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Erros
Como eu poderia saber que não daria certo? Com todas aquelas pessoas me
dizendo que era o melhor a fazer, eu não tive muitas alternativas. Nunca se pode ir
contra os conceitos predominantes do meio onde se vive. Por mais que eu não
gostasse daquilo, fui obrigada a fazê-lo, mesmo não tendo uma arma direcionada à
minha cabeça.
Tudo começou há dois dias. Aquela criança não sabia quem éramos muito menos
que não poderia estar ali. Estávamos no nosso lugar de sempre, na ala esquerda do
antigo parque de diversões, ao lado da montanha russa. Antes de tomarmos posse,
algumas crianças costumavam brincar ali nas noites de tédio e ainda algumas
aparecem por lá, mesmo sabendo de nossa existência. Minha turma jogava cartas e
propunha alguns programas divertidos, quando ele apareceu. Era um garotinho
magrelo, aparentando uns dez anos e com cabelos negros meio desgrenhados. Trajava
sandálias, bermuda jeans em bom estado e uma camiseta branca.
Não era hábito perdoarmos. Aquela área era nossa e coitado de quem aparecesse
por lá. Sim, eu sempre compactuei com os castigos, mas ele era novo na cidade e
ninguém lhe fez o favor de ensinar-lhe as regras. Antes de notarmos a sua presença,
ríamos. Todos fizemos expressões frias e o Fred encarou-o. Fez sinal para que se
aproximasse e o garoto veio andando lentamente, trêmulo e olhando o chão.
-Qual seu nome?
-André. – Nunca vou esquecer esse nome.
-Muito bem, André. Acho que você não sabe quem somos não é mesmo? – Ele fez
um gesto com a cabeça. – Claro, ou então seria muito louco. O que faz fora de casa a
essa hora, garoto?
- E-e-eu s-só que-queria visitar o pa-parque... – Lágrimas começaram a inundar seus
olhos. Eram seus instintos avisando que havia perigo por ali.
- Galera, - Fred ainda olhava o menino, com um sorrisinho no canto da boca- o que
fazemos com intrusos?
- Castigo. – Sibilou a Gih, como se adorasse a idéia. De fato adorávamos.
- Isso mesmo, castigo...
- O que faremos com ele? Estou sem imaginação...
- Ah, qual é, gente! Ele é só um garotinho, nem sabia que estávamos aqui. Pelo
visto, ele é novo na cidade, correto, André?
- Mhum
- Lu, nem vem! Nunca deixamos ninguém escapar. Imagina se ele sai por aí se
vangloriando: “lá lá lá lá lá, eu entrei no parque , léro léro, eu vi os Wrong” ! – Guga
imitou um mongolóide, balançando os braços e pulando em círculos. – Imagina se todo
dia aparecer algum inseto como esse?
Fred abraçou o menino pelos braços e ele teve um tremor súbito.
- Muito bem, galera. Qual o castigo do nosso novo “inseto”? – Riram.
- Há muito tempo eu ando querendo dar uma lição naquele velho da Rua 15... – Vick
estava pensativa. – O que acham?
- É uma boa idéia. – Marcelo concordou e todos afirmaram a mesma coisa.
Eu não gostei da idéia. André parecia muito frágil e o Sr. Burt era perigoso, até mais
perigoso do que nós. Certa vez ele queimou um gato vivo só por ter subido na sua
janela.
Tentei relutar, tirar aquela idéia da cabeça deles, livrar o pobre menino do castigo
que o esperava. Juro que tentei, mas eles insistiram, ignoravam o fato de correr algo
errado. Ameaçaram me deserdar caso eu persistisse na negação. Então não me restou
alternativa a não ser me manter neutra.
Era incrível o quão rápido organizávamos os castigos. Os intrusos poderiam fugir ou
não aparecer, caso deixássemos para outro dia. Eles não contariam a ninguém, não
eram idiotas o bastante. Se contassem, o que lhes aconteceria seria bem pior, sem
dúvida,
Em menos de uma hora havíamos reunido todos os materiais necessários para o
ritual. Dirigimos-nos então à Rua 15. Fred e Guga carregavam os instrumentos,
Marcelo levava André preso pelas mãos, Edu e Vick andavam abraçados, enquanto Gih
e eu andávamos ao lado de Guga e Fred, respectivamente. Eu resmungava baixinho, na
esperança de que desistissem, embora soubesse que seria praticamente impossível.
