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Vinganças
Ele estava ali. Bem na minha frente. Dizem que não há hora ou lugar marcados
para o amor acontecer, então estávamos no lugar certo e na hora certa. Quer dizer, eu
estava. Ou pensava que estava. Para falar a verdade, era o pior lugar do mundo para
eu estar, e na pior hora possível. Eu não podia ter me envolvido tanto. Mas já que
aconteceu, resolvi tirar proveito da melhor forma possível.
Era uma tarde simples, o sol brilhava, havia algumas nuvens no céu, o vento
brincava nas folhas, alguns passarinhos cantavam. Este foi o cenário que emoldurou
um dos dias cruciais da minha vida amorosa. Eu estava sentada num banco da praça,
tomando sorvete com a Liss e ele estava do outro lado. Havia comentado com ela
sobre o quanto aquele carinha era gato. E como era gato. Ele era do tipo vilão-super-
sexy-de-filmes-de-Hollywood. Uma barba malfeita, queixo quadrado, olhos claros,
lábios finos e músculos. E que músculos! Ah, aqueles braços eram suficientes para
deixar qualquer mulher babando. E eu só tinha dezoito anos, como resistir?
Liss deu-me uma cotovelada. Percebi que fiquei muito tempo encarando-o e ele
havia percebido. Olhava-me com olhos sedutores, enquanto eu desviei o olhar e fitei o
chão. Sabia que estava vermelha de vergonha. Quando tomei coragem e levantei um
pouco os olhos, vi um par de lindas pernas se aproximando. Rapidamente voltei meu
olhar para as formigas que carregavam algum grão bem próximas de meus pés.
- Posso sentar aqui? – Aquela voz era doce e ao mesmo tempo rígida. Grossa
quando parecia ser tão gentil. Era possível algo assim existir?
- Aah, Gabi, vou dar uma olhada naquela lojinha de papeis, tudo bem? – Liss
sempre sabia o momento de sair ou de chegar. Mas aquele não era um bom momento
para sair. Ela sabe o quanto eu fico nervosa em primeiras conversas.
- Acho que aquilo foi um ‘sim’. – a voz de novo!
- Mhm. – Foi o máximo que consegui. As palavras teimavam em não sair da
minha boca quando eu mais precisava delas.
- Então, o que estava olhando? Não disfarce, percebi o quanto estava entretida
em meus músculos. Ou quem sabe foram os meus olhos? Acho que não. Para encarar
meus olhos teria que olhar-me diretamente, e veria quando eu olhasse para você. Só
pode ter sido para os meus braços. Acertei, não foi?
Eu não esperava por aquilo. Ninguém é tão direto numa primeira conversa! E
ainda era tão pretensioso! Imagine se eu estaria olhando seus braços! Se bem que eu
realmente estava analisando aquelas curvas.
- Não acha que está sendo muito pedante ao supor que eu perderia meu tempo
olhando para seus braços? E eu nem olhava para você. – A raiva subiu-me e tive que
levantar o olhar.
- Desculpe, mas pensei que esse seria o único jeito de fazer-lhe olhar para mim. E
consegui, viu? Bruce.
Ele estendeu a mão para cumprimentar-me. No momento, mesmo estando
surpresa, não desperdiçaria uma chance de tocar aquela pele perfeita. Com receio,
apertei-lhe a mão. Ele puxou-me e deu-me dois beijinhos nas bochechas. Um arrepio
subiu-me pelas costas e senti meu rosto corar.
- Não vai me dizer seu nome? Espere, acho que lembro o que sua amiga falou.
Fani, Dani. Não, não é isso.
- Gabi. Ela me chamou de Gabi.
- Isso, Gabi! De Gabriela, não é?
- Caramba, como você adivinhou? A maioria das pessoas imagina que seja
Letícia! – O sarcasmo inundou minhas palavras. O que estava dando em mim? Aquele
cara era um deus grego e eu estava usando meu dom da ironia com ele?
- Calma, garota. Só estou tentando ser diplomático. Mas se prefere que levemos
essa conversa para a ironia, vamos lá! – Ele pareceu ofendido.
- Não, não é nada disso. Desculpe-me. É que meu apelido é tão obvio que eu fico
de saco cheio de todo mundo perguntando meu nome. Se pelo “Gabi” já se deduz o
“Gabriela”, por que não se contentam com o apelido? Cara, eu ODEIO “Gabriela”!
“Gabi” é tão prático, tão moderno, tão sexy! Por que teimam em chamarem-me de
“Gabriela”? – As palavras saíram tão apressadas e atropeladas que precisei de um
tempo para respirar. Ele tinha uma expressão assustada.
- OK, OK. Agradeço pelo aviso. Assim não corro o risco de pronunciar seu nome
complicado, antigo e não-sexy. Anotado: nunca chamar-lhe de ********, apenas Gabi.
– Aquilo me fez rir. Nunca ouvira alguém pronunciar meu nome com asteriscos. Ele
realmente falou “nunca chamar-lhe de oito asteriscos”.
- Você é engraçado. – Falei quando consegui me recompor.
- E você é linda.
Minhas bochechas queimaram. Pus a mão no rosto para tentar resfriá-las. Mas
não consegui conter um sorriso.
Aquela conversa continuou por algumas horas. Apenas quando ouvi os sinos da
igreja indicando seis horas me dei conta do tempo. O céu já estava escuro e as lojinhas
começaram a fechar. Passei os olhos pela loja de papéis, onde Liss provavelmente
estaria e não a encontrei. Imaginei que já tivesse ido para casa.
- Caramba, já é tarde! Liss vai me matar por ter ido para casa sozinha e meu pai
vai me matar por EU ter ido sozinha!
- Você não é bem grandinha para precisar de babá?
- Há-há, Sr. Engraçadinho. Meu pai teme pela minha segurança, sabia? Ele receia
que eu seja raptada.
- Você é tão importante assim, para quererem te seqüestrar?
- Não sabe quem eu sou, não é? Meu pai é o dono da empresa administrativa
que movimenta a economia da cidade.
- Se for assim, então é melhor eu te acompanhar até em casa. Vai que algum
chefe de quadrilha te prende quando você virar a esquina. É muito perigoso ir até em
casa sozinha. Me dá a honra?
Ele estendeu-me o braço esquerdo, e eu entrelacei-o no meu braço direito.
Minha casa ficava a uns trinta minutos dali. A conversa durante o caminho foi
agradável. Descobri mais algumas coisas ao seu respeito, como por exemplo, que ele
adorava leituras, era fã incondicional da lua, ouvia boa música, passava as horas livres
vendo filmes de terror e tinha uma coleção completa de discos dos seis maiores
cantores das décadas de 70 e 80 . Quanta coisa tínhamos em comum! Ou pelo menos
era o que eu achava.
Já em casa, corri para o meu quarto e liguei para Liss. Contei-lhe sobre a tarde
perfeita e ela me disse que sequer foi à lojinha. Seguiu direto para sua casa pois já
sabia o quanto íamos demorar e não estava com paciência para dar uma de
candelabro.
Aquela cena repetiu-se durante toda a semana. Sempre o encontrava vagando
pelas lojinhas ou no shopping, Liss abandonava-nos e ele me acompanhava até em
casa. Na sexta-feira pediu-me o número do meu celular. Trocamos e-mails e
combinamos de ir a uma balada no sábado.
Liss foi conosco e logo arranjou outra companhia. Ela nunca ficava sozinha numa
festa, mas aquele loiro era particularmente lindo. Aquela noite foi o céu para mim. Por
volta das dez horas demos o nosso primeiro beijo. Na minha visão, seria o começo de
um relacionamento lindo e perpétuo. Isso mesmo, conhecemo-nos há menos de uma
semana e eu estava irrevogavelmente apaixonada por ele.
Cheguei em casa às cinco da manhã. Passei o resto da madrugada em claro,
revivendo as últimas horas e imaginando o nosso futuro. Ele ainda não dissera que me
amava, mas logo diria. Quem não me amaria? E eu o faria o homem mais feliz do
mundo, enquanto eu era a mulher mais sortuda. Tinha dinheiro, amigas, e um marido
que era a personificação da perfeição. O que mais eu pediria? Relembrando aquele
dia, eu tenho pena de mim mesma. Ainda não sabia o que realmente estava
acontecendo.
E então estava feita a nossa rotina. Liss finalmente levou um ficante a sério e
passeava conosco e seu loiro-lindo – a quem chamamos de Richard, ou só Rich – no
shopping todas as tardes. Íamos ao cinema duas vezes por semana e em baladas todo
o sábado. Os domingos eram ociosos, mas só porque não encontrávamos um
programa apropriado. Por cinco meses inteiros permanecemos assim.
Então ele me pediu em namoro. Já estávamos muito próximos e eu esperava por
aquilo desde o nosso primeiro beijo. Foi tudo perfeito. Marcamos de nos encontrar
num sábado, no restaurante mais sofisticado da cidade. Pediu-me para ir com o meu
melhor vestido, pois a ocasião pedia isto.
- Gabi, nos conhecemos há menos de seis meses, não é? E, no entanto, já somos
tão íntimos. Veja, não há mais ninguém que me faça rir nas quartas. Sabe que, para
mim, as quartas eram um castigo. Depois de você, se transformaram num deleite,
assim como todas as vezes em que estamos juntos. Eu sei que um homem como eu
dificilmente demonstra seus sentimentos, mas o que está acontecendo comigo é algo
inexplicável e que não se consegue conter. Desde aquela primeira tarde eu imaginei
que nasceria um intenso relacionamento. Só agora eu consegui reunir coragem
suficiente para te dizer isso. – A essa altura meus olhos já estavam molhados. - Eu amo
você, Gabi. E não é de um jeito infantil ou como os clichês, o que está acontecendo
comigo não tem descrição. Meu peito se atormenta a cada minuto que eu não estou
na sua companhia. No trabalho já não consigo me concentrar, porque você sempre
está lá, ecoando suas doces palavras na minha cabeça. Por incrível que pareça, os
relatórios que preparo sempre acabam com o seu nome. Só depois de impressos, eu
percebo e tenho que refazê-los. Não estou convicto quanto ao que você sente por
mim, mas creio que não recusaria a um pedido de um homem apaixonado. Não acha
que estamos prontos para levarmos esse relacionamento mais a sério? Aceita namorar
comigo e compartilhar esse amor que já carrego há tanto tempo?
Como dizer não a algo assim? Eu sequer consegui dizer sim. Apenas balancei a
cabeça afirmativamente e enxuguei minhas lágrimas no lenço para poder ver melhor o
maravilhoso rubi incrustado no anel prateado que ele estendia para mim, dentro de
uma caixinha folheada a prata. Muitas se assustariam com aquele símbolo que
significaria um compromisso muito sério, porém eu fiquei extasiada em perceber que
ele pensava o mesmo que eu. Ele sabia que nosso amor seria eterno. Ao menos eu
pensava que ele sabia.
O que se procedeu não irei contar. Espero que me perdoem por esta lacuna, mas
suas outras palavras eram tão lindas que agora se tornaram torturantes, e não
acredito que meu coração possa resistir a mais essa lembrança.
Nossa rotina a partir desse dia não foi muito modificada. Apenas passávamos
mais tempo a sós e alternávamos as noites na balada com outras atividades, como
cinemas, jantares em belos restaurantes, algumas curtas viagens. E uma vez no mês
passávamos o fim de semana na casa da minha família em uma ilha desabitada. Como
eu sabia que meus pais reclamariam caso fosse sozinha com ele, eu organizava festas.
Algumas eram particularmente grandes, enquanto outras eram somente para amigos.
Essas eram as mais divertidas. Além de a festa ser mais liberal, as viagens até a ilha no
navio do meu pai eram incríveis.
E foi numa dessas festas particulares que o nosso compromisso se completou. A
festa já estava no fim, mas algumas pessoas ainda dançavam lá no fundo, outras
estavam se divertindo na piscina, dentre elas a Liss. O Bruce deu um jeito de me tirar
da festa, fazendo-me um pedido irresistível ao ouvido. A essa altura eu já estava
impressionada de ele ainda não haver comentado sobre aquilo.
- Tá gostando da festa, amor? Porque eu tô adorando, mas tenho alguma coisa lá
em cima bem melhor para você.
Aquela voz sexy era tudo o que eu precisava para fazer meus braços se
arrepiarem, ainda mais seguida daquela mordidinha no lóbulo da orelha. Então ele me
arrastou da pista de dança, puxando-me pelas mãos. Subimos as escadas quase aos
tropeços, e ele mantinha minhas mãos nos seus quadris. Entramos no nosso quarto –
sim, dormíamos juntos, mas ate agora não havíamos ultrapassado os limites da
decência – e ele me jogou contra a parede. Beijou-me de um jeito ardente, como
nunca havia feito, e meus braços envolveram seu pescoço, enquanto minhas pernas
instintivamente prenderam-se na sua cintura. Suas mãos fortes apertavam-me tanto
que chegavam a machucar, mas era uma dor que eu suportava, uma dor excitante. O
desenrolar dessa cena vocês já devem imaginar. Perdoem-me por mais esta lacuna.
Depois disso, eu ganhara confiança para dormir no seu apartamento. Quando
meus pais viajavam, alternávamos as noites entre minha casa e a dele. A Liss sempre
dormia comigo, mas eu achara companhia bem melhor. Nos finais de semana, quando
saíamos de algum programa, também ia dormir com ele. Chegava em casa pela manhã
e meus pais não se preocupavam. Eu já era responsável para não precisar dar
explicações.
Com um ano de namoro, levei-o para jantar com a minha família. Apresentei-o a
meu pai, que, impressionantemente, não implicou com esse namorado. Na sua visão,
todos os outros eram insignificantes, arrogantes, preguiçosos, velhos e não seriam
bons o suficiente para mim. Mas o Bruce, além da diferença de sete anos na idade, era
responsável, inteligente, educado e, além de tudo, bonito. Imaginem meu pai
chamando o meu namorado de bonito! Aquilo era um sonho, só poderia ser! Acho que
eram seus olhos que tinham o poder de persuadir qualquer pessoa.
Mais dois anos se passaram sem nada de especial no nosso relacionamento. Fora
o início das minhas aulas particulares de administração, a única coisa que se
diferenciava era o meu amor por ele, que só aumentava. Eu já não conseguia viver
longe daquele homem. Se passasse um dia longe daqueles olhos, enlouquecia. E
somente sua voz era capaz de me acalmar. Suas palavras doces, seu abraço apertado.
Era tudo o que eu queria. Não, era além de querer, ele era fundamental, indispensável
para a minha sobrevivência. É incompreensível quem acha que o amor é tão difícil.
Para mim era bastante simples. Se ele estava comigo, eu estava bem. Se não estava, eu
corria risco de vida. Apenas duas orações e o meu amor estava explicado. Simples.
No nosso aniversário de quatro anos, ele me tornou uma mulher mais feliz do
que eu já era. Estávamos na cozinha do seu apartamento. Eu estava preparando uma
omelete (a coisa mais sofisticada que eu me atrevia a cozinhar) e o Bruce estava
sentado na bancada, bem atrás de mim, brincando com algum utensílio.
- Gabi, você me ama?
- Que história é essa, Bruce? Você sabe que eu te amo. Quantas vezes já te disse
isso?
- Eu sei, eu sei. Mas eu preciso ter certeza. Eu preciso da sua confirmação de que
você me ama demasiadamente, que eu sou tudo o que você quer, que você nunca
pensou em me abandonar, que vai me desejar para sempre, que quer ter muitos
filhinhos comigo e viver numa casa à beira-mar.
- Não sei quanto à casa, mas o resto é isso mesmo, amor. Não estou
entendendo...
- Eu precisava saber que você se sente como eu, porque hoje eu pretendo dar
um passo importante no nosso namoro.
- O que quer dizer?
- Sabe, eu andei pensando numa coisa. Se nós nos amamos desse modo, se
nunca iremos nos separar, para que continuarmos com um simples namoro? – Ele
desceu da bancada e se ajoelhou a meus pés.- Gabi, você aceita se casar comigo?
Ele estendeu um anel dourado com um diamante, dentro de uma caixinha de
ouro. Fiquei tão surpresa com o pedido, que as palavras fugiram. Apenas estendi a
trêmula mão direita, enquanto a esquerda estava fechada em frente à minha boca, na
tentativa de reprimir um grito, e acenei com a cabeça. Lágrimas encheram meus olhos,
e quanto mais eu piscava para limpar a visão, mais elas caiam como cascatas pela
minha face.
Mal ele pôs o anel no meu dedo, já me lancei em seu pescoço. Dei-lhe um abraço
tão apertado que meus braços ficaram dormentes. Enquanto o libertava do abraço, ele
puxou minha cintura ao encontro de seu corpo e beijou-me com a mesma intensidade
do meu abraço. Quando dei por mim, já estávamos em cima da mesa da cozinha. Não
podíamos começar uma comemoração agora, era sábado e logo teríamos que ir visitar
alguns amigos, mas eu estava tão eufórica que não tive forças para controlá-lo. Na
verdade, já havia me esquecido das visitas e deixei-me levar pelos meus desejos
carnais.
Tudo o que eu precisava naquele momento era do seu corpo. O corpo do homem
que seria meu marido. Estremeci ao pensar na palavra. Marido. Sempre pensei no
nosso relacionamento perpétuo, mas nunca me imaginara casada com ele. Ele estava
certo, que sentido havia em permanecermos como namorados? Nosso amor nunca
morreria.
Na segunda-feira pela manha já estávamos programando o casamento. Se não
fazia sentido continuarmos como namorados, para que prolongar um noivado?
Olhamos algumas listas de igrejas disponíveis para os próximos dois meses na internet
e selecionamos as cinco melhores. Dinheiro não seria problema. Mesmo sem o
dinheiro do meu pai, eu tinha uma boa quantia no banco, e já que ele me dera dois
belos anéis, um de rubi e outro de diamante, obviamente também não se incomodaria
em me dar a melhor igreja da cidade.
