suar, não queria mas o suor medonho não parava de escorrer manchando a camisa 
de amarelo com uma borda esverdinhada, suor de bicho venenoso, traiçoeiro, 
malsão. Enxugava depressa a testa, o pescoço, tentava num último esforço salvar 
ao menos a camisa. Mas a camisa já era uma pele enrugada aderindo à minha com 
meu cheiro, com a minha cor. Era menino ainda mas houve um dia em que quis 
morrer para não transpirar mais. 
— Na noite passada sonhei com nossa antiga casa — disse ele aproximando-se 
do fogareiro. Destapou a chaleira, espiou dentro. — Não me lembro bem mas 
parece que a casa estava abandonada, foi um sonho estranho… 
— Também sonhei com a casa mas já faz tempo — eu disse. 
Ele aproximou-se. Esquivei-me em direção ao armário. Tirei as xícaras. 
— Mamãe apareceu no seu sonho? — perguntou ele. 
— Apareceu. O pai tocava piano e mamãe… 
Rodopiávamos vertiginosos numa valsa e eu era magro, tão magro que meus 
pés mal roçavam o chão, senti mesmo que levantavam voo e eu ria enlaçando-a 
em volta do lustre quando de repente o suor começou a escorrer, escorrer. 
— Ela estava viva? 
Seu vestido branco se empapava do meu suor amarelo-verde mas ela
continuava dançando, desligada, remota. 
— Estava viva, Rodolfo? 
— Não, era uma valsa póstuma — eu disse colocando na frente dele a xícara 
perfeita. Reservei para mim a que estava rachada. — Está reconhecendo essa 
xícara? 
Ele tomou-a pela asa. Examinou-a. Sua fisionomia se iluminou com a graça de 
um vitral varado pelo sol. 
— Ah!… as xicrinhas japonesas. Sobraram muitas ainda? 
O aparelho de chá, o faqueiro, os cristais e os tapetes tinham ficado com ele. 
Também os lençóis bordados, obriguei-o a aceitar tudo. Ele recusava, chegou a se 
exaltar, “Não quero, não é justo, não quero! Ou você fica com a metade ou então 
não aceito nada! Amanhã você pode se casar também…”. Nunca, respondi. Moro 
só, gosto de tudo sem nenhum enfeite, quanto mais simples melhor. Ele parecia 
não ouvir uma só palavra enquanto ia amontoando os objetos em duas porções, 
“Olha, isto você leva que estava no seu quarto…”. Tive que recorrer à violência. Se 
você teimar em me deixar essas coisas, assim que você virar as costas jogo tudo 
na rua! Cheguei a agarrar uma jarra, No meio da rua! Ele empalideceu, os lábios 
trêmulos. “Você jamais faria isso, Rodolfo. Cale-se, por favor, que você não sabe o 
que está dizendo.” Passei as mãos na cara ardente. E a voz da minha mãe vindo 
das cinzas: “Rodolfo, por que você há de entristecer seu irmão? Não vê que ele 
está sofrendo? Por que você faz assim?!”. Abracei-o. Ouça, Eduardo, sou um tipo 
mesmo esquisito, você está farto de saber que sou meio louco. Não quero, não sei 
explicar mas não quero, está me entendendo? Leve tudo à Ofélia, presente meu. 
Não posso dar a vocês um presente de casamento? Para não dizer que não fico 
com nada, olha… está aqui, pronto, fico com essas xícaras! 
— Finas como casca de ovo — disse ele batendo com a unha na porcelana. — 
Ficavam na prateleira do armário rosado, lembra? Esse armário está na nossa 
saleta. 
Despejei água fervente na caneca. O pó de café foi se diluindo resistente, 
difícil. Minha mãe. Depois, Ofélia. Por que não haveria de ficar também com os 
lençóis? 
— E Ofélia? Para quando o filho? 
Ele apanhou a pilha de jornais velhos que estavam no chão, ajeitou-a 
cuidadosamente e esboçou um gesto de procura, devia estar sentindo falta de um 
lugar certo para serem guardados os jornais já lidos. Teve uma expressão de 
resignado bom humor, mas então a desordem do apartamento comportava um 
móvel assim supérfluo? Enfiou a pilha na prateleira da estante e voltou-se para 
mim. Ficou me seguindo com o olhar enquanto eu procurava no armário debaixo da 
pia a lata onde devia estar o açúcar. Uma barata fugiu atarantada, escondendo-se 
debaixo de uma tampa de panela e logo uma outra maior se despencou não sei de
onde e tentou também o mesmo esconderijo. Mas a fresta era estreita e ela mal 
conseguiu esconder a cabeça, ah, o mesmo humano desespero na procura de um 
abrigo. Abri a lata de açúcar e esperei que ele dissesse que havia um novo sistema 
de acabar com as baratas, era facílimo, bastava chamar pelo telefone e já aparecia 
o homem de farda cáqui e bomba em punho e num segundo pulverizava tudo. 
Tinha em casa o número do telefone, nem baratas nem formigas. 
— No próximo mês, parece. Está tão lépida que nem acredito que esteja nas 
vésperas — disse ele me contornando pelas costas. Não perdia um só dos meus 
movimentos. — E adivinha agora quem vai ser o padrinho. 
— Que padrinho? 
— Do meu filho, ora! 
— Não tenho a menor ideia. 
— Você. 
Minha mão tremia como se ao invés de açúcar eu estivesse mergulhando a 
colher em arsênico. Senti-me infinitamente mais gordo. Mais vil. Tive vontade de 
vomitar. 
— Não faz sentido, Eduardo. Não acredito em Deus, não acredito em nada. 
— E daí? — perguntou ele, servindo-se de mais açúcar ainda. Atraiu-me quase 
num abraço. — Fique tranquilo, eu acredito por nós dois. 
Tomei de um só trago o café amargo. Uma gota de suor pingou no pires. 
Passei a mão pelo queixo. Não pudera ser pai, seria padrinho. Não era um ser 
amável? Um casal amabilíssimo. A pretexto de aquecer o café, fiquei de costas e 
então esfreguei furtivamente o pano de prato na cara. 
— Era essa a surpresa? — perguntei e ele me olhou com inocência. Repeti a 
pergunta: — A surpresa! Quando chegou você disse que… 
— Ah! não, não! Não é isso não — exclamou e riu apertando os olhos que riam 
também com uma ponta de malícia. — A surpresa é outra. Se der certo, Rodolfo, se 
der certo!… Enfim, você é quem vai decidir. Ponho nas suas mãos. 
Era exatamente a expressão da minha mãe quando vinha me preparar para 
uma boa notícia. Rondava, rondava e ficava me observando reticente, saboreando 
o segredo até o momento em que não resistia mais e contava. A condição era 
invariável: “Mas você vai me prometer que não vai comer nenhum doce durante 
uma semana, só uma semana!”. 
E se ele fosse morar longe? Podia tão bem se mudar de cidade, viajar. Mas 
não. Precisava ficar por perto, sempre em redor, me olhando. Desde pequeno, no 
berço já me olhava assim. Não precisaria me odiar, eu nem pediria tanto, bastava 
me ignorar, se ao menos me ignorasse. Era bonito, inteligente, amado, conseguiu 
sempre fazer tudo muito melhor do que eu, muito melhor do que os outros, em 
suas mãos as menores coisas adquiriam outra importância, como que se
renovavam. E então? Natural que esquecesse o irmão obeso, malvestido, 
malcheiroso. Escritor, sim, mas nem aquele tipo de escritor de sucesso, convidado 
para festas, dando entrevistas na televisão: um escritor de cabeça baixa e calado, 
abrindo com as mãos em garra seu caminho. Se ao menos ele… mas não, claro que 
não, desde menino eu já estava condenado ao seu fraterno amor. Às vezes me 
escondia no porão, corria para o quintal, subia na figueira, ficava imóvel, um 
lagarto no vão do muro, pronto, agora não vai me achar. Mas ele abria portas, 
vasculhava armários, abria a folhagem e ficava rindo por entre lágrimas. 
Engatinhava ainda quando saía à minha procura, farejando meu rastro. “Rodolfo, 
não faça seu irmãozinho chorar, não quero que ele fique triste!” Para que ele não 
ficasse triste, só eu soube que ela ia morrer. “Você já é grande, você deve saber a 
verdade”, disse meu pai olhando reto nos meus olhos. “É que sua mãe não tem 
nem…” Não completou a frase. Voltou-se para a parede e ali ficou de braços 
cruzados, os ombros curvos. “Só eu e você sabemos. Ela desconfia mas de jeito 
nenhum quer que seu irmãozinho saiba, está entendendo?” Eu entendia. Na sua 
última festa de aniversário ficamos reunidos em redor da cama. “Laura é como o 
rei daquela história”, disse meu pai, dando-lhe de beber um gole de vinho. “Só que 
ao invés de transformar tudo em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo em 
beleza.” Com os olhos cozidos de tanto chorar, ajoelhei-me e fingindo arrumar-lhe 
o travesseiro, pousei a cabeça ao alcance da sua mão, ah, se me tocasse com um 
pouco de amor. Mas ela só via o broche, um caco de vidro que Eduardo achou no 
quintal e enrolou em fiozinhos de arame formando um casulo, “Mamãezinha 
querida, eu que fiz para você!”. Ela beijou o broche. E o arame ficou sendo prata e 
o caco de garrafa ficou sendo esmeralda. Foi o broche que lhe fechou a gola do 
vestido. Quando me despedi, apertei sua mão gelada contra minha boca, e eu, 
mamãe, e eu?… 
— Esqueci de oferecer biscoitos, olha aí, você gosta — eu disse tirando a lata 
do armário. 
— É sua empregada quem faz? 
— Minha empregada só vem uma vez por semana, comprei na rua — 
acrescentei e lancei-lhe um olhar. Que surpresa era essa agora? O que é que eu 
devia decidir? Eu devia decidir, ele disse. Mas o quê?… Interpelei-o: — Que é que 
você está escondendo, Eduardo? Não vai me dizer? 
Ele pareceu não ter ouvido uma só palavra. Quebrou a cinza do cigarro, soprou 
o pouco que lhe caiu na calça e inclinou-se para os biscoitos. 
— Ah!… rosquinhas. Ofélia aprendeu a fazer sequilhos no caderno de receitas 
da mamãe mas estão longe de ser como aqueles. 
Ele comia sequilhos quando entrei no quarto. Ao lado, a caneca de chocolate 
fumegante. Eu tinha tomado chá. Chá. Dei uma volta em redor dele. O Júlio já está 
na esquina esperando, avisei. Veio me dizer que tem que ser agora. Ele então se 
levantou, calçou a sandália, tirou o relógio de pulso e a correntinha do pescoço.
Dirigiu-se para a porta com uma firmeza que me espantou. Vi-o ensanguentado, a 
roupa em tiras. Você é menor, Eduardo, você vai apanhar feito cachorro! Ele abriu 
os braços. “E daí? Quer que a turma me chame de covarde?” Sentei-me na cadeira 
onde ele estivera e ali fiquei encolhido, tomando o chocolate e comendo sequilhos. 
Tinha a boca cheia quando ouvi a voz da minha mãe chamando: “Rodolfo, 
Rodolfo!”. Agora ela o carregava em prantos, tentando arrancar-lhe o canivete 
enterrado no peito até o cabo. 
— Procurei seu romance em duas livrarias e não encontrei, queria dar a uns 
amigos. Está esgotado, Rodolfo? O vendedor disse que vende demais. 
— Exagero. Talvez se esgote mas não já. 
A boca cheia de sequilhos e o suor escorrendo por todos os poros, escorrendo. 
A voz da minha mãe insistiu enérgica: “Rodolfo, você está me ouvindo? Onde está 
o Eduardo?!”. Entrei no quarto dela. Estava deitada, bordando. Assim que me viu, 
sua fisionomia se confrangeu. Deixou o bordado e ficou balançando a cabeça. “Mas, 
filho, comendo de novo?! Quer engordar mais ainda? Hum?…” Suspirou, dolorido. 
“Onde está seu irmão?” Encolhi os ombros, Não sei, não sou pajem dele. Ela ficou 
me olhando. “Essa é maneira de me responder, Rodolfo? Hein?!…” Desci a escada 
comendo o resto dos sequilhos que escondi nos bolsos. O silêncio me seguiu 
descendo a escada degrau por degrau, colado ao chão, viscoso, pesado. Parei de 
mastigar. E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o canivete 
não! Encontrei-o sentado na sarjeta, a camisa rasgada, um arranhão fundo na 
testa. Sorriu palidamente. Ofegava. Júlio tinha acabado de fugir. Cravei o olhar no 
seu peito. Mas ele não usou o canivete? perguntei. Apoiando-se na árvore, 
levantou-se com dificuldade, tinha torcido o pé. “Que canivete?…” Baixando a 
cabeça que latejava, inclinei-me até o chão. Você não pode andar, eu disse 
apoiando as mãos nos joelhos. Vamos, monta em mim. Ele obedeceu. Estranhei, 
era tão magro, não era? Mas pesava como chumbo. O sol batia em cheio em nós 
enquanto o vento levantava as tiras da sua camisa rasgada. Vi nossa sombra no 
muro, as tiras se abrindo como asas. Enlaçou-me mais fortemente, encostou o 
queixo no meu ombro e teve um breve soluço, “Que bom que você veio me 
buscar…”. 
— Seu novo romance? — perguntou ele na maior excitação. Encontrara o 
rascunho em cima da mesa. — Posso ler, Rodolfo? Posso? 
Tirei-lhe as folhas das mãos e fechei-as na gaveta. Era o que me restara, 
escrever. Será possível que ele também?… 
— Não, não é possível, Eduardo — eu disse, tentando abrandar a voz. — Está 
tudo muito no início, trabalho mal no calor — acrescentei meio distraidamente. 
Olhei para sua pasta na cadeira e adivinhei a surpresa. Senti meu coração se 
fechar como uma concha. A dor era quase física. Olhei para ele. Você escreveu um
romance. É isso? Os originais estão na pasta… É isso? 
Ele então abriu a pasta.
Apenas um Saxofone 
Anoiteceu e faz frio. “Merde! voilà l’hiver” é o verso que segundo Xenofonte cabe 
dizer agora. Aprendi com ele que palavrão em boca de mulher é como lesma em 
corola de rosa. Sou mulher, logo, só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se 
possível, fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver 
como sou autêntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que 
se quisesse podia dizer as piores bandalheiras em grego antigo, o Xenofonte sabe 
grego antigo. E a lesma ficaria irreconhecível como convém a uma lesma numa 
corola de quarenta e quatro anos. Quarenta e quatro anos e cinco meses, meu 
Jesus. Foi rápido, não? Rápido. Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado 
muito nisso e sinto o próprio frio secular que vem do assoalho e se infiltra no 
tapete. Meu tapete é persa, todos meus tapetes são persas mas não sei o que 
fazem esses bastardos que não impedem que o frio se instale na sala. Fazia menos 
frio no nosso quarto, com as paredes forradas de estopa e o tapetinho de juta no 
chão, ele mesmo forrou as paredes e pregou retratos de antepassados e gravuras 
da Virgem de Fra Angelico, tinha paixão por Fra Angelico. 
Onde agora? Onde? Podia mandar acender a lareira mas despedi o copeiro, a 
arrumadeira, o cozinheiro — despedi um por um, me deu um desespero e mandei a 
corja toda embora, rua, rua! Fiquei só. Há lenha em algum lugar da casa mas não é 
só riscar o fósforo e tocar na lenha como se vê no cinema, o japonês ficava horas aí 
mexendo, soprando até o fogo acender. E eu mal tenho forças para acender o 
cigarro. Estou aqui sentada faz não sei quanto tempo. Desliguei o telefone, me 
enrolei na manta, trouxe a garrafa de uísque e estou aqui bebendo bem 
devagarinho para não ficar de porre, hoje não, hoje quero ficar lúcida, vendo uma 
coisa, vendo outra. E tem coisa à beça para ver tanto por dentro como por fora, 
ainda mais por fora, uma porrada de coisas que comprei no mundo inteiro, coisas 
que nem sabia que tinha e que só vejo agora, justo agora que está escuro. É que 
fomos escurecendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada, 
pretensiosa. E sobretudo rica, exorbitando de riqueza, abri um saco de ouro para o 
decorador se esbaldar nele. E se esbaldou mesmo, o viado. Chamava-se Renê e 
chegava logo cedinho com suas telas, veludos, musselinas, brocados, “Trouxe hoje 
para o sofá um pano que veio do Afeganistão, completamente divino! Di-vino!”. 
Nem o pano era do Afeganistão nem ele era tão viado assim, tudo mistificação, 
cálculo. Surpreendi-o certa vez sozinho, fumando perto da janela, a expressão 
fatigada de um ator que já está farto de representar. Assustou-se quando me viu, 
como se o tivesse apanhado em flagrante roubando um talher de prata. Então 
retomou o gênero borbulhante e saiu se rebolando todo para me mostrar o 
oratório, um oratório falsamente antigo, tudo feito há três dias mas com furinhos 
na madeira imitando caruncho de três séculos. “Este anjo só pode ser do
Aleijadinho, veja as bochechas! E os olhos de cantos caídos, um nadinha 
estrábicos…” Eu concordava no mesmo tom histérico, embora soubesse 
perfeitamente que o Aleijadinho teria que ter mais de dez braços para conseguir 
fazer tanto anjo assim, a casa de Madô também tem milhares deles, todos 
autênticos, “Um nadinha estrábicos”, repetiu ela com a voz em falsete de Renê. 
Bossa colonial de grande luxo. E eu sabendo que estava sendo enganada e não me 
importando, ao contrário, sentindo um agudo prazer em comer gato por lebre. Li 
ontem que já estão comendo ratos em Saigon e li ainda que já não há mais 
borboletas por lá, nunca mais haverá a menor borboleta… Desatei então a chorar 
feito louca, não sei se por causa das borboletas ou dos ratos. Acho que nunca bebi 
tanto como ultimamente e quando bebo assim fico sentimental, choro à toa. “Você 
precisa se cuidar”, Renê disse na noite em que ficamos de fogo, só agora penso 
nisso que ele me disse, por que devo me cuidar, por quê? Contratei-o para fazer 
em seguida a decoração da casa de campo, “Tenho os móveis ideais para essa sua 
casa”, ele avisou e eu comprei os móveis ideais, comprei tudo, compraria até a 
peruca de Maria Antonieta com todos os seus labirintos feitos pelas traças e mais a 
poeira pela qual não me cobraria nada, simples contribuição do tempo, é claro. É 
claro. 
