O documento descreve objetos que foram vistos em uma vitrina de antiguidades, incluindo um lustre colorido, uma gravura triste chamada "Os Funerais do Amor", e um anão morto em um caixão na vitrina, decorado com rosas brancas murchas pelo calor. O homem imagina essas memórias e conversa com Lorena sobre o significado e propósito dos objetos.
3. DADOS DE COPYRIGHT
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7. Sumário
ANTES DO BAILE VERDE
Os Objetos
Verde Lagarto Amarelo
Apenas um Saxofone
Helga
O Moço do Saxofone
Antes do Baile Verde
A Caçada
A Chave
Meia-Noite em Ponto em Xangai
A Janela
Um Chá Bem Forte e Três Xícaras
O Jardim Selvagem
Natal na Barca
A Ceia
Venha Ver o Pôr do Sol
Eu Era Mudo e Só
As Pérolas
O Menino
SOBRE LYGIA FAGUNDES TELLES E ESTE LIVRO
Posfácio — Garras de Veludo, Antonio Dimas
Carta — Carlos Drummond de Andrade
Depoimento — A Beleza Secreta da Vida,
Urbano Tavares Rodrigues
A Autora
9. Os Objetos
Finalmente pousou o olhar no globo de vidro e estendeu a mão.
— Tão transparente. Parece uma bolha de sabão, mas sem aquele colorido de
bolha refletindo a janela, tinha sempre uma janela nas bolhas que eu soprava. O
melhor canudo era o de mamoeiro. Você também não brincava com bolhas? Hein,
Lorena?
Ela esticou entre os dedos um longo fio de linha vermelha preso à agulha. Deu
um nó na extremidade da linha e, com a ponta da agulha, espetou uma conta da
caixinha aninhada no regaço. Enfiava um colar.
— Que foi?
Como não viesse a resposta, levantou a cabeça. Ele abria a boca, tentando
cravar os dentes na bola de vidro. Mas os dentes resvalavam, produzindo o som
fragmentado de pequenas castanholas.
— Cuidado, querido, você vai quebrar os dentes!
Ele rolou o globo até a face e sorriu.
— Aí eu compraria uma ponte de dentes verdes como o mar com seus
peixinhos ou azuis como o céu com suas estrelas, não tinha uma história assim?
Que é que era verde como o mar com seus peixinhos?
— O vestido que a princesa mandou fazer para a festa.
Lentamente ele girou o globo entre os dedos, examinando a base pintalgada
de cristais vermelhos e verdes.
— Como um campo de flores. Para que serve isto, Lorena?
— É um peso de papel, amor.
— Mas se não está pesando em nenhum papel — estranhou ele, lançando um
olhar à mesa. Pousou o globo e inclinou-se para a imagem de um anjo dourado,
deitado de costas, os braços abertos. — E este anjinho? O que significa este
anjinho?
Com a ponta da agulha ela tentava desobstruir o furo da conta de coral.
Franziu as sobrancelhas.
— É um anjo, ora.
— Eu sei. Mas para que serve? — insistiu. E apressando-se antes de ser
interrompido: — Veja, Lorena, aqui na mesa este anjinho vale tanto quanto o peso
de papel sem papel ou aquele cinzeiro sem cinza, quer dizer, não tem sentido
nenhum. Quando olhamos para as coisas, quando tocamos nelas é que começam a
viver como nós, muito mais importantes do que nós, porque continuam. O cinzeiro
recebe a cinza e fica cinzeiro, o vidro pisa o papel e se impõe, esse colar que você
10. está enfiando… É um colar ou um terço?
— Um colar.
— Podia ser um terço?
— Podia.
— Então é você que decide. Este anjinho não é nada, mas se toco nele vira
anjo mesmo, com funções de anjo. — Segurou-o com força pelas asas. — Quais são
as funções de um anjo?
Ela deixou cair na caixa a conta obstruída e escolheu outra. Experimentou o
furo com a ponta da agulha.
— Sempre ouvi dizer que anjo é o mensageiro de Deus.
— Tenho então uma mensagem para Deus — disse ele e encostou os lábios na
face da imagem. Soprou três vezes, cerrou os olhos e moveu os lábios
murmurejantes. Tateou-lhe as feições como um cego. — Pronto, agora sim, agora é
um anjo vivo.
— E o que foi que você disse a ele?
— Que você não me ama mais.
Ela ficou imóvel, olhando. Inclinou-se para a caixinha de contas.
— Adianta dizer que não é verdade?
— Não, não adianta. — Colocou o anjo na mesa. E apertou os olhos molhados
de lágrimas, de costas para ela e inclinado para o abajur. — Veja, Lorena, veja…
Os objetos só têm sentido quando têm sentido, fora disso… Eles precisam ser
olhados, manuseados. Como nós. Se ninguém me ama, viro uma coisa ainda mais
triste do que essas, porque ando, falo, indo e vindo como uma sombra, vazio,
vazio. É o peso de papel sem papel, o cinzeiro sem cinza, o anjo sem anjo, fico
aquela adaga ali fora do peito. Para que serve uma adaga fora do peito? —
perguntou e tomou a adaga entre as mãos. Voltou-se, subitamente animado. — É
árabe, hein, Lorena? Uma meia-lua de prata tão aguda… Fui eu que descobri esta
adaga, lembra? Estava na vitrina, quase escondida debaixo de uma bandeja,
lembra?
Ela tomou entre as pontas dos dedos o fio de coral e balançou-o num
movimento de rede.
— Ah, não fale isso! Se você soubesse como gostei daquela bandeja, acho que
nunca mais vou gostar de uma coisa assim… Se pudesse, tomava já um avião,
voltava lá no antiquário do grego barbudo e saía com ela debaixo do braço. As
alças eram cobrinhas se enroscando em folhas e cipós, umas cobrinhas com
orelhas, fiquei apaixonada pelas cobrinhas.
— Mas por que você não comprou?
— Era caríssima, amor. Nossos dólares estavam no fim, o pouco que restou só
11. deu para essas bugigangas.
— Fale baixo, Lorena, fale baixo! — suplicou ele num tom que a fez levantar a
cabeça num sobressalto. Tranquilizou-se quando o viu sacudindo as mãos, afetando
pânico. — Chamar a adaga e o anjo de bugigangas, que é isso! O anjo vai correndo
contar para Deus.
— Não é um anjo intrigante — advertiu, encarando-o. — E antes que me
esqueça, você diz que se ninguém nos ama, viramos coisa fora de uso, sem
nenhuma significação, certo? Pois saiba o senhor que muito mais importante do
que sermos amados é amar, ouviu bem? É o que nos distingue desse peso de papel
que você vai fazer o favor de deixar em cima da mesa antes que quebre, sim?
— O vidro já está ficando quente — disse e fechou o globo nas mãos. Levou-o
ao ouvido, inclinou a cabeça e falou brandamente como se ouvisse o que foi
dizendo: — Quando eu era criança, gostava de comer pasta de dente.
— Que marca?
— Qualquer marca. Tinha uma com sabor de hortelã, era ardido demais e eu
chorava de sofrimento e gozo. Minha irmãzinha que tinha dois anos comia terra.
Ela riu.
— Que família!
Ele riu também, mas logo ficou sério. Sentou-se diante dela, juntou as pernas
e colocou o globo nos joelhos. Cercou-o com as mãos em concha, num gesto de
proteção. Inclinou-se, bafejando sobre o globo.
— Lorena, Lorena, é uma bola mágica!
Voltada para a luz, ela enfiava uma agulha. Umedeceu a ponta da linha,
ergueu a agulha na altura dos olhos estrábicos na concentração e fez a primeira
tentativa. Falhou. Mordiscou de novo a linha e com um gesto incisivo foi
aproximando a linha da agulha. A ponta endurecida do fio varou a agulha sem
obstáculo.
— A cópula.
— Que foi? — perguntou ela, relaxando os músculos. Voltou-se satisfeita para
a caixa de contas. — Que foi, amor?
Ele cobriu o globo com as mãos. Bafejou sobre elas.
— É uma bola de cristal, Lorena — murmurou com voz pesada. Suspirou
gravemente. — Por enquanto só vejo assim uma fumaça, tudo tão embaçado…
— Insista, Miguel. Não está clareando?
— Mais ou menos… espera, a fumaça está sumindo, agora está tão mais claro,
puxa, que nítido! O futuro, Lorena, estou vendo o futuro! Vejo você numa sala… é
esta sala! Você está de vermelho, conversando com um homem.
— Que homem?
12. — Espera, ele ainda está um pouco longe… Agora vejo, é seu pai. Ele está
aflito e você procura acalmá-lo.
— Por que está aflito?
— Porque ele quer que você me interne e você está resistindo, mas tão sem
convicção. Você está cansada, Lorena querida, você está quase chorando e diz que
estou melhor, que estou melhor…
Ela endureceu a fisionomia. Limpou a unha com a ponta da agulha.
— E daí?
— Daí seu pai disse que não melhorei coisa nenhuma, que não há esperança
— repetiu ele inclinando-se, as mãos nos olhos em posição de binóculo postado no
globo. — Espera, está entrando alguém de modo tão esquisito… eu, sou eu! Estou
entrando de cabeça para baixo, andando com as mãos, plantei uma bananeira e
não consegui voltar.
Ela enrolou o fio de contas no pescoço, segurando firme a agulha para as
contas não escaparem. Riu, alisando as contas.
— Plantar bananeira justo nessa hora, amor? Por que você não ficou
comportadinho? Hum?… E o que foi que meu pai fez?
— Baixou a cabeça para não me ver mais. Você então me olhou, Lorena. E não
achou nenhuma graça em mim. Antes você achava.
Vagarosamente ela foi recolhendo o fio. Deslizou as pontas dos dedos pelas
contas maiores, alinhando-as.
— Fico sempre com medo que você desabe e quebre o vaso, os copos. E
depois, cai tudo dos seus bolsos, uma desordem.
Ele recolocou o peso na mesa. Encostou a cabeça na poltrona e ficou olhando
para o teto.
— Tinha um lustre na vitrina do antiquário, lembra? Um lustre divertido, cheio
de pingentes de todas as cores, uns cristaizinhos balançando com o vento, blim-blim…
Estava ao lado da gravura.
— Que gravura?
— Aquela já carunchada, tinha um nome pomposo, Os Funerais do Amor, em
italiano fica bonito, mas não sei mais como é em italiano. Era um cortejo de
bailarinos descalços carregando guirlandas de flores, como se estivessem indo para
uma festa. Mas não era uma festa, estavam todos tristes, os amantes separados e
chorosos atrás do amor morto, um menininho encaracolado e nu, estendido numa
rede. Ou num coche?… Tinha flores espalhadas pela estrada, o cortejo ia indo por
uma estrada. Um fauno menino consolava a amante tão pálida, tão dolorida…
Ela concentrou-se.
— Esse quadro estava na vitrina?
13. — Perto do lustre que fazia blim-blim.
— Não sei, mas assim como você descreveu é triste demais. Juro que não
gostaria de ter um quadro desses em casa.
— Mais triste ainda era o anão.
— Tinha um anão na gravura?
— Não, ele não estava na gravura, estava perto.
— Mas… era um anão de jardim?
— Não, era um anão de verdade.
— Tinha um anão na loja?
— Tinha. Estava morto, um anão morto, de smoking, o caixão estava na
vitrina. Luvas brancas e sapatinhos de fivela. Tudo nele era brilhante, novo, só as
rosas estavam velhas. Não deviam ter posto rosas assim velhas.
— Eram rosas brancas? — perguntou ela guardando o fio de contas na caixa.
Baixou a tampa com um baque metálico. — Eram rosas brancas?
— Brancas.
— As rosas brancas murcham mais depressa. E fazia calor.
Ele inclinou a cabeça para o peito e assim ficou, imóvel, os olhos cerrados, as
pálpebras crispadas. O cigarro apagou-se entre seus dedos.
— Lorena…
— Hum?
— Vamos tomar um chá. Um chá com biscoitos, quero biscoitos.
Ela levantou-se. Fechou o livro que estava lendo.
— Ótimo, faço o chá. Só que o biscoito acabou, posso arrumar umas torradas,
bastante manteiga, bastante sal. Hum?
— Eu vou comprar os biscoitos — disse ele, tomando-lhe a cabeça entre as
mãos. — Minha linda Lorena. Biscoitos para a linda Lorena.
Ela desvencilhou-se rápida.
— Vou pôr água para ferver. Pega o dinheiro, está na minha bolsa.
— No armário?