Pretendíamos visitar as cinco, mas a primeira já me pareceu perfeita. Tinha um
estilo Notre Dame, com torres altíssimas, janelas com vitrais coloridos que, à luz do
entardecer, projetavam um arco-íris sobre o altar, algumas esculturas de renomados
artistas, assentos almofadados, grossas portas de carvalho. Era aquele lugar que eu
escolhera para concretizar o nosso compromisso. Ali receberíamos as bênçãos dos
céus e obedeceríamos às leis dos homens.
Na quinta-feira, Liss me arrancou de casa para procurarmos o meu vestido. Visitamos a
Rua 4 de Maio, uma alameda especializada em casamentos. Ali se encontrava de tudo, de
flores a velas, de cortinas a bolos e doces. Havia no mínimo oito lojas que vendiam vestidos de
noivas, todas de reputação internacional. Vasculhamos as vitrines e escolhemos uma delas
para entrar. Eu não teria paciência de experimentar todas as peças de todas as lojas. Contra a
vontade de Liss, eu escolhi justamente a mais simples, ou melhor, menos glamorosa. Era a
única que as caudas não passavam de três metros e o véu não alcançava minha cintura.
Enquanto a costureira tirava as minhas medidas, Liss me observava com um ar estranho.
Era um misto de preocupação e medo que me assustava.
- Você tem certeza que está fazendo a coisa certa?
- Como assim, Liss?
-Cara, vocês se conheceram a, o que, dois anos?
-Quatro anos. E daí?
-A maioria das pessoas, principalmente os homens, espera muito para se casar. Eles têm
medo do casamento. E o Bruce já está louco para se casar com você. Não acha estranho?
- Estranho? Não, a gente apenas se ama mais do que tudo.
- Tem certeza que ele te ama, Gabi?
- Claro que tenho! Afinal, por que ele iria casar comigo se não me amasse? Que idéia
maluca, Liss. Pelo amor de Deus, eu estou comprando o meu vestido, poderia parar de falar
bobagens?
- Desculpa amiga, mas eu estou realmente intrigada com esse casamento...
- Tudo bem, só não me venha com essa conversa de novo, tá bom?
Que garota louca, imaginar que o meu príncipe não me amava. Ele era tudo o que eu
tinha no momento, e eu era o mundo para ele. E não tinha como alguém mentir daquele jeito.
Eu via seus olhos brilharem quando falava de mim, sentia seu coração acelerar quando me
abraçava. Suas palavras eram sinceras, eu sabia! Hoje eu sei que estava cega pela minha
paixão.
Às vésperas do meu casamento, no último sábado, para ser mais exata, eu precisei viajar
para decidir quais as flores deveriam substituir as rosas brancas do meu buquê. As rosas não
haviam suportado a viagem e murcharam. Como era uma viagem longa e o transito lá era
caótico, avisei a todos que só voltaria no outro dia, por volta das quatro da tarde. Por
pura brincadeira do destino, consegui regressar mais cedo, e pensei em fazer uma
surpresa para o Bruce. Às onze horas da noite apareci em seu apartamento. Ele me
recebeu nervoso, aparentando surpresa em demasia e até senti uma pontada de
desespero. Na minha euforia por não precisar dormir longe de casa, ignorei seu
comportamento e lancei-me nos seus braços.
Dormi no seu apartamento, era tarde para ir para casa. Pela manhã, fui
despertada por duas vozes, uma delas exaltada, na sala. Procurei o Bruce na cama,
mas seu lado da cama estava vazio. Imaginando que fosse alguém da redação do jornal
onde ele trabalha, não achei adequado me apresentar naqueles trajes. Apenas fiquei
quieta e escutei.
- Mais uma vez, por que você veio aqui?- Bruce estava gritando? Logo ele que
sempre fora tão calmo. O que estava fazendo-o gritar?
- Eu já disse, vim te entregar o contrato.
- Não íamos nos encontrar no almoço? Quantas vezes eu preciso te falar para
NUNCA vir ate aqui! Você nunca sabe quando ela vai estar ou não!
- Ontem mesmo você me disse que ela viajou. E, sabe a Carlinha, que trabalha na
lanchonete? Então, hoje ela finalmente decidiu aceitar o meu convite! Ai eu aproveitei
e trouxe o contrato aqui para poder ter o almoço livre, cara.
- Ela viajou, mas voltou ontem, seu imbecil! Sorte sua que ela ainda está
dormindo. Senão, você ia estar encrencado!
- Como eu ia saber que ela voltou? E, já que ela está na cidade, como você ia me
encontrar? Essa vaca não desgruda do seu pé!
- Eu dou meu jeito...
- Mas, então, vamos logo com isso. O contrato está aqui. Ela vai ter que assinar
aqui, e você aqui. E tem que ser logo depois da cerimônia, não esqueça.
- Logo depois? Ela vai desconfiar. A gente não poderia esperar um pouco mais?
Quem sabe quando voltarmos da viagem...
- Cara, o que é isso? Você já fez isso tantas vezes, por que quer mudar logo agora? Não
me diga que vai querer desistir! Imagina o que o pessoal vai dizer! Logo você, Jay, dando pra
trás?
- Nada disso, eu não vou desistir, mas é que ela é muito esperta.
- Mas ela esta apaixonada, não é? Então, mulheres são muito bobas, lembra? Pois bem,
quando chegarem ao Brasil, um dos nossos vai recebê-los no aeroporto. Depois eu te entrego
uma foto dele para não ter engano. Antes de chegar ao hotel, você vai pedir para o motorista
parar, diga que vai comprar qualquer coisa, sei lá, inventa alguma coisa, ele vai sair com você,
e daí: CABUM! Sua recente esposa voa pelos ares e o dinheiro é nosso! Alguma duvida?
- Ela tem mesmo que morrer? Quero dizer, não poderíamos modificar o contrato para
ela me dar o dinheiro, mas continuar viva? Sabe, eu não queria que nada acontecesse com ela.
- Não, Bruce, não dá. Você sabe que elas têm que morrer! Por favor, não me diga que
você está preocupado com ela. Ah, não, não, não! Merda, você tá apaixonado, também! Cara,
você não pode! O que aconteceu com você, hein?
- Não, eu não tô apaixonado...
- Está sim! Olhe como seus olhos estão brilhando! Jay, isso me dá enjôo!
- Tudo bem, e se eu estiver mesmo? A Gabi é tão divertida, tão, tão... Mas não interessa.
Já que tem que ser assim, fazer o que.
- Esse é o Jay que eu conheço!
- Ta, ta. Agora saia daqui. Daqui a pouco ela acorda e tudo vai ter sido em vão. Vamos,
vamos, o que está esperando! SAI DAQUI!
Estava atordoada com tudo o que havia ouvido. Seria verdade que o Bruce me
enganara? Ele realmente fazia parte de uma quadrilha de bandidos que caçavam heranças? Ele
iria me matar? E por que o outro cara estava chamando-o de “Jay”?! Não, aquele não era o
Bruce, era só um sonho. Mas eu estava bem acordada, não havia sonhado. Ouvi passos se
aproximando e por instinto fingi que ainda dormia. Sabe lá o que ele faria comigo se soubesse
que eu já acordara. Talvez não me machucasse afinal ele disse que estava realmente
apaixonado. Mesmo assim, achei melhor não arriscar.
Vi que ele guardara alguns papéis no fundo de uma gaveta do guarda-roupa, que
sempre mantinha trancada. Caminhou um pouco pelo quarto, imagino eu que estivesse
pensando num plano para me fazer assinar esse contrato sem desconfiar. De nada adiantaria
seus esforços, eu não iria me casar com ele, não depois de saber que ele ia me matar!
O meu único problema seria como fazer isso. Ele não poderia saber que eu descobrira
seus verdadeiros objetivos para comigo, ou, suponho eu, seus amiguinhos dariam “um jeito”
em mim. O que poderia fazer, então? Diria que não tinha certeza quanto os meus
sentimentos? Oi, Bruce, não posso me casar com você porque depois de quatro anos eu ainda
não sei se te amo. Ok, fora de cogitação. Encontrei outro cara? Talvez até funcionasse, mas eu
ainda teria que arranjar uma pessoa para me servir de amante. Muito trabalho para pouco
tempo.
Esses minutos de meditação me foram suficientes para eu traçar todo o meu plano de
vingança. Ele não poderia sair ileso. Ele deveria sentir no mínimo uma parte do que eu estava
sentindo. Aquela ultima semana com o Bruce seria um inferno. Para ele, não para mim. Eu me
divertiria tanto quanto fosse possível, aproveitaria cada minuto para poder destruir a sua vida,
para fazê-lo se arrepender do dia em que me escolheu como vitima.
Decidida a não perder mais tempo, comecei a dar sinais de consciência. Cocei a cabeça,
apalpei o outro lado da cama e me mexi mais um pouco. Em instantes ele estava ao meu lado,
acariciando meus cabelos e beijando minha testa.
- Bom dia, amor. Por que acordou cedo? Volte a dormir, vamos ter um longo dia hoje.
Mesmo sabendo de suas intenções, eu podia sentir verdade e carinho naquelas palavras.
Ele realmente me amava, e sofreria quando concluísse sua tarefa. Mas quem sem importa? Ele
me traiu todo esse tempo, deveria pagar pelo seu erro.
- Sabe, Bruce, eu estava pensando, agora que nós vamos nos casar, acho que você
deveria se livrar desses discos velhos. Vamos morar juntos, e eu não gosto de velharias em
casa.
- Os meus discos? Não, amor, não pode. Você sabe o quanto eu adoro esses discos.
- Eu sei, eu sei. Mas onde vamos guardar? Tudo bem que nossa casa será grande, mas
eles só vão acumular poeira, Bruce! Mais tarde vamos dar um jeito nisso, tudo bem? Agora,
por favor, prepare um café para mim? Estou com uma terrível dor de cabeça...
Ele tentou contestar, mas eu fiz a infalível ceninha de mulher carente. Não há homem
que resista. Ele deixou para discutir comigo outra hora.
À tarde, quando já tinha saído, liguei para ele e pedi que retornasse para casa, queria
passar o dia com ele. Do outro lado da linha ele reclamou, mas com uma voz doce, como se
pedisse desculpas. Há uma semana marcara com o pessoal da redação para ir ao estádio, era a
final do campeonato, seu time tinha 93% de chances de ganhar, não poderia faltar!
- Então é assim? Prefere seus amigos a mim? Iremos nos casar daqui a cinco dias e não
quer a minha companhia? Como diz que me ama se nem ao menos abre mão de uma simples
partida de futebol por mim?
- Entenda, Gabi, é a partida da final! E já faz cinco anos que o meu time não vence o
campeonato nacional! Será que você não poderia me dar essa folga? Pelo menos por hoje.
- Folga?! Tornou-se um tormento para você estar comigo, a ponto de precisar de folga?!
Bruce, qual desses seus amigos te colocou na cabeça essa idéia de folga, hein? Você mudou
muito depois que conheceram esse Chris! Foi ele, não é? Eu sei que foi!
- Não é nada disso. Mas o problema é que todos os domingos eu saia com a galera, e
justo hoje você me quer por perto? Justo na final? Gabi, por favor!
- Não, não e não, Bruce! Às vésperas do nosso casamento e você quer assistir futebol
com a “galera”?! Você vai vir aqui e nós vamos ver uns filmes que eu comprei. E eu não quero
mais que você saia com esses caras que se dizem seus amigos e enchem sua cabeça de
besteiras. E trate de não demorar!
Desliguei o celular. Se ele realmente se importasse comigo, viria. Eu estivera ensaiando
algumas lágrimas forçadas, e, enquanto estávamos discutindo, elas saíram espontaneamente.
Minha voz ficou tremula e ele com certeza percebeu que eu estava chorando. Se realmente
me amasse, ele viria me acalmar.
Não sabia o que eu queria. Talvez quisesse que ele me amasse, mas então seria mais
difícil me separar dele, afinal eu ainda o amava. Se ele não viesse, seria mais fácil, contudo a
traição teria sido maior, com mentiras sem tamanho e promessas sem fundamento.
Por fim ele veio. Menos de uma hora depois ele chegou. Ao ver seu carro se
aproximando, forcei mais algumas lagrimas e corri ao seu encontro.
- Ah, amor, tive tanto medo de que me abandonasse! Estava a ponto de desmaiar só de
imaginar que fosse preferir a seus amigos! Ah, meu amor! Jure por sua vida que nunca vai me
trocar! Jure, Bruce, jure! Sabe que eu preciso de você! Sabe que não sou mais nada se você me
deixar!
Soluçava e tremia descontroladamente. Nunca imaginei que as aulas de teatro da quinta
série seriam tão úteis. Cheguei até mesmo a acreditar que chorava de verdade.
- Calma, amor. Estou aqui, já cheguei. Se acalme, por favor. Primeiro, pare de chorar. É
capaz de adoecer se continuar com esse desespero. Tudo bem, agora? O.K., você sabe que
nunca iria preferir um bando de machos a você. Só é que hoje realmente seria um jogo
importante. Mas vamos esquecer tudo isso.
Ele me abraçou com tanto afeto que me assustou. E ele veio até aqui porque eu pedi.
Ele me amava.
Mas ele te traiu, Gabi! Não esqueça isso! Ele te enganou durante quatro anos! Isso não
é coisa que se faça, ainda mais mentindo com uma coisa dessas! Ninguém tem o direito de
mentir sobre o amor! E foi isso o que ele fez com você! Reaja, Gabi! Não se deixe seduzir! Não
dessa vez! Você é forte, seja firme também!
Durante o resto do dia assistimos a três filmes muito melosos. A todo o momento que
ele se distraia, seja beijando meu pescoço, o que me causava arrepios, seja cochilando, eu o
repreendia. Eu também ficava sonolenta e morria de vontade de atacar sua boca, mas aquela
tarde era parte do seu castigo.
Ele deveria suportar quase nove horas de filmes legendados, onde a mocinha se
apaixona pelo mocinho, mas não pode dizer para ele; e o mocinho se apaixona pela mocinha,
mas não pode se declarar porque seus amigos vão chamá-lo de mulherzinha;
patricinha/vizinha do mocinho quer o mocinho só para ela e humilha a mocinha todo o tempo;
e no final a patricinha/vizinha se ferra e o mocinho namora com a mocinha. Os três filmes
tinham o mesmo roteiro. A única mudança era nos nomes dos personagens.
À noite, antes de dormirmos, ele tentou despertar em mim algum desejo. Eu estava
completamente desejosa de ter se corpo junto ao meu, mas ele abusara de mim durante
muito tempo. Uma semana de abstinência não seria muito castigo. Aleguei cansaço, os filmes
foram muito longos.
Na segunda-feira à tarde, enquanto foi ao cartório, vasculhei cada canto do
apartamento, tentando descobrir qualquer objeto que fosse de valor, seja sentimental ou
material e fiz uma copia do contrato que aquele cara dera a ele. Encontrei os discos, álbuns de
fotografia, livros, roupas, cartas. Mesmo sendo verdadeiros ou não, ele sentiria falta. Talvez
realmente gostasse deles, então sofreria, ao menos um pouco, caso fossem destruídos.
Ele havia me dito que retornaria às quatro horas. Às três acendi a lareira e reuni todos
aqueles objetos numa caixa, menos as roupas e os livros, que eu havia mandado para a
caridade. Comecei queimando foto por foto, guardando apenas aquelas nas quais estávamos
juntos. Destrui todas as cartas, até mesmo as que havia recebido da mãe. Quando ele chegou,
restavam apenas quatro discos, uma carta e o álbum vazio. A principio ficou atordoado, sem
saber o que estava acontecendo.
Ele voou para a caixa ao meu lado e tentou salvar o que ainda não tinha ido para o fogo.
- Amor, o que está fazendo? – Tentei usar a voz mais doce e ingênua que conseguisse.
- O que VOCÊ está fazendo, Gabi! Eu te disse para que não tocasse nos meus discos!
Como pode fazer isso?
Como ele conseguiu ser assim, tão frio, mesquinho e mentiroso? Estava vermelho de
raiva por causa de uns discos idiotas, enquanto ele destruía a minha vida! O que são discos
velhos comparados com o futuro promissor de uma adolescente? Pensei em esfregar na cara
dele o contrato, revelando que eu já sabia. Mas assim estaria estragando o meu plano, e seria
muito fácil para ele. O Bruce ainda sofreria muito.
- E eu te disse que eles iriam embora. Não posso continuar dividindo você com mais de
cinqüenta discos os quais você nem ouve! Já chega, Bruce! Dê-me essas velharias e vamos
acabar com isso. – Minha voz estava firme, mas não o bastante para que ele me obedecesse
tão fácil.
- Me dividir?! O que está pensando? Você nunca se importou com eles, e agora tem
crise de ciúme por causa de discos? Francamente, Gabriela!
Aquilo era demais. Há anos ninguém me chama de Gabriela, muito menos ele! Usei de
toda a minha força e agarrei a caixa que ele mantinha sob o braço. Ele resistiu, puxando a caixa
para si. Cravei as unhas, muito bem afiadas, modéstia a parte, nos seus braços, causando-lhe
alguns ferimentos que sangraram levemente. Como resposta à dor, ele largou a caixa e correu
para o banheiro para limpar o sangue que manchava sua camisa.
Acabei com os objetos restantes e esperei até que se desintegrassem completamente.
Apaguei o fogo e fui ver como estava o meu querido noivinho. Ele estava sentado na borda da
cama, com alguns curativos no braço. Pedi desculpas pelo meu comportamento agressivo,
justificando o uso das unhas com o fato de que ele me provocara, chamando-me por Gabriela.
Ainda detestava aquele nome. Ele disse que não tinha problemas, mas estava muito magoado
por ter destruído coisas pessoais. Contei mais algumas justificativas sem nexo, e fui tomar um
banho.