Onde agora? Às vezes eu fechava os olhos e os sons eram como voz humana 
me chamando, me envolvendo, Luisiana, Luisiana! Que sons eram aqueles? Como 
podiam parecer voz de gente e serem ao mesmo tempo tão mais poderosos, tão 
puros? E singelos como ondas se renovando no mar, aparentemente iguais, só 
aparentemente. “Este é o meu instrumento”, disse ele deslizando a mão pelo 
saxofone. Com a outra mão em concha, cobriu meu peito: “e esta é a minha 
música”. 
Onde, onde? Olho meu retrato em cima da lareira. “Na lareira tem que ficar 
seu retrato”, determinou Renê num tom autoritário, às vezes ele era autoritário. 
Apresentou-me seu namorado, pintor, pelo menos me fazia crer que era seu 
namorado porque agora já não sei mais nada. E o efebo de caracóis na testa me 
pintou toda de branco, uma Dama das Camélias voltando do campo, o vestido 
comprido, o pescoço comprido, tudo assim esgalgado e iluminado como se eu 
tivesse o próprio anjo tocheiro da escada aceso dentro de mim. Tudo já escureceu 
na sala menos o vestido do retrato, lá está ele, diáfano como a mortalha de um 
ectoplasma pairando suavíssimo no ar. Um ectoplasma muito mais jovem do que 
eu, sem dúvida o puxa-saco do efebo era suficientemente esperto para imaginar 
como eu devia ser aos vinte anos. “Você no retrato parece um pouco diferente”, 
concedeu ele, “mas o caso é que não estou pintando só seu rosto”, acrescentou 
muito sutil. Queria dizer com isso que estava pintando minha alma. Concordei na 
hora, fiquei até comovida quando me vi de cabeleira elétrica e olhos vidrados. “Meu 
nome é Luisiana”, me diz agora o ectoplasma. “Há muitos anos mandei embora o 
meu amado e desde então morri.” 
Onde?… Tenho um iate, tenho um casaco de vison prateado, tenho uma coroa
de diamantes, tenho um rubi que já esteve incrustado no umbigo de um xá 
famosíssimo, até há pouco eu sabia o nome desse xá. Tenho um velho que me dá 
dinheiro, tenho um jovem que me dá gozo e ainda por cima tenho um sábio que 
me dá aulas sobre doutrinas filosóficas com um interesse tão platônico que logo na 
segunda aula já se deitou comigo. Vinha tão humilde, tão miserável com seu terno 
de luto empoeirado e botinas de viúvo que fechei os olhos e me deitei, Vem, 
Xenofonte, vem. “Não sou Xenofonte, não me chame de Xenofonte”, ele me 
implorou e seu hálito tinha o cheiro recente de pastilhas Valda, era Xenofonte, 
nunca houve ninguém tão Xenofonte quanto ele. Como nunca houve uma Luisiana 
tão Luisiana como eu, ninguém sabe desse nome, ninguém, nem o cáften do meu 
pai que nem esperou eu nascer para ver como eu era, nem a coitadinha da minha 
mãe que não viveu nem para me registrar. Nasci naquela noite na praia e naquela 
noite recebi um nome que durou enquanto durou o amor. Outra madrugada, 
quando enchi a cara e fui falar com meu advogado para não pôr no meu túmulo 
outro nome senão esse, ele deu aquela risadinha execrável, “Luisiana? Mas por que 
Luisiana? De onde você tirou esse nome?”. Controlou-se para não me chacoalhar 
por tê-lo acordado àquela hora, vestiu-se e muito polidamente me trouxe para 
casa, “Como queira, minha querida, você manda!”. E deu sua risadinha, Enfim, uma 
puta bêbada mas rica tem o direito de botar no túmulo o nome que bem entender, 
foi o que provavelmente pensou. Mas já não me importo com o que pensa, ele e 
mais a cambada toda que me cerca, opinião alheia é este tapete, este lustre, 
aquele retrato. Opinião alheia é esta casa com os santos varados por mil cargas. 
Mas antes eu me importava e como. Por causa dessa opinião tenho hoje um 
piano de cauda, tenho um gato siamês com uma argola na orelha, tenho uma 
chácara com piscina e nos banheiros, papel higiênico com florinhas douradas que o 
velho trouxe de Nova York junto com o estojo plástico que toca uma musiquinha 
enquanto a gente vai desenrolando o papel, “Oh! My Last Rose of Summer!…”. 
Quando me deu os rolos, deu também os potes de caviar, “É preciso dourar a 
pílula”, disse rindo com sua grossura habitual, é um grosso sem remédio, se não 
cuspisse dólar eu já o teria mandado para aquela parte com seus tacos de golfe e 
cuecas perfumadas com lavanda. Tenho sapato com fivela de diamante e um 
aquário com uma floresta de coral no fundo, quando o velho me deu a pérola, 
achou originalíssimo escondê-la no fundo do aquário e me mandar procurar: “Está 
ficando quente, mais quente. Não, agora esfriou!…”. E eu me fazia menininha e ria 
quando minha vontade mesmo era dizer-lhe que enfiasse a pérola no rabo e me 
deixasse em paz, Me deixa em paz! ele, o jovem ardente com todos os seus 
ardores, Xenofonte com seu hálito de hortelã — enxotar todos como fiz com a 
criadagem, todos uns sacanas que mijam no meu leite e se torcem de rir quando 
fico para cair de bêbada. 
Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do tamanho de 
um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate — trocaria tudo, 
anéis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem
seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que ele 
está vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone. 
Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude, 
tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer duas mil plásticas e não 
resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha 
juventude mas naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode 
mesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede à noite, como o sol, a lua, 
eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por 
acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se 
esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem… 
Ele era a minha juventude, ele e seu saxofone que luzia como ouro. Seus 
sapatos eram sujos, a camisa despencada, a cabeleira um ninho, mas o saxofone 
estava sempre meticulosamente limpo. Tinha também mania com os dentes que 
eram de uma brancura que nunca vi igual, quando ele ria eu parava de rir só para 
ficar olhando. Trazia a escova de dentes no bolso e mais a fralda para limpar o 
saxofone, achou num táxi uma caixa com uma dúzia de fraldas Johnson e desde 
então passou a usá-las para todos os fins: era o lenço, a toalha de rosto, o 
guardanapo, a toalha de mesa e o pano de limpar o saxofone. Foi também a 
bandeira de paz que usou na nossa briga mais séria, quando quis que tivéssemos 
um filho. Tinha paixão por tanta coisa… 
A primeira vez que nos amamos foi na praia. O céu palpitava de estrelas e 
fazia calor. Então fomos rolando e rindo até às primeiras ondas que ferviam na 
areia e ali ficamos nus e abraçados na água morna como a de uma bacia. 
Preocupou-se quando lhe disse que não fora sequer batizada. Colheu a água com 
as mãos em concha e despejou na minha cabeça: “Eu te batizo, Luisiana, em nome 
do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém”. Pensei que ele estivesse brincando 
mas nunca o vi tão grave. “Agora você se chama Luisiana”, disse me beijando a 
face. Perguntei-lhe se acreditava em Deus. “Tenho paixão por Deus”, sussurrou 
deitando-se de costas, as mãos entrelaçadas debaixo da nuca, o olhar perdido no 
céu: “O que mais me deixa perplexo é um céu assim como este”. Quando nos 
levantamos correu até a duna onde estavam nossas roupas, tirou a fralda que 
cobria o saxofone e trouxe-a delicadamente nas pontas dos dedos para me enxugar 
com ela. Aí pegou o saxofone, sentou-se encaracolado e nu como um fauno menino 
e começou a improvisar bem baixinho, formando com o fervilhar das ondas uma 
melodia terna. Quente. Os sons cresciam tremidos como bolhas de sabão, olha esta 
que grande! olha esta agora mais redonda… ah, estourou! Se você me ama você é 
capaz de ficar assim nu naquela duna e tocar, tocar o mais alto que puder até que 
venha a polícia? eu perguntei. Ele me olhou sem pestanejar e foi correndo em 
direção à duna e eu corria atrás e gritava e ria, ria porque ele já tinha começado a 
tocar a plenos pulmões. 
Minha companheira do curso de dança casou-se com o baterista de um
conjunto que tocava numa boate, houve festa. Foi lá que o conheci. Em meio da 
maior algazarra do mundo a mãe da noiva se trancou no quarto chorando, “Veja 
em que meio minha filha foi cair! Só vagabundos, só cafajestes!…”. Deitei-a na 
cama e fui buscar um copo de água com açúcar mas na minha ausência os 
convidados descobriram o quarto e quando voltei os casais já tinham transbordado 
até ali, atracando-se em almofadas pelo chão. Pulei gente e sentei-me na cama. A 
mulher chorava, chorava até que aos poucos o choro foi esmorecendo e de repente 
parou. Eu também tinha parado de falar e ficamos as duas muito quietas, ouvindo 
a música de um moço que eu ainda não tinha visto. Ele estava sentado na 
penumbra, tocando saxofone. A melodia era mansa mas ao mesmo tempo tão 
eloquente que fiquei imersa num sortilégio. Nunca tinha ouvido nada parecido, 
nunca ninguém tinha tocado um instrumento assim. Tudo o que tinha querido dizer 
à mulher e não conseguira, ele dizia agora com o saxofone: que ela não chorasse 
mais, tudo estava bem, tudo estava certo quando existia o amor. Tinha Deus, ela 
não acreditava em Deus? perguntava o saxofone. E tinha a infância, aqueles sons 
brilhantes falavam agora da infância, olha aí a infância!… A mulher parou de chorar 
e agora era eu que chorava. Em redor, os casais ouviam num silêncio fervoroso e 
suas carícias foram ficando mais profundas, mais verdadeiras porque a melodia 
também falava do sexo vivo e casto como um fruto que amadurece ao vento e ao 
sol. 
Onde? Onde?… Levou-me para o seu apartamento, ocupava um minúsculo 
apartamento no décimo andar de um prédio velhíssimo, toda a sua fortuna era 
aquele quarto com um banheiro mínimo. E o saxofone. Contou-me que recebera o 
apartamento como herança de uma tia cartomante. Depois, num outro dia disse 
que o ganhara numa aposta e quando outro dia ainda começou a contar uma 
terceira história, interpelei-o e ele começou a rir, “É preciso variar as histórias, 
Luisiana, o divertido é improvisar que para isso temos imaginação! É triste quando 
um caso fica a vida inteira igual…”. E improvisava o tempo todo e sua música era 
sempre ágil, rica, tão cheia de invenções que chegava a me afligir, Você vai 
compondo e vai perdendo tudo, você tem que tomar nota, tem que escrever o que 
compõe! Ele sorria. “Sou um autodidata, Luisiana, não sei ler nem escrever música 
e nem é preciso para ser um sax-tenor, sabe o que é um sax-tenor? É o que eu 
sou.” Tocava num conjunto que tinha contrato com uma boate e sua única ambição 
era ter um dia um conjunto próprio. E ter um toca-discos de boa qualidade para 
ouvir Ravel e Debussy. 
Nossa vida foi tão maravilhosamente livre! E tão cheia de amor, como nos 
amamos e rimos e choramos de amor naquele décimo andar, cercados por gravuras 
de Fra Angelico e retratos dos antepassados dele. “Não são meus parentes, achei 
tudo isso no baú de um porão”, confessou-me certa vez. Apontei para o mais antigo 
dos retratos, tão antigo que da mulher só restava a cabeleira escura. E as 
sobrancelhas. Esta você também achou no baú? perguntei. Ele riu e até hoje fiquei 
sem saber se era verdade ou não. Se você me ama mesmo, eu disse, suba então
naquela mesa e grite com todas as forças, Vocês são todos uns cornudos, vocês 
são todos uns cornudos! e depois desça da mesa e saia mas sem correr. Ele me 
deu o saxofone para segurar enquanto eu fugia rindo, Não, não, eu estava 
brincando, isso não! Já na esquina ouvi seus gritos em pleno bar, “Cornudos, todos 
cornudos!”. Alcançou-me em meio da gente estupefata, “Luisiana, Luisiana, não me 
negue, Luisiana!”. Outra noite — saímos de um teatro — não resisti e perguntei-lhe 
se era capaz de cantar ali no saguão um trecho de ópera, Vamos, se você me ama 
mesmo, cante agora aqui na escada um trecho do Rigoletto! 
Se você me ama mesmo, me leva agora a um restaurante, me compre já 
aqueles brincos, me compre imediatamente um vestido novo! Ele agora tocava em 
mais lugares porque eu estava ficando exigente, se você me ama mesmo, mesmo, 
mesmo… Saía às sete da noite com o saxofone debaixo do braço e só voltava de 
manhãzinha. Então limpava meticulosamente o bocal do instrumento, lustrava o 
metal com a fralda e ficava dedilhando distraidamente, sem nenhum cansaço, sem 
nenhum desgaste, “Luisiana, você é a minha música e eu não posso viver sem 
música”, dizia abocanhando o bocal do saxofone com o mesmo fervor com que 
abocanhava meu peito. Comecei a ficar irritadiça, inquieta, era como se tivesse 
medo de assumir a responsabilidade de tamanho amor. Queria vê-lo mais 
independente, mais ambicioso. Você não tem ambição? Não usa mais artista sem 
ambição, que futuro você pode ter assim? Era sempre o saxofone quem me 
respondia e a argumentação era tão definitiva que me envergonhava e me sentia 
miserável por estar exigindo mais. Contudo, exigia. Pensei em abandoná-lo mas 
não tive forças, não tive, preferi que nosso amor apodrecesse, que ficasse tão 
insuportável que quando ele fosse embora saísse cheio de nojo, sem olhar para 
trás. 
Onde agora? Onde? Tenho uma casa de campo, tenho um diamante do 
tamanho de um ovo de pomba… Eu pintava os olhos diante do espelho, tinha um 
compromisso, vivia cheia de compromissos, ia a uma boate com um banqueiro. 
Enrodilhado na cama, ele tocava em surdina. Meus olhos foram ficando cheios de 
lágrimas. Enxuguei-os na fralda do saxofone e fiquei olhando para minha boca. Os 
lábios estavam mais finos assim crispados. Desviei o olhar do espelho. Se você me 
ama mesmo, eu disse, se você me ama mesmo então saia e se mate 
imediatamente.
Helga 
Ela era uma só. Não havia outra e se quisesse compará-la com alguma coisa, seria 
com os tenros cogumelos dos bosques ou com as manhãs de bicicleta nas estradas 
impecáveis ou com as primeiras cerejas da primavera. Era uma, una, única, apesar 
de ter uma só perna, aliás bela como ela toda. Mas é cedo para falar não sobre sua 
beleza — que deve ser lembrada sem enfado quantas vezes forem necessárias — 
mas cedo para falar sobre a perna que vai exigir explicação. A perna envolve 
viagem, guerra, a perna vai tão além… Sem esclarecimento tudo será apenas 
crueldade. 
É bom dizer logo quem eu sou: Paulo Silva, brasileiro. Mas fui alemão. Filho de 
alemã de Santa Catarina e desse Silva brasileiro que não cheguei a conhecer. Mãe 
alemã nascida no Vale do Itajaí, neta de proprietários em Vila Corinto desde 1890, 
pude ver isso nos papéis. Mas alemã malvista porque se casou com o Silva, Paulo 
também, o que me faria Paulo Silva Filho. Mas nada disso vigorou, na escola eu já 
era Paul sem o o, Paul Karsten. E o destino amável de um Paul Karsten, ginasiano 
de Blumenau em 1935, eram férias, cursos de aperfeiçoamento, amizades e 
amores na Alemanha. De Hitler, é bom lembrar. E não havia nada melhor, a 
começar pela viagem no Monte Pascoal, classe única com escalas na Bahia, em 
Madeira, Lisboa, e depois Hamburgo até os verões intermináveis nas Casas da 
Juventude, com excursões, piqueniques, bicicletas, cerejas e sexo em meio do 
cansaço feliz e da dose exata de melancolia. Jugendhaus, era esse o nome dessas 
casas e pensar nelas me faz pensar em fonte e musgo. As viagens seguintes, três 
ao todo, foram marcadas pelas aulas cheias de simplicidade e exaltação. E a nossa, 
a minha particular importância por ser alemão e alemão estrangeiro. Esportes. 
Treinos. O aço das metralhadoras sem carga encostado no peito banhado de suor. 
As bandeiras apoiadas no ombro no desfile diante de Hitler e Mussolini no estádio 
de Berlim, os alemães da América do Sul marchando logo atrás dos países sudetos 
e antes mesmo dos alemães da América do Norte. Amizade e amor foi lá que 
conheci, próximos e concretos. E o ódio também abstrato e longínquo, aos judeus, 
aos comunistas e a outras coisas mais que já esqueci. Tudo aconteceu porque a 
terceira viagem foi no verão de 1939. Não vou contar minha guerra, Polônia, 
França, Grécia, Rússia… 
A beleza de Helga e a sua perna. Confesso que durante muito tempo não sei 
em qual pensei mais, se na que tinha ou se na que perdera. Mas é cedo. Por 
enquanto é preciso dizer como foi possível acontecer o que aconteceu. O meu 
hitlerismo era jovem, leal, risonho e franco e a guerra não entrava na jogada. Nela 
fiz mais ou menos tudo o que os outros fizeram e até menos do que vi ser feito em 
matéria de luta ou crime. De resto, eu e meus camaradas de armas éramos 
parecidos, menos numa coisa: nunca consegui estabelecer um vínculo entre essa
guerra e as férias na Jugendhaus em meio dos piqueniques nas florestas e 
excursões pelas estradas marginadas de verdor. As aulas tão nítidas eram para 
isso? A palavra unerbittlich significava mesmo implacável e era para valer? Só mais 
tarde, depois da guerra, descobri dentro de mim que aprendera a lição. 
Curioso é que hoje já não consigo lembrar qual a perna que Helga perdera, se 
a direita ou a esquerda. E dizer que durante anos não houve dia nem hora que 
Helga não aparecesse no meu pensamento. Acha meu analista que os 
esquecimentos parciais são frequentemente formas sutis de autopunição. Não sei 
se isso é verdade mas sei que agora que resolvi evocá-la não posso impedir que a 
todo instante ela cruze estas linhas antes do momento exato em que devia 
comparecer. Quero confessar que não liguei muito quando soube que o Brasil 
entrara na guerra contra a Alemanha mas devo dizer também que achei bom não 
ter combatido contra soldados brasileiros. O que me faz pensar que nunca deixou 
de existir em mim alguma coisa do filho daquele Silva que sempre imaginei moreno 
pálido, a cara comprida e os olhos tristes. 