— Não, em cima da cama, uma bolsa verde.
Ele foi ao quarto, abriu a bolsa e ficou olhando para o interior dela. Tirou o
lenço manchado de ruge. Aspirou-lhe o perfume. Deixou cair o lenço na bolsa,
colocou-a com cuidado no mesmo lugar e voltou para a sala. Pela porta
entreaberta da cozinha pôde ouvir o jorro da torneira. Saiu pisando leve. No
elevador, evitou o espelho. Ficou olhando para os botões, percorrendo com o dedo
um por um até chegar ao botão preto com a letra T, invisível de tão gasta. O
elevador já descia e ele continuava com o dedo no botão, sem apertá-lo, mas
14. percorrendo-o num movimento circular, acariciante. Quando ela gritou, só seus
olhos se desviaram na direção da voz vindo lá de cima e tombando já meio
apagada no poço.
— Miguel, onde está a adaga?! Está me ouvindo, Miguel? A adaga!
Ele abriu a porta do elevador.
— Está comigo.
O porteiro ouviu e foi-se afastando de costas. Teve um gesto de exagerada
cordialidade.
— Uma bela noite! Vai passear um pouco?
Ele parou, olhou o homem. Apressou o passo na direção da rua.
15. Verde Lagarto Amarelo
Ele entrou com seu passo macio, sem ruído, não chegava a ser felino: apenas um
andar discreto. Polido.
— Rodolfo! Onde está você?… Dormindo? — perguntou quando me viu levantar
da poltrona e vestir a camisa. Baixou o tom de voz. — Está sozinho?
Ele sabe muito bem que estou sozinho, ele sabe que sempre estou sozinho.
— Estava lendo.
— Dostoiévski?
Fechei o livro e não pude deixar de sorrir. Nada lhe escapava.
— Queria lembrar uma certa passagem… Só que está quente demais, acho que
este é o dia mais quente desde que começou o verão.
Ele deixou a pasta na cadeira e abriu o pacote de uvas roxas.
— Estavam tão maduras, olha só que beleza — disse tirando um cacho e
balançando-o no ar como um pêndulo. — Prova! Uma delícia.
Com um gesto casual, atirei meu paletó em cima da mesa, cobrindo o
rascunho de um conto que começara naquela manhã.
— Já é tempo de uvas? — perguntei colhendo um bago.
Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa
sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente
apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a
semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente
resguardada lá no fundo como um feto.
— Trouxe também uma coisa… Mostro depois.
Encarei-o. Quando ele sorria ficava menino outra vez. Seus olhos tinham o
mesmo brilho úmido das uvas.
— Que coisa?
— Mas se eu já disse que é surpresa! Mostro depois.
Não insisti. Conhecia de sobra aquela antiga expressão com que vinha me
anunciar que tinha algo escondido no bolso ou debaixo do travesseiro. Acabava
sempre por me oferecer seu tesouro: a maçã, o cigarro, a revistinha pornográfica, o
pacote de suspiros, mas antes ficava algum tempo me rondando com aquele ar de
secreto deslumbramento.
— Vou fazer um café — anunciei.
— Só se for para você, tomei há pouco na esquina.
Era mentira. O bar da esquina era imundo e para ele o café fazia parte de um
16. ritual nobre, limpo. Dizia isso para me poupar, estava sempre querendo me poupar.
— Na esquina?
— Quando comprei as uvas…
Meu irmão. O cabelo louro, a pele bronzeada de sol, as mãos de estátua. E
aquela cor nas pupilas.
— Mamãe achava que seus olhos eram cor de violeta.
— Cor de violeta?
— Foi o que ela disse à tia Débora, meu filho Eduardo tem os olhos cor de
violeta.
Ele tirou o paletó. Afrouxou a gravata.
— Como é que são olhos cor de violeta?
— Cor de violeta — eu respondi abrindo o fogareiro.
Ele riu apalpando os bolsos do paletó até encontrar o cigarro.
— Meu Deus, tinha um canteiro de violetas no jardim de casa… Não eram
violetas, Rodolfo?
— Eram violetas.
— E uma parreira, lembra? Nunca conseguimos um cacho maduro daquela
parreira — disse amarfanhando com um gesto afetuoso o papel das uvas. — Até
hoje não sei se eram doces. Eram doces?
— Também não sei, você não esperava amadurecer.
Vagarosamente ele tirou as abotoaduras e foi dobrando a manga da camisa
com aquela arte toda especial que tinha de dobrá-la sem fazer rugas, na exata
medida do punho. Os braços musculosos de nadador. Os pelos dourados. Fiquei a
olhar as abotoaduras que tinham sido do meu pai.
— A Ofélia quer que você almoce domingo com a gente. Ela releu seu romance
e ficou no maior entusiasmo, gostou ainda mais do que da primeira vez, você
precisa ver com que interesse analisou as personagens, discutiu os detalhes…
— Domingo já tenho um compromisso — eu disse enchendo a chaleira de
água.
— E sábado? Não me diga que sábado você também não pode.
Aproximei-me da janela. O sopro do vento era ardente como se a casa
estivesse no meio de um braseiro. Respirei de boca aberta agora que ele não me
via, agora que eu podia amarfanhar a cara como ele amarfanhara o papel.
Esfreguei nela o lenço, até quando, até quando?!… E me trazia a infância, será que
ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê?
Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar nada, não quero
saber de nada! Fecho os olhos. Está amanhecendo e o sol está longe, tem brisa na
campina, cascata, orvalho gelado deslizando na corola, chuva fina no meu cabelo, a
17. montanha e o vento, todos os ventos soprando. Os ventos! Vazio. Imobilidade e
vazio. Se eu ficar assim imóvel, respirando leve, sem ódio, sem amor, se eu ficar
assim um instante, sem pensamento, sem corpo…
— E sábado? Ela quer fazer aquela torta de nozes que você adora.
— Cortei o açúcar, Eduardo.
— Mas saia um pouco do regime, você emagreceu, não emagreceu?
— Ao contrário, engordei. Não está vendo? Estou enorme.
— Não é possível! Assim de costas você me pareceu tão mais magro, palavra
que eu já ia perguntar quantos quilos você perdeu.
Agora a camisa se colava ao meu corpo. Limpei as mãos viscosas no peitoril da
janela e abri os olhos que ardiam, o sal do suor é mais violento do que o sal das
lágrimas. “Esse menino transpira tanto, meus céus! Acaba de vestir roupa limpa e
já começa a transpirar, nem parece que tomou banho. Tão desagradável!…” Minha
mãe não usava a palavra suor que era forte demais para seu vocabulário, ela
gostava das belas palavras. Das belas imagens. Delicadamente falava em
transpiração com aquela elegância em vestir as palavras como nos vestia. Com a
diferença que Eduardo se conservava limpo como se estivesse numa redoma, as
mãos sem poeira, a pele fresca. Podia rolar na terra e não se conspurcava, nada
chegava a sujá-lo realmente porque mesmo através da sujeira podia se ver que
estava intacto. Eu não. Com a maior facilidade me corrompia lustroso e gordo, o
suor a escorrer pelo pescoço, pelos sovacos, pelo meio das pernas. Não queria
suar, não queria mas o suor medonho não parava de escorrer manchando a camisa
de amarelo com uma borda esverdinhada, suor de bicho venenoso, traiçoeiro,
malsão. Enxugava depressa a testa, o pescoço, tentava num último esforço salvar
ao menos a camisa. Mas a camisa já era uma pele enrugada aderindo à minha com
meu cheiro, com a minha cor. Era menino ainda mas houve um dia em que quis
morrer para não transpirar mais.
— Na noite passada sonhei com nossa antiga casa — disse ele aproximando-se
do fogareiro. Destapou a chaleira, espiou dentro. — Não me lembro bem mas
parece que a casa estava abandonada, foi um sonho estranho…
— Também sonhei com a casa mas já faz tempo — eu disse.
Ele aproximou-se. Esquivei-me em direção ao armário. Tirei as xícaras.
— Mamãe apareceu no seu sonho? — perguntou ele.
— Apareceu. O pai tocava piano e mamãe…
Rodopiávamos vertiginosos numa valsa e eu era magro, tão magro que meus
pés mal roçavam o chão, senti mesmo que levantavam voo e eu ria enlaçando-a
em volta do lustre quando de repente o suor começou a escorrer, escorrer.
— Ela estava viva?
Seu vestido branco se empapava do meu suor amarelo-verde mas ela
18. continuava dançando, desligada, remota.
— Estava viva, Rodolfo?
— Não, era uma valsa póstuma — eu disse colocando na frente dele a xícara
perfeita. Reservei para mim a que estava rachada. — Está reconhecendo essa
xícara?
Ele tomou-a pela asa. Examinou-a. Sua fisionomia se iluminou com a graça de
um vitral varado pelo sol.
— Ah!… as xicrinhas japonesas. Sobraram muitas ainda?
O aparelho de chá, o faqueiro, os cristais e os tapetes tinham ficado com ele.
Também os lençóis bordados, obriguei-o a aceitar tudo. Ele recusava, chegou a se
exaltar, “Não quero, não é justo, não quero! Ou você fica com a metade ou então
não aceito nada! Amanhã você pode se casar também…”. Nunca, respondi. Moro
só, gosto de tudo sem nenhum enfeite, quanto mais simples melhor. Ele parecia
não ouvir uma só palavra enquanto ia amontoando os objetos em duas porções,
“Olha, isto você leva que estava no seu quarto…”. Tive que recorrer à violência. Se
você teimar em me deixar essas coisas, assim que você virar as costas jogo tudo
na rua! Cheguei a agarrar uma jarra, No meio da rua! Ele empalideceu, os lábios
trêmulos. “Você jamais faria isso, Rodolfo. Cale-se, por favor, que você não sabe o
que está dizendo.” Passei as mãos na cara ardente. E a voz da minha mãe vindo
das cinzas: “Rodolfo, por que você há de entristecer seu irmão? Não vê que ele
está sofrendo? Por que você faz assim?!”. Abracei-o. Ouça, Eduardo, sou um tipo
mesmo esquisito, você está farto de saber que sou meio louco. Não quero, não sei
explicar mas não quero, está me entendendo? Leve tudo à Ofélia, presente meu.
Não posso dar a vocês um presente de casamento? Para não dizer que não fico
com nada, olha… está aqui, pronto, fico com essas xícaras!
— Finas como casca de ovo — disse ele batendo com a unha na porcelana. —
Ficavam na prateleira do armário rosado, lembra? Esse armário está na nossa
saleta.
Despejei água fervente na caneca. O pó de café foi se diluindo resistente,
difícil. Minha mãe. Depois, Ofélia. Por que não haveria de ficar também com os
lençóis?
— E Ofélia? Para quando o filho?
Ele apanhou a pilha de jornais velhos que estavam no chão, ajeitou-a
cuidadosamente e esboçou um gesto de procura, devia estar sentindo falta de um
lugar certo para serem guardados os jornais já lidos. Teve uma expressão de
resignado bom humor, mas então a desordem do apartamento comportava um
móvel assim supérfluo? Enfiou a pilha na prateleira da estante e voltou-se para
mim. Ficou me seguindo com o olhar enquanto eu procurava no armário debaixo da
pia a lata onde devia estar o açúcar. Uma barata fugiu atarantada, escondendo-se
debaixo de uma tampa de panela e logo uma outra maior se despencou não sei de
19. onde e tentou também o mesmo esconderijo. Mas a fresta era estreita e ela mal
conseguiu esconder a cabeça, ah, o mesmo humano desespero na procura de um
abrigo. Abri a lata de açúcar e esperei que ele dissesse que havia um novo sistema
de acabar com as baratas, era facílimo, bastava chamar pelo telefone e já aparecia
o homem de farda cáqui e bomba em punho e num segundo pulverizava tudo.
Tinha em casa o número do telefone, nem baratas nem formigas.
— No próximo mês, parece. Está tão lépida que nem acredito que esteja nas
vésperas — disse ele me contornando pelas costas. Não perdia um só dos meus
movimentos. — E adivinha agora quem vai ser o padrinho.
— Que padrinho?
— Do meu filho, ora!
— Não tenho a menor ideia.
— Você.
Minha mão tremia como se ao invés de açúcar eu estivesse mergulhando a
colher em arsênico. Senti-me infinitamente mais gordo. Mais vil. Tive vontade de
vomitar.
— Não faz sentido, Eduardo. Não acredito em Deus, não acredito em nada.