Enfim chegamos à casa do Sr. Burt. Edu se posicionou do outro lado da rua com um
comunicador a fim de vigiar; Vick verificou os fundos, Guga depositou os materiais no
chão e abriu a porta da frente – ele havia feito um curso intensivo para ladrões -, onde
nós estávamos esperando.
- Não se preocupe garoto. Vai ser uma tarefa fácil. – Fred tentava fazê-lo parar de
tremer, ou quem sabe queria assustá-lo mais.
- Galera, isso não vai dar certo. O Sr. Burt é muito perigoso! Vamos esquecer isso e
deixá-lo ir para casa. – Eu insistia, embora fosse melhor continuar calada.
-Cala a boca, Lu! Agora que estamos aqui vamos até o fim. – Gih sempre me
recriminava, mas era uma das Wrong que eu mais gostava, Foi quase a fundadora,
junto com o Fred e eu.
Entramos um a um. Marcelo dirigiu André até uma poltrona, onde se sentou
esperando sua hora chegar. Gih subiu ao primeiro andar a fim de verificar que o Sr.
Burt dormia. Fred, após Gih voltar, foi ao corredor do quarto de cima, onde outrora
dormia Carl, o filho do dono da casa. Pingou algumas gotas de sangue de carneiro,
fazendo um rastro até o alto da escada. Lá, despejou metade do balde de sangue,
formando um rio rubro. Guga e Marcelo preparavam o garoto, vestindo-o com as
mesmas roupas que o Carl usava, na noite da sua morte.
Consta no relatório policial que o filho do Sr. Burt, na época também com dez anos,
descia as escadas até a cozinha para guardar uma faca que havia encontrado no seu
quarto e pisara sem querer quando o gato da família saltou na sua frente. O garoto
tropeçou no alto da escada por causa do susto e a faca que estava em sua mão
arranhou sua face e penetrou na sua garganta, provocando-lhe a morte. Desde então o
Sr. Burt vive sozinho, carrancudo e perigoso. A sua esposa morreu no parto.
Enquanto Gih e eu preparávamos o ambiente, pondo fotografias de família nas
prateleiras e modificando a posição dos móveis de modo que a cena fosse exatamente
igual à daquele dia, Marcelo e Guga criavam em André as marcas perfeitas de uma
facada no pescoço e os arranhões da face. Desta vez Marcelo era o experiente.
Fred, após descer pelo corrimão com o balde de sangue para não danificar o rio,
segurou as bochechas de André a fim de fazê-lo armazenar sangue na boca. O garoto,
que até então só apresentava leves tremores e gemidos, agora se debatia e lutava para
livrar-se das malditas mãos que lhe contraiam a face. Guga e Marcelo prenderam suas
mãos e pernas, mas ele não desistiu. Usava toda a sua força de criança, porém Fred era
mais forte e hábil. Despejou um copo inteiro de sangue de carneiro na boca do garoto
e tapou-a com fita adesiva.
- Lu, você não está com pena dele, está? Logo você, com pena de um intruso?
- Não, pena, não. Só receio acontecer algo errado...- Realmente eu não estava
preocupada com André, muito menos com o Sr. Burt. De início quis livrá-lo do castigo
por ele aparentar ser muito frágil e não conseguir realizar a tarefa corretamente.
Quando a Vick sugeriu esse plano, meu medo só se intensificou.
Eu havia entendido o “logo você” do Fred. Por diversas vezes fora eu quem sugerira
os piores castigos e me divertia, vendo o desespero dos intrusos. Há quem diga que eu
era a pior Wrong. Não é por acaso que os pirralhos corriam só de me ver passar na rua.