Assim que acabou a guerra, vendi meu capacete e meu punhal com a cruz 
suástica a um funcionário brasileiro que até hoje não sei o que estava fazendo em 
Düsseldorf. Fomos para uma cantina onde me pagou uma cerveja e dele ouvi então 
coisas alarmantes: que a minha situação jurídica era nada mais, nada menos, do 
que a de um traidor, quer dizer, uns quinze anos de cadeia, por aí. Era só voltar e a 
condenação viria na certa. Recebi a notícia na hora errada porque naquela altura 
meu desejo maior era esquecer a guerra, encerrar as férias na Alemanha e 
tranquilamente voltar para Vila Corinto, casar por lá, cuidar do plantio, da criação e 
ajudar minha mãe que devia estar velha. Helga ainda não aparecera na minha vida 
e o hitlerismo e a guerra ainda não tinham me marcado para sempre. Ainda não. 
Há um pormenor que me ocorre com tamanha insistência que fico às vezes 
pensando, pensando e não descubro por que me lembro tanto das unhas do seu pé 
pintadas com esmalte rosa. Não sei qual perna lhe restara mas revejo seu pé, só o 
pé com as unhas pintadas, não pintava as unhas das mãos, limpas, polidas mas 
sem esmalte. Pintava as do pé, economizando assim o esmalte que naquele tempo 
era raro como todo o resto, comida, roupa. Unhas de um tom de rosa delicado, ela 
gostava das cores tímidas. 
Não poder voltar para o Brasil decidiu minha sorte de continuar Paul Karsten o 
tempo necessário para enriquecer e nunca mais ter paz. Não por ter enriquecido, 
como veremos, estou chegando lá. O caso é que não fui prisioneiro de guerra nem 
propriamente desertor. Num momento de confusão a guerra se afastou de onde me 
encontrava, não voltou mais e depois acabou. Já contei que vendi meu capacete e 
meu punhal. Arranjei em seguida outros punhais e capacetes que vendia para 
jovens recrutas americanos que chegaram demasiado tarde e doidos por levarem 
qualquer suvenir desse tipo. O pequeno comércio de troféus ampliou-se para 
cigarros, chocolate, leite em pó e outras latarias, mas tudo muito reduzido. Basta
dizer que na intendência americana meu sócio mais qualificado era apenas 
sargento, o que mostra bem a modéstia do negócio. 
Naquela improvisação de vida ao deus-dará, o tempo perdeu a medida e hoje 
não sou mesmo capaz de lembrar quando exatamente conheci Helga. Só sei que 
sua beleza me surgiu inicialmente da cintura para cima atrás do balcão da 
farmácia, se assim podemos chamar àquele casebre de madeira enegrecida, 
toscamente erguido no meio das ruínas do sudeste industrial de Düsseldorf. Sua 
beleza, foi sua beleza o que de início me impressionou. E depois, seu recato, sua 
doçura naquele mundo de fim do mundo. Passando pela farmácia, não houve vez 
que não a visse ereta e séria, vendendo aspirina e as tais latinhas de pomada 
fabricada pelo pai, o velho Wolf, um verdadeiro caco aos quarenta anos, andando 
quilômetros em busca de mercadoria: vidrinhos de iodo e alguns metros de gaze. 
Foi o velho quem primeiro me falou da penicilina e do quanto um negócio 
desses poderia render. Até então eu vendia para Helga algumas latas de leite em 
pó e de veneno para rato. Também me lembro muito de um outro pormenor: a lata 
de leite tinha uma risonha vaquinha no rótulo e a outra tinha um rato negro, morto, 
dependurado pelo rabo por um longo fio. Quero ser verdadeiro quando digo que 
não me importei ao ver meu lucro diminuído devido à perda de tempo em vender-lhe 
as ninharias que podia comprar. O prazer de vê-la era tão grande que me 
sentia compensado quando ouvia sua voz calma, harmoniosa como os seus gestos 
que por sinal eram raros. Não procurava, então, a mulher. Durante meses a caça à 
comida utilizava quase toda a imaginação e energia de que sou capaz, qualquer 
preocupação com mulher se dissipava nessa caça. Foi só numa segunda fase que 
relacionei a beleza de Helga com o desejo. Já sabia então da sua perna, ela 
mesma me contou quando recusou-se a me acompanhar a um local de danças, 
improvisado nos escombros do museu. Fiz o convite quando fui cedo à farmácia, 
soubera das danças e não vi melhor oportunidade para sair com ela. Estava como 
sempre detrás do balcão mas assim que lhe falei em dançarmos teve um 
movimento de fuga enquanto uma nuvem preta pareceu baixar sobre seu rosto tão 
limpo. Mas logo espantou a nuvem e sorriu quase natural quando confessou que 
não podia dançar as valsas que lá tocavam, tinha uma perna só. Aquela noite 
pensei muito na mutilação de Helga, mutilação antiga, pois ela perdera a perna e o 
resto da família, menos o pai, no primeiro bombardeio de Hamburgo. Na mesma 
ocasião o velho Wolf perdera também a farmácia, a primeira, pois a segunda e a 
terceira foram destruídas em Düsseldorf. Ainda era rico depois da tragédia de 
Hamburgo e a prova disso é que montou em seguida mais essas duas farmácias. 
Outra prova de que tivera dinheiro foi a magnífica perna ortopédica que comprou 
para a filha, daquelas que durante a guerra eram reservadas para heróis 
excepcionais, membros graúdos do Partido Nacional-Socialista ou oficiais 
superiores. Fora desse tipo de gente só os muito ricos podiam comprar uma perna 
igual. Não pude então deixar de sentir um certo espanto quando vi Helga sair 
andando detrás do balcão, mancando um pouco, é certo, mas discretamente, com
uma lentidão que combinava com seu feitio. Imaginara-a plantada numa perna só, 
apoiada em muletas ou numa bengala, dando saltos penosos… E cheguei a dizer-lhe 
que num vestido de noite ninguém notaria a perna artificial. Ela então baixou 
os grandes olhos claros. 
No dia seguinte era domingo e Helga concordou em sair comigo. Eu podia 
emprestar o jipe do sargento americano mas a tarde estava tão agradável que ela 
preferiu que fôssemos mesmo a pé. À noite — era uma noite estrelada — 
jantamos, ela, o pai e eu, uma lata de rosbife e outra de milho que desviara do 
meu comércio. Senti-me generoso, bom. Foi aí que o velho Wolf me falou da 
penicilina. Na cara devastada do farmacêutico vi como seus olhos azuis, iguais aos 
da filha, coruscavam de entusiasmo ao imaginar o negócio. Ele tinha o cálculo fácil 
e claramente demonstrou que três meses de tráfico de penicilina eram o suficiente 
para juntar uma pequena fortuna. Havia apenas dois problemas a enfrentar: o 
primeiro era o risco, mas não tão grande assim, na pior das hipóteses um par de 
anos na cadeia, se tanto. A segunda dificuldade, a maior, era a mesma de qualquer 
negócio: o capital inicial. E para tudo, uma condição indispensável, a rapidez. Esses 
grandes negócios só funcionariam durante uns seis meses, no máximo. Depois, a 
eficiência combinada de americanos, russos e dos próprios alemães iria pôr tudo 
nos eixos e qualquer empreendimento se tornaria rotineiro, lento. Com os ingleses, 
nem pensar. A coisa do lado de cá tinha que ser feita mesmo com os americanos e 
sem demora. O velho se ramificava em considerações mas minha atenção se 
concentrava em Helga, a doce Helga que eu já beijara naquela tarde. Foi então 
meio distraidamente que ouvi o que ele disse? Pois sim. Naquela noite e no dia 
seguinte não pensei noutra coisa. Pedi pormenores e ele me falou num certo 
major-médico, chegamos até a procurar o homem mas ele fora transferido para 
Hamburgo. E o capital? Via o velho diariamente e ficávamos falando, falando… E o 
capital? Foram dias de tanta inquietação, a tal ponto fiquei seduzido pela ideia que 
meu pequeno comércio começou a declinar. Via o velho e via Helga, com ela 
também falava demais e de repente falei em casamento. 
Como é difícil reconstituir os acontecimentos! Lembrar o ano em que tudo 
aconteceu já exige esforço. Distribuir os fatos pelos meses não consigo. Mas 
ordenar os sentimentos é para mim totalmente impossível. Revivo o tempo da 
contemplação de sua beleza e depois os instantes de fundo desejo. E lembro muito 
do casamento. Quanto ao amor por Helga, afirma o analista que não passa de um 
recurso autopunitivo que resolvi imaginar. O fato é que me casei e na própria 
madrugada de núpcias fugi para Hamburgo levando a perna ortopédica que em 
seguida vendi. De posse do capital inicial, não foi difícil encontrar o tal major e no 
tempo previsto pelo velho Wolf, seis meses mais ou menos, fiz fortuna. 
Daí por diante não foi mais possível dizer que as férias nazistas na Alemanha 
foram episódios fortuitos na vida de um jovem de Vila Corinto. Paul Karsten 
cometeu seu crime de guerra, pessoal e por conta própria, mas fora do lugar e com 
a pessoa errada. O ato de raça de senhor alemão aprendido nas aulas floridas dos
cursos de 1936 foi praticado em plena paz por um pobre rapaz brasileiro contra 
uma pobre moça alemã. Engano ainda pensar que o fim de Paul Karsten foi uma 
solução. Alguns anos mais tarde, Paulo Silva Filho voltou para o Brasil anistiado e 
rico, mas voltou um homem de pouca fé e imaginação amortecida. A única maneira 
que encontrou de expiar o crime do jovem Paul foi tornar-se um cidadão exemplar. 
Hoje, o analista explica que simplesmente procuro e encontro, na insipidez da 
virtude, a punição de Paul Karsten e de seus camaradas.
O Moço do Saxofone 
Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia 
contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal 
madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha 
inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que 
engolia giletes e que foi meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. 
Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando 
os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona 
que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um 
sanduíche, enfiou o palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito 
que eu podia ver até o que o palito ia cavoucando. Bom, mas eu dizia que no tal 
frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse 
ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas 
pernas da gente. E tinha a música do saxofone. 
Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é 
charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do 
recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, 
não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o 
diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara 
tocava. 
— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de 
pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão 
forte chegava a música até nossa mesa. — Quem é que está tocando? 
— É o moço do saxofone. 
Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da 
pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China. 
— E o quarto dele fica aqui em cima? 
James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a 
boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um 
bocado de tempo a fumaça antes de responder. 
— Aqui em cima. 
Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já 
estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que 
ele desse cabo da batata enquanto ia enchendo meu garfo. 
— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo. 
— A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o 
miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia
inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se 
deita com tudo quanto é cristão que aparece. 
— Deitou com você? 
— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei 
com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo 
o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se 
cortar… 
Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a 
tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com 
uma mão tapando, os sons esprimidos saindo por entre os dedos. Então me 
lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na 
vila, mas não aguentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei 
ela na carroceria e corri como louco para chegar o quanto antes, apavorado com a 
ideia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para 
não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor 
que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me 
endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora. 
— Parece gente pedindo socorro — eu disse enchendo meu copo de cerveja. — 
Será que ele não tem uma música mais alegre? 
James encolheu o ombro. 
— Chifre dói. 
Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num 
bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher. 
— Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me 
mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na 
vida de ninguém, mas era melhor ouvir o trololó do James do que o saxofone. 
— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um 
palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone. 
— E os outros não reclamam? 
— A gente já se acostumou. 
Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a 
escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei 
com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado, 
dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de 
roupa, pensei meio espantado porque tinha sido rápido demais. E já descia a 
escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. 
Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois 
minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões 
louros e de cabelo repartidinho do lado.
— Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame e ela riu. 
— Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas… 
Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas 
cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me 
enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, 
palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de 
esbarrar em mim. 
— Licença? 
Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do 
saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, 
mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho 
não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos 
começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e 
apareceu uma covinha no queixo. Pomba, tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo 
queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto. 
— A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava. 
— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — 
avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona 
de vermelho. — O senhor gostou da comida? 
Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda 
um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de 
roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um 
prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma 
briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela 
entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como 
dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a 
tocar. 
— Sim senhor — eu disse e James pensou que estivesse falando na tal briga. 
— O pior é que fiquei de porre, mal pude me defender! 
Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os 
outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio. 
— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca? 
James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. 
Decerto preferia o assunto do parque. 
— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, 
tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um 
outro já tinha acabado com a vida dela! 
Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De 
novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais
para quem. 
— Não topo isso, pomba. 
— Isso o quê? 
Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e 
eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o 
prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação. 
— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa 
com um pano encardido como a cara dele. 
— Feito agora. 
Pela cara vi que era mentira. 
— Não é preciso, tomo na esquina. 
A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para a porta porque tive o 
pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o arzinho de gata de 
telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que 
o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. 
Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua. 
— Sim senhor! 
— Sim senhor o quê? — perguntou James. 
— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim 
que ela aparece, ele para. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa. 
James pediu outra cerveja. Olhou para o teto. 
— Mulher é o diabo… 
Levantei-me e quando passei junto da mesa dela atrasei o passo. Então ela 
deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos. 
— Ora, não precisava se incomodar… 
Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume. 
— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem? 
— É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe. 
Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava 
ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar 
se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, 
chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas 
cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me 
preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. 
Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve 
e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava 
um moço segurando o saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de 
camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem
nada, só me olhava. 
— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse com uma voz que até hoje não 
sei onde fui buscar. 
O moço apertou o saxofone contra o peito cavado. 
— É na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça. 
Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se 
pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro. 
— Está servido? 
— Obrigado, não posso fumar. 
Fui recuando de costas. E de repente não aguentei. Se ele tivesse feito 
qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta 
calma me fez perder as tramontanas. 
— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma 
boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, 
eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer 
que você não faz nada? 
— Eu toco saxofone. 
Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão 
branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, 
de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse 
para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de 
começar com os malditos uivos. 
Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a 
mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda 
um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a 
decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei? E então? Foi 
quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, 
pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num 
impermeável, desviei de outro que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. 
Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não 
chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu 
meio desembestado, num arranco.
Antes do Baile Verde 
O rancho azul e branco desfilava com seus passistas vestidos à Luís xv e sua porta-estandarte 
de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na 
testa, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro 
do bumbo fez uma profunda reverência diante das duas mulheres debruçadas na 
janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo rodar a capa 
encharcada de suor. 
— Ele gostou de você — disse a jovem voltando-se para a mulher que ainda 
aplaudia. — O cumprimento foi na sua direção, viu que chique? 
A preta deu uma risadinha. 
— Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinião. E já 
deve estar chegando, ficou de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele 
começa a encher a caveira e pronto, não sai mais nada. 
A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa de cabeceira. O quarto 
estava revolvido como se um ladrão tivesse passado por ali e despejado caixas e 
gavetas. 
— Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo… Tenha paciência, mas você 
vai me ajudar um pouquinho. 
— Mas você ainda não acabou? 
Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava 
biquíni e meias rendadas também verdes. 
— Acabei o quê! Falta pregar tudo isso ainda, olha aí… Fui inventar um raio de 
pierrete dificílima! 
A preta aproximou-se, alisando com as mãos o quimono de seda brilhante. 
Espetado na carapinha trazia um crisântemo de papel crepom vermelho. Sentou-se 
ao lado da moça. 
— O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A 
gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos. 
— Tem tempo, sossega — atalhou a jovem. Afastou os cabelos que lhe caíam 
nos olhos. Levantou o abajur que tombou na mesinha. — Não sei como fui me 
atrasar desse jeito. 
— Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile! 
— E quem está dizendo que você vai perder? 
A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-o de leve nas lantejoulas do 
pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando 
uma constelação desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e
delicadamente tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote, fixando-a com 
pequenos movimentos circulares. 
— Mas se tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote… 
— Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a 
coisa pela metade, vê se entende! Você ajudando vai num instante, já me pintei, 
olha aí, que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa! Hein?… Que tal? 
— Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde você está parecendo uma 
alcachofra, tão gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito. 
Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor. 
Passou o dorso da mão na face afogueada. 
— Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É um baile verde, as fantasias 
têm que ser verdes, tudo verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos, não 
pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta mais da metade, Lu! 
— Estou sem óculos, não enxergo direito sem os óculos. 
— Não faz mal — disse a jovem limpando no lençol o excesso de cola que lhe 
escorreu pelo dedo. — Vá grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém vai 
reparar, vai ter gente à beça. O que está me endoidando é este calor, não aguento 
mais, tenho a impressão de que estou me derretendo, você não sente? Calor 
bárbaro! 
A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a 
testa e baixou o tom de voz. 
— Estive lá. 
— E daí? 
— Ele está morrendo. 
Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Alguns meninos puseram-se 
a cantar aos gritos, o compasso marcado pelas batidas numa panela: A coroa do 
rei não é de ouro nem de prata… 
— Parece que estou num forno — gemeu a jovem dilatando as narinas 
porejadas de suor. — Se soubesse, teria inventado uma fantasia mais leve. 
— Mais leve do que isso? Você está quase nua, Tatisa. Eu ia com a minha 
havaiana, mas só porque aparece um pedaço da coxa o Raimundo implica. Imagine 
você então… 
Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na renda 
da meia. Deixou-a cair na pequena constelação que ia armando na barra do saiote 
e ficou raspando pensativamente um pingo ressequido de cola que lhe caíra no 
joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum. Falou num tom 
sombrio: 
— Você acha, Lu?
— Acha o quê? 
— Que ele está morrendo? 
— Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já 
sei como é. Ele não passa desta noite. 
— Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que 
estava nas últimas… E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante. 
— Radiante? — espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios 
pintados de vermelho-violeta. — E depois, eu não disse não senhora que ele ia 
morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, 
Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo. 
— Mas quando fui lá ele estava dormindo tão calmo, Lu. 
— Aquilo não é sono. É outra coisa. 
Afastando bruscamente o saiote aberto nos joelhos, a jovem levantou-se. Foi 
até a mesa, pegou a garrafa de uísque e procurou um copo em meio da desordem 
dos frascos e caixas. Achou-o debaixo da esponja de arminho. Soprou o fundo cheio 
de pó de arroz e bebeu em largos goles, apertando os maxilares. Respirou de boca 
aberta. Dirigiu-se à preta. 
— Quer? 
— Tomei muita cerveja, se misturo dá ânsia. 
A jovem despejou mais uísque no copo. 