— E daí? — perguntou ele, servindo-se de mais açúcar ainda. Atraiu-me quase
num abraço. — Fique tranquilo, eu acredito por nós dois.
Tomei de um só trago o café amargo. Uma gota de suor pingou no pires.
Passei a mão pelo queixo. Não pudera ser pai, seria padrinho. Não era um ser
amável? Um casal amabilíssimo. A pretexto de aquecer o café, fiquei de costas e
então esfreguei furtivamente o pano de prato na cara.
— Era essa a surpresa? — perguntei e ele me olhou com inocência. Repeti a
pergunta: — A surpresa! Quando chegou você disse que…
— Ah! não, não! Não é isso não — exclamou e riu apertando os olhos que riam
também com uma ponta de malícia. — A surpresa é outra. Se der certo, Rodolfo, se
der certo!… Enfim, você é quem vai decidir. Ponho nas suas mãos.
Era exatamente a expressão da minha mãe quando vinha me preparar para
uma boa notícia. Rondava, rondava e ficava me observando reticente, saboreando
o segredo até o momento em que não resistia mais e contava. A condição era
invariável: “Mas você vai me prometer que não vai comer nenhum doce durante
uma semana, só uma semana!”.
E se ele fosse morar longe? Podia tão bem se mudar de cidade, viajar. Mas
não. Precisava ficar por perto, sempre em redor, me olhando. Desde pequeno, no
berço já me olhava assim. Não precisaria me odiar, eu nem pediria tanto, bastava
me ignorar, se ao menos me ignorasse. Era bonito, inteligente, amado, conseguiu
sempre fazer tudo muito melhor do que eu, muito melhor do que os outros, em
suas mãos as menores coisas adquiriam outra importância, como que se
20. renovavam. E então? Natural que esquecesse o irmão obeso, malvestido,
malcheiroso. Escritor, sim, mas nem aquele tipo de escritor de sucesso, convidado
para festas, dando entrevistas na televisão: um escritor de cabeça baixa e calado,
abrindo com as mãos em garra seu caminho. Se ao menos ele… mas não, claro que
não, desde menino eu já estava condenado ao seu fraterno amor. Às vezes me
escondia no porão, corria para o quintal, subia na figueira, ficava imóvel, um
lagarto no vão do muro, pronto, agora não vai me achar. Mas ele abria portas,
vasculhava armários, abria a folhagem e ficava rindo por entre lágrimas.
Engatinhava ainda quando saía à minha procura, farejando meu rastro. “Rodolfo,
não faça seu irmãozinho chorar, não quero que ele fique triste!” Para que ele não
ficasse triste, só eu soube que ela ia morrer. “Você já é grande, você deve saber a
verdade”, disse meu pai olhando reto nos meus olhos. “É que sua mãe não tem
nem…” Não completou a frase. Voltou-se para a parede e ali ficou de braços
cruzados, os ombros curvos. “Só eu e você sabemos. Ela desconfia mas de jeito
nenhum quer que seu irmãozinho saiba, está entendendo?” Eu entendia. Na sua
última festa de aniversário ficamos reunidos em redor da cama. “Laura é como o
rei daquela história”, disse meu pai, dando-lhe de beber um gole de vinho. “Só que
ao invés de transformar tudo em ouro, quando toca nas coisas, transforma tudo em
beleza.” Com os olhos cozidos de tanto chorar, ajoelhei-me e fingindo arrumar-lhe
o travesseiro, pousei a cabeça ao alcance da sua mão, ah, se me tocasse com um
pouco de amor. Mas ela só via o broche, um caco de vidro que Eduardo achou no
quintal e enrolou em fiozinhos de arame formando um casulo, “Mamãezinha
querida, eu que fiz para você!”. Ela beijou o broche. E o arame ficou sendo prata e
o caco de garrafa ficou sendo esmeralda. Foi o broche que lhe fechou a gola do
vestido. Quando me despedi, apertei sua mão gelada contra minha boca, e eu,
mamãe, e eu?…
— Esqueci de oferecer biscoitos, olha aí, você gosta — eu disse tirando a lata
do armário.
— É sua empregada quem faz?
— Minha empregada só vem uma vez por semana, comprei na rua —
acrescentei e lancei-lhe um olhar. Que surpresa era essa agora? O que é que eu
devia decidir? Eu devia decidir, ele disse. Mas o quê?… Interpelei-o: — Que é que
você está escondendo, Eduardo? Não vai me dizer?
Ele pareceu não ter ouvido uma só palavra. Quebrou a cinza do cigarro, soprou
o pouco que lhe caiu na calça e inclinou-se para os biscoitos.
— Ah!… rosquinhas. Ofélia aprendeu a fazer sequilhos no caderno de receitas
da mamãe mas estão longe de ser como aqueles.
Ele comia sequilhos quando entrei no quarto. Ao lado, a caneca de chocolate
fumegante. Eu tinha tomado chá. Chá. Dei uma volta em redor dele. O Júlio já está
na esquina esperando, avisei. Veio me dizer que tem que ser agora. Ele então se
levantou, calçou a sandália, tirou o relógio de pulso e a correntinha do pescoço.
21. Dirigiu-se para a porta com uma firmeza que me espantou. Vi-o ensanguentado, a
roupa em tiras. Você é menor, Eduardo, você vai apanhar feito cachorro! Ele abriu
os braços. “E daí? Quer que a turma me chame de covarde?” Sentei-me na cadeira
onde ele estivera e ali fiquei encolhido, tomando o chocolate e comendo sequilhos.
Tinha a boca cheia quando ouvi a voz da minha mãe chamando: “Rodolfo,
Rodolfo!”. Agora ela o carregava em prantos, tentando arrancar-lhe o canivete
enterrado no peito até o cabo.
— Procurei seu romance em duas livrarias e não encontrei, queria dar a uns
amigos. Está esgotado, Rodolfo? O vendedor disse que vende demais.
— Exagero. Talvez se esgote mas não já.
A boca cheia de sequilhos e o suor escorrendo por todos os poros, escorrendo.
A voz da minha mãe insistiu enérgica: “Rodolfo, você está me ouvindo? Onde está
o Eduardo?!”. Entrei no quarto dela. Estava deitada, bordando. Assim que me viu,
sua fisionomia se confrangeu. Deixou o bordado e ficou balançando a cabeça. “Mas,
filho, comendo de novo?! Quer engordar mais ainda? Hum?…” Suspirou, dolorido.
“Onde está seu irmão?” Encolhi os ombros, Não sei, não sou pajem dele. Ela ficou
me olhando. “Essa é maneira de me responder, Rodolfo? Hein?!…” Desci a escada
comendo o resto dos sequilhos que escondi nos bolsos. O silêncio me seguiu
descendo a escada degrau por degrau, colado ao chão, viscoso, pesado. Parei de
mastigar. E de repente me precipitei pela rua afora, eu o queria vivo, o canivete
não! Encontrei-o sentado na sarjeta, a camisa rasgada, um arranhão fundo na
testa. Sorriu palidamente. Ofegava. Júlio tinha acabado de fugir. Cravei o olhar no
seu peito. Mas ele não usou o canivete? perguntei. Apoiando-se na árvore,
levantou-se com dificuldade, tinha torcido o pé. “Que canivete?…” Baixando a
cabeça que latejava, inclinei-me até o chão. Você não pode andar, eu disse
apoiando as mãos nos joelhos. Vamos, monta em mim. Ele obedeceu. Estranhei,
era tão magro, não era? Mas pesava como chumbo. O sol batia em cheio em nós
enquanto o vento levantava as tiras da sua camisa rasgada. Vi nossa sombra no
muro, as tiras se abrindo como asas. Enlaçou-me mais fortemente, encostou o
queixo no meu ombro e teve um breve soluço, “Que bom que você veio me
buscar…”.
— Seu novo romance? — perguntou ele na maior excitação. Encontrara o
rascunho em cima da mesa. — Posso ler, Rodolfo? Posso?
Tirei-lhe as folhas das mãos e fechei-as na gaveta. Era o que me restara,
escrever. Será possível que ele também?…
— Não, não é possível, Eduardo — eu disse, tentando abrandar a voz. — Está
tudo muito no início, trabalho mal no calor — acrescentei meio distraidamente.
Olhei para sua pasta na cadeira e adivinhei a surpresa. Senti meu coração se
fechar como uma concha. A dor era quase física. Olhei para ele. Você escreveu um
22. romance. É isso? Os originais estão na pasta… É isso?
Ele então abriu a pasta.
23. Apenas um Saxofone
Anoiteceu e faz frio. “Merde! voilà l’hiver” é o verso que segundo Xenofonte cabe
dizer agora. Aprendi com ele que palavrão em boca de mulher é como lesma em
corola de rosa. Sou mulher, logo, só posso dizer palavrão em língua estrangeira, se
possível, fazendo parte de um poema. Então as pessoas em redor poderão ver
como sou autêntica e ao mesmo tempo erudita. Uma puta erudita, tão erudita que
se quisesse podia dizer as piores bandalheiras em grego antigo, o Xenofonte sabe
grego antigo. E a lesma ficaria irreconhecível como convém a uma lesma numa
corola de quarenta e quatro anos. Quarenta e quatro anos e cinco meses, meu
Jesus. Foi rápido, não? Rápido. Mais seis anos e terei meio século, tenho pensado
muito nisso e sinto o próprio frio secular que vem do assoalho e se infiltra no
tapete. Meu tapete é persa, todos meus tapetes são persas mas não sei o que
fazem esses bastardos que não impedem que o frio se instale na sala. Fazia menos
frio no nosso quarto, com as paredes forradas de estopa e o tapetinho de juta no
chão, ele mesmo forrou as paredes e pregou retratos de antepassados e gravuras
da Virgem de Fra Angelico, tinha paixão por Fra Angelico.
Onde agora? Onde? Podia mandar acender a lareira mas despedi o copeiro, a
arrumadeira, o cozinheiro — despedi um por um, me deu um desespero e mandei a
corja toda embora, rua, rua! Fiquei só. Há lenha em algum lugar da casa mas não é
só riscar o fósforo e tocar na lenha como se vê no cinema, o japonês ficava horas aí
mexendo, soprando até o fogo acender. E eu mal tenho forças para acender o
cigarro. Estou aqui sentada faz não sei quanto tempo. Desliguei o telefone, me
enrolei na manta, trouxe a garrafa de uísque e estou aqui bebendo bem
devagarinho para não ficar de porre, hoje não, hoje quero ficar lúcida, vendo uma
coisa, vendo outra. E tem coisa à beça para ver tanto por dentro como por fora,
ainda mais por fora, uma porrada de coisas que comprei no mundo inteiro, coisas
que nem sabia que tinha e que só vejo agora, justo agora que está escuro. É que
fomos escurecendo juntas, a sala e eu. Uma sala de uma burrice atroz, afetada,
pretensiosa. E sobretudo rica, exorbitando de riqueza, abri um saco de ouro para o
decorador se esbaldar nele. E se esbaldou mesmo, o viado. Chamava-se Renê e
chegava logo cedinho com suas telas, veludos, musselinas, brocados, “Trouxe hoje
para o sofá um pano que veio do Afeganistão, completamente divino! Di-vino!”.
Nem o pano era do Afeganistão nem ele era tão viado assim, tudo mistificação,
cálculo. Surpreendi-o certa vez sozinho, fumando perto da janela, a expressão
fatigada de um ator que já está farto de representar. Assustou-se quando me viu,
como se o tivesse apanhado em flagrante roubando um talher de prata. Então
retomou o gênero borbulhante e saiu se rebolando todo para me mostrar o
oratório, um oratório falsamente antigo, tudo feito há três dias mas com furinhos
na madeira imitando caruncho de três séculos. “Este anjo só pode ser do
24. Aleijadinho, veja as bochechas! E os olhos de cantos caídos, um nadinha
estrábicos…” Eu concordava no mesmo tom histérico, embora soubesse
perfeitamente que o Aleijadinho teria que ter mais de dez braços para conseguir
fazer tanto anjo assim, a casa de Madô também tem milhares deles, todos
autênticos, “Um nadinha estrábicos”, repetiu ela com a voz em falsete de Renê.