Mesmo assim ele continuou a reclamar. Vesti uma roupa provocante, com um belo
decote vermelho e uma calça justa, que realçava minhas pernas. A essa altura já eram sete
horas, um pouco cedo para sair. Disse que ia me encontrar com Liss no bar que sempre
freqüentávamos. Fazer uma festa entre mulheres. Continuou reclamando, mas eu apenas saí e
fechei a porta. Peguei meu carro, liguei para a Liss e pedi que me encontrasse lá.
Eu estava um pouco abalada, mas não contei nada para ela. Queria que todos tivessem
uma surpresa no casamento. Pelo contrario, afirmei que estávamos muito bem e que eu
estava ansiosa para chegar o dia. Bebemos, cantamos alguns caras, provocamos o garçom.
Aquela foi uma das noites mais divertidas que eu já passei com a Liss. Ela sabe mesmo como
me divertir.
Cheguei em casa já de madrugada. Não fui para o apartamento do Bruce, precisaria
planejar o dia seguinte, mesmo já tendo uma idéia formada.
Na terça pela manhã, saí de casa bem cedo para encontrá-lo ainda no seu apartamento.
Antes de o Bruce sair para a redação, seqüestrei todos os cartões que pude encontrar na sua
carteira. Liguei para a Liss e fomos ao shopping. Se eu não podia desfrutar do seu amor, pelo
menos gastaria o seu dinheiro. Ela se animou, até pensou em pegar um cartão do namorado,
para comprar roupas comigo. Tranqüilizei-a, naquele dia a festa seria por conta do meu
querido noivinho.
- Qual é, Gabi, o marido é seu, o dinheiro é seu. Sabe que eu nunca recuso um presente,
mas eu realmente preciso de roupas.
- Vamos lá, Liss! Esqueça isso, pode comprar o que quiser. O Bruce que se vire para
pagar, depois.
- Tudo bem, então. Você que sabe. O que te deu hoje, hein? Há séculos não fazemos
compras.
-Acho que é TPC.
-Como é?
-Tensão pré-casamento...
Passamos o dia inteirinho no shopping, entramos nas lojas mais caras, estouramos todos
os limites possíveis. Até me arrependi de estar de casamento marcado. Foram tantos os caras
que se ofereceram para “carregar as sacolas”!
À noite, fui ao encontro do Bruce. Mostrei todas as roupas que comprei inclusive
aquelas bem provocantes, e que iria usar.
- Então quer dizer que hoje vamos ter uma festinha particular, não é, meu amor?
- Festa particular? Não, seu bobo! Tenho um compromisso marcado com a Liss, vamos
encontrar o patrão dela, que a convidou para um jantar. Ela ficou com medo de ir sozinha, ele
tem fama de tarado, sabe, e eu vou acompanhá-la. Mais tarde, quem sabe...
Vesti o meu melhor vestido e saí. Não iria encontrar-me com a minha amiga. Ela estaria
com seu namorado. Dentro do carro troquei de roupa, pus uma calça jeans e um moletom.
Tinha um filme bem deprê que havia acabado de sair em cartaz. Como eu não estava com
ânimo para filmes de romance, muito menos queria aqueles de terror – temendo que me
dessem alguma idéia má -, fui vê-lo.
Voltei ao seu apartamento, já com meu vestido. Ele estava sentado no sofá, quase
cochilando, esperando a minha volta. Recebeu-me com um beijo daqueles, mordeu-me o
pescoço, apertou-me as cochas. Repeli-o. Tive um longo dia, o jantar foi muito cansativo, não
tinha ânimo para satisfazer seus desejos carnais.
Fui dormir pensando no dia seguinte.
Quarta-feira, alguns dias a mais e eu estaria morta. O que seria de mim se aquele cara
não tivesse aparecido aqui? No domingo eu não passaria de alguns pedaços embrulhados no
necrotério. Isso se restasse algum pedaço.
Nesse dia ele voltaria para casa mais tarde. Às quartas ele sempre é o último a sair da
redação.
Algumas horas depois que ele saiu, fui até o prédio onde ele trabalha. Procurei algum
menino de rua, freqüentes naquela área, e ofereci umas notas de dinheiro caso ele fizesse um
serviço para mim. Ele esperaria até o fim do dia e esvaziaria os quatro pneus do carro do
Bruce. Coisa fácil, ele aceitou o trabalho. Indiquei o carro ao garoto e abri o carro. Pus alguns
lenços de papel sujos com batom no porta-luvas, borrifei um pouco de perfume feminino, tirei
todos os cartões de guinchos e fui embora.
Passei o dia revisando alguns detalhes do casamento, queria que tudo fosse perfeito.
Cheguei ao apartamento dele por volta das sete da noite, um pouco antes do horário normal
que ele chega às quartas. Sentei no sofá e liguei a TV, esperando a volta no Bruce.
Quase três horas depois ele chega em casa. Desci o elevador para encontrá-lo ainda no
carro, com uma expressão que misturava preocupação e desconfiança. Não o esperei sair do
estacionamento. Abri a porta do carona e senti o perfume. O cheiro não estava tão forte, mas
perceptível.
- Onde estava até agora, Bruce?
- Ah, amor, você não sabe. Alguém esvaziou os quatro pneus!
- Sério? E por que não chamou o guincho? Eles não costumam demorar muito. – Minha
voz estava firme, fria, sem qualquer emoção.
- Eu procurei por todo lado aqueles cartões, mas eles sumiram!
- Você nunca soube procurar nada, Bruce. Eles estão aqui no porta-luvas, como sempre.
Ao abrir o compartimento, alguns dos lenços caíram aos meus pés.
- O que significa isso?
- O quê?
- Esses lenços, Bruce! O que significam? E esse cheiro de perfume! Quem esteve no
carro com você? Chamou alguma amiguinha sua para encher os pneus, foi?
- Eu não sei que lenços são esses, amor. E esse perfume também não! Quando entrei no
carro, eles já estavam aqui!
- Claro, agora os vidros são permeáveis e qualquer perfume vagabundo entra, não é? E
como não sabe que lenços são esses! Eles estavam no porta-luvas do SEU carro! E esse batom,
aqui? Certamente você achou que eu já estaria dormindo e se livraria deles antes que eu
pudesse vê-los, não?
- Calma, amor! Você não está achando que eu te traí, não é?
- Ah, não! Porque eu pensaria uma coisa dessas? Afinal, é super normal perfumes
estranhos e lenços sujos de batom aparecerem nos carros. Eles têm vontade própria e entram
em qualquer carro que encontram por aí. O seu só foi mais um. Por favor, Bruce! Diga-me com
quem você estava!
- Gabi! Em quatro anos eu NUNCA te traí! Por que faria isso às vésperas do nosso
casamento, meu amor?
- Não sei, Bruce. Eu realmente não sei por que você fez isso.
- Pelo amor de Deus, Gabi! Eu não fiz nada!
- NÃO?! Então me explique esses lenços e esse perfume, Sr. Certinho!
- Eu já disse que não sei como vieram parar aqui! Onde está a confiança que você
sempre prezou no nosso relacionamento?
- Como confiar quando as provas estão na minha cara! Bruce, faltam três dias para o
nosso casamento, eu não vou perder todo o trabalho que tive. Então eu vou esquecer tudo
isso, nós vamos subir e não voltaremos a falar sobre isso. Mas saiba que eu nunca mais vou
dormir em paz, sabendo que você pode estar em qualquer outro lugar com alguma vaca.
- Gabi, eu não estava com ninguém!
- Não adianta se justificar.
Saí do carro e peguei o elevador. Ele veio atrás de mim. No apartamento, me tranquei
no banheiro e simulei um choro convulsivo. Quebrei alguns frascos, fiz uma bela cena. Quase
uma hora depois, saio do banheiro.
Peguei minha bolsa e me despedi dele.
- Você está bem? Aonde vai a essa hora?
- Estou bem, sim. Por que não estaria? Vou andar por aí. Não me espere para dormir.
Entrei no meu carro e corri. Ultrapassei todos os limites de velocidades possíveis. Estava
cansada daquela farsa. Doía demais ter que castigar assim o homem que eu amei por tanto
tempo. E, mesmo sem querer, ainda o amava muito. Maltratá-lo e ter que me separar assim
era pior do que arrancar metade do meu corpo. Era arrancar a maior parte da minha alma,
porque era lá onde ele estava. Encravado na minha alma, onde fiz questão de colocá-lo assim
que percebi que nunca nos separaríamos.
Sua burra! Não sofra assim! Ele te enganou, esse tempo todo! Você o amou porque era
ingênua, mas agora vê se cresce! Não é mais nenhuma criança! No mundo só tem lugar para
quem é esperto! Seja esperta, ao menos uma vez! Não se deixe iludir de novo por esse
canalha! Isso, resista, seja forte. Complete o seu plano e depois o esqueça. Ele nunca vai ter
existido para você. Agora pare de chorar!
Dei algumas voltas por aí e voltei ao apartamento. Mais uma vez ele me recebeu com
carícias provocantes, mas dessa vez eu tinha uma boa desculpa. Como poderia me concentrar
quando ele havia me traído mais cedo?
- Quantas vezes vou ter que dizer que eu não te traí!
- Por favor, não comece. Eu tive que passar horas tentando superar isso, não faça a
ferida inflamar novamente.
Pus minha bela camisola reservada para ocasiões especiais e fui dormir. À noite pude
sentir as mãos do Bruce deslizando pelas minhas pernas e acariciando meu rosto. Despertei
um pouco, bem a tempo de ouvi-lo dizer:
- Ah, meu amor, como eu gostaria que tudo não fosse só um sonho. Como eu queria
passar o resto de minha vida ao seu lado. Eu te amo tanto, sua garota boba. Como pode achar
que eu te traí?
Aquilo ecoou na minha mente, fazendo minha determinação balançar, quase obrigando
meus braços a atacarem aquele homem, mas lá vem de novo o diabinho que me lembra a todo
instante que ele me traiu, que eu não posso desistir e blá, blá, blá.
No outro dia pela manhã, tentei castigá-lo um pouquinho mais do que o que havia
planejado. Faltando exatamente cinco minutos para ele sair para a redação, ele estava
terminando o café da manhã, sentado à mesa. Afastei sua xícara, sentei-me em seu colo, falei
algumas coisas provocantes ao ouvido, mordi a ponta da orelha. Pude até sentir seu amigo
respondendo. Ele se levantou e prensou-me à parede. Sua voracidade me assustou. Por um
momento pensei que estava com raiva, mas logo vi que era só desejo. Quando ele estava
prestes a levantar minha blusa, afastei-me e reclamei do horário. Se passasse mais um minuto
em casa chegaria atrasado, e ele não queria perder o emprego, de jeito nenhum.
Ele reclamou, disse que há séculos espera por mim, mas eu sempre invento uma
desculpa. Eu empurrei-o porta afora.
Já tinha um plano para aquele dia. Antes de o Bruce chegar, saí para um bar, com uma
daquelas roupas que enlouquecem qualquer homem. Fiz questão de experimentar todos os
tipos de bebidas possíveis, aceitei todos os drinks que me ofereceram. Foi bom saber que eu
ainda despertava interesses em vários homens. Escolhi um, aquele bem musculoso, com tanta
cara de vilão-super-sexy-de-filmes-de-Hollywood quanto o Bruce.
Ele me acompanhou durante a maioria da noite. Quando já estava meio tarde, e eu não
fazia noção de quanto era dois mais dois, disse que iria para casa. Ele(não me lembro do seu
nome de jeito algum) relutou, disse que eu não estava em condições de dirigir. Realmente não
estava, e aquele era meu objetivo. Perguntou-me onde eu morava, me levaria no seu carro.
Chegando ao prédio do meu futuro ex-noivo, demorei um pouco a sair do carro. Queria
que o Bruce me visse ali. O porteiro interfonou para ele, dizendo que eu havia chegado, mas
que não se incomodasse de descer, outro homem me levaria, tudo por ordem minha. Quando
olhei o seu apartamento e pude ver sua cabeça para fora da janela do décimo andar, esperei
mais alguns minutos e saí. O cara-do-bar teve que sustentar todo o meu corpo, não podia dar
um passo sozinha sem tropeçar. Pegamos o elevador e quando o Bruce abriu a porta,
estávamos aos risos, com minha cabeça apoiada no seu ombro. Quem visse a cena, juraria que
tínhamos um relacionamento mais íntimo, e essa era a verdadeira impressão que eu queria
que o Bruce tivesse.
Ele praticamente me arrancou dos braços do cara-do-bar, enquanto eu ainda me
despedia dele entre risos, e me atirou no sofá. Não me recordo exatamente das palavras que
ele disse, mas era algo bem rígido. Lembro-me que era algo do tipo “o que pensa que estava
fazendo? Depois eu que te traí! Está agindo como uma adolescente!”
Naquela hora não estava me importando com o que falasse, apenas tomei um banho e
fui dormir.
Na sexta-feira acordei com horríveis olheiras e uma terrível dor de cabeça, mesmo assim
não havia me esquecido que era a véspera do meu casamento e teríamos que supervisar e
analisar a igreja. Quando mencionei que a presença dele era fundamental, o Bruce inventou
mil desculpas (não sei se eram verdadeiras ou mais mentiras), tinha que trabalhar, hoje era a
visita de rotina do editor-chefe, de jeito algum poderia faltar, iria acontecer a reunião mais
importante do ano.
- É sempre assim! Você nunca tem tempo para mim! Nem mesmo hoje, véspera do
nosso casamento! Como você quer ter uma vida de casado se não tem uma hora do seu dia em
que pode reservar para sair com sua esposa?
- Gabi, qualquer outro dia poderíamos sair, amor, mas hoje não! Eu realmente preciso ir
à redação!
- Qualquer outro dia?! Nós NUNCA saímos! Ultimamente nem nos finais de semana!
- Culpa sua, que sempre tem algum compromisso com suas amigas.
- Ah, agora a culpa do SEU sedentarismo é minha?! Não culpe a Liss pela sua falta de
interesse em mim!
- Olhe o que está dizendo! Falta de interesse em você! Quem sempre sai à noite e diz
que está cansada é você, esqueceu?
- Eu saio porque não tem nada em minha casa para me satisfazer! Porque meu futuro
marido está sempre ocupado com a porcaria do seu jornal e nem ao menos me liga para saber
como estou! Você não se preocupa comigo, Bruce, não liga para o que eu estou sentindo! É
sempre você, você, você! Sempre o seu trabalho!
- E eu preciso trabalhar para te sustentar! Eu vi que estourou os meus cartões!
- Não seja hipócrita! Sempre soube que eu nunca precisei do seu dinheiro! Eu sou a
maior herdeira da cidade, por favor! Para me sustentar, Bruce? Fale que esse dinheiro é para
você e as vadias que ficam às suas custas!
- Se é tão rica assim, Srª Herdeira, então por que não gastou o dinheiro do seu pai?
- Porque eu estava sem os meus cartões aqui, e precisava urgentemente de roupas
novas. Mas se quiser, eu te devolvo tudo, até as malditas alianças que me deu!
Virei-me de costas, para que pensasse que eu estava chorando.
- Ah, Gabi, meu amor, não fique assim. Eu jamais pensei em nada parecido, e nem
passou pela minha cabeça tomar as alianças de volta, querida. Por favor, vamos parar de
brigar, está bem? Amanhã nos casaremos, e ai tudo isso vai ter fim.
A idéia de fim me amedrontou.
- Vou fazer o seguinte: ligo para a redação e digo que o tio-avô da cunhada de minha
prima morreu, e eu preciso ir ao enterro. Vamos ver como está a nossa igreja.
Ele me abraçou como nunca o fizera. Tanta sinceridade, tanta emoção, era muito difícil
acreditar que era mentira. Ah, Gabi, sua tonta, não acredite nesse dissimulador! Ele está
tentando manter o casamento até amanhã! Você viu o que ele falou! Amanhã vai ter fim. Mas
não as brigas, a sua vida! Então força, garota, só falta mais um dia, e então você estará livre
dessa tortura.
Tomei um banho, recuperei as forças, espantei o cansaço e fomos à catedral. Eu tinha
certeza que nada estaria errado, minha mãe e sua comissão organizadora não esqueciam de
um palito de dentes na mesa dos convidados. Mas esse foi só mais um pretexto para outra
briga. Eu sabia que aquele dia era importante na redação.
Chegamos ao local que eu escolhera para concretizar o meu sonho e eu fiz questão de
analisar cada assento. Observar quais estavam empoeirados, qual laço não estava no lugar,
que flores estavam feias, a posição de cada cadeira, a distância entre as mesas, as cortinas que
cobriam alguns vitrais indesejados, as vestimentas do padre. Tudo isso passou por uma
rigorosa vistoria, justamente para que o tempo passasse e ele não tivesse chances de voltar
para o trabalho.
O Bruce dava sinais de impaciência e todo momento irritava-se.
- Gabi, você já olhou esse lado! Quantas vezes vai ver essa coluna? As portas estão bem
limpas! Sua mãe já não falou que ela mesma fez os laços? A limpeza acabou de ser feita, tem
mesmo necessidade de olhar embaixo dos tapetes?
Foi no meio de uma dessas frases que minha paciência realmente acabou. Eu estava me
controlando, não queria brigar na frente de outras pessoas, mas perdi o controle.
- Se quer tanto que eu acabe logo, por que não me ajuda? Deve ser porque não quer se
sujar para depois ir correndo para o jornal, não é? Ou nem vá mais trabalhar, já que disse que
faltaria, talvez vá direto para a casa da vadia que estava com você na quarta-feira! Mas ela
está no trabalho também, não é? Ah! Ela pediu licença, foi? Na certa está morrendo de cólicas,
mas hoje ela nem está menstruada! Se estivesse você não iria vê-la! A não ser que a ame mais
do que a mim, se é que ainda me ama!
Todos os presentes estavam observando-nos. Percebi que a raiva sublevava-lhe a face.
Seu rosto estava vermelho. Ele agarrou-me pelo braço e puxou-me a um canto. As marcas de
seus dedos ficaram sobre minha pele.
- Escuta aqui, eu estou correndo o risco de perder o emprego por sua causa, graças ao
seu showzinho hoje pela manhã, então não diga que ainda vou trabalhar. Além do mais, eu já
disse que não estava com ninguém na quarta, pare com essa história sem sentido, Gabriela!