— Minha pintura não está derretendo? Veja se o verde dos olhos não borrou… 
Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver. 
— Você está bebendo demais. E nessa correria… Também não sei por que essa 
invenção de saiote bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas no aperto. E o 
pior é que não posso caprichar, com o pensamento no Raimundo lá na esquina… 
— Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque- 
taque! Esse cara não pode esperar um pouco? 
A mulher não respondeu. Ouvia com expressão deliciada a música de um bloco 
que passava já longínquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando… acabou 
chorando… 
— No outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti à grande. Meu 
sapato até desmanchou de tanto que dancei. 
— E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar. 
— E seu pai? 
Lentamente a jovem foi limpando no lenço as pontas dos dedos 
esbranquiçados de cola. Tomou um gole de uísque. Voltou a afundar o dedo no 
pote. 
— Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que
eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está 
querendo? — Ficou olhando para a ponta do dedo coberto de lantejoulas. Foi 
deixando no saiote o dedal cintilante. — Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, 
sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu? 
— Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso, 
ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender. 
— Mas você começa a dizer que ele está morrendo! 
— Pois está mesmo. 
— Está nada! Também espiei, ele está dormindo, ninguém morre dormindo 
daquele jeito. 
— Então não está. 
A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando 
de meninos brincava com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando 
água um na cara do outro. Interromperam a brincadeira para vaiar um homem que 
passou vestido de mulher, pisando para fora nos sapatos de saltos altíssimos. 
“Minha lindura, vem comigo, minha lindura!”, gritou o moleque maior, correndo 
atrás do homem. Ela assistia à cena com indiferença. Puxou com força as meias 
presas aos elásticos do biquíni. 
— Estou transpirando feito um cavalo. Juro que se não tivesse me pintado, me 
metia agora num chuveiro, besteira a gente se pintar antes. 
— E eu não aguento mais de sede — resmungou a empregada arregaçando as 
mangas do quimono. — Ai! uma cerveja bem geladinha. Gosto mesmo é de 
cerveja, mas o Raimundo prefere cachaça. No ano passado ele ficou de porre os 
três dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de todos, 
representava um mar. Você precisava ver aquele monte de sereias enroladas em 
pérolas. Tinha pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem lá em cima, 
dentro de uma concha abrindo e fechando, a rainha do mar coberta de joias… 
— Você já se enganou uma vez — atalhou a jovem. — Ele não pode estar 
morrendo, não pode. Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão 
sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois 
sorriu. Você está bem papai?, perguntei e ele não respondeu mas vi que entendeu 
perfeitamente o que eu disse. 
— Ele se fez de forte, coitado. 
— De forte, como? 
— Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar. 
— Ih, como é difícil conversar com gente ignorante — explodiu a jovem, 
atirando no chão as roupas amontoadas na cama. Revistou os bolsos de uma calça 
comprida. — Você pegou meu cigarro? 
— Tenho minha marca, não preciso dos seus.
— Escuta, Luzinha, escuta — começou ela, ajeitando a flor na carapinha da 
mulher. — Eu não estou inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me 
reconheceu. Acho que nessa hora sentiu alguma dor porque uma lágrima foi 
escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. 
Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura… 
— Ele estava se despedindo. 
— Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você 
quer que seja hoje. Por que tem que repetir isso, por quê? 
— Você mesmo pergunta e não quer que eu responda. Não vou mentir, Tatisa. 
A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um pé de sapato. Agachou-se mais, 
roçando os cabelos verdes no chão. Levantou-se, olhou em redor. E foi-se 
ajoelhando devagarinho diante da preta. Apanhou o pote de cola. 
— E se você desse um pulo lá só para ver? 
— Mas você quer ou não que eu acabe isto? — a mulher gemeu exasperada, 
abrindo e fechando os dedos ressequidos de cola. — O Raimundo tem ódio de 
esperar, hoje ainda apanho! 
A jovem levantou-se. Fungou, andando rápido num andar de bicho na jaula. 
Chutou o sapato que encontrou no caminho. 
— Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem disse que não 
podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho 
jeito, não posso! Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de 
uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta! 
— Mas, Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso, até que ajudo 
muito sim senhora, como não? Todos esses meses quem é que tem aguentado o 
tranco? Não me queixo porque ele é muito bom, coitado. Mas tenha a santa 
paciência, hoje não! Já estou fazendo demais aqui plantada quando devia estar na 
rua. 
Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armário. Olhou-se no 
espelho. Beliscou a cintura. 
— Engordei, Lu. 
— Você, gorda? Mas você é só osso, menina. Seu namorado não tem onde 
pegar. Ou tem? 
Ela ensaiou com os quadris um movimento lascivo. Riu. Os olhos animaram-se: 
— Lu, Lu, pelo amor de Deus, acabe logo que à meia-noite ele vem me buscar. 
Mandou fazer um pierrô verde. 
— Também já me fantasiei de pierrô. Mas faz tempo. 
— Vem num Tufão, viu que chique? 
— Que é isso?
— É um carro muito bacana, vermelho. Mas não fique aí me olhando, depressa, 
Lu, você não vê que… — Passou ansiosamente a mão no pescoço. — Lu, Lu, por 
que ele não ficou no hospital?! Estava tão bem no hospital… 
— Hospital de graça é assim mesmo, Tatisa. Eles não podem ficar a vida 
inteira com um doente que não resolve, tem doente esperando até na calçada. 
— Há meses que venho pensando nesse baile. Ele viveu sessenta e seis anos. 
Não podia viver mais um dia? 
A preta sacudiu o saiote e examinou-o a uma certa distância. Abriu-o de novo 
no colo e inclinou-se para o pires de lantejoulas. 
— Falta só um pedaço. 
— Um dia mais… 
— Vem me ajudar, Tatisa, nós duas pregando vai num instante. 
Agora ambas trabalhavam num ritmo acelerado, as mãos indo e vindo do pote 
de cola ao pires e do pires ao saiote, curvo como uma asa verde pesada de 
lantejoulas. 
— Hoje o Raimundo me mata — recomeçou a mulher, grudando as lantejoulas 
meio ao acaso. Passou o dorso da mão na testa molhada. Ficou com a mão parada 
no ar. — Você não ouviu? 
A jovem demorou para responder. 
— O quê? 
— Parece que ouvi um gemido. 
Ela baixou o olhar. 
— Foi na rua. 
Inclinaram as cabeças irmanadas sob a luz amarela do abajur. 
— Escuta, Lu, se você pudesse ficar hoje, só hoje — começou ela num tom 
manso. Apressou-se: — Eu te daria meu vestido branco, aquele meu branco, sabe 
qual é? E também os sapatos, estão novos ainda, você sabe que eles estão novos. 
Você pode sair amanhã, você pode sair todos os dias, mas pelo amor de Deus, Lu, 
fica hoje! 
A empregada sorriu, triunfante. 
— Custou, Tatisa, custou. Desde o começo eu já estava esperando. Ah, mas 
hoje nem que me matasse eu ficava, hoje não. — O crisântemo caiu enquanto ela 
sacudia a cabeça. Prendeu-o com um grampo que abriu entre os dentes. — Perder 
esse desfile? Nunca! Já fiz muito — acrescentou sacudindo o saiote. — Pronto, pode 
vestir. Está um serviço porco mas ninguém vai reparar. 
— Eu podia te dar o casaco azul — murmurou a jovem, limpando os dedos no 
lençol. 
— Nem que fosse para ficar com meu pai eu ficava, ouviu isso, Tatisa? Nem
com meu pai, hoje não. 
Levantando-se de um salto, a moça foi até a garrafa e bebeu de olhos 
fechados mais alguns goles. Vestiu o saiote. 
— Brrrr! Esse uísque é uma bomba — resmungou, aproximando-se do espelho. 
— Anda, venha aqui me abotoar, não precisa ficar aí com essa cara. Sua chata. 
A mulher tateou os dedos por entre o tule. 
— Não acho os colchetes. 
A jovem ficou diante do espelho, as pernas abertas, a cabeça levantada. Olhou 
para a mulher através do espelho: 
— Morrendo coisa nenhuma, Lu. Você estava sem os óculos quando entrou no 
quarto, não estava? Então não viu direito, ele estava dormindo. 
— Pode ser que me enganasse mesmo. 
— Claro que se enganou! Ele estava dormindo. 
A mulher franziu a testa, enxugando na manga do quimono o suor do queixo. 
Repetiu como um eco: 
— Estava dormindo, sim. 
— Depressa, Lu, faz uma hora que está com esses colchetes! 
— Pronto — disse a outra, baixinho, enquanto recuava até a porta. — Não 
precisa mais de mim, não é? 
— Espera! — ordenou a moça perfumando-se rapidamente. Retocou os lábios, 
atirou o pincel ao lado do vidro destapado. — Já estou pronta, vamos descer 
juntas. 
— Tenho que ir, Tatisa! 
— Espera, já disse que estou pronta — repetiu, baixando a voz. — Só vou 
pegar a bolsa… 
— Você vai deixar a luz acesa? 
— Melhor, não? A casa fica mais alegre assim. 
No topo da escada ficaram mais juntas. Olharam na mesma direção: a porta 
estava fechada. Imóveis como se tivessem sido petrificadas na fuga, as duas 
mulheres ficaram ouvindo o relógio da sala. Foi a preta quem primeiro se moveu. A 
voz era um sopro: 
— Quer ir dar uma espiada, Tatisa? 
— Vá você, Lu… 
Trocaram um rápido olhar. Bagas de suor escorriam pelas têmporas verdes da 
jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limão. O som prolongado de 
uma buzina foi-se fragmentando lá fora. Subiu poderoso o som do relógio. 
Brandamente a empregada desprendeu-se da mão da jovem. Foi descendo a
escada na ponta dos pés. Abriu a porta da rua. 
— Lu! Lu! — a jovem chamou num sobressalto. Continha-se para não gritar. — 
Espera aí, já vou indo! 
E apoiando-se ao corrimão, colada a ele, desceu precipitadamente. Quando 
bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na 
mesma direção, como se quisessem alcançá-la.
A Caçada 
A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panos 
embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou 
numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou voo e foi chocar-se contra uma 
imagem de mãos decepadas. 
— Bonita imagem — disse. 
A velha tirou um grampo do coque e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar 
o grampo no cabelo. 
— É um São Francisco. 
Ele então se voltou lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no 
fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também. 
— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso. Pena que esteja nesse 
estado. 
O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la. 
— Parece que hoje está mais nítida… 
— Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície 
puída. — Nítida como? 
— As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela? 
A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O 
homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem. 
— Não passei nada. Por que o senhor pergunta? 
— Notei uma diferença. 
— Não, não passei nada, essa tapeçaria não aguenta a mais leve escova, o 
senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido — acrescentou 
tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. 
Teve um muxoxo: — Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. 
Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um 
comprador, mas ele insistiu tanto. Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos 
isso. E o tal moço nunca mais me apareceu. 
— Extraordinário… 
A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que 
acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o 
grampo. 
— Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a 
pena. Na hora que se despregar é capaz de cair em pedaços.
O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em 
que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?… 
Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, 
apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo 
caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas era apenas uma vaga 
silhueta cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o 
primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, 
à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta. 
O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor 
esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, 
destacavam-se manchas de um negro-violáceo que pareciam escorrer da folhagem, 
deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A 
touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas, que 
tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando 
o pano. 
— Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa. — 
É como se… Mas não está diferente? 
A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los. 
— Não vejo diferença nenhuma. 
— Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta… 
— Que seta? O senhor está vendo alguma seta? 
— Aquele pontinho ali no arco… 
A velha suspirou: 
— Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, 
essas traças dão cabo de tudo — lamentou disfarçando um bocejo. Afastou-se sem 
ruído com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído. — Fique aí à vontade, 
vou fazer um chá. 
O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. 
Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse 
caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas 
narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da 
madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda, 
aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde… Ou subia do chão? 
O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria 
sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por 
entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a 
caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas 
detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. 
Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para 
prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a
seta… A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como 
estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão 
no arco. 
Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora 
uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz 
sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os 
olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas 
tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original 
e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o 
contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só 
músculos e nervos apontando para a touceira. “Mas se detesto caçadas! Por que 
tenho que estar aí dentro?” 
Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa 
familiaridade medonha, se pudesse ao menos… E se fosse um simples espectador 
casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o 
quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. “Antes do aproveitamento 
da tapeçaria…”, murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço. 
Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara 
do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais 
nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da 
penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim 
vigoroso, rejuvenescido?… 
Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio 
ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse 
dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na 
mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou 
a lembrança do frio da tapeçaria? “Que loucura!… E não estou louco”, concluiu num 
sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. “Mas não estou louco.” 
Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo 
de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando 
vislumbrar a tapeçaria lá no fundo. 
Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos 
escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro 
dos travesseiros, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: “Que seta? Não 
estou vendo nenhuma seta…”. Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das 
traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram 
numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que 
escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja 
o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso podia distinguir as 
serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. “Sou o caçador?” Mas 
em vez da barba encontrou a viscosidade do sangue.
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Objetos e memórias de um passado distante

  • 1.
  • 2.
  • 3. DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros, disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.Info ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível.
  • 4.
  • 5. Lygia Fagundes Telles Antes do Baile Verde Contos POSFÁCIO DE Antonio Dimas
  • 6. Para meu filho Goffredo
  • 7. Sumário ANTES DO BAILE VERDE Os Objetos Verde Lagarto Amarelo Apenas um Saxofone Helga O Moço do Saxofone Antes do Baile Verde A Caçada A Chave Meia-Noite em Ponto em Xangai A Janela Um Chá Bem Forte e Três Xícaras O Jardim Selvagem Natal na Barca A Ceia Venha Ver o Pôr do Sol Eu Era Mudo e Só As Pérolas O Menino SOBRE LYGIA FAGUNDES TELLES E ESTE LIVRO Posfácio — Garras de Veludo, Antonio Dimas Carta — Carlos Drummond de Andrade Depoimento — A Beleza Secreta da Vida, Urbano Tavares Rodrigues A Autora
  • 9. Os Objetos Finalmente pousou o olhar no globo de vidro e estendeu a mão. — Tão transparente. Parece uma bolha de sabão, mas sem aquele colorido de bolha refletindo a janela, tinha sempre uma janela nas bolhas que eu soprava. O melhor canudo era o de mamoeiro. Você também não brincava com bolhas? Hein, Lorena? Ela esticou entre os dedos um longo fio de linha vermelha preso à agulha. Deu um nó na extremidade da linha e, com a ponta da agulha, espetou uma conta da caixinha aninhada no regaço. Enfiava um colar. — Que foi? Como não viesse a resposta, levantou a cabeça. Ele abria a boca, tentando cravar os dentes na bola de vidro. Mas os dentes resvalavam, produzindo o som fragmentado de pequenas castanholas. — Cuidado, querido, você vai quebrar os dentes! Ele rolou o globo até a face e sorriu. — Aí eu compraria uma ponte de dentes verdes como o mar com seus peixinhos ou azuis como o céu com suas estrelas, não tinha uma história assim? Que é que era verde como o mar com seus peixinhos? — O vestido que a princesa mandou fazer para a festa. Lentamente ele girou o globo entre os dedos, examinando a base pintalgada de cristais vermelhos e verdes. — Como um campo de flores. Para que serve isto, Lorena? — É um peso de papel, amor. — Mas se não está pesando em nenhum papel — estranhou ele, lançando um olhar à mesa. Pousou o globo e inclinou-se para a imagem de um anjo dourado, deitado de costas, os braços abertos. — E este anjinho? O que significa este anjinho? Com a ponta da agulha ela tentava desobstruir o furo da conta de coral. Franziu as sobrancelhas. — É um anjo, ora. — Eu sei. Mas para que serve? — insistiu. E apressando-se antes de ser interrompido: — Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso de papel sem papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido nenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a viver como nós, muito mais importantes do que nós, porque continuam. O cinzeiro recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impõe, esse colar que você
  • 10. está enfiando… É um colar ou um terço? — Um colar. — Podia ser um terço? — Podia. — Então é você que decide. Este anjinho não é nada, mas se toco nele vira anjo mesmo, com funções de anjo. — Segurou-o com força pelas asas. — Quais são as funções de um anjo? Ela deixou cair na caixa a conta obstruída e escolheu outra. Experimentou o furo com a ponta da agulha. — Sempre ouvi dizer que anjo é o mensageiro de Deus. — Tenho então uma mensagem para Deus — disse ele e encostou os lábios na face da imagem. Soprou três vezes, cerrou os olhos e moveu os lábios murmurejantes. Tateou-lhe as feições como um cego. — Pronto, agora sim, agora é um anjo vivo. — E o que foi que você disse a ele? — Que você não me ama mais. Ela ficou imóvel, olhando. Inclinou-se para a caixinha de contas. — Adianta dizer que não é verdade? — Não, não adianta. — Colocou o anjo na mesa. E apertou os olhos molhados de lágrimas, de costas para ela e inclinado para o abajur. — Veja, Lorena, veja… Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso… Eles precisam ser olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio, vazio. É o peso de papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, fico aquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito? — perguntou e tomou a adaga entre as mãos. Voltou-se, subitamente animado. — É árabe, hein, Lorena? Uma meia-lua de prata tão aguda… Fui eu que descobri esta adaga, lembra? Estava na vitrina, quase escondida debaixo de uma bandeja, lembra? Ela tomou entre as pontas dos dedos o fio de coral e balançou-o num movimento de rede. — Ah, não fale isso! Se você soubesse como gostei daquela bandeja, acho que nunca mais vou gostar de uma coisa assim… Se pudesse, tomava já um avião, voltava lá no antiquário do grego barbudo e saía com ela debaixo do braço. As alças eram cobrinhas se enroscando em folhas e cipós, umas cobrinhas com orelhas, fiquei apaixonada pelas cobrinhas. — Mas por que você não comprou? — Era caríssima, amor. Nossos dólares estavam no fim, o pouco que restou só
  • 11. deu para essas bugigangas. — Fale baixo, Lorena, fale baixo! — suplicou ele num tom que a fez levantar a cabeça num sobressalto. Tranquilizou-se quando o viu sacudindo as mãos, afetando pânico. — Chamar a adaga e o anjo de bugigangas, que é isso! O anjo vai correndo contar para Deus. — Não é um anjo intrigante — advertiu, encarando-o. — E antes que me esqueça, você diz que se ninguém nos ama, viramos coisa fora de uso, sem nenhuma significação, certo? Pois saiba o senhor que muito mais importante do que sermos amados é amar, ouviu bem? É o que nos distingue desse peso de papel que você vai fazer o favor de deixar em cima da mesa antes que quebre, sim? — O vidro já está ficando quente — disse e fechou o globo nas mãos. Levou-o ao ouvido, inclinou a cabeça e falou brandamente como se ouvisse o que foi dizendo: — Quando eu era criança, gostava de comer pasta de dente. — Que marca? — Qualquer marca. Tinha uma com sabor de hortelã, era ardido demais e eu chorava de sofrimento e gozo. Minha irmãzinha que tinha dois anos comia terra. Ela riu. — Que família! Ele riu também, mas logo ficou sério. Sentou-se diante dela, juntou as pernas e colocou o globo nos joelhos. Cercou-o com as mãos em concha, num gesto de proteção. Inclinou-se, bafejando sobre o globo. — Lorena, Lorena, é uma bola mágica! Voltada para a luz, ela enfiava uma agulha. Umedeceu a ponta da linha, ergueu a agulha na altura dos olhos estrábicos na concentração e fez a primeira tentativa. Falhou. Mordiscou de novo a linha e com um gesto incisivo foi aproximando a linha da agulha. A ponta endurecida do fio varou a agulha sem obstáculo. — A cópula. — Que foi? — perguntou ela, relaxando os músculos. Voltou-se satisfeita para a caixa de contas. — Que foi, amor? Ele cobriu o globo com as mãos. Bafejou sobre elas. — É uma bola de cristal, Lorena — murmurou com voz pesada. Suspirou gravemente. — Por enquanto só vejo assim uma fumaça, tudo tão embaçado… — Insista, Miguel. Não está clareando? — Mais ou menos… espera, a fumaça está sumindo, agora está tão mais claro, puxa, que nítido! O futuro, Lorena, estou vendo o futuro! Vejo você numa sala… é esta sala! Você está de vermelho, conversando com um homem. — Que homem?