Bossa colonial de grande luxo. E eu sabendo que estava sendo enganada e não me
importando, ao contrário, sentindo um agudo prazer em comer gato por lebre. Li
ontem que já estão comendo ratos em Saigon e li ainda que já não há mais
borboletas por lá, nunca mais haverá a menor borboleta… Desatei então a chorar
feito louca, não sei se por causa das borboletas ou dos ratos. Acho que nunca bebi
tanto como ultimamente e quando bebo assim fico sentimental, choro à toa. “Você
precisa se cuidar”, Renê disse na noite em que ficamos de fogo, só agora penso
nisso que ele me disse, por que devo me cuidar, por quê? Contratei-o para fazer
em seguida a decoração da casa de campo, “Tenho os móveis ideais para essa sua
casa”, ele avisou e eu comprei os móveis ideais, comprei tudo, compraria até a
peruca de Maria Antonieta com todos os seus labirintos feitos pelas traças e mais a
poeira pela qual não me cobraria nada, simples contribuição do tempo, é claro. É
claro.
Onde agora? Às vezes eu fechava os olhos e os sons eram como voz humana
me chamando, me envolvendo, Luisiana, Luisiana! Que sons eram aqueles? Como
podiam parecer voz de gente e serem ao mesmo tempo tão mais poderosos, tão
puros? E singelos como ondas se renovando no mar, aparentemente iguais, só
aparentemente. “Este é o meu instrumento”, disse ele deslizando a mão pelo
saxofone. Com a outra mão em concha, cobriu meu peito: “e esta é a minha
música”.
Onde, onde? Olho meu retrato em cima da lareira. “Na lareira tem que ficar
seu retrato”, determinou Renê num tom autoritário, às vezes ele era autoritário.
Apresentou-me seu namorado, pintor, pelo menos me fazia crer que era seu
namorado porque agora já não sei mais nada. E o efebo de caracóis na testa me
pintou toda de branco, uma Dama das Camélias voltando do campo, o vestido
comprido, o pescoço comprido, tudo assim esgalgado e iluminado como se eu
tivesse o próprio anjo tocheiro da escada aceso dentro de mim. Tudo já escureceu
na sala menos o vestido do retrato, lá está ele, diáfano como a mortalha de um
ectoplasma pairando suavíssimo no ar. Um ectoplasma muito mais jovem do que
eu, sem dúvida o puxa-saco do efebo era suficientemente esperto para imaginar
como eu devia ser aos vinte anos. “Você no retrato parece um pouco diferente”,
concedeu ele, “mas o caso é que não estou pintando só seu rosto”, acrescentou
muito sutil. Queria dizer com isso que estava pintando minha alma. Concordei na
hora, fiquei até comovida quando me vi de cabeleira elétrica e olhos vidrados. “Meu
nome é Luisiana”, me diz agora o ectoplasma. “Há muitos anos mandei embora o
meu amado e desde então morri.”
Onde?… Tenho um iate, tenho um casaco de vison prateado, tenho uma coroa
25. de diamantes, tenho um rubi que já esteve incrustado no umbigo de um xá
famosíssimo, até há pouco eu sabia o nome desse xá. Tenho um velho que me dá
dinheiro, tenho um jovem que me dá gozo e ainda por cima tenho um sábio que
me dá aulas sobre doutrinas filosóficas com um interesse tão platônico que logo na
segunda aula já se deitou comigo. Vinha tão humilde, tão miserável com seu terno
de luto empoeirado e botinas de viúvo que fechei os olhos e me deitei, Vem,
Xenofonte, vem. “Não sou Xenofonte, não me chame de Xenofonte”, ele me
implorou e seu hálito tinha o cheiro recente de pastilhas Valda, era Xenofonte,
nunca houve ninguém tão Xenofonte quanto ele. Como nunca houve uma Luisiana
tão Luisiana como eu, ninguém sabe desse nome, ninguém, nem o cáften do meu
pai que nem esperou eu nascer para ver como eu era, nem a coitadinha da minha
mãe que não viveu nem para me registrar. Nasci naquela noite na praia e naquela
noite recebi um nome que durou enquanto durou o amor. Outra madrugada,
quando enchi a cara e fui falar com meu advogado para não pôr no meu túmulo
outro nome senão esse, ele deu aquela risadinha execrável, “Luisiana? Mas por que
Luisiana? De onde você tirou esse nome?”. Controlou-se para não me chacoalhar
por tê-lo acordado àquela hora, vestiu-se e muito polidamente me trouxe para
casa, “Como queira, minha querida, você manda!”. E deu sua risadinha, Enfim, uma
puta bêbada mas rica tem o direito de botar no túmulo o nome que bem entender,
foi o que provavelmente pensou. Mas já não me importo com o que pensa, ele e
mais a cambada toda que me cerca, opinião alheia é este tapete, este lustre,
aquele retrato. Opinião alheia é esta casa com os santos varados por mil cargas.
Mas antes eu me importava e como. Por causa dessa opinião tenho hoje um
piano de cauda, tenho um gato siamês com uma argola na orelha, tenho uma
chácara com piscina e nos banheiros, papel higiênico com florinhas douradas que o
velho trouxe de Nova York junto com o estojo plástico que toca uma musiquinha
enquanto a gente vai desenrolando o papel, “Oh! My Last Rose of Summer!…”.
Quando me deu os rolos, deu também os potes de caviar, “É preciso dourar a
pílula”, disse rindo com sua grossura habitual, é um grosso sem remédio, se não
cuspisse dólar eu já o teria mandado para aquela parte com seus tacos de golfe e
cuecas perfumadas com lavanda. Tenho sapato com fivela de diamante e um
aquário com uma floresta de coral no fundo, quando o velho me deu a pérola,
achou originalíssimo escondê-la no fundo do aquário e me mandar procurar: “Está
ficando quente, mais quente. Não, agora esfriou!…”. E eu me fazia menininha e ria
quando minha vontade mesmo era dizer-lhe que enfiasse a pérola no rabo e me
deixasse em paz, Me deixa em paz! ele, o jovem ardente com todos os seus
ardores, Xenofonte com seu hálito de hortelã — enxotar todos como fiz com a
criadagem, todos uns sacanas que mijam no meu leite e se torcem de rir quando
fico para cair de bêbada.
Onde, meu Deus? Onde agora? Tenho também um diamante do tamanho de
um ovo de pomba. Trocaria o diamante, o sapato de fivela, o iate — trocaria tudo,
anéis e dedos, para poder ouvir um pouco que fosse a música do saxofone. Nem
26. seria preciso vê-lo, juro que nem pediria tanto, eu me contentaria em saber que ele
está vivo, vivo em algum lugar, tocando seu saxofone.
Quero deixar bem claro que a única coisa que existe para mim é a juventude,
tudo o mais é besteira, lantejoulas, vidrilho. Posso fazer duas mil plásticas e não
resolve, no fundo é a mesma bosta, só existe a juventude. Ele era a minha
juventude mas naquele tempo eu não sabia, na hora a gente nunca sabe nem pode
mesmo saber, fica tudo natural como o dia que sucede à noite, como o sol, a lua,
eu era jovem e não pensava nisso como não pensava em respirar. Alguém por
acaso fica atento ao ato de respirar? Fica, sim, mas quando a respiração se
esculhamba. Então dá aquela tristeza, puxa, eu respirava tão bem…
Ele era a minha juventude, ele e seu saxofone que luzia como ouro. Seus
sapatos eram sujos, a camisa despencada, a cabeleira um ninho, mas o saxofone
estava sempre meticulosamente limpo. Tinha também mania com os dentes que
eram de uma brancura que nunca vi igual, quando ele ria eu parava de rir só para
ficar olhando. Trazia a escova de dentes no bolso e mais a fralda para limpar o
saxofone, achou num táxi uma caixa com uma dúzia de fraldas Johnson e desde
então passou a usá-las para todos os fins: era o lenço, a toalha de rosto, o
guardanapo, a toalha de mesa e o pano de limpar o saxofone. Foi também a
bandeira de paz que usou na nossa briga mais séria, quando quis que tivéssemos
um filho. Tinha paixão por tanta coisa…
A primeira vez que nos amamos foi na praia. O céu palpitava de estrelas e
fazia calor. Então fomos rolando e rindo até às primeiras ondas que ferviam na
areia e ali ficamos nus e abraçados na água morna como a de uma bacia.
Preocupou-se quando lhe disse que não fora sequer batizada. Colheu a água com
as mãos em concha e despejou na minha cabeça: “Eu te batizo, Luisiana, em nome
do Padre, do Filho e do Espírito Santo. Amém”. Pensei que ele estivesse brincando
mas nunca o vi tão grave. “Agora você se chama Luisiana”, disse me beijando a
face. Perguntei-lhe se acreditava em Deus. “Tenho paixão por Deus”, sussurrou
deitando-se de costas, as mãos entrelaçadas debaixo da nuca, o olhar perdido no
céu: “O que mais me deixa perplexo é um céu assim como este”. Quando nos
levantamos correu até a duna onde estavam nossas roupas, tirou a fralda que
cobria o saxofone e trouxe-a delicadamente nas pontas dos dedos para me enxugar
com ela. Aí pegou o saxofone, sentou-se encaracolado e nu como um fauno menino
e começou a improvisar bem baixinho, formando com o fervilhar das ondas uma
melodia terna. Quente. Os sons cresciam tremidos como bolhas de sabão, olha esta
que grande! olha esta agora mais redonda… ah, estourou! Se você me ama você é
capaz de ficar assim nu naquela duna e tocar, tocar o mais alto que puder até que
venha a polícia? eu perguntei. Ele me olhou sem pestanejar e foi correndo em
direção à duna e eu corria atrás e gritava e ria, ria porque ele já tinha começado a
tocar a plenos pulmões.
Minha companheira do curso de dança casou-se com o baterista de um
27. conjunto que tocava numa boate, houve festa. Foi lá que o conheci. Em meio da
maior algazarra do mundo a mãe da noiva se trancou no quarto chorando, “Veja
em que meio minha filha foi cair! Só vagabundos, só cafajestes!…”. Deitei-a na
cama e fui buscar um copo de água com açúcar mas na minha ausência os
convidados descobriram o quarto e quando voltei os casais já tinham transbordado
até ali, atracando-se em almofadas pelo chão. Pulei gente e sentei-me na cama. A
mulher chorava, chorava até que aos poucos o choro foi esmorecendo e de repente
parou. Eu também tinha parado de falar e ficamos as duas muito quietas, ouvindo
a música de um moço que eu ainda não tinha visto. Ele estava sentado na
penumbra, tocando saxofone. A melodia era mansa mas ao mesmo tempo tão
eloquente que fiquei imersa num sortilégio. Nunca tinha ouvido nada parecido,
nunca ninguém tinha tocado um instrumento assim. Tudo o que tinha querido dizer
à mulher e não conseguira, ele dizia agora com o saxofone: que ela não chorasse
mais, tudo estava bem, tudo estava certo quando existia o amor. Tinha Deus, ela
não acreditava em Deus? perguntava o saxofone. E tinha a infância, aqueles sons
brilhantes falavam agora da infância, olha aí a infância!… A mulher parou de chorar
e agora era eu que chorava. Em redor, os casais ouviam num silêncio fervoroso e
suas carícias foram ficando mais profundas, mais verdadeiras porque a melodia
também falava do sexo vivo e casto como um fruto que amadurece ao vento e ao
sol.
Onde? Onde?… Levou-me para o seu apartamento, ocupava um minúsculo
apartamento no décimo andar de um prédio velhíssimo, toda a sua fortuna era
aquele quarto com um banheiro mínimo. E o saxofone. Contou-me que recebera o
apartamento como herança de uma tia cartomante. Depois, num outro dia disse
que o ganhara numa aposta e quando outro dia ainda começou a contar uma
terceira história, interpelei-o e ele começou a rir, “É preciso variar as histórias,
Luisiana, o divertido é improvisar que para isso temos imaginação! É triste quando
um caso fica a vida inteira igual…”. E improvisava o tempo todo e sua música era
sempre ágil, rica, tão cheia de invenções que chegava a me afligir, Você vai
compondo e vai perdendo tudo, você tem que tomar nota, tem que escrever o que
compõe! Ele sorria. “Sou um autodidata, Luisiana, não sei ler nem escrever música
e nem é preciso para ser um sax-tenor, sabe o que é um sax-tenor? É o que eu
sou.” Tocava num conjunto que tinha contrato com uma boate e sua única ambição
era ter um dia um conjunto próprio. E ter um toca-discos de boa qualidade para
ouvir Ravel e Debussy.