A essa altura Fred já havia posicionado André no pé da escada. As pernas do menino
formavam um “4” torto, sua cabeça virada para a esquerda com o sangue escorrendo
da boca, seus braços abertos e sob seu corpo mais uma enorme poça de sangue.
Estava quase tudo no lugar, mas faltava uma peça para completar o quadro: o gato.
Marcelo pegou o gato branco, idêntico ao que Carl tinha durante toda a vida, e
colocou-o bem ao lado do menino. Instintivamente, ele começou a beber o sangue de
carneiro.
Com a cena perfeita, saímos para iniciar o castigo. Cada um espiou por uma janela
no andar de baixo, menos Vick e Edu, que continuavam vigiando. Provocamos um som
de algo pesado caindo na madeira a fim de acordar o velho. Ouvimos pegadas vindas
do andar de cima:
- Tem alguém aí: Eu estou armado e vou atirar!
Droga, ninguém esperava que ele tivesse uma arma em casa.
- Carl?! – Vimos o Sr. Burt descer as escadas abruptamente. Ele observou o corpo
inerte a seus pés, chutou o gato que ainda estava no lugar e ajoelhou-se. – Não, Carl,
não, não... – Ele ergueu André e aninhou-o em seus braços, balançando-se para frente
e para trás. Lágrimas grossas escorriam-lhe dos olhos e soluços se formavam em sua
garganta. Se qualquer outra pessoa visse a cena, seria de cortar o coração. – Carl, não,
não, não... Eu estou aqui, filho, não vá... não, não, não... – Não gritava, apenas
sussurrava ao ouvido do garoto.
Se não fosse pela arma, tudo estaria bem.
Até agora.
Nos braços do homem, nosso intruso tremeu, e isso não passou despercebido.
- Carl? Você não... o que é que... – O senhor segurou o garoto pelos ombros e, pela
primeira vez, olhou seu rosto.
- Carl, é mesmo você? Não, você não é meu filho! Quem te mandou aqui? Vamos,
responda, menino insolente! – Gritava.
André começou a chorar, tentava falar, mas não conseguia. Todos nós estávamos
em pânico. Eu gemia e xingava baixinho.
- Lu, vem! – Fred murmurou para mim, ao lado da porta da frente.
- Eu o trouxe aqui, velho. – Fred irrompeu porta adentro. O Sr. Burt ergueu a arma
e disparou uma vez. A bala passou de raspão no braço dele.
- André, corre! – gritei para o menino, que estava abaixado e trêmulo.
-Não tão rápido! – Sr. Burt disparou mais duas vezes, que acertam o garoto nas
costas.
- Merda!
Marcelo e Guga entraram na casa, seguraram as mãos do velho, na tentativa de
imobilizá-lo, mas ele ainda era forte, apesar da idade. Eu tentei levantar André, mas
ele estava gelado, e o Fred tirava-me de perto dele. Mais um tiro. Desta vez acertou a
coxa do Sr. Burt.
Do outro lado da rua, Vick e Edu nos gritavam, as viaturas estavam a caminho. Já se
podia ver as luzes vermelhas e azuis. Atravessamos a rua e corremos por entre as
árvores da floresta. Mais por azar do que por qualquer outra coisa, Vick tropeçou e
aparentemente quebrou o pé. Lembro de ver algo branco no seu tornozelo, poderia
ter sido o osso. O Edu parou para ajudá-la enquanto nós continuávamos correndo e a
polícia se aproximava. Ouvi um estrondo e um clarão, em seguida meu corpo
encontrou o chão frio e uma raiz de árvore.
Depois disso só me lembro de acordar aqui nessa cela. A Gih está comigo e disse-me
que os outros foram levados a outro pavilhão e a Vick está no hospital. Breve, seremos
chamadas a depor, para narrar esta história e tentarmos nos defender. Daqui para
frente, creio que seremos julgados e condenados. Entretanto, agora, vendo-me aqui e
relembrando os acontecimentos, acredito que não me arrependo de ter participado do
castigo.