  • 12. — Espera, ele ainda está um pouco longe… Agora vejo, é seu pai. Ele está aflito e você procura acalmá-lo. — Por que está aflito? — Porque ele quer que você me interne e você está resistindo, mas tão sem convicção. Você está cansada, Lorena querida, você está quase chorando e diz que estou melhor, que estou melhor… Ela endureceu a fisionomia. Limpou a unha com a ponta da agulha. — E daí? — Daí seu pai disse que não melhorei coisa nenhuma, que não há esperança — repetiu ele inclinando-se, as mãos nos olhos em posição de binóculo postado no globo. — Espera, está entrando alguém de modo tão esquisito… eu, sou eu! Estou entrando de cabeça para baixo, andando com as mãos, plantei uma bananeira e não consegui voltar. Ela enrolou o fio de contas no pescoço, segurando firme a agulha para as contas não escaparem. Riu, alisando as contas. — Plantar bananeira justo nessa hora, amor? Por que você não ficou comportadinho? Hum?… E o que foi que meu pai fez? — Baixou a cabeça para não me ver mais. Você então me olhou, Lorena. E não achou nenhuma graça em mim. Antes você achava. Vagarosamente ela foi recolhendo o fio. Deslizou as pontas dos dedos pelas contas maiores, alinhando-as. — Fico sempre com medo que você desabe e quebre o vaso, os copos. E depois, cai tudo dos seus bolsos, uma desordem. Ele recolocou o peso na mesa. Encostou a cabeça na poltrona e ficou olhando para o teto. — Tinha um lustre na vitrina do antiquário, lembra? Um lustre divertido, cheio de pingentes de todas as cores, uns cristaizinhos balançando com o vento, blim-blim… Estava ao lado da gravura. — Que gravura? — Aquela já carunchada, tinha um nome pomposo, Os Funerais do Amor, em italiano fica bonito, mas não sei mais como é em italiano. Era um cortejo de bailarinos descalços carregando guirlandas de flores, como se estivessem indo para uma festa. Mas não era uma festa, estavam todos tristes, os amantes separados e chorosos atrás do amor morto, um menininho encaracolado e nu, estendido numa rede. Ou num coche?… Tinha flores espalhadas pela estrada, o cortejo ia indo por uma estrada. Um fauno menino consolava a amante tão pálida, tão dolorida… Ela concentrou-se. — Esse quadro estava na vitrina?
  • 13. — Perto do lustre que fazia blim-blim. — Não sei, mas assim como você descreveu é triste demais. Juro que não gostaria de ter um quadro desses em casa. — Mais triste ainda era o anão. — Tinha um anão na gravura? — Não, ele não estava na gravura, estava perto. — Mas… era um anão de jardim? — Não, era um anão de verdade. — Tinha um anão na loja? — Tinha. Estava morto, um anão morto, de smoking, o caixão estava na vitrina. Luvas brancas e sapatinhos de fivela. Tudo nele era brilhante, novo, só as rosas estavam velhas. Não deviam ter posto rosas assim velhas. — Eram rosas brancas? — perguntou ela guardando o fio de contas na caixa. Baixou a tampa com um baque metálico. — Eram rosas brancas? — Brancas. — As rosas brancas murcham mais depressa. E fazia calor. Ele inclinou a cabeça para o peito e assim ficou, imóvel, os olhos cerrados, as pálpebras crispadas. O cigarro apagou-se entre seus dedos. — Lorena… — Hum? — Vamos tomar um chá. Um chá com biscoitos, quero biscoitos. Ela levantou-se. Fechou o livro que estava lendo. — Ótimo, faço o chá. Só que o biscoito acabou, posso arrumar umas torradas, bastante manteiga, bastante sal. Hum? — Eu vou comprar os biscoitos — disse ele, tomando-lhe a cabeça entre as mãos. — Minha linda Lorena. Biscoitos para a linda Lorena. Ela desvencilhou-se rápida. — Vou pôr água para ferver. Pega o dinheiro, está na minha bolsa. — No armário? — Não, em cima da cama, uma bolsa verde. Ele foi ao quarto, abriu a bolsa e ficou olhando para o interior dela. Tirou o lenço manchado de ruge. Aspirou-lhe o perfume. Deixou cair o lenço na bolsa, colocou-a com cuidado no mesmo lugar e voltou para a sala. Pela porta entreaberta da cozinha pôde ouvir o jorro da torneira. Saiu pisando leve. No elevador, evitou o espelho. Ficou olhando para os botões, percorrendo com o dedo um por um até chegar ao botão preto com a letra T, invisível de tão gasta. O elevador já descia e ele continuava com o dedo no botão, sem apertá-lo, mas
  • 14. percorrendo-o num movimento circular, acariciante. Quando ela gritou, só seus olhos se desviaram na direção da voz vindo lá de cima e tombando já meio apagada no poço. — Miguel, onde está a adaga?! Está me ouvindo, Miguel? A adaga! Ele abriu a porta do elevador. — Está comigo. O porteiro ouviu e foi-se afastando de costas. Teve um gesto de exagerada cordialidade. — Uma bela noite! Vai passear um pouco? Ele parou, olhou o homem. Apressou o passo na direção da rua.
  • 15. Verde Lagarto Amarelo Ele entrou com seu passo macio, sem ruído, não chegava a ser felino: apenas um andar discreto. Polido. — Rodolfo! Onde está você?… Dormindo? — perguntou quando me viu levantar da poltrona e vestir a camisa. Baixou o tom de voz. — Está sozinho? Ele sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sempre estou sozinho. — Estava lendo. — Dostoiévski? Fechei o livro e não pude deixar de sorrir. Nada lhe escapava. — Queria lembrar uma certa passagem… Só que está quente demais, acho que este é o dia mais quente desde que começou o verão. Ele deixou a pasta na cadeira e abriu o pacote de uvas roxas. — Estavam tão maduras, olha só que beleza — disse tirando um cacho e balançando-o no ar como um pêndulo. — Prova! Uma delícia. Com um gesto casual, atirei meu paletó em cima da mesa, cobrindo o rascunho de um conto que começara naquela manhã. — Já é tempo de uvas? — perguntei colhendo um bago. Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto. — Trouxe também uma coisa… Mostro depois. Encarei-o. Quando ele sorria ficava menino outra vez. Seus olhos tinham o mesmo brilho úmido das uvas. — Que coisa? — Mas se eu já disse que é surpresa! Mostro depois. Não insisti. Conhecia de sobra aquela antiga expressão com que vinha me anunciar que tinha algo escondido no bolso ou debaixo do travesseiro. Acabava sempre por me oferecer seu tesouro: a maçã, o cigarro, a revistinha pornográfica, o pacote de suspiros, mas antes ficava algum tempo me rondando com aquele ar de secreto deslumbramento. — Vou fazer um café — anunciei. — Só se for para você, tomei há pouco na esquina. Era mentira. O bar da esquina era imundo e para ele o café fazia parte de um
  • 16. ritual nobre, limpo. Dizia isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar. — Na esquina? — Quando comprei as uvas… Meu irmão. O cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua. E aquela cor nas pupilas. — Mamãe achava que seus olhos eram cor de violeta. — Cor de violeta? — Foi o que ela disse à tia Débora, meu filho Eduardo tem os olhos cor de violeta. Ele tirou o paletó. Afrouxou a gravata. — Como é que são olhos cor de violeta? — Cor de violeta — eu respondi abrindo o fogareiro. Ele riu apalpando os bolsos do paletó até encontrar o cigarro. — Meu Deus, tinha um canteiro de violetas no jardim de casa… Não eram violetas, Rodolfo? — Eram violetas. — E uma parreira, lembra? Nunca conseguimos um cacho maduro daquela parreira — disse amarfanhando com um gesto afetuoso o papel das uvas. — Até hoje não sei se eram doces. Eram doces? — Também não sei, você não esperava amadurecer. Vagarosamente ele tirou as abotoaduras e foi dobrando a manga da camisa com aquela arte toda especial que tinha de dobrá-la sem fazer rugas, na exata medida do punho. Os braços musculosos de nadador. Os pelos dourados. Fiquei a olhar as abotoaduras que tinham sido do meu pai. — A Ofélia quer que você almoce domingo com a gente. Ela releu seu romance e ficou no maior entusiasmo, gostou ainda mais do que da primeira vez, você precisa ver com que interesse analisou as personagens, discutiu os detalhes… — Domingo já tenho um compromisso — eu disse enchendo a chaleira de água. — E sábado? Não me diga que sábado você também não pode. Aproximei-me da janela. O sopro do vento era ardente como se a casa estivesse no meio de um braseiro. Respirei de boca aberta agora que ele não me via, agora que eu podia amarfanhar a cara como ele amarfanhara o papel. Esfreguei nela o lenço, até quando, até quando?!… E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar nada, não quero saber de nada! Fecho os olhos. Está amanhecendo e o sol está longe, tem brisa na campina, cascata, orvalho gelado deslizando na corola, chuva fina no meu cabelo, a
  • 17. montanha e o vento, todos os ventos soprando. Os ventos! Vazio. Imobilidade e vazio. Se eu ficar assim imóvel, respirando leve, sem ódio, sem amor, se eu ficar assim um instante, sem pensamento, sem corpo… — E sábado? Ela quer fazer aquela torta de nozes que você adora. — Cortei o açúcar, Eduardo. — Mas saia um pouco do regime, você emagreceu, não emagreceu? — Ao contrário, engordei. Não está vendo? Estou enorme. — Não é possível! Assim de costas você me pareceu tão mais magro, palavra que eu já ia perguntar quantos quilos você perdeu. Agora a camisa se colava ao meu corpo. Limpei as mãos viscosas no peitoril da janela e abri os olhos que ardiam, o sal do suor é mais violento do que o sal das lágrimas. “Esse menino transpira tanto, meus céus! Acaba de vestir roupa limpa e já começa a transpirar, nem parece que tomou banho. Tão desagradável!…” Minha mãe não usava a palavra suor que era forte demais para seu vocabulário, ela gostava das belas palavras. Das belas imagens. Delicadamente falava em transpiração com aquela elegância em vestir as palavras como nos vestia. Com a diferença que Eduardo se conservava limpo como se estivesse numa redoma, as mãos sem poeira, a pele fresca. Podia rolar na terra e não se conspurcava, nada chegava a sujá-lo realmente porque mesmo através da sujeira podia se ver que estava intacto. Eu não. Com a maior facilidade me corrompia lustroso e gordo, o suor a escorrer pelo pescoço, pelos sovacos, pelo meio das pernas. Não queria suar, não queria mas o suor medonho não parava de escorrer manchando a camisa de amarelo com uma borda esverdinhada, suor de bicho venenoso, traiçoeiro, malsão. Enxugava depressa a testa, o pescoço, tentava num último esforço salvar ao menos a camisa. Mas a camisa já era uma pele enrugada aderindo à minha com meu cheiro, com a minha cor. Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar mais. — Na noite passada sonhei com nossa antiga casa — disse ele aproximando-se do fogareiro. Destapou a chaleira, espiou dentro. — Não me lembro bem mas parece que a casa estava abandonada, foi um sonho estranho… — Também sonhei com a casa mas já faz tempo — eu disse. Ele aproximou-se. Esquivei-me em direção ao armário. Tirei as xícaras. — Mamãe apareceu no seu sonho? — perguntou ele. — Apareceu. O pai tocava piano e mamãe… Rodopiávamos vertiginosos numa valsa e eu era magro, tão magro que meus pés mal roçavam o chão, senti mesmo que levantavam voo e eu ria enlaçando-a em volta do lustre quando de repente o suor começou a escorrer, escorrer. — Ela estava viva? Seu vestido branco se empapava do meu suor amarelo-verde mas ela
  • 18. continuava dançando, desligada, remota. — Estava viva, Rodolfo? — Não, era uma valsa póstuma — eu disse colocando na frente dele a xícara perfeita. Reservei para mim a que estava rachada. — Está reconhecendo essa xícara? Ele tomou-a pela asa. Examinou-a. Sua fisionomia se iluminou com a graça de um vitral varado pelo sol. — Ah!… as xicrinhas japonesas. Sobraram muitas ainda? O aparelho de chá, o faqueiro, os cristais e os tapetes tinham ficado com ele. Também os lençóis bordados, obriguei-o a aceitar tudo. Ele recusava, chegou a se exaltar, “Não quero, não é justo, não quero! Ou você fica com a metade ou então não aceito nada! Amanhã você pode se casar também…”. Nunca, respondi. Moro só, gosto de tudo sem nenhum enfeite, quanto mais simples melhor. Ele parecia não ouvir uma só palavra enquanto ia amontoando os objetos em duas porções, “Olha, isto você leva que estava no seu quarto…”. Tive que recorrer à violência. Se você teimar em me deixar essas coisas, assim que você virar as costas jogo tudo na rua! Cheguei a agarrar uma jarra, No meio da rua! Ele empalideceu, os lábios trêmulos. “Você jamais faria isso, Rodolfo. Cale-se, por favor, que você não sabe o que está dizendo.” Passei as mãos na cara ardente. E a voz da minha mãe vindo das cinzas: “Rodolfo, por que você há de entristecer seu irmão? Não vê que ele está sofrendo? Por que você faz assim?!”. Abracei-o. Ouça, Eduardo, sou um tipo mesmo esquisito, você está farto de saber que sou meio louco. Não quero, não sei explicar mas não quero, está me entendendo? Leve tudo à Ofélia, presente meu. Não posso dar a vocês um presente de casamento? Para não dizer que não fico com nada, olha… está aqui, pronto, fico com essas xícaras! — Finas como casca de ovo — disse ele batendo com a unha na porcelana. — Ficavam na prateleira do armário rosado, lembra? Esse armário está na nossa saleta. Despejei água fervente na caneca. O pó de café foi se diluindo resistente, difícil. Minha mãe. Depois, Ofélia. Por que não haveria de ficar também com os lençóis? — E Ofélia? Para quando o filho? Ele apanhou a pilha de jornais velhos que estavam no chão, ajeitou-a cuidadosamente e esboçou um gesto de procura, devia estar sentindo falta de um lugar certo para serem guardados os jornais já lidos. Teve uma expressão de resignado bom humor, mas então a desordem do apartamento comportava um móvel assim supérfluo? Enfiou a pilha na prateleira da estante e voltou-se para mim. Ficou me seguindo com o olhar enquanto eu procurava no armário debaixo da pia a lata onde devia estar o açúcar. Uma barata fugiu atarantada, escondendo-se debaixo de uma tampa de panela e logo uma outra maior se despencou não sei de
  • 19. onde e tentou também o mesmo esconderijo. Mas a fresta era estreita e ela mal conseguiu esconder a cabeça, ah, o mesmo humano desespero na procura de um abrigo. Abri a lata de açúcar e esperei que ele dissesse que havia um novo sistema de acabar com as baratas, era facílimo, bastava chamar pelo telefone e já aparecia o homem de farda cáqui e bomba em punho e num segundo pulverizava tudo. Tinha em casa o número do telefone, nem baratas nem formigas. — No próximo mês, parece. Está tão lépida que nem acredito que esteja nas vésperas — disse ele me contornando pelas costas. Não perdia um só dos meus movimentos. — E adivinha agora quem vai ser o padrinho. — Que padrinho? — Do meu filho, ora! — Não tenho a menor ideia. — Você. Minha mão tremia como se ao invés de açúcar eu estivesse mergulhando a colher em arsênico. Senti-me infinitamente mais gordo. Mais vil. Tive vontade de vomitar. — Não faz sentido, Eduardo. Não acredito em Deus, não acredito em nada. — E daí? — perguntou ele, servindo-se de mais açúcar ainda. Atraiu-me quase num abraço. — Fique tranquilo, eu acredito por nós dois. Tomei de um só trago o café amargo. Uma gota de suor pingou no pires. Passei a mão pelo queixo. Não pudera ser pai, seria padrinho. Não era um ser amável? Um casal amabilíssimo. A pretexto de aquecer o café, fiquei de costas e então esfreguei furtivamente o pano de prato na cara. — Era essa a surpresa? — perguntei e ele me olhou com inocência. Repeti a pergunta: — A surpresa! Quando chegou você disse que… — Ah! não, não! Não é isso não — exclamou e riu apertando os olhos que riam também com uma ponta de malícia. — A surpresa é outra. Se der certo, Rodolfo, se der certo!… Enfim, você é quem vai decidir. Ponho nas suas mãos. Era exatamente a expressão da minha mãe quando vinha me preparar para uma boa notícia. Rondava, rondava e ficava me observando reticente, saboreando o segredo até o momento em que não resistia mais e contava. A condição era invariável: “Mas você vai me prometer que não vai comer nenhum doce durante uma semana, só uma semana!”. E se ele fosse morar longe? Podia tão bem se mudar de cidade, viajar. Mas não. Precisava ficar por perto, sempre em redor, me olhando. Desde pequeno, no berço já me olhava assim. Não precisaria me odiar, eu nem pediria tanto, bastava me ignorar, se ao menos me ignorasse. Era bonito, inteligente, amado, conseguiu sempre fazer tudo muito melhor do que eu, muito melhor do que os outros, em suas mãos as menores coisas adquiriam outra importância, como que se
  • 20. renovavam. E então? Natural que esquecesse o irmão obeso, malvestido, malcheiroso. Escritor, sim, mas nem aquele tipo de escritor de sucesso, convidado para festas, dando entrevistas na televisão: um escritor de cabeça baixa e calado, abrindo com as mãos em garra seu caminho. Se ao menos ele… mas não, claro que não, desde menino eu já estava condenado ao seu fraterno amor. Às vezes me escondia no porão, corria para o quintal, subia na figueira, ficava imóvel, um lagarto no vão do muro, pronto, agora não vai me achar. Mas ele abria portas, vasculhava armários, abria a folhagem e ficava rindo por entre lágrimas. Engatinhava ainda quando saía à minha procura, farejando meu rastro. “Rodolfo, não faça seu irmãozinho chorar, não quero que ele fique triste!” Para que ele não ficasse triste, só eu soube que ela ia morrer. “Você já é grande, você deve saber a verdade”, disse meu pai olhando reto nos meus olhos. “É que sua mãe não tem nem…” Não completou a frase. Voltou-se para a parede e ali ficou de braços cruzados, os ombros curvos. “Só eu e você sabemos. Ela desconfia mas de jeito nenhum quer que seu irmãozinho saiba, está entendendo?” Eu entendia. Na sua última festa de aniversário ficamos reunidos em redor da cama. “Laura é como o rei daquela história”, disse meu pai, dando-lhe de beber um gole de vinho. “Só que ao invés de transformar tudo em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo em beleza.” Com os olhos cozidos de tanto chorar, ajoelhei-me e fingindo arrumar-lhe o travesseiro, pousei a cabeça ao alcance da sua mão, ah, se me tocasse com um pouco de amor. Mas ela só via o broche, um caco de vidro que Eduardo achou no quintal e enrolou em fiozinhos de arame formando um casulo, “Mamãezinha querida, eu que fiz para você!”. Ela beijou o broche. E o arame ficou sendo prata e o caco de garrafa ficou sendo esmeralda. Foi o broche que lhe fechou a gola do vestido. Quando me despedi, apertei sua mão gelada contra minha boca, e eu, mamãe, e eu?… — Esqueci de oferecer biscoitos, olha aí, você gosta — eu disse tirando a lata do armário. — É sua empregada quem faz? — Minha empregada só vem uma vez por semana, comprei na rua — acrescentei e lancei-lhe um olhar. Que surpresa era essa agora? O que é que eu devia decidir? Eu devia decidir, ele disse. Mas o quê?… Interpelei-o: — Que é que você está escondendo, Eduardo? Não vai me dizer? Ele pareceu não ter ouvido uma só palavra. Quebrou a cinza do cigarro, soprou o pouco que lhe caiu na calça e inclinou-se para os biscoitos. — Ah!… rosquinhas. Ofélia aprendeu a fazer sequilhos no caderno de receitas da mamãe mas estão longe de ser como aqueles. Ele comia sequilhos quando entrei no quarto. Ao lado, a caneca de chocolate fumegante. Eu tinha tomado chá. Chá. Dei uma volta em redor dele. O Júlio já está na esquina esperando, avisei. Veio me dizer que tem que ser agora. Ele então se levantou, calçou a sandália, tirou o relógio de pulso e a correntinha do pescoço.