Nossa vida foi tão maravilhosamente livre! E tão cheia de amor, como nos
amamos e rimos e choramos de amor naquele décimo andar, cercados por gravuras
de Fra Angelico e retratos dos antepassados dele. “Não são meus parentes, achei
tudo isso no baú de um porão”, confessou-me certa vez. Apontei para o mais antigo
dos retratos, tão antigo que da mulher só restava a cabeleira escura. E as
sobrancelhas. Esta você também achou no baú? perguntei. Ele riu e até hoje fiquei
sem saber se era verdade ou não. Se você me ama mesmo, eu disse, suba então
28. naquela mesa e grite com todas as forças, Vocês são todos uns cornudos, vocês
são todos uns cornudos! e depois desça da mesa e saia mas sem correr. Ele me
deu o saxofone para segurar enquanto eu fugia rindo, Não, não, eu estava
brincando, isso não! Já na esquina ouvi seus gritos em pleno bar, “Cornudos, todos
cornudos!”. Alcançou-me em meio da gente estupefata, “Luisiana, Luisiana, não me
negue, Luisiana!”. Outra noite — saímos de um teatro — não resisti e perguntei-lhe
se era capaz de cantar ali no saguão um trecho de ópera, Vamos, se você me ama
mesmo, cante agora aqui na escada um trecho do Rigoletto!
Se você me ama mesmo, me leva agora a um restaurante, me compre já
aqueles brincos, me compre imediatamente um vestido novo! Ele agora tocava em
mais lugares porque eu estava ficando exigente, se você me ama mesmo, mesmo,
mesmo… Saía às sete da noite com o saxofone debaixo do braço e só voltava de
manhãzinha. Então limpava meticulosamente o bocal do instrumento, lustrava o
metal com a fralda e ficava dedilhando distraidamente, sem nenhum cansaço, sem
nenhum desgaste, “Luisiana, você é a minha música e eu não posso viver sem
música”, dizia abocanhando o bocal do saxofone com o mesmo fervor com que
abocanhava meu peito. Comecei a ficar irritadiça, inquieta, era como se tivesse
medo de assumir a responsabilidade de tamanho amor. Queria vê-lo mais
independente, mais ambicioso. Você não tem ambição? Não usa mais artista sem
ambição, que futuro você pode ter assim? Era sempre o saxofone quem me
respondia e a argumentação era tão definitiva que me envergonhava e me sentia
miserável por estar exigindo mais. Contudo, exigia. Pensei em abandoná-lo mas
não tive forças, não tive, preferi que nosso amor apodrecesse, que ficasse tão
insuportável que quando ele fosse embora saísse cheio de nojo, sem olhar para
trás.
Onde agora? Onde? Tenho uma casa de campo, tenho um diamante do
tamanho de um ovo de pomba… Eu pintava os olhos diante do espelho, tinha um
compromisso, vivia cheia de compromissos, ia a uma boate com um banqueiro.
Enrodilhado na cama, ele tocava em surdina. Meus olhos foram ficando cheios de
lágrimas. Enxuguei-os na fralda do saxofone e fiquei olhando para minha boca. Os
lábios estavam mais finos assim crispados. Desviei o olhar do espelho. Se você me
ama mesmo, eu disse, se você me ama mesmo então saia e se mate
imediatamente.
29. Helga
Ela era uma só. Não havia outra e se quisesse compará-la com alguma coisa, seria
com os tenros cogumelos dos bosques ou com as manhãs de bicicleta nas estradas
impecáveis ou com as primeiras cerejas da primavera. Era uma, una, única, apesar
de ter uma só perna, aliás bela como ela toda. Mas é cedo para falar não sobre sua
beleza — que deve ser lembrada sem enfado quantas vezes forem necessárias —
mas cedo para falar sobre a perna que vai exigir explicação. A perna envolve
viagem, guerra, a perna vai tão além… Sem esclarecimento tudo será apenas
crueldade.
É bom dizer logo quem eu sou: Paulo Silva, brasileiro. Mas fui alemão. Filho de
alemã de Santa Catarina e desse Silva brasileiro que não cheguei a conhecer. Mãe
alemã nascida no Vale do Itajaí, neta de proprietários em Vila Corinto desde 1890,
pude ver isso nos papéis. Mas alemã malvista porque se casou com o Silva, Paulo
também, o que me faria Paulo Silva Filho. Mas nada disso vigorou, na escola eu já
era Paul sem o o, Paul Karsten. E o destino amável de um Paul Karsten, ginasiano
de Blumenau em 1935, eram férias, cursos de aperfeiçoamento, amizades e
amores na Alemanha. De Hitler, é bom lembrar. E não havia nada melhor, a
começar pela viagem no Monte Pascoal, classe única com escalas na Bahia, em
Madeira, Lisboa, e depois Hamburgo até os verões intermináveis nas Casas da
Juventude, com excursões, piqueniques, bicicletas, cerejas e sexo em meio do
cansaço feliz e da dose exata de melancolia. Jugendhaus, era esse o nome dessas
casas e pensar nelas me faz pensar em fonte e musgo. As viagens seguintes, três
ao todo, foram marcadas pelas aulas cheias de simplicidade e exaltação. E a nossa,
a minha particular importância por ser alemão e alemão estrangeiro. Esportes.
Treinos. O aço das metralhadoras sem carga encostado no peito banhado de suor.
As bandeiras apoiadas no ombro no desfile diante de Hitler e Mussolini no estádio
de Berlim, os alemães da América do Sul marchando logo atrás dos países sudetos
e antes mesmo dos alemães da América do Norte. Amizade e amor foi lá que
conheci, próximos e concretos. E o ódio também abstrato e longínquo, aos judeus,
aos comunistas e a outras coisas mais que já esqueci. Tudo aconteceu porque a
terceira viagem foi no verão de 1939. Não vou contar minha guerra, Polônia,
França, Grécia, Rússia…
A beleza de Helga e a sua perna. Confesso que durante muito tempo não sei
em qual pensei mais, se na que tinha ou se na que perdera. Mas é cedo. Por
enquanto é preciso dizer como foi possível acontecer o que aconteceu. O meu
hitlerismo era jovem, leal, risonho e franco e a guerra não entrava na jogada. Nela
fiz mais ou menos tudo o que os outros fizeram e até menos do que vi ser feito em
matéria de luta ou crime. De resto, eu e meus camaradas de armas éramos
parecidos, menos numa coisa: nunca consegui estabelecer um vínculo entre essa
30. guerra e as férias na Jugendhaus em meio dos piqueniques nas florestas e
excursões pelas estradas marginadas de verdor. As aulas tão nítidas eram para
isso? A palavra unerbittlich significava mesmo implacável e era para valer? Só mais
tarde, depois da guerra, descobri dentro de mim que aprendera a lição.
Curioso é que hoje já não consigo lembrar qual a perna que Helga perdera, se
a direita ou a esquerda. E dizer que durante anos não houve dia nem hora que
Helga não aparecesse no meu pensamento. Acha meu analista que os
esquecimentos parciais são frequentemente formas sutis de autopunição. Não sei
se isso é verdade mas sei que agora que resolvi evocá-la não posso impedir que a
todo instante ela cruze estas linhas antes do momento exato em que devia
comparecer. Quero confessar que não liguei muito quando soube que o Brasil
entrara na guerra contra a Alemanha mas devo dizer também que achei bom não
ter combatido contra soldados brasileiros. O que me faz pensar que nunca deixou
de existir em mim alguma coisa do filho daquele Silva que sempre imaginei moreno
pálido, a cara comprida e os olhos tristes.
Assim que acabou a guerra, vendi meu capacete e meu punhal com a cruz
suástica a um funcionário brasileiro que até hoje não sei o que estava fazendo em
Düsseldorf. Fomos para uma cantina onde me pagou uma cerveja e dele ouvi então
coisas alarmantes: que a minha situação jurídica era nada mais, nada menos, do
que a de um traidor, quer dizer, uns quinze anos de cadeia, por aí. Era só voltar e a
condenação viria na certa. Recebi a notícia na hora errada porque naquela altura
meu desejo maior era esquecer a guerra, encerrar as férias na Alemanha e
tranquilamente voltar para Vila Corinto, casar por lá, cuidar do plantio, da criação e
ajudar minha mãe que devia estar velha. Helga ainda não aparecera na minha vida
e o hitlerismo e a guerra ainda não tinham me marcado para sempre. Ainda não.
Há um pormenor que me ocorre com tamanha insistência que fico às vezes
pensando, pensando e não descubro por que me lembro tanto das unhas do seu pé
pintadas com esmalte rosa. Não sei qual perna lhe restara mas revejo seu pé, só o
pé com as unhas pintadas, não pintava as unhas das mãos, limpas, polidas mas
sem esmalte. Pintava as do pé, economizando assim o esmalte que naquele tempo
era raro como todo o resto, comida, roupa. Unhas de um tom de rosa delicado, ela
gostava das cores tímidas.
Não poder voltar para o Brasil decidiu minha sorte de continuar Paul Karsten o
tempo necessário para enriquecer e nunca mais ter paz. Não por ter enriquecido,
como veremos, estou chegando lá. O caso é que não fui prisioneiro de guerra nem
propriamente desertor. Num momento de confusão a guerra se afastou de onde me
encontrava, não voltou mais e depois acabou. Já contei que vendi meu capacete e
meu punhal. Arranjei em seguida outros punhais e capacetes que vendia para
jovens recrutas americanos que chegaram demasiado tarde e doidos por levarem
qualquer suvenir desse tipo. O pequeno comércio de troféus ampliou-se para
cigarros, chocolate, leite em pó e outras latarias, mas tudo muito reduzido. Basta
31. dizer que na intendência americana meu sócio mais qualificado era apenas
sargento, o que mostra bem a modéstia do negócio.
Naquela improvisação de vida ao deus-dará, o tempo perdeu a medida e hoje
não sou mesmo capaz de lembrar quando exatamente conheci Helga. Só sei que
sua beleza me surgiu inicialmente da cintura para cima atrás do balcão da
farmácia, se assim podemos chamar àquele casebre de madeira enegrecida,
toscamente erguido no meio das ruínas do sudeste industrial de Düsseldorf. Sua
beleza, foi sua beleza o que de início me impressionou. E depois, seu recato, sua
doçura naquele mundo de fim do mundo. Passando pela farmácia, não houve vez
que não a visse ereta e séria, vendendo aspirina e as tais latinhas de pomada
fabricada pelo pai, o velho Wolf, um verdadeiro caco aos quarenta anos, andando
quilômetros em busca de mercadoria: vidrinhos de iodo e alguns metros de gaze.
Foi o velho quem primeiro me falou da penicilina e do quanto um negócio
desses poderia render. Até então eu vendia para Helga algumas latas de leite em
pó e de veneno para rato. Também me lembro muito de um outro pormenor: a lata
de leite tinha uma risonha vaquinha no rótulo e a outra tinha um rato negro, morto,
dependurado pelo rabo por um longo fio. Quero ser verdadeiro quando digo que
não me importei ao ver meu lucro diminuído devido à perda de tempo em vender-lhe
as ninharias que podia comprar. O prazer de vê-la era tão grande que me
sentia compensado quando ouvia sua voz calma, harmoniosa como os seus gestos
que por sinal eram raros. Não procurava, então, a mulher. Durante meses a caça à
comida utilizava quase toda a imaginação e energia de que sou capaz, qualquer
preocupação com mulher se dissipava nessa caça. Foi só numa segunda fase que
relacionei a beleza de Helga com o desejo. Já sabia então da sua perna, ela
mesma me contou quando recusou-se a me acompanhar a um local de danças,
improvisado nos escombros do museu. Fiz o convite quando fui cedo à farmácia,
soubera das danças e não vi melhor oportunidade para sair com ela. Estava como
sempre detrás do balcão mas assim que lhe falei em dançarmos teve um
movimento de fuga enquanto uma nuvem preta pareceu baixar sobre seu rosto tão
limpo. Mas logo espantou a nuvem e sorriu quase natural quando confessou que
não podia dançar as valsas que lá tocavam, tinha uma perna só. Aquela noite
pensei muito na mutilação de Helga, mutilação antiga, pois ela perdera a perna e o
resto da família, menos o pai, no primeiro bombardeio de Hamburgo. Na mesma
ocasião o velho Wolf perdera também a farmácia, a primeira, pois a segunda e a
terceira foram destruídas em Düsseldorf. Ainda era rico depois da tragédia de
Hamburgo e a prova disso é que montou em seguida mais essas duas farmácias.