Veremos a prisão como um descanso para nós e uma folga para a população
daquela cidade, que se verá livre das ameaças no parque de diversões. Que curtam as
férias. Após nossa estadia na penitenciária, os Wrong voltarão, com mais castigos em
mente.
Dhay Souza

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  • 1. Erros Como eu poderia saber que não daria certo? Com todas aquelas pessoas me dizendo que era o melhor a fazer, eu não tive muitas alternativas. Nunca se pode ir contra os conceitos predominantes do meio onde se vive. Por mais que eu não gostasse daquilo, fui obrigada a fazê-lo, mesmo não tendo uma arma direcionada à minha cabeça. Tudo começou há dois dias. Aquela criança não sabia quem éramos muito menos que não poderia estar ali. Estávamos no nosso lugar de sempre, na ala esquerda do antigo parque de diversões, ao lado da montanha russa. Antes de tomarmos posse, algumas crianças costumavam brincar ali nas noites de tédio e ainda algumas aparecem por lá, mesmo sabendo de nossa existência. Minha turma jogava cartas e propunha alguns programas divertidos, quando ele apareceu. Era um garotinho magrelo, aparentando uns dez anos e com cabelos negros meio desgrenhados. Trajava sandálias, bermuda jeans em bom estado e uma camiseta branca. Não era hábito perdoarmos. Aquela área era nossa e coitado de quem aparecesse por lá. Sim, eu sempre compactuei com os castigos, mas ele era novo na cidade e ninguém lhe fez o favor de ensinar-lhe as regras. Antes de notarmos a sua presença, ríamos. Todos fizemos expressões frias e o Fred encarou-o. Fez sinal para que se aproximasse e o garoto veio andando lentamente, trêmulo e olhando o chão. -Qual seu nome? -André. – Nunca vou esquecer esse nome. -Muito bem, André. Acho que você não sabe quem somos não é mesmo? – Ele fez um gesto com a cabeça. – Claro, ou então seria muito louco. O que faz fora de casa a essa hora, garoto? - E-e-eu s-só que-queria visitar o pa-parque... – Lágrimas começaram a inundar seus olhos. Eram seus instintos avisando que havia perigo por ali. - Galera, - Fred ainda olhava o menino, com um sorrisinho no canto da boca- o que fazemos com intrusos? - Castigo. – Sibilou a Gih, como se adorasse a idéia. De fato adorávamos. - Isso mesmo, castigo... - O que faremos com ele? Estou sem imaginação... - Ah, qual é, gente! Ele é só um garotinho, nem sabia que estávamos aqui. Pelo visto, ele é novo na cidade, correto, André?
  • 2. - Mhum - Lu, nem vem! Nunca deixamos ninguém escapar. Imagina se ele sai por aí se vangloriando: “lá lá lá lá lá, eu entrei no parque , léro léro, eu vi os Wrong” ! – Guga imitou um mongolóide, balançando os braços e pulando em círculos. – Imagina se todo dia aparecer algum inseto como esse? Fred abraçou o menino pelos braços e ele teve um tremor súbito. - Muito bem, galera. Qual o castigo do nosso novo “inseto”? – Riram. - Há muito tempo eu ando querendo dar uma lição naquele velho da Rua 15... – Vick estava pensativa. – O que acham? - É uma boa idéia. – Marcelo concordou e todos afirmaram a mesma coisa. Eu não gostei da idéia. André parecia muito frágil e o Sr. Burt era perigoso, até mais perigoso do que nós. Certa vez ele queimou um gato vivo só por ter subido na sua janela. Tentei relutar, tirar aquela idéia da cabeça deles, livrar o pobre menino do castigo que o esperava. Juro que tentei, mas eles insistiram, ignoravam o fato de correr algo errado. Ameaçaram me deserdar caso eu persistisse na negação. Então não me restou alternativa a não ser me manter neutra. Era incrível o quão rápido organizávamos os castigos. Os intrusos poderiam fugir ou não aparecer, caso deixássemos para outro dia. Eles não contariam a ninguém, não eram idiotas o bastante. Se contassem, o que lhes aconteceria seria bem pior, sem dúvida, Em menos de uma hora havíamos reunido todos os materiais necessários para o ritual. Dirigimos-nos então à Rua 15. Fred e Guga carregavam os instrumentos, Marcelo levava André preso pelas mãos, Edu e Vick andavam abraçados, enquanto Gih e eu andávamos ao lado de Guga e Fred, respectivamente. Eu resmungava baixinho, na esperança de que desistissem, embora soubesse que seria praticamente impossível. Enfim chegamos à casa do Sr. Burt. Edu se posicionou do outro lado da rua com um comunicador a fim de vigiar; Vick verificou os fundos, Guga depositou os materiais no chão e abriu a porta da frente – ele havia feito um curso intensivo para ladrões -, onde nós estávamos esperando. - Não se preocupe garoto. Vai ser uma tarefa fácil. – Fred tentava fazê-lo parar de tremer, ou quem sabe queria assustá-lo mais. - Galera, isso não vai dar certo. O Sr. Burt é muito perigoso! Vamos esquecer isso e deixá-lo ir para casa. – Eu insistia, embora fosse melhor continuar calada.