- NÃO ME CHAME DE GABRIELA!
- Calma, estressadinha. Vamos logo acabar com isso, ainda tenho compromissos pela
tarde.
Respirei fundo, me acalmei e voltei à minha inspeção. Acelerei um pouco, mas não por
causa dele. Eu também teria compromissos à tarde. Meu cabeleireiro e minha manicure
estariam esperando-me, além da última prova do vestido.
Não tivemos tempo de voltar para casa. Almoçamos num restaurante próximo do centro
que era especializado em comida oriental, coisa que o Bruce detesta. Ele relutou, mas eu
forcei-o a me acompanhar. Era o meu último desejo como noiva dele, já que amanhã seríamos
marido e mulher até que a morte nos separe, o que não demoraria mais de um dia.
Ele me levou ao salão, onde o novo namorado da Liss e ela estariam nos esperando. O
Bruce me deixou lá e foi fazer não sei o quê. Provavelmente iria confirmar os detalhes da
minha morte, para que tudo parecesse um trágico acidente.
O atual namorado da minha amiga era um loiro galante, parecendo um personagem de
filme adolescente. Ela ainda adorava garotos mais novos. Por vezes já pedi que ela melhorasse
suas escolhas, mas aquele era sua vontade, fazer o quê. No entanto, ele já era maior de idade,
com uma mente um pouco atrasada, para falar a verdade. Era meigo ao extremo e submetia-
se a todos os caprichos da sua deusa. Acredito que era por isso que a Liss preferia os mais
novos.
Enquanto nos preparávamos para a grande festa do dia seguinte, ele simplesmente
sentou-se a um canto e passou as longas quatro horas observando-a, como se olhasse para a
coisa mais preciosa e rara de todo o mundo. Aquilo me enjoava.
As cinco eles me acompanharam à Rua 4 de maio, para a última prova do vestido. Eu
tinha certeza que não engordara nem um grama desde a semana passada, mas a Liss insistia
que tudo deveria ser perfeito, e nem um centímetro poderia estar faltando ou sobrando.
Como eu disse, ele estava completamente ajustado às minhas curvas. Sendo assim, não
demoramos muito. A minha costureira, D. Adelaide Gusmão, embrulhou-o e o loiro galante
colocou-o no carro. Levaram-me à casa dos meus pais, não poderia dormir com o Bruce. Se o
noivo ver a noiva no dia do casamento, dá azar, não é isso? Mas ninguém sabia que o meu azar
começara há quatro anos.
Cheguei em casa, cansadíssima por causa da inspeção da manhã, e me tranquei no
banheiro. Ao me despir e olhar aquele rosto suado no espelho, pude ver nos meus olhos a
desesperança que ali se instalara no último sábado, quando o homem estranho foi ao
apartamento do Bruce. Tentei, porém sem sucesso, conter as lágrimas que me inundavam os
olhos. Aquilo era demais para mim, queria desistir de toda essa farsa, correr para o meu noivo
e implorar-lhe que não me mate, eu ainda o amava, sim, apesar de tudo, ele era o homem da
minha vida, e ele também me amava, eu sentia isso, lá no fundo ele me amava! Vamos fugir,
meu amor, nós temos dinheiro, podemos ir para qualquer lugar, esqueça essas outras pessoas
que te obrigam a fazer isso, esqueça tudo, vamos fugir e seremos felizes, nós dois, sozinhos,
felizes para sempre! O nosso amor é forte demais! Eu sei que você não quer fazer isso, eu sei!
Venha comigo, vamos, largue tudo, vamos lá, Bruce! É fácil, basta me seguir! Vamos juntos
para o final que o destino reservou para nós! Seremos felizes, amor, eu sei que seremos!
Alguém bateu à porta e me tirou do transe.
- Filha, você quer colchas azuis ou verdes?
- Verdes, mamãe.
- Vou pôr seu pijama ao lado da cama, tudo bem?
- O.K., mãe.
Sentei à borda da banheira e chorei, chorei descontroladamente, como um bebê sem
seu brinquedo favorito, um bichinho que sente falta do calor materno. Apoiava o rosto nas
mãos e os cotovelos nos joelhos. Ao tentar levantar-me, apoiei-me na cortina e escorreguei no
chão, molhado pela água da banheira que transbordava e senti uma pancada na nuca.
- Gabi? Tudo bem?
Era uma voz familiar. Estava me chamando, mas onde eu estava? Virei-me de lado para
procurar o locutor, senti algo macio tocando a minha pele.
- Calma, filha, estamos aqui, está tudo bem agora.
Era meu pai. Como não reconheci de primeira? Aquela voz grave que desde a minha
lembrança mais remota me transmite segurança, paz, calma.
Lembro-me da vez em que caí do meu cavalo. Torci o tornozelo, estava desesperada,
meu rosto sangrava, sentia o gosto do sangue na minha boca, queria gritar, mas estava muda,
me contorcia no chão, a aspereza da terra seca machucava minha pele sempre tão macia. Era
um caos, até que meu super-herói chegou. Colocou-me em seus braços, aninhou-me como se
fosse um bebê, falava bem calmo ao meu ouvido que eu ia ficar bem, não fora nada grave,
para eu parar de chorar, ele estava ali. E eu me acalmei. Ele estava ali. Meu pai estava ali. Se
ele dizia que estava tudo bem, realmente estava tudo bem. Ele nunca mentia para mim, e eu
sempre era franca com ele.
Tentei me sentar para clarear a mente, localizar-me, mas minha cabeça doeu. Senti uma
pontada aguda nas têmporas, e gemi.
Estava cercada de pessoas. Pai, mãe, irmã, cachorro, empregada, tesoureiro, tia, amiga
da mãe, sobrinha, prima, camareira, motorista, todos que estavam na casa, sem exceção,
estavam ao meu redor, preocupados comigo. Senti-me como a pessoa mais amada do mundo.
- O que aconteceu?
- Bateu com a cabeça na banheira, filha.
Era minha mãe.
- Encontramos você caída no chão. Graças a Deus não estava com o rosto virado para o
chão, poderia ter se afogado. Só percebemos que havia algo errado quando a camareira viu
água escorrendo por baixo da porta. E você a tinha trancado, foi um enorme trabalho
arrombá-la.
Olhei para o lado. A porta do meu banheiro estava no chão, e este, encharcado. Meu
tapete persa, meu lindo tapete persa estava destruído.
Pela janela, pude ver que ainda era noite.
- Gente, agradeço a todos, mas já estou bem. Agora eu gostaria de dormir, amanhã é
meu casamento, esqueceram?
- Filha, tem certeza que está bem? Você ficou quase uma hora desacordada. Vai ficar
bem, mesmo?
- Claro, pai. Não se preocupe. Só preciso descansar um pouco. Não quero ficar cheia de
olheiras amanhã. Boa noite.
Virei-me para o lado e puxei o cobertor verde para cima de meus braços gélidos.
Encolhi-me como uma bola e fingi que adormeci. Esperei todos saírem do quarto (meu pai
demorou-se mais um tempo, verificando o meu estado) e abri os olhos. Não pudia dormir,
havia muita coisa para pensar. Mais uma vez a vontade de largar tudo me dominou e aquela
bendita voz na minha consciência gritava para eu me controlar, ele me enganara, eu o
enganaria e estaríamos quites.
Pensei na melhor forma de abandoná-lo. Aparecer na igreja e responder “não” ao padre;
não aparecer e deixá-lo esperando-me; contar toda a verdade e prendê-lo; deixá-lo livre, mas
sem conseguir seu principal objetivo. Eram várias as opções, mas, além disso, havia algumas
coisas que deveriam ser feitas antes de qualquer coisa, mas deixei somente para o último
momento.
Liguei meu notebook e procurei apartamentos à venda em Belgrado, capital da Sérvia.
Encontrei uma cobertura duplex completamente mobiliada, num bairro tranqüilo. Não pensei
duas vezes e fiz a transação do dinheiro para a conta do proprietário. Chegando lá,
arrumaríamos a documentação necessária. Comprei passagem aérea para lá à noite, abri
uma conta no Banco Nacional da Sérvia, transferi uma enorme quantia de dinheiro para lá,
escrevi uma carta para meus pais e separei meus documentos. Pus tudo numa bolsa, junto
com uma muda de roupa, tranquei no meu quarda-roupas e adormeci antes de chegar a uma
conclusão. Estava realmente cansada.
Acordei às oito da manhã, com a Liss chamando-me à porta.
-Vamos, Bela Adormecida, seu Príncipe Encantado estará te esperando daqui a pouco
para o seu “Felizes para Sempre”!
Coitada, ela nem imaginava que na verdade esse conto de fadas era uma história de
terror, dirigida pela própria madrasta má.
-Estou indo, Fada Madrinha!
Ela riu com a comparação. Ela e seu loiro seriam meus padrinhos. No início da
programação do casamento, ela estava namorando um ruivo muito lindo, que seria meu
padrinho. Quando terminaram, tive que aceitar esse loiro. Ela não admitia de jeito nenhum
que seu namorado não fosse meu padrinho. Como eu não tinha nada contra nenhum
namorado da Liss, aceitei de bom grado.
- É sério, Gabi, o Fabinho está te esperando. Seu penteado demora muito, e eu ainda
preciso dele para me deixar como uma verdadeira fada, querida!
Ao contrário do que imaginei, estava bem disposta. Aquela noite na minha cama, longe
do Bruce, me fez sentir melhor, como se eu pudesse abandoná-lo dez vezes sem sofrer nada.
Assustei-me com tanta convicção. Parecia que aquela não era eu, sempre tão apaixonada, tão
dependente.
- Já estou de pé, Liss! Não se desespere, por favor.
-Ah, a Marta está te esperando, também. Vê se não escolhe cores chamativas para as
unhas!
Ouvi seus passos se afastando. Ela cantarolava baixinho, reconheci a música. Contava a
história de uma mulher que se casou por obrigação e suicidou-se durante a lua-de-mel. Seria
um mau presságio?
Levantei-me, tomei um banho, depilei as pernas e axilas, pus um vestido e saí para
tomar café. Fabinho, meu queridérrimo cabeleireiro, estava na área de beleza da minha casa,
com todos os seus apetrechos. Parecia emocionado quando eu entrei, perguntei de estava
tudo bem e ele desabou em lágrimas.
-Ah, Gabi, eu te conheço desde que era deste tamanho! E agora olhe para você! Tão
crescida, tão mulher, tão casada! Querida, não imagina o quanto estou feliz! – E enlaçou meu
pescoço com seus braços firmes.
- Acalme-se, Fabinho, eu ainda não casei, esqueceu? Por isso estou aqui, para que me
transforme na mulher mais invejada da cidade!
- Sim, sim, querida. Vamos ao trabalho, então.
Ele enxugou as lágrimas, deu uns tapinhas no rosto, apertou as maçãs, limpou a
maquiagem borrada, ajeitou o cabelo e preparou os utensílios necessários.
Enquanto o Fabinho esticava, enrolava, esticava e enrolava meus indomáveis fios, a
Marta, minha manicure favorita, limpava, cortava, alvejava, umedecia, hidratava e massageava
minhas mãos e unhas. Liss escolheu o esmalte mais sem graça que existia e censurou-me
quando eu pedi um vermelho provocante. Em questão de unhas eu gostava de ser exagerada.
Passei quase o dia inteiro nesse ritual pré-casamento. Minha querida amiga paranóica
não deixou que me alimentasse normalmente, permitiu-me algumas verduras e meio copo de
suco. Por volta das três da tarde fui para meu quarto pôr meu vestido. Ri na frente do espelho
ao imaginá-lo preto. Seria muito impacto, aparecer na igreja vestida de luto! Se bem que não
era má idéia. O Fabinho voltou para cobrir meu rosto com todo tipo de maquiagem existente.
Além de excelente cabeleireiro, ele era um exímio maquiador.
Esperei todos saírem de casa. Deixei a carta sobre meu travesseiro, apanhei minha
bolsa, entrei no carro e me dirigir à igreja. Não queria que ninguém me acompanhasse, quando
eu sabia que estava caminhando para a morte. A empolgação da manhã desapareceu com o
passar do dia e o nervosismo. Agora pensar nisso me dava calafrios. Mesmo assim, não desisti.
Seria morrer abandonando o Bruce ou morrer explodida pelo Bruce. Certamente preferi a
primeira opção.
Antes de sair do carro, parado ao pé das enormes escadarias da igreja, conversei um
pouco com o motorista, Sr. Charlie O’Mane.
- Charlie, seria capaz de guardar um segredo?
- Claro, Gabi. Ou será que agora terei que chamá-la de Srª?
- Por favor, ainda não.
- Então, o que quer me contar?
- Por enquanto, não precisa saber de nada, apenas me espere aqui na frente, pronto
para partir a qualquer momento.
-O que pretende fazer, minha menina? – O Charlie sempre fora gentil comigo.
- Nada de mais, não se preocupe. Apenas faça isso, está bem?
- Como quiser, garotinha.
Saí do carro e me deparei com uma dúzia de fotógrafos. Reconheci um que certa vez me
flagrou no maior amasso com o Bruce no iate da família. Tive que acalmar meu atual noivo
para que ele se contentasse em quebrar a câmera do cara e não o espancasse, assim que
descemos do barco.
Quando passei, eles abriram caminho. Achei-os educados. Meu pai estava à minha
espera na porta da igreja, com olhos marejados. Ouvi sua voz embargada quando me beijou o
rosto e sussurrou-me ao ouvido o quanto estava feliz.
A música começou. A marcha nupcial soava-me como a marcha fúnebre. De fato, havia
algum ar de enterro no ambiente. Até hoje não sei se foi fruto da minha mente. O Bruce estava
no altar, com uma feição emocionada. Não era possível ser tudo fingimento! Sorri para todos
no trajeto até o altar e meu pai entregar-me ao meu ex-futuro assassino.
O padre fez o sinal da cruz e começou seu sermão. Falou sobre a criação do mundo,
sobre o primeiro casal a se unir, sobre a importância do Sagrado Matrimônio, sobre nossas
responsabilidades a partir de então. Todo esse discurso durou em média uma hora, até a parte
onde dizemos sim.
-Bruce McRial, aceita Gabi France como sua legítima esposa, prometendo, assim, amá-la
e respeitá-la até o fim de suas vidas?
- Sim.
-Gabi France, aceita Bruce McRial como seu legítimo esposo, prometendo, assim, amá-lo
e respeitá-lo até o fim de suas vidas?
Olhei para o Bruce. Olhei-o de verdade, penetrando até as entranhas de sua alma, o
mais profundo que pude naqueles poucos segundos. Vi emoção, paixão, amor, mas também
havia um quê de vitória, de satisfação, que não tinha nada a ver com sentimentos. E assim
reuni todas as minhas forças naquela única palavra.
- Não.
Soltei suas mãos e virei-me. Não pude encará-lo novamente. Ouvi murmúrios às minhas
costas quando me dirigi para a porta da igreja, abandonando todos aqueles que já amei na
vida.
Entrei no carro e Charlie estava lá, como me prometera.
-Menina, o que você fez? Volte para lá e acabe seu casamento!
- Ele já acabou, Charlie, já acabou. Vamos para o aeroporto, por favor.
-Mas...
- Aeroporto, Charlie, agora.
Durante o caminho, eu chorei. Não consegui me controlar. O que eu estava fazendo era
loucura, mas não poderia continuar morando aqui sabendo que aquele homem estaria por
perto.
Cheguei quase em cima da hora do avião decolar. Antes de sair do carro, só tive tempo
de me despedir de Charlie.
- Diga a meus pais que não me procurem. Eu estarei bem. Ah, diga-os que eu os amo.
Obrigada por tudo, Charlie. Você foi um bom amigo.
Ele me observou com olhos tristes, como se adivinhasse o que estava acontecendo,
embora não tivesse a mínima idéia do real motivo que me levou a fugir daquele jeito.
Peguei minha bolsa, sai do carro e fui direto fazer o chek-in. Passando pela livraria do
aeroporto, já podia imaginar as manchetes principais de todas as revistas de fofocas: “Filha de
Mark France foge do casamento, deixando noivo no altar”. Pouco me importa as mentiras que
vão publicar sobre mim. Qualquer coisa seria melhor do que “A recém-casada Gabriela France,
filha de Mark France, morre em explosão de carro no Brasil”.
Não demorou muito e o meu avião levantou vôo. Passada a tontura inicial, que sempre
me ataca até que a aeronave ganhe completa estabilidade, liguei os fones de ouvido e deixei
minha mente se afogar em devaneios.
Havia alguma coisa no meu peito que não estava no lugar certo. Uma pressão bem entre
os seios me causava náuseas. Não era por causa da altitude, nunca sentira isso antes ao viajar.
Alguém havia arrancado meu coração da minha caixa torácica e esquecera-se de me avisar. O
buraco deixado por essa perda aumentava e pressionava meus pulmões, ficando difícil
respirar.
Ao dar o último passo para a minha separação total do Bruce pude realmente sentir a
falta que ele me faz. Ele não era só parte da minha alma, era parte do meu ser físico também.
Ou então, o que explicava essa falta de ar que me assolava? Ele era mais do que eu imaginava,
mais do que eu queria que fosse. Por mais que eu soubesse que nunca nos separaríamos,
sempre tive o cuidado de não deixá-lo ser mais do que eu mesma. Não consegui. Ele era parte
indispensável para a sobrevivência daquela menininha frágil e insegura que agora sofre por ter
tido arrancado de si seu escudo protetor, seu porto-seguro.
Digam a ela que agora é ela e o mundo, não há mais ninguém para que ela se esconda
por trás quando o bicho-papão puxar-lhe o pé, ninguém mais vai mandar o grandalhão da
escola ir embora, ninguém vai pegar na sua mão e dizer-lhe que está tudo bem quando tiver
um pesadelo. Ela vai chorar, sim, vai chorar muito, mas é preciso que digam isso a ela. Ela
precisa ouvir de mais alguém para acordar e perceber que seu príncipe encantado se fora, que
foi apenas uma parte de sua vida que agora está no passado. É uma verdade que ela tem que
enfrentar.