  • 21. Dirigiu-se para a porta com uma firmeza que me espantou. Vi-o ensanguentado, a roupa em tiras. Você é menor, Eduardo, você vai apanhar feito cachorro! Ele abriu os braços. “E daí? Quer que a turma me chame de covarde?” Sentei-me na cadeira onde ele estivera e ali fiquei encolhido, tomando o chocolate e comendo sequilhos. Tinha a boca cheia quando ouvi a voz da minha mãe chamando: “Rodolfo, Rodolfo!”. Agora ela o carregava em prantos, tentando arrancar-lhe o canivete enterrado no peito até o cabo. — Procurei seu romance em duas livrarias e não encontrei, queria dar a uns amigos. Está esgotado, Rodolfo? O vendedor disse que vende demais. — Exagero. Talvez se esgote mas não já. A boca cheia de sequilhos e o suor escorrendo por todos os poros, escorrendo. A voz da minha mãe insistiu enérgica: “Rodolfo, você está me ouvindo? Onde está o Eduardo?!”. Entrei no quarto dela. Estava deitada, bordando. Assim que me viu, sua fisionomia se confrangeu. Deixou o bordado e ficou balançando a cabeça. “Mas, filho, comendo de novo?! Quer engordar mais ainda? Hum?…” Suspirou, dolorido. “Onde está seu irmão?” Encolhi os ombros, Não sei, não sou pajem dele. Ela ficou me olhando. “Essa é maneira de me responder, Rodolfo? Hein?!…” Desci a escada comendo o resto dos sequilhos que escondi nos bolsos. O silêncio me seguiu descendo a escada degrau por degrau, colado ao chão, viscoso, pesado. Parei de mastigar. E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o canivete não! Encontrei-o sentado na sarjeta, a camisa rasgada, um arranhão fundo na testa. Sorriu palidamente. Ofegava. Júlio tinha acabado de fugir. Cravei o olhar no seu peito. Mas ele não usou o canivete? perguntei. Apoiando-se na árvore, levantou-se com dificuldade, tinha torcido o pé. “Que canivete?…” Baixando a cabeça que latejava, inclinei-me até o chão. Você não pode andar, eu disse apoiando as mãos nos joelhos. Vamos, monta em mim. Ele obedeceu. Estranhei, era tão magro, não era? Mas pesava como chumbo. O sol batia em cheio em nós enquanto o vento levantava as tiras da sua camisa rasgada. Vi nossa sombra no muro, as tiras se abrindo como asas. Enlaçou-me mais fortemente, encostou o queixo no meu ombro e teve um breve soluço, “Que bom que você veio me buscar…”. — Seu novo romance? — perguntou ele na maior excitação. Encontrara o rascunho em cima da mesa. — Posso ler, Rodolfo? Posso? Tirei-lhe as folhas das mãos e fechei-as na gaveta. Era o que me restara, escrever. Será possível que ele também?… — Não, não é possível, Eduardo — eu disse, tentando abrandar a voz. — Está tudo muito no início, trabalho mal no calor — acrescentei meio distraidamente. Olhei para sua pasta na cadeira e adivinhei a surpresa. Senti meu coração se fechar como uma concha. A dor era quase física. Olhei para ele. Você escreveu um
  • 22. romance. É isso? Os originais estão na pasta… É isso? Ele então abriu a pasta.
  • 23. Apenas um Saxofone Anoiteceu e faz frio. “Merde! voilà l’hiver” é o verso que segundo Xenofonte cabe dizer agora. Aprendi com ele que palavrão em boca de mulher é como lesma em corola de rosa. Sou mulher, logo, só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se possível, fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver como sou autêntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que se quisesse podia dizer as piores bandalheiras em grego antigo, o Xenofonte sabe grego antigo. E a lesma ficaria irreconhecível como convém a uma lesma numa corola de quarenta e quatro anos. Quarenta e quatro anos e cinco meses, meu Jesus. Foi rápido, não? Rápido. Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado muito nisso e sinto o próprio frio secular que vem do assoalho e se infiltra no tapete. Meu tapete é persa, todos meus tapetes são persas mas não sei o que fazem esses bastardos que não impedem que o frio se instale na sala. Fazia menos frio no nosso quarto, com as paredes forradas de estopa e o tapetinho de juta no chão, ele mesmo forrou as paredes e pregou retratos de antepassados e gravuras da Virgem de Fra Angelico, tinha paixão por Fra Angelico. Onde agora? Onde? Podia mandar acender a lareira mas despedi o copeiro, a arrumadeira, o cozinheiro — despedi um por um, me deu um desespero e mandei a corja toda embora, rua, rua! Fiquei só. Há lenha em algum lugar da casa mas não é só riscar o fósforo e tocar na lenha como se vê no cinema, o japonês ficava horas aí mexendo, soprando até o fogo acender. E eu mal tenho forças para acender o cigarro. Estou aqui sentada faz não sei quanto tempo. Desliguei o telefone, me enrolei na manta, trouxe a garrafa de uísque e estou aqui bebendo bem devagarinho para não ficar de porre, hoje não, hoje quero ficar lúcida, vendo uma coisa, vendo outra. E tem coisa à beça para ver tanto por dentro como por fora, ainda mais por fora, uma porrada de coisas que comprei no mundo inteiro, coisas que nem sabia que tinha e que só vejo agora, justo agora que está escuro. É que fomos escurecendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada, pretensiosa. E sobretudo rica, exorbitando de riqueza, abri um saco de ouro para o decorador se esbaldar nele. E se esbaldou mesmo, o viado. Chamava-se Renê e chegava logo cedinho com suas telas, veludos, musselinas, brocados, “Trouxe hoje para o sofá um pano que veio do Afeganistão, completamente divino! Di-vino!”. Nem o pano era do Afeganistão nem ele era tão viado assim, tudo mistificação, cálculo. Surpreendi-o certa vez sozinho, fumando perto da janela, a expressão fatigada de um ator que já está farto de representar. Assustou-se quando me viu, como se o tivesse apanhado em flagrante roubando um talher de prata. Então retomou o gênero borbulhante e saiu se rebolando todo para me mostrar o oratório, um oratório falsamente antigo, tudo feito há três dias mas com furinhos na madeira imitando caruncho de três séculos. “Este anjo só pode ser do
  • 24. Aleijadinho, veja as bochechas! E os olhos de cantos caídos, um nadinha estrábicos…” Eu concordava no mesmo tom histérico, embora soubesse perfeitamente que o Aleijadinho teria que ter mais de dez braços para conseguir fazer tanto anjo assim, a casa de Madô também tem milhares deles, todos autênticos, “Um nadinha estrábicos”, repetiu ela com a voz em falsete de Renê. Bossa colonial de grande luxo. E eu sabendo que estava sendo enganada e não me importando, ao contrário, sentindo um agudo prazer em comer gato por lebre. Li ontem que já estão comendo ratos em Saigon e li ainda que já não há mais borboletas por lá, nunca mais haverá a menor borboleta… Desatei então a chorar feito louca, não sei se por causa das borboletas ou dos ratos. Acho que nunca bebi tanto como ultimamente e quando bebo assim fico sentimental, choro à toa. “Você precisa se cuidar”, Renê disse na noite em que ficamos de fogo, só agora penso nisso que ele me disse, por que devo me cuidar, por quê? Contratei-o para fazer em seguida a decoração da casa de campo, “Tenho os móveis ideais para essa sua casa”, ele avisou e eu comprei os móveis ideais, comprei tudo, compraria até a peruca de Maria Antonieta com todos os seus labirintos feitos pelas traças e mais a poeira pela qual não me cobraria nada, simples contribuição do tempo, é claro. É claro. Onde agora? Às vezes eu fechava os olhos e os sons eram como voz humana me chamando, me envolvendo, Luisiana, Luisiana! Que sons eram aqueles? Como podiam parecer voz de gente e serem ao mesmo tempo tão mais poderosos, tão puros? E singelos como ondas se renovando no mar, aparentemente iguais, só aparentemente. “Este é o meu instrumento”, disse ele deslizando a mão pelo saxofone. Com a outra mão em concha, cobriu meu peito: “e esta é a minha música”. Onde, onde? Olho meu retrato em cima da lareira. “Na lareira tem que ficar seu retrato”, determinou Renê num tom autoritário, às vezes ele era autoritário. Apresentou-me seu namorado, pintor, pelo menos me fazia crer que era seu namorado porque agora já não sei mais nada. E o efebo de caracóis na testa me pintou toda de branco, uma Dama das Camélias voltando do campo, o vestido comprido, o pescoço comprido, tudo assim esgalgado e iluminado como se eu tivesse o próprio anjo tocheiro da escada aceso dentro de mim. Tudo já escureceu na sala menos o vestido do retrato, lá está ele, diáfano como a mortalha de um ectoplasma pairando suavíssimo no ar. Um ectoplasma muito mais jovem do que eu, sem dúvida o puxa-saco do efebo era suficientemente esperto para imaginar como eu devia ser aos vinte anos. “Você no retrato parece um pouco diferente”, concedeu ele, “mas o caso é que não estou pintando só seu rosto”, acrescentou muito sutil. Queria dizer com isso que estava pintando minha alma. Concordei na hora, fiquei até comovida quando me vi de cabeleira elétrica e olhos vidrados. “Meu nome é Luisiana”, me diz agora o ectoplasma. “Há muitos anos mandei embora o meu amado e desde então morri.” Onde?… Tenho um iate, tenho um casaco de vison prateado, tenho uma coroa
  • 25. de diamantes, tenho um rubi que já esteve incrustado no umbigo de um xá famosíssimo, até há pouco eu sabia o nome desse xá. Tenho um velho que me dá dinheiro, tenho um jovem que me dá gozo e ainda por cima tenho um sábio que me dá aulas sobre doutrinas filosóficas com um interesse tão platônico que logo na segunda aula já se deitou comigo. Vinha tão humilde, tão miserável com seu terno de luto empoeirado e botinas de viúvo que fechei os olhos e me deitei, Vem, Xenofonte, vem. “Não sou Xenofonte, não me chame de Xenofonte”, ele me implorou e seu hálito tinha o cheiro recente de pastilhas Valda, era Xenofonte, nunca houve ninguém tão Xenofonte quanto ele. Como nunca houve uma Luisiana tão Luisiana como eu, ninguém sabe desse nome, ninguém, nem o cáften do meu pai que nem esperou eu nascer para ver como eu era, nem a coitadinha da minha mãe que não viveu nem para me registrar. Nasci naquela noite na praia e naquela noite recebi um nome que durou enquanto durou o amor. Outra madrugada, quando enchi a cara e fui falar com meu advogado para não pôr no meu túmulo outro nome senão esse, ele deu aquela risadinha execrável, “Luisiana? Mas por que Luisiana? De onde você tirou esse nome?”. Controlou-se para não me chacoalhar por tê-lo acordado àquela hora, vestiu-se e muito polidamente me trouxe para casa, “Como queira, minha querida, você manda!”. E deu sua risadinha, Enfim, uma puta bêbada mas rica tem o direito de botar no túmulo o nome que bem entender, foi o que provavelmente pensou. Mas já não me importo com o que pensa, ele e mais a cambada toda que me cerca, opinião alheia é este tapete, este lustre, aquele retrato. Opinião alheia é esta casa com os santos varados por mil cargas. Mas antes eu me importava e como. Por causa dessa opinião tenho hoje um piano de cauda, tenho um gato siamês com uma argola na orelha, tenho uma chácara com piscina e nos banheiros, papel higiênico com florinhas douradas que o velho trouxe de Nova York junto com o estojo plástico que toca uma musiquinha enquanto a gente vai desenrolando o papel, “Oh! My Last Rose of Summer!…”. Quando me deu os rolos, deu também os potes de caviar, “É preciso dourar a pílula”, disse rindo com sua grossura habitual, é um grosso sem remédio, se não cuspisse dólar eu já o teria mandado para aquela parte com seus tacos de golfe e cuecas perfumadas com lavanda. Tenho sapato com fivela de diamante e um aquário com uma floresta de coral no fundo, quando o velho me deu a pérola, achou originalíssimo escondê-la no fundo do aquário e me mandar procurar: “Está ficando quente, mais quente. Não, agora esfriou!…”. E eu me fazia menininha e ria quando minha vontade mesmo era dizer-lhe que enfiasse a pérola no rabo e me deixasse em paz, Me deixa em paz! ele, o jovem ardente com todos os seus ardores, Xenofonte com seu hálito de hortelã — enxotar todos como fiz com a criadagem, todos uns sacanas que mijam no meu leite e se torcem de rir quando fico para cair de bêbada. Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do tamanho de um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate — trocaria tudo, anéis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem
  • 26. seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que ele está vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone. Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude, tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer duas mil plásticas e não resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha juventude mas naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode mesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede à noite, como o sol, a lua, eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem… Ele era a minha juventude, ele e seu saxofone que luzia como ouro. Seus sapatos eram sujos, a camisa despencada, a cabeleira um ninho, mas o saxofone estava sempre meticulosamente limpo. Tinha também mania com os dentes que eram de uma brancura que nunca vi igual, quando ele ria eu parava de rir só para ficar olhando. Trazia a escova de dentes no bolso e mais a fralda para limpar o saxofone, achou num táxi uma caixa com uma dúzia de fraldas Johnson e desde então passou a usá-las para todos os fins: era o lenço, a toalha de rosto, o guardanapo, a toalha de mesa e o pano de limpar o saxofone. Foi também a bandeira de paz que usou na nossa briga mais séria, quando quis que tivéssemos um filho. Tinha paixão por tanta coisa… A primeira vez que nos amamos foi na praia. O céu palpitava de estrelas e fazia calor. Então fomos rolando e rindo até às primeiras ondas que ferviam na areia e ali ficamos nus e abraçados na água morna como a de uma bacia. Preocupou-se quando lhe disse que não fora sequer batizada. Colheu a água com as mãos em concha e despejou na minha cabeça: “Eu te batizo, Luisiana, em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém”. Pensei que ele estivesse brincando mas nunca o vi tão grave. “Agora você se chama Luisiana”, disse me beijando a face. Perguntei-lhe se acreditava em Deus. “Tenho paixão por Deus”, sussurrou deitando-se de costas, as mãos entrelaçadas debaixo da nuca, o olhar perdido no céu: “O que mais me deixa perplexo é um céu assim como este”. Quando nos levantamos correu até a duna onde estavam nossas roupas, tirou a fralda que cobria o saxofone e trouxe-a delicadamente nas pontas dos dedos para me enxugar com ela. Aí pegou o saxofone, sentou-se encaracolado e nu como um fauno menino e começou a improvisar bem baixinho, formando com o fervilhar das ondas uma melodia terna. Quente. Os sons cresciam tremidos como bolhas de sabão, olha esta que grande! olha esta agora mais redonda… ah, estourou! Se você me ama você é capaz de ficar assim nu naquela duna e tocar, tocar o mais alto que puder até que venha a polícia? eu perguntei. Ele me olhou sem pestanejar e foi correndo em direção à duna e eu corria atrás e gritava e ria, ria porque ele já tinha começado a tocar a plenos pulmões. Minha companheira do curso de dança casou-se com o baterista de um
  • 27. conjunto que tocava numa boate, houve festa. Foi lá que o conheci. Em meio da maior algazarra do mundo a mãe da noiva se trancou no quarto chorando, “Veja em que meio minha filha foi cair! Só vagabundos, só cafajestes!…”. Deitei-a na cama e fui buscar um copo de água com açúcar mas na minha ausência os convidados descobriram o quarto e quando voltei os casais já tinham transbordado até ali, atracando-se em almofadas pelo chão. Pulei gente e sentei-me na cama. A mulher chorava, chorava até que aos poucos o choro foi esmorecendo e de repente parou. Eu também tinha parado de falar e ficamos as duas muito quietas, ouvindo a música de um moço que eu ainda não tinha visto. Ele estava sentado na penumbra, tocando saxofone. A melodia era mansa mas ao mesmo tempo tão eloquente que fiquei imersa num sortilégio. Nunca tinha ouvido nada parecido, nunca ninguém tinha tocado um instrumento assim. Tudo o que tinha querido dizer à mulher e não conseguira, ele dizia agora com o saxofone: que ela não chorasse mais, tudo estava bem, tudo estava certo quando existia o amor. Tinha Deus, ela não acreditava em Deus? perguntava o saxofone. E tinha a infância, aqueles sons brilhantes falavam agora da infância, olha aí a infância!… A mulher parou de chorar e agora era eu que chorava. Em redor, os casais ouviam num silêncio fervoroso e suas carícias foram ficando mais profundas, mais verdadeiras porque a melodia também falava do sexo vivo e casto como um fruto que amadurece ao vento e ao sol. Onde? Onde?… Levou-me para o seu apartamento, ocupava um minúsculo apartamento no décimo andar de um prédio velhíssimo, toda a sua fortuna era aquele quarto com um banheiro mínimo. E o saxofone. Contou-me que recebera o apartamento como herança de uma tia cartomante. Depois, num outro dia disse que o ganhara numa aposta e quando outro dia ainda começou a contar uma terceira história, interpelei-o e ele começou a rir, “É preciso variar as histórias, Luisiana, o divertido é improvisar que para isso temos imaginação! É triste quando um caso fica a vida inteira igual…”. E improvisava o tempo todo e sua música era sempre ágil, rica, tão cheia de invenções que chegava a me afligir, Você vai compondo e vai perdendo tudo, você tem que tomar nota, tem que escrever o que compõe! Ele sorria. “Sou um autodidata, Luisiana, não sei ler nem escrever música e nem é preciso para ser um sax-tenor, sabe o que é um sax-tenor? É o que eu sou.” Tocava num conjunto que tinha contrato com uma boate e sua única ambição era ter um dia um conjunto próprio. E ter um toca-discos de boa qualidade para ouvir Ravel e Debussy. Nossa vida foi tão maravilhosamente livre! E tão cheia de amor, como nos amamos e rimos e choramos de amor naquele décimo andar, cercados por gravuras de Fra Angelico e retratos dos antepassados dele. “Não são meus parentes, achei tudo isso no baú de um porão”, confessou-me certa vez. Apontei para o mais antigo dos retratos, tão antigo que da mulher só restava a cabeleira escura. E as sobrancelhas. Esta você também achou no baú? perguntei. Ele riu e até hoje fiquei sem saber se era verdade ou não. Se você me ama mesmo, eu disse, suba então