  • 3. -Cala a boca, Lu! Agora que estamos aqui vamos até o fim. – Gih sempre me recriminava, mas era uma das Wrong que eu mais gostava, Foi quase a fundadora, junto com o Fred e eu. Entramos um a um. Marcelo dirigiu André até uma poltrona, onde se sentou esperando sua hora chegar. Gih subiu ao primeiro andar a fim de verificar que o Sr. Burt dormia. Fred, após Gih voltar, foi ao corredor do quarto de cima, onde outrora dormia Carl, o filho do dono da casa. Pingou algumas gotas de sangue de carneiro, fazendo um rastro até o alto da escada. Lá, despejou metade do balde de sangue, formando um rio rubro. Guga e Marcelo preparavam o garoto, vestindo-o com as mesmas roupas que o Carl usava, na noite da sua morte. Consta no relatório policial que o filho do Sr. Burt, na época também com dez anos, descia as escadas até a cozinha para guardar uma faca que havia encontrado no seu quarto e pisara sem querer quando o gato da família saltou na sua frente. O garoto tropeçou no alto da escada por causa do susto e a faca que estava em sua mão arranhou sua face e penetrou na sua garganta, provocando-lhe a morte. Desde então o Sr. Burt vive sozinho, carrancudo e perigoso. A sua esposa morreu no parto. Enquanto Gih e eu preparávamos o ambiente, pondo fotografias de família nas prateleiras e modificando a posição dos móveis de modo que a cena fosse exatamente igual à daquele dia, Marcelo e Guga criavam em André as marcas perfeitas de uma facada no pescoço e os arranhões da face. Desta vez Marcelo era o experiente. Fred, após descer pelo corrimão com o balde de sangue para não danificar o rio, segurou as bochechas de André a fim de fazê-lo armazenar sangue na boca. O garoto, que até então só apresentava leves tremores e gemidos, agora se debatia e lutava para livrar-se das malditas mãos que lhe contraiam a face. Guga e Marcelo prenderam suas mãos e pernas, mas ele não desistiu. Usava toda a sua força de criança, porém Fred era mais forte e hábil. Despejou um copo inteiro de sangue de carneiro na boca do garoto e tapou-a com fita adesiva. - Lu, você não está com pena dele, está? Logo você, com pena de um intruso? - Não, pena, não. Só receio acontecer algo errado...- Realmente eu não estava preocupada com André, muito menos com o Sr. Burt. De início quis livrá-lo do castigo por ele aparentar ser muito frágil e não conseguir realizar a tarefa corretamente. Quando a Vick sugeriu esse plano, meu medo só se intensificou. Eu havia entendido o “logo você” do Fred. Por diversas vezes fora eu quem sugerira os piores castigos e me divertia, vendo o desespero dos intrusos. Há quem diga que eu era a pior Wrong. Não é por acaso que os pirralhos corriam só de me ver passar na rua.