Na carta, não contei aos meus pais que o Bruce pretendia me matar. Nunca diria uma
coisa dessas! Eles seriam capazes de matá-lo. No mínimo, pegaria a prisão perpétua. Eu não
suportaria a idéia de ter o meu amado machucado, embora fosse isso o que ele iria fazer
comigo. Os líderes da sua quadrilha se encarregariam de tudo. Além do mais, acho que ele
sofrera um bocado naquela última semana.
É triste (abominável, incompreensível, cruel seriam palavras mais adequadas) saber que
o primeiro (e certamente último) amor da sua vida não passara de um teatro unilateral, onde
apenas o ator principal representava. A atriz, coitada dela, não passava de uma personagem
fundamental para a trama se desenrolar. Ela, ao contrário, fora enganada por esse incrível
ator, que durante quatro anos dissimulou e a fez acreditar cegamente em todas as palavras de
amor, imaginando que sua vida era um conto de fadas. Mas como tudo que é bom dura pouco,
essa farsa tinha que acabar. O “Felizes para Sempre” não existe na vida real, e ela deveria
saber disso. Mas a pobre estava tão feliz que não conseguiu ver as mentiras por traz de todas
aquelas promessas.
Felizmente, um personagem secundário do teatro errou a cena. E um simples erro foi
suficiente para dar uma sacudida do mundo perfeito e derrubar a princesinha do seu cavalo.
Ela estava apaixonada, mas crescida o bastante para saber quando é hora de parar de brincar.
E chegou a vez dessa princesinha entrar no jogo. Chegou a hora de representar o mesmo
teatro. Por mais que machucasse seu pobre coraçãozinho, ela parou de agir pela emoção e
deixou o cérebro comandar a situação. Fez tudo o que lhe veio à mente para dar um gostinho
de dor àquele que lhe enganara por todos esses longos anos. E o pior, iria matá-la depois do
casamento. Mas ela fechou as cortinas mais cedo do que todos esperavam.
Ao menos nessa última semana, eu consegui machucá-lo. Sei que consegui. Já que ele
me enganara durante tanto tempo, eu não deixaria que saísse ileso. Ele literalmente acabou
com a minha vida, me deixou no fundo do poço. Como, depois dele, eu teria forças para me
apaixonar de novo? Dizem que quando se é traída uma vez, jamais se volta a confiar em
alguém. Acho que esse será o meu caso. Sozinha, naquele apartamento, sem me relacionar
com ninguém, esperando pacientemente o nada.
Pela janela, via meu país ficando para trás, juntamente com a vontade de viver.
Dhay Souza

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Vinganças

  • 1. Vinganças Ele estava ali. Bem na minha frente. Dizem que não há hora ou lugar marcados para o amor acontecer, então estávamos no lugar certo e na hora certa. Quer dizer, eu estava. Ou pensava que estava. Para falar a verdade, era o pior lugar do mundo para eu estar, e na pior hora possível. Eu não podia ter me envolvido tanto. Mas já que aconteceu, resolvi tirar proveito da melhor forma possível. Era uma tarde simples, o sol brilhava, havia algumas nuvens no céu, o vento brincava nas folhas, alguns passarinhos cantavam. Este foi o cenário que emoldurou um dos dias cruciais da minha vida amorosa. Eu estava sentada num banco da praça, tomando sorvete com a Liss e ele estava do outro lado. Havia comentado com ela sobre o quanto aquele carinha era gato. E como era gato. Ele era do tipo vilão-super- sexy-de-filmes-de-Hollywood. Uma barba malfeita, queixo quadrado, olhos claros, lábios finos e músculos. E que músculos! Ah, aqueles braços eram suficientes para deixar qualquer mulher babando. E eu só tinha dezoito anos, como resistir? Liss deu-me uma cotovelada. Percebi que fiquei muito tempo encarando-o e ele havia percebido. Olhava-me com olhos sedutores, enquanto eu desviei o olhar e fitei o chão. Sabia que estava vermelha de vergonha. Quando tomei coragem e levantei um pouco os olhos, vi um par de lindas pernas se aproximando. Rapidamente voltei meu olhar para as formigas que carregavam algum grão bem próximas de meus pés. - Posso sentar aqui? – Aquela voz era doce e ao mesmo tempo rígida. Grossa quando parecia ser tão gentil. Era possível algo assim existir? - Aah, Gabi, vou dar uma olhada naquela lojinha de papeis, tudo bem? – Liss sempre sabia o momento de sair ou de chegar. Mas aquele não era um bom momento para sair. Ela sabe o quanto eu fico nervosa em primeiras conversas. - Acho que aquilo foi um ‘sim’. – a voz de novo!
  • 2. - Mhm. – Foi o máximo que consegui. As palavras teimavam em não sair da minha boca quando eu mais precisava delas. - Então, o que estava olhando? Não disfarce, percebi o quanto estava entretida em meus músculos. Ou quem sabe foram os meus olhos? Acho que não. Para encarar meus olhos teria que olhar-me diretamente, e veria quando eu olhasse para você. Só pode ter sido para os meus braços. Acertei, não foi? Eu não esperava por aquilo. Ninguém é tão direto numa primeira conversa! E ainda era tão pretensioso! Imagine se eu estaria olhando seus braços! Se bem que eu realmente estava analisando aquelas curvas. - Não acha que está sendo muito pedante ao supor que eu perderia meu tempo olhando para seus braços? E eu nem olhava para você. – A raiva subiu-me e tive que levantar o olhar. - Desculpe, mas pensei que esse seria o único jeito de fazer-lhe olhar para mim. E consegui, viu? Bruce. Ele estendeu a mão para cumprimentar-me. No momento, mesmo estando surpresa, não desperdiçaria uma chance de tocar aquela pele perfeita. Com receio, apertei-lhe a mão. Ele puxou-me e deu-me dois beijinhos nas bochechas. Um arrepio subiu-me pelas costas e senti meu rosto corar. - Não vai me dizer seu nome? Espere, acho que lembro o que sua amiga falou. Fani, Dani. Não, não é isso. - Gabi. Ela me chamou de Gabi. - Isso, Gabi! De Gabriela, não é? - Caramba, como você adivinhou? A maioria das pessoas imagina que seja Letícia! – O sarcasmo inundou minhas palavras. O que estava dando em mim? Aquele cara era um deus grego e eu estava usando meu dom da ironia com ele? - Calma, garota. Só estou tentando ser diplomático. Mas se prefere que levemos essa conversa para a ironia, vamos lá! – Ele pareceu ofendido. - Não, não é nada disso. Desculpe-me. É que meu apelido é tão obvio que eu fico de saco cheio de todo mundo perguntando meu nome. Se pelo “Gabi” já se deduz o “Gabriela”, por que não se contentam com o apelido? Cara, eu ODEIO “Gabriela”! “Gabi” é tão prático, tão moderno, tão sexy! Por que teimam em chamarem-me de “Gabriela”? – As palavras saíram tão apressadas e atropeladas que precisei de um tempo para respirar. Ele tinha uma expressão assustada.
  • 3. - OK, OK. Agradeço pelo aviso. Assim não corro o risco de pronunciar seu nome complicado, antigo e não-sexy. Anotado: nunca chamar-lhe de ********, apenas Gabi. – Aquilo me fez rir. Nunca ouvira alguém pronunciar meu nome com asteriscos. Ele realmente falou “nunca chamar-lhe de oito asteriscos”. - Você é engraçado. – Falei quando consegui me recompor. - E você é linda. Minhas bochechas queimaram. Pus a mão no rosto para tentar resfriá-las. Mas não consegui conter um sorriso. Aquela conversa continuou por algumas horas. Apenas quando ouvi os sinos da igreja indicando seis horas me dei conta do tempo. O céu já estava escuro e as lojinhas começaram a fechar. Passei os olhos pela loja de papéis, onde Liss provavelmente estaria e não a encontrei. Imaginei que já tivesse ido para casa. - Caramba, já é tarde! Liss vai me matar por ter ido para casa sozinha e meu pai vai me matar por EU ter ido sozinha! - Você não é bem grandinha para precisar de babá? - Há-há, Sr. Engraçadinho. Meu pai teme pela minha segurança, sabia? Ele receia que eu seja raptada. - Você é tão importante assim, para quererem te seqüestrar? - Não sabe quem eu sou, não é? Meu pai é o dono da empresa administrativa que movimenta a economia da cidade. - Se for assim, então é melhor eu te acompanhar até em casa. Vai que algum chefe de quadrilha te prende quando você virar a esquina. É muito perigoso ir até em casa sozinha. Me dá a honra? Ele estendeu-me o braço esquerdo, e eu entrelacei-o no meu braço direito. Minha casa ficava a uns trinta minutos dali. A conversa durante o caminho foi agradável. Descobri mais algumas coisas ao seu respeito, como por exemplo, que ele adorava leituras, era fã incondicional da lua, ouvia boa música, passava as horas livres vendo filmes de terror e tinha uma coleção completa de discos dos seis maiores cantores das décadas de 70 e 80 . Quanta coisa tínhamos em comum! Ou pelo menos era o que eu achava. Já em casa, corri para o meu quarto e liguei para Liss. Contei-lhe sobre a tarde perfeita e ela me disse que sequer foi à lojinha. Seguiu direto para sua casa pois já sabia o quanto íamos demorar e não estava com paciência para dar uma de candelabro.
  • 4. Aquela cena repetiu-se durante toda a semana. Sempre o encontrava vagando pelas lojinhas ou no shopping, Liss abandonava-nos e ele me acompanhava até em casa. Na sexta-feira pediu-me o número do meu celular. Trocamos e-mails e combinamos de ir a uma balada no sábado. Liss foi conosco e logo arranjou outra companhia. Ela nunca ficava sozinha numa festa, mas aquele loiro era particularmente lindo. Aquela noite foi o céu para mim. Por volta das dez horas demos o nosso primeiro beijo. Na minha visão, seria o começo de um relacionamento lindo e perpétuo. Isso mesmo, conhecemo-nos há menos de uma semana e eu estava irrevogavelmente apaixonada por ele. Cheguei em casa às cinco da manhã. Passei o resto da madrugada em claro, revivendo as últimas horas e imaginando o nosso futuro. Ele ainda não dissera que me amava, mas logo diria. Quem não me amaria? E eu o faria o homem mais feliz do mundo, enquanto eu era a mulher mais sortuda. Tinha dinheiro, amigas, e um marido que era a personificação da perfeição. O que mais eu pediria? Relembrando aquele dia, eu tenho pena de mim mesma. Ainda não sabia o que realmente estava acontecendo. E então estava feita a nossa rotina. Liss finalmente levou um ficante a sério e passeava conosco e seu loiro-lindo – a quem chamamos de Richard, ou só Rich – no shopping todas as tardes. Íamos ao cinema duas vezes por semana e em baladas todo o sábado. Os domingos eram ociosos, mas só porque não encontrávamos um programa apropriado. Por cinco meses inteiros permanecemos assim. Então ele me pediu em namoro. Já estávamos muito próximos e eu esperava por aquilo desde o nosso primeiro beijo. Foi tudo perfeito. Marcamos de nos encontrar num sábado, no restaurante mais sofisticado da cidade. Pediu-me para ir com o meu melhor vestido, pois a ocasião pedia isto. - Gabi, nos conhecemos há menos de seis meses, não é? E, no entanto, já somos tão íntimos. Veja, não há mais ninguém que me faça rir nas quartas. Sabe que, para mim, as quartas eram um castigo. Depois de você, se transformaram num deleite, assim como todas as vezes em que estamos juntos. Eu sei que um homem como eu dificilmente demonstra seus sentimentos, mas o que está acontecendo comigo é algo inexplicável e que não se consegue conter. Desde aquela primeira tarde eu imaginei que nasceria um intenso relacionamento. Só agora eu consegui reunir coragem suficiente para te dizer isso. – A essa altura meus olhos já estavam molhados. - Eu amo você, Gabi. E não é de um jeito infantil ou como os clichês, o que está acontecendo comigo não tem descrição. Meu peito se atormenta a cada minuto que eu não estou na sua companhia. No trabalho já não consigo me concentrar, porque você sempre está lá, ecoando suas doces palavras na minha cabeça. Por incrível que pareça, os relatórios que preparo sempre acabam com o seu nome. Só depois de impressos, eu
  • 5. percebo e tenho que refazê-los. Não estou convicto quanto ao que você sente por mim, mas creio que não recusaria a um pedido de um homem apaixonado. Não acha que estamos prontos para levarmos esse relacionamento mais a sério? Aceita namorar comigo e compartilhar esse amor que já carrego há tanto tempo? Como dizer não a algo assim? Eu sequer consegui dizer sim. Apenas balancei a cabeça afirmativamente e enxuguei minhas lágrimas no lenço para poder ver melhor o maravilhoso rubi incrustado no anel prateado que ele estendia para mim, dentro de uma caixinha folheada a prata. Muitas se assustariam com aquele símbolo que significaria um compromisso muito sério, porém eu fiquei extasiada em perceber que ele pensava o mesmo que eu. Ele sabia que nosso amor seria eterno. Ao menos eu pensava que ele sabia. O que se procedeu não irei contar. Espero que me perdoem por esta lacuna, mas suas outras palavras eram tão lindas que agora se tornaram torturantes, e não acredito que meu coração possa resistir a mais essa lembrança. Nossa rotina a partir desse dia não foi muito modificada. Apenas passávamos mais tempo a sós e alternávamos as noites na balada com outras atividades, como cinemas, jantares em belos restaurantes, algumas curtas viagens. E uma vez no mês passávamos o fim de semana na casa da minha família em uma ilha desabitada. Como eu sabia que meus pais reclamariam caso fosse sozinha com ele, eu organizava festas. Algumas eram particularmente grandes, enquanto outras eram somente para amigos. Essas eram as mais divertidas. Além de a festa ser mais liberal, as viagens até a ilha no navio do meu pai eram incríveis. E foi numa dessas festas particulares que o nosso compromisso se completou. A festa já estava no fim, mas algumas pessoas ainda dançavam lá no fundo, outras estavam se divertindo na piscina, dentre elas a Liss. O Bruce deu um jeito de me tirar da festa, fazendo-me um pedido irresistível ao ouvido. A essa altura eu já estava impressionada de ele ainda não haver comentado sobre aquilo. - Tá gostando da festa, amor? Porque eu tô adorando, mas tenho alguma coisa lá em cima bem melhor para você. Aquela voz sexy era tudo o que eu precisava para fazer meus braços se arrepiarem, ainda mais seguida daquela mordidinha no lóbulo da orelha. Então ele me arrastou da pista de dança, puxando-me pelas mãos. Subimos as escadas quase aos tropeços, e ele mantinha minhas mãos nos seus quadris. Entramos no nosso quarto – sim, dormíamos juntos, mas ate agora não havíamos ultrapassado os limites da decência – e ele me jogou contra a parede. Beijou-me de um jeito ardente, como nunca havia feito, e meus braços envolveram seu pescoço, enquanto minhas pernas instintivamente prenderam-se na sua cintura. Suas mãos fortes apertavam-me tanto
  • 6. que chegavam a machucar, mas era uma dor que eu suportava, uma dor excitante. O desenrolar dessa cena vocês já devem imaginar. Perdoem-me por mais esta lacuna. Depois disso, eu ganhara confiança para dormir no seu apartamento. Quando meus pais viajavam, alternávamos as noites entre minha casa e a dele. A Liss sempre dormia comigo, mas eu achara companhia bem melhor. Nos finais de semana, quando saíamos de algum programa, também ia dormir com ele. Chegava em casa pela manhã e meus pais não se preocupavam. Eu já era responsável para não precisar dar explicações. Com um ano de namoro, levei-o para jantar com a minha família. Apresentei-o a meu pai, que, impressionantemente, não implicou com esse namorado. Na sua visão, todos os outros eram insignificantes, arrogantes, preguiçosos, velhos e não seriam bons o suficiente para mim. Mas o Bruce, além da diferença de sete anos na idade, era responsável, inteligente, educado e, além de tudo, bonito. Imaginem meu pai chamando o meu namorado de bonito! Aquilo era um sonho, só poderia ser! Acho que eram seus olhos que tinham o poder de persuadir qualquer pessoa. Mais dois anos se passaram sem nada de especial no nosso relacionamento. Fora o início das minhas aulas particulares de administração, a única coisa que se diferenciava era o meu amor por ele, que só aumentava. Eu já não conseguia viver longe daquele homem. Se passasse um dia longe daqueles olhos, enlouquecia. E somente sua voz era capaz de me acalmar. Suas palavras doces, seu abraço apertado. Era tudo o que eu queria. Não, era além de querer, ele era fundamental, indispensável para a minha sobrevivência. É incompreensível quem acha que o amor é tão difícil. Para mim era bastante simples. Se ele estava comigo, eu estava bem. Se não estava, eu corria risco de vida. Apenas duas orações e o meu amor estava explicado. Simples. No nosso aniversário de quatro anos, ele me tornou uma mulher mais feliz do que eu já era. Estávamos na cozinha do seu apartamento. Eu estava preparando uma omelete (a coisa mais sofisticada que eu me atrevia a cozinhar) e o Bruce estava sentado na bancada, bem atrás de mim, brincando com algum utensílio. - Gabi, você me ama? - Que história é essa, Bruce? Você sabe que eu te amo. Quantas vezes já te disse isso? - Eu sei, eu sei. Mas eu preciso ter certeza. Eu preciso da sua confirmação de que você me ama demasiadamente, que eu sou tudo o que você quer, que você nunca pensou em me abandonar, que vai me desejar para sempre, que quer ter muitos filhinhos comigo e viver numa casa à beira-mar.