Outra prova de que tivera dinheiro foi a magnífica perna ortopédica que comprou
para a filha, daquelas que durante a guerra eram reservadas para heróis
excepcionais, membros graúdos do Partido Nacional-Socialista ou oficiais
superiores. Fora desse tipo de gente só os muito ricos podiam comprar uma perna
igual. Não pude então deixar de sentir um certo espanto quando vi Helga sair
andando detrás do balcão, mancando um pouco, é certo, mas discretamente, com
32. uma lentidão que combinava com seu feitio. Imaginara-a plantada numa perna só,
apoiada em muletas ou numa bengala, dando saltos penosos… E cheguei a dizer-lhe
que num vestido de noite ninguém notaria a perna artificial. Ela então baixou
os grandes olhos claros.
No dia seguinte era domingo e Helga concordou em sair comigo. Eu podia
emprestar o jipe do sargento americano mas a tarde estava tão agradável que ela
preferiu que fôssemos mesmo a pé. À noite — era uma noite estrelada —
jantamos, ela, o pai e eu, uma lata de rosbife e outra de milho que desviara do
meu comércio. Senti-me generoso, bom. Foi aí que o velho Wolf me falou da
penicilina. Na cara devastada do farmacêutico vi como seus olhos azuis, iguais aos
da filha, coruscavam de entusiasmo ao imaginar o negócio. Ele tinha o cálculo fácil
e claramente demonstrou que três meses de tráfico de penicilina eram o suficiente
para juntar uma pequena fortuna. Havia apenas dois problemas a enfrentar: o
primeiro era o risco, mas não tão grande assim, na pior das hipóteses um par de
anos na cadeia, se tanto. A segunda dificuldade, a maior, era a mesma de qualquer
negócio: o capital inicial. E para tudo, uma condição indispensável, a rapidez. Esses
grandes negócios só funcionariam durante uns seis meses, no máximo. Depois, a
eficiência combinada de americanos, russos e dos próprios alemães iria pôr tudo
nos eixos e qualquer empreendimento se tornaria rotineiro, lento. Com os ingleses,
nem pensar. A coisa do lado de cá tinha que ser feita mesmo com os americanos e
sem demora. O velho se ramificava em considerações mas minha atenção se
concentrava em Helga, a doce Helga que eu já beijara naquela tarde. Foi então
meio distraidamente que ouvi o que ele disse? Pois sim. Naquela noite e no dia
seguinte não pensei noutra coisa. Pedi pormenores e ele me falou num certo
major-médico, chegamos até a procurar o homem mas ele fora transferido para
Hamburgo. E o capital? Via o velho diariamente e ficávamos falando, falando… E o
capital? Foram dias de tanta inquietação, a tal ponto fiquei seduzido pela ideia que
meu pequeno comércio começou a declinar. Via o velho e via Helga, com ela
também falava demais e de repente falei em casamento.
Como é difícil reconstituir os acontecimentos! Lembrar o ano em que tudo
aconteceu já exige esforço. Distribuir os fatos pelos meses não consigo. Mas
ordenar os sentimentos é para mim totalmente impossível. Revivo o tempo da
contemplação de sua beleza e depois os instantes de fundo desejo. E lembro muito
do casamento. Quanto ao amor por Helga, afirma o analista que não passa de um
recurso autopunitivo que resolvi imaginar. O fato é que me casei e na própria
madrugada de núpcias fugi para Hamburgo levando a perna ortopédica que em
seguida vendi. De posse do capital inicial, não foi difícil encontrar o tal major e no
tempo previsto pelo velho Wolf, seis meses mais ou menos, fiz fortuna.
Daí por diante não foi mais possível dizer que as férias nazistas na Alemanha
foram episódios fortuitos na vida de um jovem de Vila Corinto. Paul Karsten
cometeu seu crime de guerra, pessoal e por conta própria, mas fora do lugar e com
a pessoa errada. O ato de raça de senhor alemão aprendido nas aulas floridas dos
33. cursos de 1936 foi praticado em plena paz por um pobre rapaz brasileiro contra
uma pobre moça alemã. Engano ainda pensar que o fim de Paul Karsten foi uma
solução. Alguns anos mais tarde, Paulo Silva Filho voltou para o Brasil anistiado e
rico, mas voltou um homem de pouca fé e imaginação amortecida. A única maneira
que encontrou de expiar o crime do jovem Paul foi tornar-se um cidadão exemplar.
Hoje, o analista explica que simplesmente procuro e encontro, na insipidez da
virtude, a punição de Paul Karsten e de seus camaradas.
34. O Moço do Saxofone
Eu era chofer de caminhão e ganhava uma nota alta com um cara que fazia
contrabando. Até hoje não entendo direito por que fui parar na pensão da tal
madame, uma polaca que quando moça fazia a vida e depois que ficou velha
inventou de abrir aquele frege-mosca. Foi o que me contou o James, um tipo que
engolia giletes e que foi meu companheiro de mesa nos dias em que trancei por lá.
Tinha os pensionistas e tinha os volantes, uma corja que entrava e saía palitando
os dentes, coisa que nunca suportei na minha frente. Teve até uma vez uma dona
que mandei andar só porque no nosso primeiro encontro, depois de comer um
sanduíche, enfiou o palitão entre os dentes e ficou de boca arreganhada de tal jeito
que eu podia ver até o que o palito ia cavoucando. Bom, mas eu dizia que no tal
frege-mosca eu era volante. A comida, uma bela porcaria e como se não bastasse
ter que engolir aquelas lavagens, tinha ainda os malditos anões se enroscando nas
pernas da gente. E tinha a música do saxofone.
Não que não gostasse de música, sempre gostei de ouvir tudo quanto é
charanga no meu rádio de pilha de noite na estrada, enquanto vou dando conta do
recado. Mas aquele saxofone era mesmo de entortar qualquer um. Tocava bem,
não discuto. O que me punha doente era o jeito, um jeito assim triste como o
diabo, acho que nunca mais vou ouvir ninguém tocar saxofone como aquele cara
tocava.
— O que é isso? — eu perguntei ao tipo das giletes. Era o meu primeiro dia de
pensão e ainda não sabia de nada. Apontei para o teto que parecia de papelão, tão
forte chegava a música até nossa mesa. — Quem é que está tocando?
— É o moço do saxofone.
Mastiguei mais devagar. Já tinha ouvido antes saxofone, mas aquele da
pensão eu não podia mesmo reconhecer nem aqui nem na China.
— E o quarto dele fica aqui em cima?
James meteu uma batata inteira na boca. Sacudiu a cabeça e abriu mais a
boca que fumegava como um vulcão com a batata quente lá no fundo. Soprou um
bocado de tempo a fumaça antes de responder.
— Aqui em cima.
Bom camarada esse James. Trabalhava numa feira de diversões, mas como já
estivesse ficando velho, queria ver se firmava num negócio de bilhetes. Esperei que
ele desse cabo da batata enquanto ia enchendo meu garfo.
— É uma música desgraçada de triste — fui dizendo.
— A mulher engana ele até com o periquito — respondeu James, passando o
miolo de pão no fundo do prato para aproveitar o molho. — O pobre fica o dia
35. inteiro trancado, ensaiando. Não desce nem para comer. Enquanto isso, a cabra se
deita com tudo quanto é cristão que aparece.
— Deitou com você?
— É meio magricela para o meu gosto, mas é bonita. E novinha. Então entrei
com meu jogo, compreende? Mas já vi que não dou sorte com mulher, torcem logo
o nariz quando ficam sabendo que engulo gilete, acho que ficam com medo de se
cortar…
Tive vontade de rir também, mas justo nesse instante o saxofone começou a
tocar de um jeito abafado, sem fôlego como uma boca querendo gritar, mas com
uma mão tapando, os sons esprimidos saindo por entre os dedos. Então me
lembrei da moça que recolhi uma noite no meu caminhão. Saiu para ter o filho na
vila, mas não aguentou e caiu ali mesmo na estrada, rolando feito bicho. Arrumei
ela na carroceria e corri como louco para chegar o quanto antes, apavorado com a
ideia do filho nascer no caminho e desandar a uivar que nem a mãe. No fim, para
não me aporrinhar mais, ela abafava os gritos na lona, mas juro que seria melhor
que abrisse a boca no mundo, aquela coisa de sufocar os gritos já estava me
endoidando. Pomba, não desejo ao inimigo aquele quarto de hora.
— Parece gente pedindo socorro — eu disse enchendo meu copo de cerveja. —
Será que ele não tem uma música mais alegre?
James encolheu o ombro.
— Chifre dói.
Nesse primeiro dia fiquei sabendo ainda que o moço do saxofone tocava num
bar, voltava só de madrugada. Dormia em quarto separado da mulher.
— Mas por quê? — perguntei, bebendo mais depressa para acabar logo e me
mandar dali. A verdade é que não tinha nada com isso, nunca fui de me meter na
vida de ninguém, mas era melhor ouvir o trololó do James do que o saxofone.
— Uma mulher como ela tem que ter seu quarto — explicou James, tirando um
palito do paliteiro. — E depois, vai ver que ela reclama do saxofone.
— E os outros não reclamam?
— A gente já se acostumou.
Perguntei onde era o reservado e levantei-me antes que James começasse a
escarafunchar os dentões que lhe restavam. Quando subi a escada de caracol, dei
com um anão que vinha descendo. Um anão, pensei. Assim que saí do reservado,
dei com ele no corredor, mas agora estava com uma roupa diferente. Mudou de
roupa, pensei meio espantado porque tinha sido rápido demais. E já descia a
escada quando ele passou de novo na minha frente, mas já com outra roupa.
Fiquei meio tonto. Mas que raio de anão é esse que muda de roupa de dois em dois
minutos? Entendi depois, não era um só, mas uma trempe deles, milhares de anões
louros e de cabelo repartidinho do lado.
36. — Pode me dizer de onde vem tanto anão? — perguntei à madame e ela riu.
— Todos artistas, minha pensão é quase só de artistas…
Fiquei vendo com que cuidado o copeiro começou a empilhar almofadas nas
cadeiras para que eles se sentassem. Comida ruim, anão e saxofone. Anão me
enche e já tinha resolvido pagar e sumir quando ela apareceu. Veio por detrás,
palavra que havia espaço para passar um batalhão, mas ela deu um jeito de
esbarrar em mim.
— Licença?
Não precisei perguntar para saber que aquela era a mulher do moço do
saxofone. Nessa altura o saxofone já tinha parado. Fiquei olhando. Era magra, sim,
mas tinha as ancas redondas e um andar muito bem bolado. O vestido vermelho
não podia ser mais curto. Abancou-se sozinha numa mesa e de olhos baixos
começou a descascar o pão com a ponta da unha vermelha. De repente riu e
apareceu uma covinha no queixo. Pomba, tive vontade de ir lá, agarrar ela pelo
queixo e saber por que estava rindo. Fiquei rindo junto.
— A que horas é a janta? — perguntei para a madame, enquanto pagava.
— Vai das sete às nove. Meus pensionistas fixos costumam comer às oito —
avisou ela, dobrando o dinheiro e olhando com um olhar acostumado para a dona
de vermelho. — O senhor gostou da comida?
Voltei às oito em ponto. O tal James já mastigava seu bife. Na sala havia ainda
um velhote de barbicha, que era professor parece que de mágica e o anão de
roupa xadrez. Mas ela não tinha chegado. Animei-me um pouco quando veio um
prato de pastéis, tenho loucura por pastéis. James começou a falar então de uma
briga no parque de diversões, mas eu estava de olho na porta. Vi quando ela
entrou conversando baixinho com um cara de bigode ruivo. Subiram a escada como
dois gatos pisando macio. Não demorou nada e o raio do saxofone desandou a
tocar.
— Sim senhor — eu disse e James pensou que estivesse falando na tal briga.
— O pior é que fiquei de porre, mal pude me defender!
Mordi um pastel que tinha dentro mais fumaça do que outra coisa. Examinei os
outros pastéis para descobrir se havia algum com mais recheio.
— Toca bem esse condenado. Quer dizer que ele não vem comer nunca?
James demorou para entender do que eu estava falando. Fez uma careta.
Decerto preferia o assunto do parque.
— Come no quarto, vai ver que tem vergonha da gente — resmungou ele,
tirando um palito. — Fico com pena, mas às vezes me dá raiva, corno besta. Um
outro já tinha acabado com a vida dela!
Agora a música alcançava um agudo tão agudo que me doeu o ouvido. De
novo pensei na moça ganindo de dor na carroceria, pedindo ajuda não sei mais
37. para quem.
— Não topo isso, pomba.
— Isso o quê?
Cruzei o talher. A música no máximo, os dois no máximo trancados no quarto e
eu ali vendo o calhorda do James palitar os dentes. Tive ganas de atirar no teto o
prato de goiabada com queijo e me mandar para longe de toda aquela chateação.