  • 4. A essa altura Fred já havia posicionado André no pé da escada. As pernas do menino formavam um “4” torto, sua cabeça virada para a esquerda com o sangue escorrendo da boca, seus braços abertos e sob seu corpo mais uma enorme poça de sangue. Estava quase tudo no lugar, mas faltava uma peça para completar o quadro: o gato. Marcelo pegou o gato branco, idêntico ao que Carl tinha durante toda a vida, e colocou-o bem ao lado do menino. Instintivamente, ele começou a beber o sangue de carneiro. Com a cena perfeita, saímos para iniciar o castigo. Cada um espiou por uma janela no andar de baixo, menos Vick e Edu, que continuavam vigiando. Provocamos um som de algo pesado caindo na madeira a fim de acordar o velho. Ouvimos pegadas vindas do andar de cima: - Tem alguém aí: Eu estou armado e vou atirar! Droga, ninguém esperava que ele tivesse uma arma em casa. - Carl?! – Vimos o Sr. Burt descer as escadas abruptamente. Ele observou o corpo inerte a seus pés, chutou o gato que ainda estava no lugar e ajoelhou-se. – Não, Carl, não, não... – Ele ergueu André e aninhou-o em seus braços, balançando-se para frente e para trás. Lágrimas grossas escorriam-lhe dos olhos e soluços se formavam em sua garganta. Se qualquer outra pessoa visse a cena, seria de cortar o coração. – Carl, não, não, não... Eu estou aqui, filho, não vá... não, não, não... – Não gritava, apenas sussurrava ao ouvido do garoto. Se não fosse pela arma, tudo estaria bem. Até agora. Nos braços do homem, nosso intruso tremeu, e isso não passou despercebido. - Carl? Você não... o que é que... – O senhor segurou o garoto pelos ombros e, pela primeira vez, olhou seu rosto. - Carl, é mesmo você? Não, você não é meu filho! Quem te mandou aqui? Vamos, responda, menino insolente! – Gritava. André começou a chorar, tentava falar, mas não conseguia. Todos nós estávamos em pânico. Eu gemia e xingava baixinho. - Lu, vem! – Fred murmurou para mim, ao lado da porta da frente. - Eu o trouxe aqui, velho. – Fred irrompeu porta adentro. O Sr. Burt ergueu a arma e disparou uma vez. A bala passou de raspão no braço dele. - André, corre! – gritei para o menino, que estava abaixado e trêmulo.
  • 5. -Não tão rápido! – Sr. Burt disparou mais duas vezes, que acertam o garoto nas costas. - Merda! Marcelo e Guga entraram na casa, seguraram as mãos do velho, na tentativa de imobilizá-lo, mas ele ainda era forte, apesar da idade. Eu tentei levantar André, mas ele estava gelado, e o Fred tirava-me de perto dele. Mais um tiro. Desta vez acertou a coxa do Sr. Burt. Do outro lado da rua, Vick e Edu nos gritavam, as viaturas estavam a caminho. Já se podia ver as luzes vermelhas e azuis. Atravessamos a rua e corremos por entre as árvores da floresta. Mais por azar do que por qualquer outra coisa, Vick tropeçou e aparentemente quebrou o pé. Lembro de ver algo branco no seu tornozelo, poderia ter sido o osso. O Edu parou para ajudá-la enquanto nós continuávamos correndo e a polícia se aproximava. Ouvi um estrondo e um clarão, em seguida meu corpo encontrou o chão frio e uma raiz de árvore. Depois disso só me lembro de acordar aqui nessa cela. A Gih está comigo e disse-me que os outros foram levados a outro pavilhão e a Vick está no hospital. Breve, seremos chamadas a depor, para narrar esta história e tentarmos nos defender. Daqui para frente, creio que seremos julgados e condenados. Entretanto, agora, vendo-me aqui e relembrando os acontecimentos, acredito que não me arrependo de ter participado do castigo. Veremos a prisão como um descanso para nós e uma folga para a população daquela cidade, que se verá livre das ameaças no parque de diversões. Que curtam as férias. Após nossa estadia na penitenciária, os Wrong voltarão, com mais castigos em mente. Dhay Souza