  • 7. - Não sei quanto à casa, mas o resto é isso mesmo, amor. Não estou entendendo... - Eu precisava saber que você se sente como eu, porque hoje eu pretendo dar um passo importante no nosso namoro. - O que quer dizer? - Sabe, eu andei pensando numa coisa. Se nós nos amamos desse modo, se nunca iremos nos separar, para que continuarmos com um simples namoro? – Ele desceu da bancada e se ajoelhou a meus pés.- Gabi, você aceita se casar comigo? Ele estendeu um anel dourado com um diamante, dentro de uma caixinha de ouro. Fiquei tão surpresa com o pedido, que as palavras fugiram. Apenas estendi a trêmula mão direita, enquanto a esquerda estava fechada em frente à minha boca, na tentativa de reprimir um grito, e acenei com a cabeça. Lágrimas encheram meus olhos, e quanto mais eu piscava para limpar a visão, mais elas caiam como cascatas pela minha face. Mal ele pôs o anel no meu dedo, já me lancei em seu pescoço. Dei-lhe um abraço tão apertado que meus braços ficaram dormentes. Enquanto o libertava do abraço, ele puxou minha cintura ao encontro de seu corpo e beijou-me com a mesma intensidade do meu abraço. Quando dei por mim, já estávamos em cima da mesa da cozinha. Não podíamos começar uma comemoração agora, era sábado e logo teríamos que ir visitar alguns amigos, mas eu estava tão eufórica que não tive forças para controlá-lo. Na verdade, já havia me esquecido das visitas e deixei-me levar pelos meus desejos carnais. Tudo o que eu precisava naquele momento era do seu corpo. O corpo do homem que seria meu marido. Estremeci ao pensar na palavra. Marido. Sempre pensei no nosso relacionamento perpétuo, mas nunca me imaginara casada com ele. Ele estava certo, que sentido havia em permanecermos como namorados? Nosso amor nunca morreria. Na segunda-feira pela manha já estávamos programando o casamento. Se não fazia sentido continuarmos como namorados, para que prolongar um noivado? Olhamos algumas listas de igrejas disponíveis para os próximos dois meses na internet e selecionamos as cinco melhores. Dinheiro não seria problema. Mesmo sem o dinheiro do meu pai, eu tinha uma boa quantia no banco, e já que ele me dera dois belos anéis, um de rubi e outro de diamante, obviamente também não se incomodaria em me dar a melhor igreja da cidade. Pretendíamos visitar as cinco, mas a primeira já me pareceu perfeita. Tinha um estilo Notre Dame, com torres altíssimas, janelas com vitrais coloridos que, à luz do
  • 8. entardecer, projetavam um arco-íris sobre o altar, algumas esculturas de renomados artistas, assentos almofadados, grossas portas de carvalho. Era aquele lugar que eu escolhera para concretizar o nosso compromisso. Ali receberíamos as bênçãos dos céus e obedeceríamos às leis dos homens. Na quinta-feira, Liss me arrancou de casa para procurarmos o meu vestido. Visitamos a Rua 4 de Maio, uma alameda especializada em casamentos. Ali se encontrava de tudo, de flores a velas, de cortinas a bolos e doces. Havia no mínimo oito lojas que vendiam vestidos de noivas, todas de reputação internacional. Vasculhamos as vitrines e escolhemos uma delas para entrar. Eu não teria paciência de experimentar todas as peças de todas as lojas. Contra a vontade de Liss, eu escolhi justamente a mais simples, ou melhor, menos glamorosa. Era a única que as caudas não passavam de três metros e o véu não alcançava minha cintura. Enquanto a costureira tirava as minhas medidas, Liss me observava com um ar estranho. Era um misto de preocupação e medo que me assustava. - Você tem certeza que está fazendo a coisa certa? - Como assim, Liss? -Cara, vocês se conheceram a, o que, dois anos? -Quatro anos. E daí? -A maioria das pessoas, principalmente os homens, espera muito para se casar. Eles têm medo do casamento. E o Bruce já está louco para se casar com você. Não acha estranho? - Estranho? Não, a gente apenas se ama mais do que tudo. - Tem certeza que ele te ama, Gabi? - Claro que tenho! Afinal, por que ele iria casar comigo se não me amasse? Que idéia maluca, Liss. Pelo amor de Deus, eu estou comprando o meu vestido, poderia parar de falar bobagens? - Desculpa amiga, mas eu estou realmente intrigada com esse casamento... - Tudo bem, só não me venha com essa conversa de novo, tá bom? Que garota louca, imaginar que o meu príncipe não me amava. Ele era tudo o que eu tinha no momento, e eu era o mundo para ele. E não tinha como alguém mentir daquele jeito. Eu via seus olhos brilharem quando falava de mim, sentia seu coração acelerar quando me abraçava. Suas palavras eram sinceras, eu sabia! Hoje eu sei que estava cega pela minha paixão. Às vésperas do meu casamento, no último sábado, para ser mais exata, eu precisei viajar para decidir quais as flores deveriam substituir as rosas brancas do meu buquê. As rosas não haviam suportado a viagem e murcharam. Como era uma viagem longa e o transito lá era caótico, avisei a todos que só voltaria no outro dia, por volta das quatro da tarde. Por
  • 9. pura brincadeira do destino, consegui regressar mais cedo, e pensei em fazer uma surpresa para o Bruce. Às onze horas da noite apareci em seu apartamento. Ele me recebeu nervoso, aparentando surpresa em demasia e até senti uma pontada de desespero. Na minha euforia por não precisar dormir longe de casa, ignorei seu comportamento e lancei-me nos seus braços. Dormi no seu apartamento, era tarde para ir para casa. Pela manhã, fui despertada por duas vozes, uma delas exaltada, na sala. Procurei o Bruce na cama, mas seu lado da cama estava vazio. Imaginando que fosse alguém da redação do jornal onde ele trabalha, não achei adequado me apresentar naqueles trajes. Apenas fiquei quieta e escutei. - Mais uma vez, por que você veio aqui?- Bruce estava gritando? Logo ele que sempre fora tão calmo. O que estava fazendo-o gritar? - Eu já disse, vim te entregar o contrato. - Não íamos nos encontrar no almoço? Quantas vezes eu preciso te falar para NUNCA vir ate aqui! Você nunca sabe quando ela vai estar ou não! - Ontem mesmo você me disse que ela viajou. E, sabe a Carlinha, que trabalha na lanchonete? Então, hoje ela finalmente decidiu aceitar o meu convite! Ai eu aproveitei e trouxe o contrato aqui para poder ter o almoço livre, cara. - Ela viajou, mas voltou ontem, seu imbecil! Sorte sua que ela ainda está dormindo. Senão, você ia estar encrencado! - Como eu ia saber que ela voltou? E, já que ela está na cidade, como você ia me encontrar? Essa vaca não desgruda do seu pé! - Eu dou meu jeito... - Mas, então, vamos logo com isso. O contrato está aqui. Ela vai ter que assinar aqui, e você aqui. E tem que ser logo depois da cerimônia, não esqueça. - Logo depois? Ela vai desconfiar. A gente não poderia esperar um pouco mais? Quem sabe quando voltarmos da viagem... - Cara, o que é isso? Você já fez isso tantas vezes, por que quer mudar logo agora? Não me diga que vai querer desistir! Imagina o que o pessoal vai dizer! Logo você, Jay, dando pra trás? - Nada disso, eu não vou desistir, mas é que ela é muito esperta. - Mas ela esta apaixonada, não é? Então, mulheres são muito bobas, lembra? Pois bem, quando chegarem ao Brasil, um dos nossos vai recebê-los no aeroporto. Depois eu te entrego uma foto dele para não ter engano. Antes de chegar ao hotel, você vai pedir para o motorista
  • 10. parar, diga que vai comprar qualquer coisa, sei lá, inventa alguma coisa, ele vai sair com você, e daí: CABUM! Sua recente esposa voa pelos ares e o dinheiro é nosso! Alguma duvida? - Ela tem mesmo que morrer? Quero dizer, não poderíamos modificar o contrato para ela me dar o dinheiro, mas continuar viva? Sabe, eu não queria que nada acontecesse com ela. - Não, Bruce, não dá. Você sabe que elas têm que morrer! Por favor, não me diga que você está preocupado com ela. Ah, não, não, não! Merda, você tá apaixonado, também! Cara, você não pode! O que aconteceu com você, hein? - Não, eu não tô apaixonado... - Está sim! Olhe como seus olhos estão brilhando! Jay, isso me dá enjôo! - Tudo bem, e se eu estiver mesmo? A Gabi é tão divertida, tão, tão... Mas não interessa. Já que tem que ser assim, fazer o que. - Esse é o Jay que eu conheço! - Ta, ta. Agora saia daqui. Daqui a pouco ela acorda e tudo vai ter sido em vão. Vamos, vamos, o que está esperando! SAI DAQUI! Estava atordoada com tudo o que havia ouvido. Seria verdade que o Bruce me enganara? Ele realmente fazia parte de uma quadrilha de bandidos que caçavam heranças? Ele iria me matar? E por que o outro cara estava chamando-o de “Jay”?! Não, aquele não era o Bruce, era só um sonho. Mas eu estava bem acordada, não havia sonhado. Ouvi passos se aproximando e por instinto fingi que ainda dormia. Sabe lá o que ele faria comigo se soubesse que eu já acordara. Talvez não me machucasse afinal ele disse que estava realmente apaixonado. Mesmo assim, achei melhor não arriscar. Vi que ele guardara alguns papéis no fundo de uma gaveta do guarda-roupa, que sempre mantinha trancada. Caminhou um pouco pelo quarto, imagino eu que estivesse pensando num plano para me fazer assinar esse contrato sem desconfiar. De nada adiantaria seus esforços, eu não iria me casar com ele, não depois de saber que ele ia me matar! O meu único problema seria como fazer isso. Ele não poderia saber que eu descobrira seus verdadeiros objetivos para comigo, ou, suponho eu, seus amiguinhos dariam “um jeito” em mim. O que poderia fazer, então? Diria que não tinha certeza quanto os meus sentimentos? Oi, Bruce, não posso me casar com você porque depois de quatro anos eu ainda não sei se te amo. Ok, fora de cogitação. Encontrei outro cara? Talvez até funcionasse, mas eu ainda teria que arranjar uma pessoa para me servir de amante. Muito trabalho para pouco tempo. Esses minutos de meditação me foram suficientes para eu traçar todo o meu plano de vingança. Ele não poderia sair ileso. Ele deveria sentir no mínimo uma parte do que eu estava sentindo. Aquela ultima semana com o Bruce seria um inferno. Para ele, não para mim. Eu me divertiria tanto quanto fosse possível, aproveitaria cada minuto para poder destruir a sua vida, para fazê-lo se arrepender do dia em que me escolheu como vitima.
  • 11. Decidida a não perder mais tempo, comecei a dar sinais de consciência. Cocei a cabeça, apalpei o outro lado da cama e me mexi mais um pouco. Em instantes ele estava ao meu lado, acariciando meus cabelos e beijando minha testa. - Bom dia, amor. Por que acordou cedo? Volte a dormir, vamos ter um longo dia hoje. Mesmo sabendo de suas intenções, eu podia sentir verdade e carinho naquelas palavras. Ele realmente me amava, e sofreria quando concluísse sua tarefa. Mas quem sem importa? Ele me traiu todo esse tempo, deveria pagar pelo seu erro. - Sabe, Bruce, eu estava pensando, agora que nós vamos nos casar, acho que você deveria se livrar desses discos velhos. Vamos morar juntos, e eu não gosto de velharias em casa. - Os meus discos? Não, amor, não pode. Você sabe o quanto eu adoro esses discos. - Eu sei, eu sei. Mas onde vamos guardar? Tudo bem que nossa casa será grande, mas eles só vão acumular poeira, Bruce! Mais tarde vamos dar um jeito nisso, tudo bem? Agora, por favor, prepare um café para mim? Estou com uma terrível dor de cabeça... Ele tentou contestar, mas eu fiz a infalível ceninha de mulher carente. Não há homem que resista. Ele deixou para discutir comigo outra hora. À tarde, quando já tinha saído, liguei para ele e pedi que retornasse para casa, queria passar o dia com ele. Do outro lado da linha ele reclamou, mas com uma voz doce, como se pedisse desculpas. Há uma semana marcara com o pessoal da redação para ir ao estádio, era a final do campeonato, seu time tinha 93% de chances de ganhar, não poderia faltar! - Então é assim? Prefere seus amigos a mim? Iremos nos casar daqui a cinco dias e não quer a minha companhia? Como diz que me ama se nem ao menos abre mão de uma simples partida de futebol por mim? - Entenda, Gabi, é a partida da final! E já faz cinco anos que o meu time não vence o campeonato nacional! Será que você não poderia me dar essa folga? Pelo menos por hoje. - Folga?! Tornou-se um tormento para você estar comigo, a ponto de precisar de folga?! Bruce, qual desses seus amigos te colocou na cabeça essa idéia de folga, hein? Você mudou muito depois que conheceram esse Chris! Foi ele, não é? Eu sei que foi! - Não é nada disso. Mas o problema é que todos os domingos eu saia com a galera, e justo hoje você me quer por perto? Justo na final? Gabi, por favor! - Não, não e não, Bruce! Às vésperas do nosso casamento e você quer assistir futebol com a “galera”?! Você vai vir aqui e nós vamos ver uns filmes que eu comprei. E eu não quero mais que você saia com esses caras que se dizem seus amigos e enchem sua cabeça de besteiras. E trate de não demorar! Desliguei o celular. Se ele realmente se importasse comigo, viria. Eu estivera ensaiando algumas lágrimas forçadas, e, enquanto estávamos discutindo, elas saíram espontaneamente.
  • 12. Minha voz ficou tremula e ele com certeza percebeu que eu estava chorando. Se realmente me amasse, ele viria me acalmar. Não sabia o que eu queria. Talvez quisesse que ele me amasse, mas então seria mais difícil me separar dele, afinal eu ainda o amava. Se ele não viesse, seria mais fácil, contudo a traição teria sido maior, com mentiras sem tamanho e promessas sem fundamento. Por fim ele veio. Menos de uma hora depois ele chegou. Ao ver seu carro se aproximando, forcei mais algumas lagrimas e corri ao seu encontro. - Ah, amor, tive tanto medo de que me abandonasse! Estava a ponto de desmaiar só de imaginar que fosse preferir a seus amigos! Ah, meu amor! Jure por sua vida que nunca vai me trocar! Jure, Bruce, jure! Sabe que eu preciso de você! Sabe que não sou mais nada se você me deixar! Soluçava e tremia descontroladamente. Nunca imaginei que as aulas de teatro da quinta série seriam tão úteis. Cheguei até mesmo a acreditar que chorava de verdade. - Calma, amor. Estou aqui, já cheguei. Se acalme, por favor. Primeiro, pare de chorar. É capaz de adoecer se continuar com esse desespero. Tudo bem, agora? O.K., você sabe que nunca iria preferir um bando de machos a você. Só é que hoje realmente seria um jogo importante. Mas vamos esquecer tudo isso. Ele me abraçou com tanto afeto que me assustou. E ele veio até aqui porque eu pedi. Ele me amava. Mas ele te traiu, Gabi! Não esqueça isso! Ele te enganou durante quatro anos! Isso não é coisa que se faça, ainda mais mentindo com uma coisa dessas! Ninguém tem o direito de mentir sobre o amor! E foi isso o que ele fez com você! Reaja, Gabi! Não se deixe seduzir! Não dessa vez! Você é forte, seja firme também! Durante o resto do dia assistimos a três filmes muito melosos. A todo o momento que ele se distraia, seja beijando meu pescoço, o que me causava arrepios, seja cochilando, eu o repreendia. Eu também ficava sonolenta e morria de vontade de atacar sua boca, mas aquela tarde era parte do seu castigo. Ele deveria suportar quase nove horas de filmes legendados, onde a mocinha se apaixona pelo mocinho, mas não pode dizer para ele; e o mocinho se apaixona pela mocinha, mas não pode se declarar porque seus amigos vão chamá-lo de mulherzinha; patricinha/vizinha do mocinho quer o mocinho só para ela e humilha a mocinha todo o tempo; e no final a patricinha/vizinha se ferra e o mocinho namora com a mocinha. Os três filmes tinham o mesmo roteiro. A única mudança era nos nomes dos personagens. À noite, antes de dormirmos, ele tentou despertar em mim algum desejo. Eu estava completamente desejosa de ter se corpo junto ao meu, mas ele abusara de mim durante muito tempo. Uma semana de abstinência não seria muito castigo. Aleguei cansaço, os filmes foram muito longos.