— O café é fresco? — perguntei ao mulatinho que já limpava o oleado da mesa
com um pano encardido como a cara dele.
— Feito agora.
Pela cara vi que era mentira.
— Não é preciso, tomo na esquina.
A música parou. Paguei, guardei o troco e olhei reto para a porta porque tive o
pressentimento que ela ia aparecer. E apareceu mesmo com o arzinho de gata de
telhado, o cabelo solto nas costas e o vestidinho amarelo mais curto ainda do que
o vermelho. O tipo de bigode passou em seguida, abotoando o paletó.
Cumprimentou a madame, fez ar de quem tinha muito o que fazer e foi para a rua.
— Sim senhor!
— Sim senhor o quê? — perguntou James.
— Quando ela entra no quarto com um tipo, ele começa a tocar, mas assim
que ela aparece, ele para. Já reparou? Basta ela se enfurnar e ele já começa.
James pediu outra cerveja. Olhou para o teto.
— Mulher é o diabo…
Levantei-me e quando passei junto da mesa dela atrasei o passo. Então ela
deixou cair o guardanapo. Quando me abaixei, agradeceu, de olhos baixos.
— Ora, não precisava se incomodar…
Risquei o fósforo para acender-lhe o cigarro. Senti forte seu perfume.
— Amanhã? — perguntei, oferecendo-lhe os fósforos. — Às sete, está bem?
— É a porta que fica do lado da escada, à direita de quem sobe.
Saí em seguida, fingindo não ver a carinha safada de um dos anões que estava
ali por perto e zarpei no meu caminhão antes que a madame viesse me perguntar
se eu estava gostando da comida. No dia seguinte cheguei às sete em ponto,
chovia potes e eu tinha que viajar a noite inteira. O mulatinho já amontoava nas
cadeiras as almofadas para os anões. Subi a escada sem fazer barulho, me
preparando para explicar que ia ao reservado, se por acaso aparecesse alguém.
Mas ninguém apareceu. Na primeira porta, aquela à direita da escada, bati de leve
e fui entrando. Não sei quanto tempo fiquei parado no meio do quarto: ali estava
um moço segurando o saxofone. Estava sentado numa cadeira, em mangas de
camisa, me olhando sem dizer uma palavra. Não parecia nem espantado nem
38. nada, só me olhava.
— Desculpe, me enganei de quarto — eu disse com uma voz que até hoje não
sei onde fui buscar.
O moço apertou o saxofone contra o peito cavado.
— É na porta adiante — disse ele baixinho, indicando com a cabeça.
Procurei os cigarros só para fazer alguma coisa. Que situação, pomba. Se
pudesse, agarrava aquela dona pelo cabelo, a estúpida. Ofereci-lhe cigarro.
— Está servido?
— Obrigado, não posso fumar.
Fui recuando de costas. E de repente não aguentei. Se ele tivesse feito
qualquer gesto, dito qualquer coisa, eu ainda me segurava, mas aquela bruta
calma me fez perder as tramontanas.
— E você aceita tudo isso assim quieto? Não reage? Por que não lhe dá uma
boa sova, não lhe chuta com mala e tudo no meio da rua? Se fosse comigo, pomba,
eu já tinha rachado ela pelo meio! Me desculpe estar me metendo, mas quer dizer
que você não faz nada?
— Eu toco saxofone.
Fiquei olhando primeiro para a cara dele, que parecia feita de gesso de tão
branca. Depois olhei para o saxofone. Ele corria os dedos compridos pelos botões,
de baixo para cima, de cima para baixo, bem devagar, esperando que eu saísse
para começar a tocar. Limpou com um lenço o bocal do instrumento, antes de
começar com os malditos uivos.
Bati a porta. Então a porta do lado se abriu bem de mansinho, cheguei a ver a
mão dela segurando a maçaneta para que o vento não abrisse demais. Fiquei ainda
um instante parado, sem saber mesmo o que fazer, juro que não tomei logo a
decisão, ela esperando e eu parado feito besta, então, Cristo-Rei? E então? Foi
quando começou bem devagarinho a música do saxofone. Fiquei broxa na hora,
pomba. Desci a escada aos pulos. Na rua, tropecei num dos anões metido num
impermeável, desviei de outro que já vinha vindo atrás e me enfurnei no caminhão.
Escuridão e chuva. Quando dei a partida, o saxofone já subia num agudo que não
chegava nunca ao fim. Minha vontade de fugir era tamanha que o caminhão saiu
meio desembestado, num arranco.
39. Antes do Baile Verde
O rancho azul e branco desfilava com seus passistas vestidos à Luís xv e sua porta-estandarte
de peruca prateada em forma de pirâmide, os cachos desabados na
testa, a cauda do vestido de cetim arrastando-se enxovalhada pelo asfalto. O negro
do bumbo fez uma profunda reverência diante das duas mulheres debruçadas na
janela e prosseguiu com seu chapéu de três bicos, fazendo rodar a capa
encharcada de suor.
— Ele gostou de você — disse a jovem voltando-se para a mulher que ainda
aplaudia. — O cumprimento foi na sua direção, viu que chique?
A preta deu uma risadinha.
— Meu homem é mil vezes mais bonito, pelo menos na minha opinião. E já
deve estar chegando, ficou de me pegar às dez na esquina. Se me atraso, ele
começa a encher a caveira e pronto, não sai mais nada.
A jovem tomou-a pelo braço e arrastou-a até a mesa de cabeceira. O quarto
estava revolvido como se um ladrão tivesse passado por ali e despejado caixas e
gavetas.
— Estou atrasadíssima, Lu! Essa fantasia é fogo… Tenha paciência, mas você
vai me ajudar um pouquinho.
— Mas você ainda não acabou?
Sentando-se na cama, a jovem abriu sobre os joelhos o saiote verde. Usava
biquíni e meias rendadas também verdes.
— Acabei o quê! Falta pregar tudo isso ainda, olha aí… Fui inventar um raio de
pierrete dificílima!
A preta aproximou-se, alisando com as mãos o quimono de seda brilhante.
Espetado na carapinha trazia um crisântemo de papel crepom vermelho. Sentou-se
ao lado da moça.
— O Raimundo já deve estar chegando, ele fica uma onça se me atraso. A
gente vai ver os ranchos, hoje quero ver todos.
— Tem tempo, sossega — atalhou a jovem. Afastou os cabelos que lhe caíam
nos olhos. Levantou o abajur que tombou na mesinha. — Não sei como fui me
atrasar desse jeito.
— Mas não posso perder o desfile, viu, Tatisa? Tudo, menos perder o desfile!
— E quem está dizendo que você vai perder?
A mulher enfiou o dedo no pote de cola e baixou-o de leve nas lantejoulas do
pires. Em seguida, levou o dedo até o saiote e ali deixou as lantejoulas formando
uma constelação desordenada. Colheu uma lantejoula que escapara e
40. delicadamente tocou com ela na cola. Depositou-a no saiote, fixando-a com
pequenos movimentos circulares.
— Mas se tiver que pregar as lantejoulas em todo o saiote…
— Já começou a queixação? Achei que dava tempo e agora não posso largar a
coisa pela metade, vê se entende! Você ajudando vai num instante, já me pintei,
olha aí, que tal minha cara? Você nem disse nada, sua bruxa! Hein?… Que tal?
— Ficou bonito, Tatisa. Com o cabelo assim verde você está parecendo uma
alcachofra, tão gozado. Não gosto é desse verde na unha, fica esquisito.
Num movimento brusco, a jovem levantou a cabeça para respirar melhor.
Passou o dorso da mão na face afogueada.
— Mas as unhas é que dão a nota, sua tonta. É um baile verde, as fantasias
têm que ser verdes, tudo verde. Mas não precisa ficar me olhando, vamos, não
pare, pode falar, mas vá trabalhando. Falta mais da metade, Lu!
— Estou sem óculos, não enxergo direito sem os óculos.
— Não faz mal — disse a jovem limpando no lençol o excesso de cola que lhe
escorreu pelo dedo. — Vá grudando de qualquer jeito que lá dentro ninguém vai
reparar, vai ter gente à beça. O que está me endoidando é este calor, não aguento
mais, tenho a impressão de que estou me derretendo, você não sente? Calor
bárbaro!
A mulher tentou prender o crisântemo que resvalara para o pescoço. Franziu a
testa e baixou o tom de voz.
— Estive lá.
— E daí?
— Ele está morrendo.
Um carro passou na rua, buzinando freneticamente. Alguns meninos puseram-se
a cantar aos gritos, o compasso marcado pelas batidas numa panela: A coroa do
rei não é de ouro nem de prata…
— Parece que estou num forno — gemeu a jovem dilatando as narinas
porejadas de suor. — Se soubesse, teria inventado uma fantasia mais leve.
— Mais leve do que isso? Você está quase nua, Tatisa. Eu ia com a minha
havaiana, mas só porque aparece um pedaço da coxa o Raimundo implica. Imagine
você então…
Com a ponta da unha, Tatisa colheu uma lantejoula que se enredara na renda
da meia. Deixou-a cair na pequena constelação que ia armando na barra do saiote
e ficou raspando pensativamente um pingo ressequido de cola que lhe caíra no
joelho. Vagava o olhar pelos objetos, sem fixar-se em nenhum. Falou num tom
sombrio:
— Você acha, Lu?
41. — Acha o quê?
— Que ele está morrendo?
— Ah, está sim. Conheço bem isso, já vi um monte de gente morrer, agora já
sei como é. Ele não passa desta noite.
— Mas você já se enganou uma vez, lembra? Disse que ele ia morrer, que
estava nas últimas… E no dia seguinte ele já pedia leite, radiante.
— Radiante? — espantou-se a empregada. Fechou num muxoxo os lábios
pintados de vermelho-violeta. — E depois, eu não disse não senhora que ele ia
morrer, eu disse que ele estava ruim, foi o que eu disse. Mas hoje é diferente,
Tatisa. Espiei da porta, nem precisei entrar para ver que ele está morrendo.
— Mas quando fui lá ele estava dormindo tão calmo, Lu.
— Aquilo não é sono. É outra coisa.
Afastando bruscamente o saiote aberto nos joelhos, a jovem levantou-se. Foi
até a mesa, pegou a garrafa de uísque e procurou um copo em meio da desordem
dos frascos e caixas. Achou-o debaixo da esponja de arminho. Soprou o fundo cheio
de pó de arroz e bebeu em largos goles, apertando os maxilares. Respirou de boca
aberta. Dirigiu-se à preta.
— Quer?
— Tomei muita cerveja, se misturo dá ânsia.
A jovem despejou mais uísque no copo.
— Minha pintura não está derretendo? Veja se o verde dos olhos não borrou…
Nunca transpirei tanto, sinto o sangue ferver.
— Você está bebendo demais. E nessa correria… Também não sei por que essa
invenção de saiote bordado, as lantejoulas vão se desgrudar todas no aperto. E o
pior é que não posso caprichar, com o pensamento no Raimundo lá na esquina…
— Você é chata, não, Lu? Mil vezes fica repetindo a mesma coisa, taque-taque-taque-
taque! Esse cara não pode esperar um pouco?
A mulher não respondeu. Ouvia com expressão deliciada a música de um bloco
que passava já longínquo. Cantarolou em falsete: Acabou chorando… acabou
chorando…
— No outro carnaval entrei num bloco de sujos e me diverti à grande. Meu
sapato até desmanchou de tanto que dancei.
— E eu na cama, podre de gripe, lembra? Neste quero me esbaldar.
— E seu pai?
Lentamente a jovem foi limpando no lenço as pontas dos dedos
esbranquiçados de cola. Tomou um gole de uísque. Voltou a afundar o dedo no
pote.
— Você quer que eu fique aqui chorando, não é isso que você quer? Quer que
42. eu cubra a cabeça com cinza e fique de joelhos rezando, não é isso que você está
querendo? — Ficou olhando para a ponta do dedo coberto de lantejoulas. Foi
deixando no saiote o dedal cintilante. — Que é que eu posso fazer? Não sou Deus,
sou? Então? Se ele está pior, que culpa tenho eu?
— Não estou dizendo que você é culpada, Tatisa. Não tenho nada com isso,
ele é seu pai, não meu. Faça o que bem entender.
— Mas você começa a dizer que ele está morrendo!
— Pois está mesmo.
— Está nada! Também espiei, ele está dormindo, ninguém morre dormindo
daquele jeito.
— Então não está.