  • 28. naquela mesa e grite com todas as forças, Vocês são todos uns cornudos, vocês são todos uns cornudos! e depois desça da mesa e saia mas sem correr. Ele me deu o saxofone para segurar enquanto eu fugia rindo, Não, não, eu estava brincando, isso não! Já na esquina ouvi seus gritos em pleno bar, “Cornudos, todos cornudos!”. Alcançou-me em meio da gente estupefata, “Luisiana, Luisiana, não me negue, Luisiana!”. Outra noite — saímos de um teatro — não resisti e perguntei-lhe se era capaz de cantar ali no saguão um trecho de ópera, Vamos, se você me ama mesmo, cante agora aqui na escada um trecho do Rigoletto! Se você me ama mesmo, me leva agora a um restaurante, me compre já aqueles brincos, me compre imediatamente um vestido novo! Ele agora tocava em mais lugares porque eu estava ficando exigente, se você me ama mesmo, mesmo, mesmo… Saía às sete da noite com o saxofone debaixo do braço e só voltava de manhãzinha. Então limpava meticulosamente o bocal do instrumento, lustrava o metal com a fralda e ficava dedilhando distraidamente, sem nenhum cansaço, sem nenhum desgaste, “Luisiana, você é a minha música e eu não posso viver sem música”, dizia abocanhando o bocal do saxofone com o mesmo fervor com que abocanhava meu peito. Comecei a ficar irritadiça, inquieta, era como se tivesse medo de assumir a responsabilidade de tamanho amor. Queria vê-lo mais independente, mais ambicioso. Você não tem ambição? Não usa mais artista sem ambição, que futuro você pode ter assim? Era sempre o saxofone quem me respondia e a argumentação era tão definitiva que me envergonhava e me sentia miserável por estar exigindo mais. Contudo, exigia. Pensei em abandoná-lo mas não tive forças, não tive, preferi que nosso amor apodrecesse, que ficasse tão insuportável que quando ele fosse embora saísse cheio de nojo, sem olhar para trás. Onde agora? Onde? Tenho uma casa de campo, tenho um diamante do tamanho de um ovo de pomba… Eu pintava os olhos diante do espelho, tinha um compromisso, vivia cheia de compromissos, ia a uma boate com um banqueiro. Enrodilhado na cama, ele tocava em surdina. Meus olhos foram ficando cheios de lágrimas. Enxuguei-os na fralda do saxofone e fiquei olhando para minha boca. Os lábios estavam mais finos assim crispados. Desviei o olhar do espelho. Se você me ama mesmo, eu disse, se você me ama mesmo então saia e se mate imediatamente.
  • 29. Helga Ela era uma só. Não havia outra e se quisesse compará-la com alguma coisa, seria com os tenros cogumelos dos bosques ou com as manhãs de bicicleta nas estradas impecáveis ou com as primeiras cerejas da primavera. Era uma, una, única, apesar de ter uma só perna, aliás bela como ela toda. Mas é cedo para falar não sobre sua beleza — que deve ser lembrada sem enfado quantas vezes forem necessárias — mas cedo para falar sobre a perna que vai exigir explicação. A perna envolve viagem, guerra, a perna vai tão além… Sem esclarecimento tudo será apenas crueldade. É bom dizer logo quem eu sou: Paulo Silva, brasileiro. Mas fui alemão. Filho de alemã de Santa Catarina e desse Silva brasileiro que não cheguei a conhecer. Mãe alemã nascida no Vale do Itajaí, neta de proprietários em Vila Corinto desde 1890, pude ver isso nos papéis. Mas alemã malvista porque se casou com o Silva, Paulo também, o que me faria Paulo Silva Filho. Mas nada disso vigorou, na escola eu já era Paul sem o o, Paul Karsten. E o destino amável de um Paul Karsten, ginasiano de Blumenau em 1935, eram férias, cursos de aperfeiçoamento, amizades e amores na Alemanha. De Hitler, é bom lembrar. E não havia nada melhor, a começar pela viagem no Monte Pascoal, classe única com escalas na Bahia, em Madeira, Lisboa, e depois Hamburgo até os verões intermináveis nas Casas da Juventude, com excursões, piqueniques, bicicletas, cerejas e sexo em meio do cansaço feliz e da dose exata de melancolia. Jugendhaus, era esse o nome dessas casas e pensar nelas me faz pensar em fonte e musgo. As viagens seguintes, três ao todo, foram marcadas pelas aulas cheias de simplicidade e exaltação. E a nossa, a minha particular importância por ser alemão e alemão estrangeiro. Esportes. Treinos. O aço das metralhadoras sem carga encostado no peito banhado de suor. As bandeiras apoiadas no ombro no desfile diante de Hitler e Mussolini no estádio de Berlim, os alemães da América do Sul marchando logo atrás dos países sudetos e antes mesmo dos alemães da América do Norte. Amizade e amor foi lá que conheci, próximos e concretos. E o ódio também abstrato e longínquo, aos judeus, aos comunistas e a outras coisas mais que já esqueci. Tudo aconteceu porque a terceira viagem foi no verão de 1939. Não vou contar minha guerra, Polônia, França, Grécia, Rússia… A beleza de Helga e a sua perna. Confesso que durante muito tempo não sei em qual pensei mais, se na que tinha ou se na que perdera. Mas é cedo. Por enquanto é preciso dizer como foi possível acontecer o que aconteceu. O meu hitlerismo era jovem, leal, risonho e franco e a guerra não entrava na jogada. Nela fiz mais ou menos tudo o que os outros fizeram e até menos do que vi ser feito em matéria de luta ou crime. De resto, eu e meus camaradas de armas éramos parecidos, menos numa coisa: nunca consegui estabelecer um vínculo entre essa
  • 30. guerra e as férias na Jugendhaus em meio dos piqueniques nas florestas e excursões pelas estradas marginadas de verdor. As aulas tão nítidas eram para isso? A palavra unerbittlich significava mesmo implacável e era para valer? Só mais tarde, depois da guerra, descobri dentro de mim que aprendera a lição. Curioso é que hoje já não consigo lembrar qual a perna que Helga perdera, se a direita ou a esquerda. E dizer que durante anos não houve dia nem hora que Helga não aparecesse no meu pensamento. Acha meu analista que os esquecimentos parciais são frequentemente formas sutis de autopunição. Não sei se isso é verdade mas sei que agora que resolvi evocá-la não posso impedir que a todo instante ela cruze estas linhas antes do momento exato em que devia comparecer. Quero confessar que não liguei muito quando soube que o Brasil entrara na guerra contra a Alemanha mas devo dizer também que achei bom não ter combatido contra soldados brasileiros. O que me faz pensar que nunca deixou de existir em mim alguma coisa do filho daquele Silva que sempre imaginei moreno pálido, a cara comprida e os olhos tristes. Assim que acabou a guerra, vendi meu capacete e meu punhal com a cruz suástica a um funcionário brasileiro que até hoje não sei o que estava fazendo em Düsseldorf. Fomos para uma cantina onde me pagou uma cerveja e dele ouvi então coisas alarmantes: que a minha situação jurídica era nada mais, nada menos, do que a de um traidor, quer dizer, uns quinze anos de cadeia, por aí. Era só voltar e a condenação viria na certa. Recebi a notícia na hora errada porque naquela altura meu desejo maior era esquecer a guerra, encerrar as férias na Alemanha e tranquilamente voltar para Vila Corinto, casar por lá, cuidar do plantio, da criação e ajudar minha mãe que devia estar velha. Helga ainda não aparecera na minha vida e o hitlerismo e a guerra ainda não tinham me marcado para sempre. Ainda não. Há um pormenor que me ocorre com tamanha insistência que fico às vezes pensando, pensando e não descubro por que me lembro tanto das unhas do seu pé pintadas com esmalte rosa. Não sei qual perna lhe restara mas revejo seu pé, só o pé com as unhas pintadas, não pintava as unhas das mãos, limpas, polidas mas sem esmalte. Pintava as do pé, economizando assim o esmalte que naquele tempo era raro como todo o resto, comida, roupa. Unhas de um tom de rosa delicado, ela gostava das cores tímidas. Não poder voltar para o Brasil decidiu minha sorte de continuar Paul Karsten o tempo necessário para enriquecer e nunca mais ter paz. Não por ter enriquecido, como veremos, estou chegando lá. O caso é que não fui prisioneiro de guerra nem propriamente desertor. Num momento de confusão a guerra se afastou de onde me encontrava, não voltou mais e depois acabou. Já contei que vendi meu capacete e meu punhal. Arranjei em seguida outros punhais e capacetes que vendia para jovens recrutas americanos que chegaram demasiado tarde e doidos por levarem qualquer suvenir desse tipo. O pequeno comércio de troféus ampliou-se para cigarros, chocolate, leite em pó e outras latarias, mas tudo muito reduzido. Basta
  • 31. dizer que na intendência americana meu sócio mais qualificado era apenas sargento, o que mostra bem a modéstia do negócio. Naquela improvisação de vida ao deus-dará, o tempo perdeu a medida e hoje não sou mesmo capaz de lembrar quando exatamente conheci Helga. Só sei que sua beleza me surgiu inicialmente da cintura para cima atrás do balcão da farmácia, se assim podemos chamar àquele casebre de madeira enegrecida, toscamente erguido no meio das ruínas do sudeste industrial de Düsseldorf. Sua beleza, foi sua beleza o que de início me impressionou. E depois, seu recato, sua doçura naquele mundo de fim do mundo. Passando pela farmácia, não houve vez que não a visse ereta e séria, vendendo aspirina e as tais latinhas de pomada fabricada pelo pai, o velho Wolf, um verdadeiro caco aos quarenta anos, andando quilômetros em busca de mercadoria: vidrinhos de iodo e alguns metros de gaze. Foi o velho quem primeiro me falou da penicilina e do quanto um negócio desses poderia render. Até então eu vendia para Helga algumas latas de leite em pó e de veneno para rato. Também me lembro muito de um outro pormenor: a lata de leite tinha uma risonha vaquinha no rótulo e a outra tinha um rato negro, morto, dependurado pelo rabo por um longo fio. Quero ser verdadeiro quando digo que não me importei ao ver meu lucro diminuído devido à perda de tempo em vender-lhe as ninharias que podia comprar. O prazer de vê-la era tão grande que me sentia compensado quando ouvia sua voz calma, harmoniosa como os seus gestos que por sinal eram raros. Não procurava, então, a mulher. Durante meses a caça à comida utilizava quase toda a imaginação e energia de que sou capaz, qualquer preocupação com mulher se dissipava nessa caça. Foi só numa segunda fase que relacionei a beleza de Helga com o desejo. Já sabia então da sua perna, ela mesma me contou quando recusou-se a me acompanhar a um local de danças, improvisado nos escombros do museu. Fiz o convite quando fui cedo à farmácia, soubera das danças e não vi melhor oportunidade para sair com ela. Estava como sempre detrás do balcão mas assim que lhe falei em dançarmos teve um movimento de fuga enquanto uma nuvem preta pareceu baixar sobre seu rosto tão limpo. Mas logo espantou a nuvem e sorriu quase natural quando confessou que não podia dançar as valsas que lá tocavam, tinha uma perna só. Aquela noite pensei muito na mutilação de Helga, mutilação antiga, pois ela perdera a perna e o resto da família, menos o pai, no primeiro bombardeio de Hamburgo. Na mesma ocasião o velho Wolf perdera também a farmácia, a primeira, pois a segunda e a terceira foram destruídas em Düsseldorf. Ainda era rico depois da tragédia de Hamburgo e a prova disso é que montou em seguida mais essas duas farmácias. Outra prova de que tivera dinheiro foi a magnífica perna ortopédica que comprou para a filha, daquelas que durante a guerra eram reservadas para heróis excepcionais, membros graúdos do Partido Nacional-Socialista ou oficiais superiores. Fora desse tipo de gente só os muito ricos podiam comprar uma perna igual. Não pude então deixar de sentir um certo espanto quando vi Helga sair andando detrás do balcão, mancando um pouco, é certo, mas discretamente, com
  • 32. uma lentidão que combinava com seu feitio. Imaginara-a plantada numa perna só, apoiada em muletas ou numa bengala, dando saltos penosos… E cheguei a dizer-lhe que num vestido de noite ninguém notaria a perna artificial. Ela então baixou os grandes olhos claros. No dia seguinte era domingo e Helga concordou em sair comigo. Eu podia emprestar o jipe do sargento americano mas a tarde estava tão agradável que ela preferiu que fôssemos mesmo a pé. À noite — era uma noite estrelada — jantamos, ela, o pai e eu, uma lata de rosbife e outra de milho que desviara do meu comércio. Senti-me generoso, bom. Foi aí que o velho Wolf me falou da penicilina. Na cara devastada do farmacêutico vi como seus olhos azuis, iguais aos da filha, coruscavam de entusiasmo ao imaginar o negócio. Ele tinha o cálculo fácil e claramente demonstrou que três meses de tráfico de penicilina eram o suficiente para juntar uma pequena fortuna. Havia apenas dois problemas a enfrentar: o primeiro era o risco, mas não tão grande assim, na pior das hipóteses um par de anos na cadeia, se tanto. A segunda dificuldade, a maior, era a mesma de qualquer negócio: o capital inicial. E para tudo, uma condição indispensável, a rapidez. Esses grandes negócios só funcionariam durante uns seis meses, no máximo. Depois, a eficiência combinada de americanos, russos e dos próprios alemães iria pôr tudo nos eixos e qualquer empreendimento se tornaria rotineiro, lento. Com os ingleses, nem pensar. A coisa do lado de cá tinha que ser feita mesmo com os americanos e sem demora. O velho se ramificava em considerações mas minha atenção se concentrava em Helga, a doce Helga que eu já beijara naquela tarde. Foi então meio distraidamente que ouvi o que ele disse? Pois sim. Naquela noite e no dia seguinte não pensei noutra coisa. Pedi pormenores e ele me falou num certo major-médico, chegamos até a procurar o homem mas ele fora transferido para Hamburgo. E o capital? Via o velho diariamente e ficávamos falando, falando… E o capital? Foram dias de tanta inquietação, a tal ponto fiquei seduzido pela ideia que meu pequeno comércio começou a declinar. Via o velho e via Helga, com ela também falava demais e de repente falei em casamento. Como é difícil reconstituir os acontecimentos! Lembrar o ano em que tudo aconteceu já exige esforço. Distribuir os fatos pelos meses não consigo. Mas ordenar os sentimentos é para mim totalmente impossível. Revivo o tempo da contemplação de sua beleza e depois os instantes de fundo desejo. E lembro muito do casamento. Quanto ao amor por Helga, afirma o analista que não passa de um recurso autopunitivo que resolvi imaginar. O fato é que me casei e na própria madrugada de núpcias fugi para Hamburgo levando a perna ortopédica que em seguida vendi. De posse do capital inicial, não foi difícil encontrar o tal major e no tempo previsto pelo velho Wolf, seis meses mais ou menos, fiz fortuna. Daí por diante não foi mais possível dizer que as férias nazistas na Alemanha foram episódios fortuitos na vida de um jovem de Vila Corinto. Paul Karsten cometeu seu crime de guerra, pessoal e por conta própria, mas fora do lugar e com a pessoa errada. O ato de raça de senhor alemão aprendido nas aulas floridas dos
  • 33. cursos de 1936 foi praticado em plena paz por um pobre rapaz brasileiro contra uma pobre moça alemã. Engano ainda pensar que o fim de Paul Karsten foi uma solução. Alguns anos mais tarde, Paulo Silva Filho voltou para o Brasil anistiado e rico, mas voltou um homem de pouca fé e imaginação amortecida. A única maneira que encontrou de expiar o crime do jovem Paul foi tornar-se um cidadão exemplar. Hoje, o analista explica que simplesmente procuro e encontro, na insipidez da virtude, a punição de Paul Karsten e de seus camaradas.