  • 13. Na segunda-feira à tarde, enquanto foi ao cartório, vasculhei cada canto do apartamento, tentando descobrir qualquer objeto que fosse de valor, seja sentimental ou material e fiz uma copia do contrato que aquele cara dera a ele. Encontrei os discos, álbuns de fotografia, livros, roupas, cartas. Mesmo sendo verdadeiros ou não, ele sentiria falta. Talvez realmente gostasse deles, então sofreria, ao menos um pouco, caso fossem destruídos. Ele havia me dito que retornaria às quatro horas. Às três acendi a lareira e reuni todos aqueles objetos numa caixa, menos as roupas e os livros, que eu havia mandado para a caridade. Comecei queimando foto por foto, guardando apenas aquelas nas quais estávamos juntos. Destrui todas as cartas, até mesmo as que havia recebido da mãe. Quando ele chegou, restavam apenas quatro discos, uma carta e o álbum vazio. A principio ficou atordoado, sem saber o que estava acontecendo. Ele voou para a caixa ao meu lado e tentou salvar o que ainda não tinha ido para o fogo. - Amor, o que está fazendo? – Tentei usar a voz mais doce e ingênua que conseguisse. - O que VOCÊ está fazendo, Gabi! Eu te disse para que não tocasse nos meus discos! Como pode fazer isso? Como ele conseguiu ser assim, tão frio, mesquinho e mentiroso? Estava vermelho de raiva por causa de uns discos idiotas, enquanto ele destruía a minha vida! O que são discos velhos comparados com o futuro promissor de uma adolescente? Pensei em esfregar na cara dele o contrato, revelando que eu já sabia. Mas assim estaria estragando o meu plano, e seria muito fácil para ele. O Bruce ainda sofreria muito. - E eu te disse que eles iriam embora. Não posso continuar dividindo você com mais de cinqüenta discos os quais você nem ouve! Já chega, Bruce! Dê-me essas velharias e vamos acabar com isso. – Minha voz estava firme, mas não o bastante para que ele me obedecesse tão fácil. - Me dividir?! O que está pensando? Você nunca se importou com eles, e agora tem crise de ciúme por causa de discos? Francamente, Gabriela! Aquilo era demais. Há anos ninguém me chama de Gabriela, muito menos ele! Usei de toda a minha força e agarrei a caixa que ele mantinha sob o braço. Ele resistiu, puxando a caixa para si. Cravei as unhas, muito bem afiadas, modéstia a parte, nos seus braços, causando-lhe alguns ferimentos que sangraram levemente. Como resposta à dor, ele largou a caixa e correu para o banheiro para limpar o sangue que manchava sua camisa. Acabei com os objetos restantes e esperei até que se desintegrassem completamente. Apaguei o fogo e fui ver como estava o meu querido noivinho. Ele estava sentado na borda da cama, com alguns curativos no braço. Pedi desculpas pelo meu comportamento agressivo, justificando o uso das unhas com o fato de que ele me provocara, chamando-me por Gabriela. Ainda detestava aquele nome. Ele disse que não tinha problemas, mas estava muito magoado por ter destruído coisas pessoais. Contei mais algumas justificativas sem nexo, e fui tomar um banho.
  • 14. Mesmo assim ele continuou a reclamar. Vesti uma roupa provocante, com um belo decote vermelho e uma calça justa, que realçava minhas pernas. A essa altura já eram sete horas, um pouco cedo para sair. Disse que ia me encontrar com Liss no bar que sempre freqüentávamos. Fazer uma festa entre mulheres. Continuou reclamando, mas eu apenas saí e fechei a porta. Peguei meu carro, liguei para a Liss e pedi que me encontrasse lá. Eu estava um pouco abalada, mas não contei nada para ela. Queria que todos tivessem uma surpresa no casamento. Pelo contrario, afirmei que estávamos muito bem e que eu estava ansiosa para chegar o dia. Bebemos, cantamos alguns caras, provocamos o garçom. Aquela foi uma das noites mais divertidas que eu já passei com a Liss. Ela sabe mesmo como me divertir. Cheguei em casa já de madrugada. Não fui para o apartamento do Bruce, precisaria planejar o dia seguinte, mesmo já tendo uma idéia formada. Na terça pela manhã, saí de casa bem cedo para encontrá-lo ainda no seu apartamento. Antes de o Bruce sair para a redação, seqüestrei todos os cartões que pude encontrar na sua carteira. Liguei para a Liss e fomos ao shopping. Se eu não podia desfrutar do seu amor, pelo menos gastaria o seu dinheiro. Ela se animou, até pensou em pegar um cartão do namorado, para comprar roupas comigo. Tranqüilizei-a, naquele dia a festa seria por conta do meu querido noivinho. - Qual é, Gabi, o marido é seu, o dinheiro é seu. Sabe que eu nunca recuso um presente, mas eu realmente preciso de roupas. - Vamos lá, Liss! Esqueça isso, pode comprar o que quiser. O Bruce que se vire para pagar, depois. - Tudo bem, então. Você que sabe. O que te deu hoje, hein? Há séculos não fazemos compras. -Acho que é TPC. -Como é? -Tensão pré-casamento... Passamos o dia inteirinho no shopping, entramos nas lojas mais caras, estouramos todos os limites possíveis. Até me arrependi de estar de casamento marcado. Foram tantos os caras que se ofereceram para “carregar as sacolas”! À noite, fui ao encontro do Bruce. Mostrei todas as roupas que comprei inclusive aquelas bem provocantes, e que iria usar. - Então quer dizer que hoje vamos ter uma festinha particular, não é, meu amor? - Festa particular? Não, seu bobo! Tenho um compromisso marcado com a Liss, vamos encontrar o patrão dela, que a convidou para um jantar. Ela ficou com medo de ir sozinha, ele tem fama de tarado, sabe, e eu vou acompanhá-la. Mais tarde, quem sabe...
  • 15. Vesti o meu melhor vestido e saí. Não iria encontrar-me com a minha amiga. Ela estaria com seu namorado. Dentro do carro troquei de roupa, pus uma calça jeans e um moletom. Tinha um filme bem deprê que havia acabado de sair em cartaz. Como eu não estava com ânimo para filmes de romance, muito menos queria aqueles de terror – temendo que me dessem alguma idéia má -, fui vê-lo. Voltei ao seu apartamento, já com meu vestido. Ele estava sentado no sofá, quase cochilando, esperando a minha volta. Recebeu-me com um beijo daqueles, mordeu-me o pescoço, apertou-me as cochas. Repeli-o. Tive um longo dia, o jantar foi muito cansativo, não tinha ânimo para satisfazer seus desejos carnais. Fui dormir pensando no dia seguinte. Quarta-feira, alguns dias a mais e eu estaria morta. O que seria de mim se aquele cara não tivesse aparecido aqui? No domingo eu não passaria de alguns pedaços embrulhados no necrotério. Isso se restasse algum pedaço. Nesse dia ele voltaria para casa mais tarde. Às quartas ele sempre é o último a sair da redação. Algumas horas depois que ele saiu, fui até o prédio onde ele trabalha. Procurei algum menino de rua, freqüentes naquela área, e ofereci umas notas de dinheiro caso ele fizesse um serviço para mim. Ele esperaria até o fim do dia e esvaziaria os quatro pneus do carro do Bruce. Coisa fácil, ele aceitou o trabalho. Indiquei o carro ao garoto e abri o carro. Pus alguns lenços de papel sujos com batom no porta-luvas, borrifei um pouco de perfume feminino, tirei todos os cartões de guinchos e fui embora. Passei o dia revisando alguns detalhes do casamento, queria que tudo fosse perfeito. Cheguei ao apartamento dele por volta das sete da noite, um pouco antes do horário normal que ele chega às quartas. Sentei no sofá e liguei a TV, esperando a volta no Bruce. Quase três horas depois ele chega em casa. Desci o elevador para encontrá-lo ainda no carro, com uma expressão que misturava preocupação e desconfiança. Não o esperei sair do estacionamento. Abri a porta do carona e senti o perfume. O cheiro não estava tão forte, mas perceptível. - Onde estava até agora, Bruce? - Ah, amor, você não sabe. Alguém esvaziou os quatro pneus! - Sério? E por que não chamou o guincho? Eles não costumam demorar muito. – Minha voz estava firme, fria, sem qualquer emoção. - Eu procurei por todo lado aqueles cartões, mas eles sumiram! - Você nunca soube procurar nada, Bruce. Eles estão aqui no porta-luvas, como sempre. Ao abrir o compartimento, alguns dos lenços caíram aos meus pés. - O que significa isso?
  • 16. - O quê? - Esses lenços, Bruce! O que significam? E esse cheiro de perfume! Quem esteve no carro com você? Chamou alguma amiguinha sua para encher os pneus, foi? - Eu não sei que lenços são esses, amor. E esse perfume também não! Quando entrei no carro, eles já estavam aqui! - Claro, agora os vidros são permeáveis e qualquer perfume vagabundo entra, não é? E como não sabe que lenços são esses! Eles estavam no porta-luvas do SEU carro! E esse batom, aqui? Certamente você achou que eu já estaria dormindo e se livraria deles antes que eu pudesse vê-los, não? - Calma, amor! Você não está achando que eu te traí, não é? - Ah, não! Porque eu pensaria uma coisa dessas? Afinal, é super normal perfumes estranhos e lenços sujos de batom aparecerem nos carros. Eles têm vontade própria e entram em qualquer carro que encontram por aí. O seu só foi mais um. Por favor, Bruce! Diga-me com quem você estava! - Gabi! Em quatro anos eu NUNCA te traí! Por que faria isso às vésperas do nosso casamento, meu amor? - Não sei, Bruce. Eu realmente não sei por que você fez isso. - Pelo amor de Deus, Gabi! Eu não fiz nada! - NÃO?! Então me explique esses lenços e esse perfume, Sr. Certinho! - Eu já disse que não sei como vieram parar aqui! Onde está a confiança que você sempre prezou no nosso relacionamento? - Como confiar quando as provas estão na minha cara! Bruce, faltam três dias para o nosso casamento, eu não vou perder todo o trabalho que tive. Então eu vou esquecer tudo isso, nós vamos subir e não voltaremos a falar sobre isso. Mas saiba que eu nunca mais vou dormir em paz, sabendo que você pode estar em qualquer outro lugar com alguma vaca. - Gabi, eu não estava com ninguém! - Não adianta se justificar. Saí do carro e peguei o elevador. Ele veio atrás de mim. No apartamento, me tranquei no banheiro e simulei um choro convulsivo. Quebrei alguns frascos, fiz uma bela cena. Quase uma hora depois, saio do banheiro. Peguei minha bolsa e me despedi dele. - Você está bem? Aonde vai a essa hora? - Estou bem, sim. Por que não estaria? Vou andar por aí. Não me espere para dormir.
  • 17. Entrei no meu carro e corri. Ultrapassei todos os limites de velocidades possíveis. Estava cansada daquela farsa. Doía demais ter que castigar assim o homem que eu amei por tanto tempo. E, mesmo sem querer, ainda o amava muito. Maltratá-lo e ter que me separar assim era pior do que arrancar metade do meu corpo. Era arrancar a maior parte da minha alma, porque era lá onde ele estava. Encravado na minha alma, onde fiz questão de colocá-lo assim que percebi que nunca nos separaríamos. Sua burra! Não sofra assim! Ele te enganou, esse tempo todo! Você o amou porque era ingênua, mas agora vê se cresce! Não é mais nenhuma criança! No mundo só tem lugar para quem é esperto! Seja esperta, ao menos uma vez! Não se deixe iludir de novo por esse canalha! Isso, resista, seja forte. Complete o seu plano e depois o esqueça. Ele nunca vai ter existido para você. Agora pare de chorar! Dei algumas voltas por aí e voltei ao apartamento. Mais uma vez ele me recebeu com carícias provocantes, mas dessa vez eu tinha uma boa desculpa. Como poderia me concentrar quando ele havia me traído mais cedo? - Quantas vezes vou ter que dizer que eu não te traí! - Por favor, não comece. Eu tive que passar horas tentando superar isso, não faça a ferida inflamar novamente. Pus minha bela camisola reservada para ocasiões especiais e fui dormir. À noite pude sentir as mãos do Bruce deslizando pelas minhas pernas e acariciando meu rosto. Despertei um pouco, bem a tempo de ouvi-lo dizer: - Ah, meu amor, como eu gostaria que tudo não fosse só um sonho. Como eu queria passar o resto de minha vida ao seu lado. Eu te amo tanto, sua garota boba. Como pode achar que eu te traí? Aquilo ecoou na minha mente, fazendo minha determinação balançar, quase obrigando meus braços a atacarem aquele homem, mas lá vem de novo o diabinho que me lembra a todo instante que ele me traiu, que eu não posso desistir e blá, blá, blá. No outro dia pela manhã, tentei castigá-lo um pouquinho mais do que o que havia planejado. Faltando exatamente cinco minutos para ele sair para a redação, ele estava terminando o café da manhã, sentado à mesa. Afastei sua xícara, sentei-me em seu colo, falei algumas coisas provocantes ao ouvido, mordi a ponta da orelha. Pude até sentir seu amigo respondendo. Ele se levantou e prensou-me à parede. Sua voracidade me assustou. Por um momento pensei que estava com raiva, mas logo vi que era só desejo. Quando ele estava prestes a levantar minha blusa, afastei-me e reclamei do horário. Se passasse mais um minuto em casa chegaria atrasado, e ele não queria perder o emprego, de jeito nenhum. Ele reclamou, disse que há séculos espera por mim, mas eu sempre invento uma desculpa. Eu empurrei-o porta afora. Já tinha um plano para aquele dia. Antes de o Bruce chegar, saí para um bar, com uma daquelas roupas que enlouquecem qualquer homem. Fiz questão de experimentar todos os
  • 18. tipos de bebidas possíveis, aceitei todos os drinks que me ofereceram. Foi bom saber que eu ainda despertava interesses em vários homens. Escolhi um, aquele bem musculoso, com tanta cara de vilão-super-sexy-de-filmes-de-Hollywood quanto o Bruce. Ele me acompanhou durante a maioria da noite. Quando já estava meio tarde, e eu não fazia noção de quanto era dois mais dois, disse que iria para casa. Ele(não me lembro do seu nome de jeito algum) relutou, disse que eu não estava em condições de dirigir. Realmente não estava, e aquele era meu objetivo. Perguntou-me onde eu morava, me levaria no seu carro. Chegando ao prédio do meu futuro ex-noivo, demorei um pouco a sair do carro. Queria que o Bruce me visse ali. O porteiro interfonou para ele, dizendo que eu havia chegado, mas que não se incomodasse de descer, outro homem me levaria, tudo por ordem minha. Quando olhei o seu apartamento e pude ver sua cabeça para fora da janela do décimo andar, esperei mais alguns minutos e saí. O cara-do-bar teve que sustentar todo o meu corpo, não podia dar um passo sozinha sem tropeçar. Pegamos o elevador e quando o Bruce abriu a porta, estávamos aos risos, com minha cabeça apoiada no seu ombro. Quem visse a cena, juraria que tínhamos um relacionamento mais íntimo, e essa era a verdadeira impressão que eu queria que o Bruce tivesse. Ele praticamente me arrancou dos braços do cara-do-bar, enquanto eu ainda me despedia dele entre risos, e me atirou no sofá. Não me recordo exatamente das palavras que ele disse, mas era algo bem rígido. Lembro-me que era algo do tipo “o que pensa que estava fazendo? Depois eu que te traí! Está agindo como uma adolescente!” Naquela hora não estava me importando com o que falasse, apenas tomei um banho e fui dormir. Na sexta-feira acordei com horríveis olheiras e uma terrível dor de cabeça, mesmo assim não havia me esquecido que era a véspera do meu casamento e teríamos que supervisar e analisar a igreja. Quando mencionei que a presença dele era fundamental, o Bruce inventou mil desculpas (não sei se eram verdadeiras ou mais mentiras), tinha que trabalhar, hoje era a visita de rotina do editor-chefe, de jeito algum poderia faltar, iria acontecer a reunião mais importante do ano. - É sempre assim! Você nunca tem tempo para mim! Nem mesmo hoje, véspera do nosso casamento! Como você quer ter uma vida de casado se não tem uma hora do seu dia em que pode reservar para sair com sua esposa? - Gabi, qualquer outro dia poderíamos sair, amor, mas hoje não! Eu realmente preciso ir à redação! - Qualquer outro dia?! Nós NUNCA saímos! Ultimamente nem nos finais de semana! - Culpa sua, que sempre tem algum compromisso com suas amigas. - Ah, agora a culpa do SEU sedentarismo é minha?! Não culpe a Liss pela sua falta de interesse em mim!
  • 19. - Olhe o que está dizendo! Falta de interesse em você! Quem sempre sai à noite e diz que está cansada é você, esqueceu? - Eu saio porque não tem nada em minha casa para me satisfazer! Porque meu futuro marido está sempre ocupado com a porcaria do seu jornal e nem ao menos me liga para saber como estou! Você não se preocupa comigo, Bruce, não liga para o que eu estou sentindo! É sempre você, você, você! Sempre o seu trabalho! - E eu preciso trabalhar para te sustentar! Eu vi que estourou os meus cartões! - Não seja hipócrita! Sempre soube que eu nunca precisei do seu dinheiro! Eu sou a maior herdeira da cidade, por favor! Para me sustentar, Bruce? Fale que esse dinheiro é para você e as vadias que ficam às suas custas! - Se é tão rica assim, Srª Herdeira, então por que não gastou o dinheiro do seu pai? - Porque eu estava sem os meus cartões aqui, e precisava urgentemente de roupas novas. Mas se quiser, eu te devolvo tudo, até as malditas alianças que me deu! Virei-me de costas, para que pensasse que eu estava chorando. - Ah, Gabi, meu amor, não fique assim. Eu jamais pensei em nada parecido, e nem passou pela minha cabeça tomar as alianças de volta, querida. Por favor, vamos parar de brigar, está bem? Amanhã nos casaremos, e ai tudo isso vai ter fim. A idéia de fim me amedrontou. - Vou fazer o seguinte: ligo para a redação e digo que o tio-avô da cunhada de minha prima morreu, e eu preciso ir ao enterro. Vamos ver como está a nossa igreja. Ele me abraçou como nunca o fizera. Tanta sinceridade, tanta emoção, era muito difícil acreditar que era mentira. Ah, Gabi, sua tonta, não acredite nesse dissimulador! Ele está tentando manter o casamento até amanhã! Você viu o que ele falou! Amanhã vai ter fim. Mas não as brigas, a sua vida! Então força, garota, só falta mais um dia, e então você estará livre dessa tortura. Tomei um banho, recuperei as forças, espantei o cansaço e fomos à catedral. Eu tinha certeza que nada estaria errado, minha mãe e sua comissão organizadora não esqueciam de um palito de dentes na mesa dos convidados. Mas esse foi só mais um pretexto para outra briga. Eu sabia que aquele dia era importante na redação. Chegamos ao local que eu escolhera para concretizar o meu sonho e eu fiz questão de analisar cada assento. Observar quais estavam empoeirados, qual laço não estava no lugar, que flores estavam feias, a posição de cada cadeira, a distância entre as mesas, as cortinas que cobriam alguns vitrais indesejados, as vestimentas do padre. Tudo isso passou por uma rigorosa vistoria, justamente para que o tempo passasse e ele não tivesse chances de voltar para o trabalho. O Bruce dava sinais de impaciência e todo momento irritava-se.