A jovem foi até a janela e ofereceu a face ao céu roxo. Na calçada, um bando
de meninos brincava com bisnagas de plástico em formato de banana, esguichando
água um na cara do outro. Interromperam a brincadeira para vaiar um homem que
passou vestido de mulher, pisando para fora nos sapatos de saltos altíssimos.
“Minha lindura, vem comigo, minha lindura!”, gritou o moleque maior, correndo
atrás do homem. Ela assistia à cena com indiferença. Puxou com força as meias
presas aos elásticos do biquíni.
— Estou transpirando feito um cavalo. Juro que se não tivesse me pintado, me
metia agora num chuveiro, besteira a gente se pintar antes.
— E eu não aguento mais de sede — resmungou a empregada arregaçando as
mangas do quimono. — Ai! uma cerveja bem geladinha. Gosto mesmo é de
cerveja, mas o Raimundo prefere cachaça. No ano passado ele ficou de porre os
três dias, fui sozinha no desfile. Tinha um carro que foi o mais bonito de todos,
representava um mar. Você precisava ver aquele monte de sereias enroladas em
pérolas. Tinha pescador, tinha pirata, tinha polvo, tinha tudo! Bem lá em cima,
dentro de uma concha abrindo e fechando, a rainha do mar coberta de joias…
— Você já se enganou uma vez — atalhou a jovem. — Ele não pode estar
morrendo, não pode. Também estive lá antes de você, ele estava dormindo tão
sossegado. E hoje cedo até me reconheceu, ficou me olhando, me olhando e depois
sorriu. Você está bem papai?, perguntei e ele não respondeu mas vi que entendeu
perfeitamente o que eu disse.
— Ele se fez de forte, coitado.
— De forte, como?
— Sabe que você tem o seu baile, não quer atrapalhar.
— Ih, como é difícil conversar com gente ignorante — explodiu a jovem,
atirando no chão as roupas amontoadas na cama. Revistou os bolsos de uma calça
comprida. — Você pegou meu cigarro?
— Tenho minha marca, não preciso dos seus.
43. — Escuta, Luzinha, escuta — começou ela, ajeitando a flor na carapinha da
mulher. — Eu não estou inventando, tenho certeza de que ainda hoje cedo ele me
reconheceu. Acho que nessa hora sentiu alguma dor porque uma lágrima foi
escorrendo daquele lado paralisado. Nunca vi ele chorar daquele lado, nunca.
Chorou só daquele lado, uma lágrima tão escura…
— Ele estava se despedindo.
— Lá vem você de novo, merda! Pare de bancar o corvo, até parece que você
quer que seja hoje. Por que tem que repetir isso, por quê?
— Você mesmo pergunta e não quer que eu responda. Não vou mentir, Tatisa.
A jovem espiou debaixo da cama. Puxou um pé de sapato. Agachou-se mais,
roçando os cabelos verdes no chão. Levantou-se, olhou em redor. E foi-se
ajoelhando devagarinho diante da preta. Apanhou o pote de cola.
— E se você desse um pulo lá só para ver?
— Mas você quer ou não que eu acabe isto? — a mulher gemeu exasperada,
abrindo e fechando os dedos ressequidos de cola. — O Raimundo tem ódio de
esperar, hoje ainda apanho!
A jovem levantou-se. Fungou, andando rápido num andar de bicho na jaula.
Chutou o sapato que encontrou no caminho.
— Aquele médico miserável. Tudo culpa daquela bicha. Eu bem disse que não
podia ficar com ele aqui em casa, eu disse que não sei tratar de doente, não tenho
jeito, não posso! Se você fosse boazinha, você me ajudava, mas você não passa de
uma egoísta, uma chata que não quer saber de nada. Sua egoísta!
— Mas, Tatisa, ele não é meu pai, não tenho nada com isso, até que ajudo
muito sim senhora, como não? Todos esses meses quem é que tem aguentado o
tranco? Não me queixo porque ele é muito bom, coitado. Mas tenha a santa
paciência, hoje não! Já estou fazendo demais aqui plantada quando devia estar na
rua.
Com um gesto fatigado, a jovem abriu a porta do armário. Olhou-se no
espelho. Beliscou a cintura.
— Engordei, Lu.
— Você, gorda? Mas você é só osso, menina. Seu namorado não tem onde
pegar. Ou tem?
Ela ensaiou com os quadris um movimento lascivo. Riu. Os olhos animaram-se:
— Lu, Lu, pelo amor de Deus, acabe logo que à meia-noite ele vem me buscar.
Mandou fazer um pierrô verde.
— Também já me fantasiei de pierrô. Mas faz tempo.
— Vem num Tufão, viu que chique?
— Que é isso?
44. — É um carro muito bacana, vermelho. Mas não fique aí me olhando, depressa,
Lu, você não vê que… — Passou ansiosamente a mão no pescoço. — Lu, Lu, por
que ele não ficou no hospital?! Estava tão bem no hospital…
— Hospital de graça é assim mesmo, Tatisa. Eles não podem ficar a vida
inteira com um doente que não resolve, tem doente esperando até na calçada.
— Há meses que venho pensando nesse baile. Ele viveu sessenta e seis anos.
Não podia viver mais um dia?
A preta sacudiu o saiote e examinou-o a uma certa distância. Abriu-o de novo
no colo e inclinou-se para o pires de lantejoulas.
— Falta só um pedaço.
— Um dia mais…
— Vem me ajudar, Tatisa, nós duas pregando vai num instante.
Agora ambas trabalhavam num ritmo acelerado, as mãos indo e vindo do pote
de cola ao pires e do pires ao saiote, curvo como uma asa verde pesada de
lantejoulas.
— Hoje o Raimundo me mata — recomeçou a mulher, grudando as lantejoulas
meio ao acaso. Passou o dorso da mão na testa molhada. Ficou com a mão parada
no ar. — Você não ouviu?
A jovem demorou para responder.
— O quê?
— Parece que ouvi um gemido.
Ela baixou o olhar.
— Foi na rua.
Inclinaram as cabeças irmanadas sob a luz amarela do abajur.
— Escuta, Lu, se você pudesse ficar hoje, só hoje — começou ela num tom
manso. Apressou-se: — Eu te daria meu vestido branco, aquele meu branco, sabe
qual é? E também os sapatos, estão novos ainda, você sabe que eles estão novos.
Você pode sair amanhã, você pode sair todos os dias, mas pelo amor de Deus, Lu,
fica hoje!
A empregada sorriu, triunfante.
— Custou, Tatisa, custou. Desde o começo eu já estava esperando. Ah, mas
hoje nem que me matasse eu ficava, hoje não. — O crisântemo caiu enquanto ela
sacudia a cabeça. Prendeu-o com um grampo que abriu entre os dentes. — Perder
esse desfile? Nunca! Já fiz muito — acrescentou sacudindo o saiote. — Pronto, pode
vestir. Está um serviço porco mas ninguém vai reparar.
— Eu podia te dar o casaco azul — murmurou a jovem, limpando os dedos no
lençol.
— Nem que fosse para ficar com meu pai eu ficava, ouviu isso, Tatisa? Nem
45. com meu pai, hoje não.
Levantando-se de um salto, a moça foi até a garrafa e bebeu de olhos
fechados mais alguns goles. Vestiu o saiote.
— Brrrr! Esse uísque é uma bomba — resmungou, aproximando-se do espelho.
— Anda, venha aqui me abotoar, não precisa ficar aí com essa cara. Sua chata.
A mulher tateou os dedos por entre o tule.
— Não acho os colchetes.
A jovem ficou diante do espelho, as pernas abertas, a cabeça levantada. Olhou
para a mulher através do espelho:
— Morrendo coisa nenhuma, Lu. Você estava sem os óculos quando entrou no
quarto, não estava? Então não viu direito, ele estava dormindo.
— Pode ser que me enganasse mesmo.
— Claro que se enganou! Ele estava dormindo.
A mulher franziu a testa, enxugando na manga do quimono o suor do queixo.
Repetiu como um eco:
— Estava dormindo, sim.
— Depressa, Lu, faz uma hora que está com esses colchetes!
— Pronto — disse a outra, baixinho, enquanto recuava até a porta. — Não
precisa mais de mim, não é?
— Espera! — ordenou a moça perfumando-se rapidamente. Retocou os lábios,
atirou o pincel ao lado do vidro destapado. — Já estou pronta, vamos descer
juntas.
— Tenho que ir, Tatisa!
— Espera, já disse que estou pronta — repetiu, baixando a voz. — Só vou
pegar a bolsa…
— Você vai deixar a luz acesa?
— Melhor, não? A casa fica mais alegre assim.
No topo da escada ficaram mais juntas. Olharam na mesma direção: a porta
estava fechada. Imóveis como se tivessem sido petrificadas na fuga, as duas
mulheres ficaram ouvindo o relógio da sala. Foi a preta quem primeiro se moveu. A
voz era um sopro:
— Quer ir dar uma espiada, Tatisa?
— Vá você, Lu…
Trocaram um rápido olhar. Bagas de suor escorriam pelas têmporas verdes da
jovem, um suor turvo como o sumo de uma casca de limão. O som prolongado de
uma buzina foi-se fragmentando lá fora. Subiu poderoso o som do relógio.
Brandamente a empregada desprendeu-se da mão da jovem. Foi descendo a
46. escada na ponta dos pés. Abriu a porta da rua.
— Lu! Lu! — a jovem chamou num sobressalto. Continha-se para não gritar. —
Espera aí, já vou indo!
E apoiando-se ao corrimão, colada a ele, desceu precipitadamente. Quando
bateu a porta atrás de si, rolaram pela escada algumas lantejoulas verdes na
mesma direção, como se quisessem alcançá-la.
47. A Caçada
A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus panos
embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou
numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou voo e foi chocar-se contra uma
imagem de mãos decepadas.
— Bonita imagem — disse.
A velha tirou um grampo do coque e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar
o grampo no cabelo.
— É um São Francisco.
Ele então se voltou lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no
fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.
— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso. Pena que esteja nesse
estado.
O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.
— Parece que hoje está mais nítida…
— Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície
puída. — Nítida como?
— As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?
A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O
homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.
— Não passei nada. Por que o senhor pergunta?
— Notei uma diferença.
— Não, não passei nada, essa tapeçaria não aguenta a mais leve escova, o
senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido — acrescentou
tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo.
Teve um muxoxo: — Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro.
Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um
comprador, mas ele insistiu tanto. Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos
isso. E o tal moço nunca mais me apareceu.
— Extraordinário…
A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que
acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o
grampo.
— Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a
pena. Na hora que se despregar é capaz de cair em pedaços.
48. O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em
que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?…
Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado,
apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo
caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas era apenas uma vaga
silhueta cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o
primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos,
à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta.
O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor
esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido,
destacavam-se manchas de um negro-violáceo que pareciam escorrer da folhagem,
deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A
touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas, que
tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando
o pano.
— Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa. —
É como se… Mas não está diferente?
A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.
— Não vejo diferença nenhuma.
— Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta…
— Que seta? O senhor está vendo alguma seta?
— Aquele pontinho ali no arco…
A velha suspirou:
— Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo,
essas traças dão cabo de tudo — lamentou disfarçando um bocejo. Afastou-se sem
ruído com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído. — Fique aí à vontade,
vou fazer um chá.
O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato.
Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse
caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas
narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da
madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda,
aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde… Ou subia do chão?
O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria
sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por
entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a
caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas
detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça.
Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para
prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a
49. seta… A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como
estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão
no arco.
Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora
uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz
sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os
olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas
tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original
e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o
contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só
músculos e nervos apontando para a touceira. “Mas se detesto caçadas! Por que
tenho que estar aí dentro?”
Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa
familiaridade medonha, se pudesse ao menos… E se fosse um simples espectador
casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o
quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. “Antes do aproveitamento
da tapeçaria…”, murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço.
Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara
do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais
nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da
penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim
vigoroso, rejuvenescido?…
Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio
ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse
dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na
mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou
a lembrança do frio da tapeçaria? “Que loucura!… E não estou louco”, concluiu num
sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. “Mas não estou louco.”
Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo
de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando
vislumbrar a tapeçaria lá no fundo.
Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos
escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro
dos travesseiros, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: “Que seta? Não
estou vendo nenhuma seta…”. Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das
traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram
numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que
escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja
o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso podia distinguir as
serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. “Sou o caçador?” Mas
em vez da barba encontrou a viscosidade do sangue.