  • 34. O Moço do Saxofone Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que engolia giletes e que foi meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá. Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um sanduíche, enfiou o palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito que eu podia ver até o que o palito ia cavoucando. Bom, mas eu dizia que no tal frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas pernas da gente. E tinha a música do saxofone. Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem, não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara tocava. — O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão forte chegava a música até nossa mesa. — Quem é que está tocando? — É o moço do saxofone. Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China. — E o quarto dele fica aqui em cima? James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um bocado de tempo a fumaça antes de responder. — Aqui em cima. Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que ele desse cabo da batata enquanto ia enchendo meu garfo. — É uma música desgraçada de triste — fui dizendo. — A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia
  • 35. inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se deita com tudo quanto é cristão que aparece. — Deitou com você? — É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se cortar… Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com uma mão tapando, os sons esprimidos saindo por entre os dedos. Então me lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na vila, mas não aguentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei ela na carroceria e corri como louco para chegar o quanto antes, apavorado com a ideia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora. — Parece gente pedindo socorro — eu disse enchendo meu copo de cerveja. — Será que ele não tem uma música mais alegre? James encolheu o ombro. — Chifre dói. Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher. — Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na vida de ninguém, mas era melhor ouvir o trololó do James do que o saxofone. — Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone. — E os outros não reclamam? — A gente já se acostumou. Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado, dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de roupa, pensei meio espantado porque tinha sido rápido demais. E já descia a escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa. Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões louros e de cabelo repartidinho do lado.
  • 36. — Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame e ela riu. — Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas… Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás, palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de esbarrar em mim. — Licença? Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim, mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e apareceu uma covinha no queixo. Pomba, tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto. — A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava. — Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito — avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona de vermelho. — O senhor gostou da comida? Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a tocar. — Sim senhor — eu disse e James pensou que estivesse falando na tal briga. — O pior é que fiquei de porre, mal pude me defender! Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio. — Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca? James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta. Decerto preferia o assunto do parque. — Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele, tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um outro já tinha acabado com a vida dela! Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais
  • 37. para quem. — Não topo isso, pomba. — Isso o quê? Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação. — O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa com um pano encardido como a cara dele. — Feito agora. Pela cara vi que era mentira. — Não é preciso, tomo na esquina. A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para a porta porque tive o pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o arzinho de gata de telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó. Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua. — Sim senhor! — Sim senhor o quê? — perguntou James. — Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim que ela aparece, ele para. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa. James pediu outra cerveja. Olhou para o teto. — Mulher é o diabo… Levantei-me e quando passei junto da mesa dela atrasei o passo. Então ela deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos. — Ora, não precisava se incomodar… Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume. — Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem? — É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe. Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto, chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém. Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava um moço segurando o saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem
  • 38. nada, só me olhava. — Desculpe, me enganei de quarto — eu disse com uma voz que até hoje não sei onde fui buscar. O moço apertou o saxofone contra o peito cavado. — É na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça. Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro. — Está servido? — Obrigado, não posso fumar. Fui recuando de costas. E de repente não aguentei. Se ele tivesse feito qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta calma me fez perder as tramontanas. — E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba, eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer que você não faz nada? — Eu toco saxofone. Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões, de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de começar com os malditos uivos. Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei? E então? Foi quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora, pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num impermeável, desviei de outro que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão. Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu meio desembestado, num arranco.
  • 39. Antes do Baile Verde O rancho azul e branco desfilava com seus passistas vestidos à Luís xv e sua porta-estandarte de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na testa, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro do bumbo fez uma profunda reverência diante das duas mulheres debruçadas na janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo rodar a capa encharcada de suor. — Ele gostou de você — disse a jovem voltando-se para a mulher que ainda aplaudia. — O cumprimento foi na sua direção, viu que chique? A preta deu uma risadinha. — Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinião. E já deve estar chegando, ficou de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele começa a encher a caveira e pronto, não sai mais nada. A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa de cabeceira. O quarto estava revolvido como se um ladrão tivesse passado por ali e despejado caixas e gavetas. — Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo… Tenha paciência, mas você vai me ajudar um pouquinho. — Mas você ainda não acabou? Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava biquíni e meias rendadas também verdes. — Acabei o quê! Falta pregar tudo isso ainda, olha aí… Fui inventar um raio de pierrete dificílima! A preta aproximou-se, alisando com as mãos o quimono de seda brilhante. Espetado na carapinha trazia um crisântemo de papel crepom vermelho. Sentou-se ao lado da moça. — O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos. — Tem tempo, sossega — atalhou a jovem. Afastou os cabelos que lhe caíam nos olhos. Levantou o abajur que tombou na mesinha. — Não sei como fui me atrasar desse jeito. — Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile! — E quem está dizendo que você vai perder? A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-o de leve nas lantejoulas do pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando uma constelação desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e
  • 40. delicadamente tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote, fixando-a com pequenos movimentos circulares. — Mas se tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote… — Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a coisa pela metade, vê se entende! Você ajudando vai num instante, já me pintei, olha aí, que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa! Hein?… Que tal? — Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde você está parecendo uma alcachofra, tão gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito. Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor. Passou o dorso da mão na face afogueada. — Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É um baile verde, as fantasias têm que ser verdes, tudo verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos, não pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta mais da metade, Lu! — Estou sem óculos, não enxergo direito sem os óculos. — Não faz mal — disse a jovem limpando no lençol o excesso de cola que lhe escorreu pelo dedo. — Vá grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém vai reparar, vai ter gente à beça. O que está me endoidando é este calor, não aguento mais, tenho a impressão de que estou me derretendo, você não sente? Calor bárbaro! A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a testa e baixou o tom de voz. — Estive lá. — E daí? — Ele está morrendo. Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Alguns meninos puseram-se a cantar aos gritos, o compasso marcado pelas batidas numa panela: A coroa do rei não é de ouro nem de prata… — Parece que estou num forno — gemeu a jovem dilatando as narinas porejadas de suor. — Se soubesse, teria inventado uma fantasia mais leve. — Mais leve do que isso? Você está quase nua, Tatisa. Eu ia com a minha havaiana, mas só porque aparece um pedaço da coxa o Raimundo implica. Imagine você então… Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na renda da meia. Deixou-a cair na pequena constelação que ia armando na barra do saiote e ficou raspando pensativamente um pingo ressequido de cola que lhe caíra no joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum. Falou num tom sombrio: — Você acha, Lu?
  • 41. — Acha o quê? — Que ele está morrendo? — Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já sei como é. Ele não passa desta noite. — Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que estava nas últimas… E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante. — Radiante? — espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios pintados de vermelho-violeta. — E depois, eu não disse não senhora que ele ia morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente, Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo. — Mas quando fui lá ele estava dormindo tão calmo, Lu. — Aquilo não é sono. É outra coisa. Afastando bruscamente o saiote aberto nos joelhos, a jovem levantou-se. Foi até a mesa, pegou a garrafa de uísque e procurou um copo em meio da desordem dos frascos e caixas. Achou-o debaixo da esponja de arminho. Soprou o fundo cheio de pó de arroz e bebeu em largos goles, apertando os maxilares. Respirou de boca aberta. Dirigiu-se à preta. — Quer? — Tomei muita cerveja, se misturo dá ânsia. A jovem despejou mais uísque no copo. — Minha pintura não está derretendo? Veja se o verde dos olhos não borrou… Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver. — Você está bebendo demais. E nessa correria… Também não sei por que essa invenção de saiote bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas no aperto. E o pior é que não posso caprichar, com o pensamento no Raimundo lá na esquina… — Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque- taque! Esse cara não pode esperar um pouco? A mulher não respondeu. Ouvia com expressão deliciada a música de um bloco que passava já longínquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando… acabou chorando… — No outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti à grande. Meu sapato até desmanchou de tanto que dancei. — E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar. — E seu pai? Lentamente a jovem foi limpando no lenço as pontas dos dedos esbranquiçados de cola. Tomou um gole de uísque. Voltou a afundar o dedo no pote. — Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que
  • 42. eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está querendo? — Ficou olhando para a ponta do dedo coberto de lantejoulas. Foi deixando no saiote o dedal cintilante. — Que é que eu posso fazer? Não sou Deus, sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu? — Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso, ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender. — Mas você começa a dizer que ele está morrendo! — Pois está mesmo. — Está nada! Também espiei, ele está dormindo, ninguém morre dormindo daquele jeito. — Então não está. A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando de meninos brincava com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando água um na cara do outro. Interromperam a brincadeira para vaiar um homem que passou vestido de mulher, pisando para fora nos sapatos de saltos altíssimos. “Minha lindura, vem comigo, minha lindura!”, gritou o moleque maior, correndo atrás do homem. Ela assistia à cena com indiferença. Puxou com força as meias presas aos elásticos do biquíni. — Estou transpirando feito um cavalo. Juro que se não tivesse me pintado, me metia agora num chuveiro, besteira a gente se pintar antes. — E eu não aguento mais de sede — resmungou a empregada arregaçando as mangas do quimono. — Ai! uma cerveja bem geladinha. Gosto mesmo é de cerveja, mas o Raimundo prefere cachaça. No ano passado ele ficou de porre os três dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de todos, representava um mar. Você precisava ver aquele monte de sereias enroladas em pérolas. Tinha pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem lá em cima, dentro de uma concha abrindo e fechando, a rainha do mar coberta de joias… — Você já se enganou uma vez — atalhou a jovem. — Ele não pode estar morrendo, não pode. Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois sorriu. Você está bem papai?, perguntei e ele não respondeu mas vi que entendeu perfeitamente o que eu disse. — Ele se fez de forte, coitado. — De forte, como? — Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar. — Ih, como é difícil conversar com gente ignorante — explodiu a jovem, atirando no chão as roupas amontoadas na cama. Revistou os bolsos de uma calça comprida. — Você pegou meu cigarro? — Tenho minha marca, não preciso dos seus.
  • 43. — Escuta, Luzinha, escuta — começou ela, ajeitando a flor na carapinha da mulher. — Eu não estou inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me reconheceu. Acho que nessa hora sentiu alguma dor porque uma lágrima foi escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca. Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura… — Ele estava se despedindo. — Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você quer que seja hoje. Por que tem que repetir isso, por quê? — Você mesmo pergunta e não quer que eu responda. Não vou mentir, Tatisa. A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um pé de sapato. Agachou-se mais, roçando os cabelos verdes no chão. Levantou-se, olhou em redor. E foi-se ajoelhando devagarinho diante da preta. Apanhou o pote de cola. — E se você desse um pulo lá só para ver? — Mas você quer ou não que eu acabe isto? — a mulher gemeu exasperada, abrindo e fechando os dedos ressequidos de cola. — O Raimundo tem ódio de esperar, hoje ainda apanho! A jovem levantou-se. Fungou, andando rápido num andar de bicho na jaula. Chutou o sapato que encontrou no caminho. — Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem disse que não podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho jeito, não posso! Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta! — Mas, Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso, até que ajudo muito sim senhora, como não? Todos esses meses quem é que tem aguentado o tranco? Não me queixo porque ele é muito bom, coitado. Mas tenha a santa paciência, hoje não! Já estou fazendo demais aqui plantada quando devia estar na rua. Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armário. Olhou-se no espelho. Beliscou a cintura. — Engordei, Lu. — Você, gorda? Mas você é só osso, menina. Seu namorado não tem onde pegar. Ou tem? Ela ensaiou com os quadris um movimento lascivo. Riu. Os olhos animaram-se: — Lu, Lu, pelo amor de Deus, acabe logo que à meia-noite ele vem me buscar. Mandou fazer um pierrô verde. — Também já me fantasiei de pierrô. Mas faz tempo. — Vem num Tufão, viu que chique? — Que é isso?
  • 44. — É um carro muito bacana, vermelho. Mas não fique aí me olhando, depressa, Lu, você não vê que… — Passou ansiosamente a mão no pescoço. — Lu, Lu, por que ele não ficou no hospital?! Estava tão bem no hospital… — Hospital de graça é assim mesmo, Tatisa. Eles não podem ficar a vida inteira com um doente que não resolve, tem doente esperando até na calçada. — Há meses que venho pensando nesse baile. Ele viveu sessenta e seis anos. Não podia viver mais um dia? A preta sacudiu o saiote e examinou-o a uma certa distância. Abriu-o de novo no colo e inclinou-se para o pires de lantejoulas. — Falta só um pedaço. — Um dia mais… — Vem me ajudar, Tatisa, nós duas pregando vai num instante. Agora ambas trabalhavam num ritmo acelerado, as mãos indo e vindo do pote de cola ao pires e do pires ao saiote, curvo como uma asa verde pesada de lantejoulas. — Hoje o Raimundo me mata — recomeçou a mulher, grudando as lantejoulas meio ao acaso. Passou o dorso da mão na testa molhada. Ficou com a mão parada no ar. — Você não ouviu? A jovem demorou para responder. — O quê? — Parece que ouvi um gemido. Ela baixou o olhar. — Foi na rua. Inclinaram as cabeças irmanadas sob a luz amarela do abajur. — Escuta, Lu, se você pudesse ficar hoje, só hoje — começou ela num tom manso. Apressou-se: — Eu te daria meu vestido branco, aquele meu branco, sabe qual é? E também os sapatos, estão novos ainda, você sabe que eles estão novos. Você pode sair amanhã, você pode sair todos os dias, mas pelo amor de Deus, Lu, fica hoje! A empregada sorriu, triunfante. — Custou, Tatisa, custou. Desde o começo eu já estava esperando. Ah, mas hoje nem que me matasse eu ficava, hoje não. — O crisântemo caiu enquanto ela sacudia a cabeça. Prendeu-o com um grampo que abriu entre os dentes. — Perder esse desfile? Nunca! Já fiz muito — acrescentou sacudindo o saiote. — Pronto, pode vestir. Está um serviço porco mas ninguém vai reparar. — Eu podia te dar o casaco azul — murmurou a jovem, limpando os dedos no lençol. — Nem que fosse para ficar com meu pai eu ficava, ouviu isso, Tatisa? Nem
  • 45. com meu pai, hoje não. Levantando-se de um salto, a moça foi até a garrafa e bebeu de olhos fechados mais alguns goles. Vestiu o saiote. — Brrrr! Esse uísque é uma bomba — resmungou, aproximando-se do espelho. — Anda, venha aqui me abotoar, não precisa ficar aí com essa cara. Sua chata. A mulher tateou os dedos por entre o tule. — Não acho os colchetes. A jovem ficou diante do espelho, as pernas abertas, a cabeça levantada. Olhou para a mulher através do espelho: — Morrendo coisa nenhuma, Lu. Você estava sem os óculos quando entrou no quarto, não estava? Então não viu direito, ele estava dormindo. — Pode ser que me enganasse mesmo. — Claro que se enganou! Ele estava dormindo. A mulher franziu a testa, enxugando na manga do quimono o suor do queixo. Repetiu como um eco: — Estava dormindo, sim. — Depressa, Lu, faz uma hora que está com esses colchetes! — Pronto — disse a outra, baixinho, enquanto recuava até a porta. — Não precisa mais de mim, não é? — Espera! — ordenou a moça perfumando-se rapidamente. Retocou os lábios, atirou o pincel ao lado do vidro destapado. — Já estou pronta, vamos descer juntas. — Tenho que ir, Tatisa! — Espera, já disse que estou pronta — repetiu, baixando a voz. — Só vou pegar a bolsa… — Você vai deixar a luz acesa? — Melhor, não? A casa fica mais alegre assim. No topo da escada ficaram mais juntas. Olharam na mesma direção: a porta estava fechada. Imóveis como se tivessem sido petrificadas na fuga, as duas mulheres ficaram ouvindo o relógio da sala. Foi a preta quem primeiro se moveu. A voz era um sopro: — Quer ir dar uma espiada, Tatisa? — Vá você, Lu… Trocaram um rápido olhar. Bagas de suor escorriam pelas têmporas verdes da jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limão. O som prolongado de uma buzina foi-se fragmentando lá fora. Subiu poderoso o som do relógio. Brandamente a empregada desprendeu-se da mão da jovem. Foi descendo a
  • 46. escada na ponta dos pés. Abriu a porta da rua. — Lu! Lu! — a jovem chamou num sobressalto. Continha-se para não gritar. — Espera aí, já vou indo! E apoiando-se ao corrimão, colada a ele, desceu precipitadamente. Quando bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na mesma direção, como se quisessem alcançá-la.
  • 47. A Caçada A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou voo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas. — Bonita imagem — disse. A velha tirou um grampo do coque e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo. — É um São Francisco. Ele então se voltou lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também. — Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso. Pena que esteja nesse estado. O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la. — Parece que hoje está mais nítida… — Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. — Nítida como? — As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela? A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem. — Não passei nada. Por que o senhor pergunta? — Notei uma diferença. — Não, não passei nada, essa tapeçaria não aguenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido — acrescentou tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: — Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto. Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu. — Extraordinário… A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo. — Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar é capaz de cair em pedaços.
  • 48. O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?… Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas era apenas uma vaga silhueta cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta. O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas, que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano. — Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa. — É como se… Mas não está diferente? A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los. — Não vejo diferença nenhuma. — Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta… — Que seta? O senhor está vendo alguma seta? — Aquele pontinho ali no arco… A velha suspirou: — Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo — lamentou disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído. — Fique aí à vontade, vou fazer um chá. O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda, aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde… Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a
  • 49. seta… A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco. Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira. “Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?” Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos… E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. “Antes do aproveitamento da tapeçaria…”, murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço. Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?… Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? “Que loucura!… E não estou louco”, concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. “Mas não estou louco.” Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo. Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro dos travesseiros, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: “Que seta? Não estou vendo nenhuma seta…”. Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. “Sou o caçador?” Mas em vez da barba encontrou a viscosidade do sangue.