  • 20. - Gabi, você já olhou esse lado! Quantas vezes vai ver essa coluna? As portas estão bem limpas! Sua mãe já não falou que ela mesma fez os laços? A limpeza acabou de ser feita, tem mesmo necessidade de olhar embaixo dos tapetes? Foi no meio de uma dessas frases que minha paciência realmente acabou. Eu estava me controlando, não queria brigar na frente de outras pessoas, mas perdi o controle. - Se quer tanto que eu acabe logo, por que não me ajuda? Deve ser porque não quer se sujar para depois ir correndo para o jornal, não é? Ou nem vá mais trabalhar, já que disse que faltaria, talvez vá direto para a casa da vadia que estava com você na quarta-feira! Mas ela está no trabalho também, não é? Ah! Ela pediu licença, foi? Na certa está morrendo de cólicas, mas hoje ela nem está menstruada! Se estivesse você não iria vê-la! A não ser que a ame mais do que a mim, se é que ainda me ama! Todos os presentes estavam observando-nos. Percebi que a raiva sublevava-lhe a face. Seu rosto estava vermelho. Ele agarrou-me pelo braço e puxou-me a um canto. As marcas de seus dedos ficaram sobre minha pele. - Escuta aqui, eu estou correndo o risco de perder o emprego por sua causa, graças ao seu showzinho hoje pela manhã, então não diga que ainda vou trabalhar. Além do mais, eu já disse que não estava com ninguém na quarta, pare com essa história sem sentido, Gabriela! - NÃO ME CHAME DE GABRIELA! - Calma, estressadinha. Vamos logo acabar com isso, ainda tenho compromissos pela tarde. Respirei fundo, me acalmei e voltei à minha inspeção. Acelerei um pouco, mas não por causa dele. Eu também teria compromissos à tarde. Meu cabeleireiro e minha manicure estariam esperando-me, além da última prova do vestido. Não tivemos tempo de voltar para casa. Almoçamos num restaurante próximo do centro que era especializado em comida oriental, coisa que o Bruce detesta. Ele relutou, mas eu forcei-o a me acompanhar. Era o meu último desejo como noiva dele, já que amanhã seríamos marido e mulher até que a morte nos separe, o que não demoraria mais de um dia. Ele me levou ao salão, onde o novo namorado da Liss e ela estariam nos esperando. O Bruce me deixou lá e foi fazer não sei o quê. Provavelmente iria confirmar os detalhes da minha morte, para que tudo parecesse um trágico acidente. O atual namorado da minha amiga era um loiro galante, parecendo um personagem de filme adolescente. Ela ainda adorava garotos mais novos. Por vezes já pedi que ela melhorasse suas escolhas, mas aquele era sua vontade, fazer o quê. No entanto, ele já era maior de idade, com uma mente um pouco atrasada, para falar a verdade. Era meigo ao extremo e submetia- se a todos os caprichos da sua deusa. Acredito que era por isso que a Liss preferia os mais novos.
  • 21. Enquanto nos preparávamos para a grande festa do dia seguinte, ele simplesmente sentou-se a um canto e passou as longas quatro horas observando-a, como se olhasse para a coisa mais preciosa e rara de todo o mundo. Aquilo me enjoava. As cinco eles me acompanharam à Rua 4 de maio, para a última prova do vestido. Eu tinha certeza que não engordara nem um grama desde a semana passada, mas a Liss insistia que tudo deveria ser perfeito, e nem um centímetro poderia estar faltando ou sobrando. Como eu disse, ele estava completamente ajustado às minhas curvas. Sendo assim, não demoramos muito. A minha costureira, D. Adelaide Gusmão, embrulhou-o e o loiro galante colocou-o no carro. Levaram-me à casa dos meus pais, não poderia dormir com o Bruce. Se o noivo ver a noiva no dia do casamento, dá azar, não é isso? Mas ninguém sabia que o meu azar começara há quatro anos. Cheguei em casa, cansadíssima por causa da inspeção da manhã, e me tranquei no banheiro. Ao me despir e olhar aquele rosto suado no espelho, pude ver nos meus olhos a desesperança que ali se instalara no último sábado, quando o homem estranho foi ao apartamento do Bruce. Tentei, porém sem sucesso, conter as lágrimas que me inundavam os olhos. Aquilo era demais para mim, queria desistir de toda essa farsa, correr para o meu noivo e implorar-lhe que não me mate, eu ainda o amava, sim, apesar de tudo, ele era o homem da minha vida, e ele também me amava, eu sentia isso, lá no fundo ele me amava! Vamos fugir, meu amor, nós temos dinheiro, podemos ir para qualquer lugar, esqueça essas outras pessoas que te obrigam a fazer isso, esqueça tudo, vamos fugir e seremos felizes, nós dois, sozinhos, felizes para sempre! O nosso amor é forte demais! Eu sei que você não quer fazer isso, eu sei! Venha comigo, vamos, largue tudo, vamos lá, Bruce! É fácil, basta me seguir! Vamos juntos para o final que o destino reservou para nós! Seremos felizes, amor, eu sei que seremos! Alguém bateu à porta e me tirou do transe. - Filha, você quer colchas azuis ou verdes? - Verdes, mamãe. - Vou pôr seu pijama ao lado da cama, tudo bem? - O.K., mãe. Sentei à borda da banheira e chorei, chorei descontroladamente, como um bebê sem seu brinquedo favorito, um bichinho que sente falta do calor materno. Apoiava o rosto nas mãos e os cotovelos nos joelhos. Ao tentar levantar-me, apoiei-me na cortina e escorreguei no chão, molhado pela água da banheira que transbordava e senti uma pancada na nuca. - Gabi? Tudo bem? Era uma voz familiar. Estava me chamando, mas onde eu estava? Virei-me de lado para procurar o locutor, senti algo macio tocando a minha pele. - Calma, filha, estamos aqui, está tudo bem agora.
  • 22. Era meu pai. Como não reconheci de primeira? Aquela voz grave que desde a minha lembrança mais remota me transmite segurança, paz, calma. Lembro-me da vez em que caí do meu cavalo. Torci o tornozelo, estava desesperada, meu rosto sangrava, sentia o gosto do sangue na minha boca, queria gritar, mas estava muda, me contorcia no chão, a aspereza da terra seca machucava minha pele sempre tão macia. Era um caos, até que meu super-herói chegou. Colocou-me em seus braços, aninhou-me como se fosse um bebê, falava bem calmo ao meu ouvido que eu ia ficar bem, não fora nada grave, para eu parar de chorar, ele estava ali. E eu me acalmei. Ele estava ali. Meu pai estava ali. Se ele dizia que estava tudo bem, realmente estava tudo bem. Ele nunca mentia para mim, e eu sempre era franca com ele. Tentei me sentar para clarear a mente, localizar-me, mas minha cabeça doeu. Senti uma pontada aguda nas têmporas, e gemi. Estava cercada de pessoas. Pai, mãe, irmã, cachorro, empregada, tesoureiro, tia, amiga da mãe, sobrinha, prima, camareira, motorista, todos que estavam na casa, sem exceção, estavam ao meu redor, preocupados comigo. Senti-me como a pessoa mais amada do mundo. - O que aconteceu? - Bateu com a cabeça na banheira, filha. Era minha mãe. - Encontramos você caída no chão. Graças a Deus não estava com o rosto virado para o chão, poderia ter se afogado. Só percebemos que havia algo errado quando a camareira viu água escorrendo por baixo da porta. E você a tinha trancado, foi um enorme trabalho arrombá-la. Olhei para o lado. A porta do meu banheiro estava no chão, e este, encharcado. Meu tapete persa, meu lindo tapete persa estava destruído. Pela janela, pude ver que ainda era noite. - Gente, agradeço a todos, mas já estou bem. Agora eu gostaria de dormir, amanhã é meu casamento, esqueceram? - Filha, tem certeza que está bem? Você ficou quase uma hora desacordada. Vai ficar bem, mesmo? - Claro, pai. Não se preocupe. Só preciso descansar um pouco. Não quero ficar cheia de olheiras amanhã. Boa noite. Virei-me para o lado e puxei o cobertor verde para cima de meus braços gélidos. Encolhi-me como uma bola e fingi que adormeci. Esperei todos saírem do quarto (meu pai demorou-se mais um tempo, verificando o meu estado) e abri os olhos. Não pudia dormir, havia muita coisa para pensar. Mais uma vez a vontade de largar tudo me dominou e aquela bendita voz na minha consciência gritava para eu me controlar, ele me enganara, eu o enganaria e estaríamos quites.
  • 23. Pensei na melhor forma de abandoná-lo. Aparecer na igreja e responder “não” ao padre; não aparecer e deixá-lo esperando-me; contar toda a verdade e prendê-lo; deixá-lo livre, mas sem conseguir seu principal objetivo. Eram várias as opções, mas, além disso, havia algumas coisas que deveriam ser feitas antes de qualquer coisa, mas deixei somente para o último momento. Liguei meu notebook e procurei apartamentos à venda em Belgrado, capital da Sérvia. Encontrei uma cobertura duplex completamente mobiliada, num bairro tranqüilo. Não pensei duas vezes e fiz a transação do dinheiro para a conta do proprietário. Chegando lá, arrumaríamos a documentação necessária. Comprei passagem aérea para lá à noite, abri uma conta no Banco Nacional da Sérvia, transferi uma enorme quantia de dinheiro para lá, escrevi uma carta para meus pais e separei meus documentos. Pus tudo numa bolsa, junto com uma muda de roupa, tranquei no meu quarda-roupas e adormeci antes de chegar a uma conclusão. Estava realmente cansada. Acordei às oito da manhã, com a Liss chamando-me à porta. -Vamos, Bela Adormecida, seu Príncipe Encantado estará te esperando daqui a pouco para o seu “Felizes para Sempre”! Coitada, ela nem imaginava que na verdade esse conto de fadas era uma história de terror, dirigida pela própria madrasta má. -Estou indo, Fada Madrinha! Ela riu com a comparação. Ela e seu loiro seriam meus padrinhos. No início da programação do casamento, ela estava namorando um ruivo muito lindo, que seria meu padrinho. Quando terminaram, tive que aceitar esse loiro. Ela não admitia de jeito nenhum que seu namorado não fosse meu padrinho. Como eu não tinha nada contra nenhum namorado da Liss, aceitei de bom grado. - É sério, Gabi, o Fabinho está te esperando. Seu penteado demora muito, e eu ainda preciso dele para me deixar como uma verdadeira fada, querida! Ao contrário do que imaginei, estava bem disposta. Aquela noite na minha cama, longe do Bruce, me fez sentir melhor, como se eu pudesse abandoná-lo dez vezes sem sofrer nada. Assustei-me com tanta convicção. Parecia que aquela não era eu, sempre tão apaixonada, tão dependente. - Já estou de pé, Liss! Não se desespere, por favor. -Ah, a Marta está te esperando, também. Vê se não escolhe cores chamativas para as unhas! Ouvi seus passos se afastando. Ela cantarolava baixinho, reconheci a música. Contava a história de uma mulher que se casou por obrigação e suicidou-se durante a lua-de-mel. Seria um mau presságio?
  • 24. Levantei-me, tomei um banho, depilei as pernas e axilas, pus um vestido e saí para tomar café. Fabinho, meu queridérrimo cabeleireiro, estava na área de beleza da minha casa, com todos os seus apetrechos. Parecia emocionado quando eu entrei, perguntei de estava tudo bem e ele desabou em lágrimas. -Ah, Gabi, eu te conheço desde que era deste tamanho! E agora olhe para você! Tão crescida, tão mulher, tão casada! Querida, não imagina o quanto estou feliz! – E enlaçou meu pescoço com seus braços firmes. - Acalme-se, Fabinho, eu ainda não casei, esqueceu? Por isso estou aqui, para que me transforme na mulher mais invejada da cidade! - Sim, sim, querida. Vamos ao trabalho, então. Ele enxugou as lágrimas, deu uns tapinhas no rosto, apertou as maçãs, limpou a maquiagem borrada, ajeitou o cabelo e preparou os utensílios necessários. Enquanto o Fabinho esticava, enrolava, esticava e enrolava meus indomáveis fios, a Marta, minha manicure favorita, limpava, cortava, alvejava, umedecia, hidratava e massageava minhas mãos e unhas. Liss escolheu o esmalte mais sem graça que existia e censurou-me quando eu pedi um vermelho provocante. Em questão de unhas eu gostava de ser exagerada. Passei quase o dia inteiro nesse ritual pré-casamento. Minha querida amiga paranóica não deixou que me alimentasse normalmente, permitiu-me algumas verduras e meio copo de suco. Por volta das três da tarde fui para meu quarto pôr meu vestido. Ri na frente do espelho ao imaginá-lo preto. Seria muito impacto, aparecer na igreja vestida de luto! Se bem que não era má idéia. O Fabinho voltou para cobrir meu rosto com todo tipo de maquiagem existente. Além de excelente cabeleireiro, ele era um exímio maquiador. Esperei todos saírem de casa. Deixei a carta sobre meu travesseiro, apanhei minha bolsa, entrei no carro e me dirigir à igreja. Não queria que ninguém me acompanhasse, quando eu sabia que estava caminhando para a morte. A empolgação da manhã desapareceu com o passar do dia e o nervosismo. Agora pensar nisso me dava calafrios. Mesmo assim, não desisti. Seria morrer abandonando o Bruce ou morrer explodida pelo Bruce. Certamente preferi a primeira opção. Antes de sair do carro, parado ao pé das enormes escadarias da igreja, conversei um pouco com o motorista, Sr. Charlie O’Mane. - Charlie, seria capaz de guardar um segredo? - Claro, Gabi. Ou será que agora terei que chamá-la de Srª? - Por favor, ainda não. - Então, o que quer me contar? - Por enquanto, não precisa saber de nada, apenas me espere aqui na frente, pronto para partir a qualquer momento.
  • 25. -O que pretende fazer, minha menina? – O Charlie sempre fora gentil comigo. - Nada de mais, não se preocupe. Apenas faça isso, está bem? - Como quiser, garotinha. Saí do carro e me deparei com uma dúzia de fotógrafos. Reconheci um que certa vez me flagrou no maior amasso com o Bruce no iate da família. Tive que acalmar meu atual noivo para que ele se contentasse em quebrar a câmera do cara e não o espancasse, assim que descemos do barco. Quando passei, eles abriram caminho. Achei-os educados. Meu pai estava à minha espera na porta da igreja, com olhos marejados. Ouvi sua voz embargada quando me beijou o rosto e sussurrou-me ao ouvido o quanto estava feliz. A música começou. A marcha nupcial soava-me como a marcha fúnebre. De fato, havia algum ar de enterro no ambiente. Até hoje não sei se foi fruto da minha mente. O Bruce estava no altar, com uma feição emocionada. Não era possível ser tudo fingimento! Sorri para todos no trajeto até o altar e meu pai entregar-me ao meu ex-futuro assassino. O padre fez o sinal da cruz e começou seu sermão. Falou sobre a criação do mundo, sobre o primeiro casal a se unir, sobre a importância do Sagrado Matrimônio, sobre nossas responsabilidades a partir de então. Todo esse discurso durou em média uma hora, até a parte onde dizemos sim. -Bruce McRial, aceita Gabi France como sua legítima esposa, prometendo, assim, amá-la e respeitá-la até o fim de suas vidas? - Sim. -Gabi France, aceita Bruce McRial como seu legítimo esposo, prometendo, assim, amá-lo e respeitá-lo até o fim de suas vidas? Olhei para o Bruce. Olhei-o de verdade, penetrando até as entranhas de sua alma, o mais profundo que pude naqueles poucos segundos. Vi emoção, paixão, amor, mas também havia um quê de vitória, de satisfação, que não tinha nada a ver com sentimentos. E assim reuni todas as minhas forças naquela única palavra. - Não. Soltei suas mãos e virei-me. Não pude encará-lo novamente. Ouvi murmúrios às minhas costas quando me dirigi para a porta da igreja, abandonando todos aqueles que já amei na vida. Entrei no carro e Charlie estava lá, como me prometera. -Menina, o que você fez? Volte para lá e acabe seu casamento! - Ele já acabou, Charlie, já acabou. Vamos para o aeroporto, por favor. -Mas...
  • 26. - Aeroporto, Charlie, agora. Durante o caminho, eu chorei. Não consegui me controlar. O que eu estava fazendo era loucura, mas não poderia continuar morando aqui sabendo que aquele homem estaria por perto. Cheguei quase em cima da hora do avião decolar. Antes de sair do carro, só tive tempo de me despedir de Charlie. - Diga a meus pais que não me procurem. Eu estarei bem. Ah, diga-os que eu os amo. Obrigada por tudo, Charlie. Você foi um bom amigo. Ele me observou com olhos tristes, como se adivinhasse o que estava acontecendo, embora não tivesse a mínima idéia do real motivo que me levou a fugir daquele jeito. Peguei minha bolsa, sai do carro e fui direto fazer o chek-in. Passando pela livraria do aeroporto, já podia imaginar as manchetes principais de todas as revistas de fofocas: “Filha de Mark France foge do casamento, deixando noivo no altar”. Pouco me importa as mentiras que vão publicar sobre mim. Qualquer coisa seria melhor do que “A recém-casada Gabriela France, filha de Mark France, morre em explosão de carro no Brasil”. Não demorou muito e o meu avião levantou vôo. Passada a tontura inicial, que sempre me ataca até que a aeronave ganhe completa estabilidade, liguei os fones de ouvido e deixei minha mente se afogar em devaneios. Havia alguma coisa no meu peito que não estava no lugar certo. Uma pressão bem entre os seios me causava náuseas. Não era por causa da altitude, nunca sentira isso antes ao viajar. Alguém havia arrancado meu coração da minha caixa torácica e esquecera-se de me avisar. O buraco deixado por essa perda aumentava e pressionava meus pulmões, ficando difícil respirar. Ao dar o último passo para a minha separação total do Bruce pude realmente sentir a falta que ele me faz. Ele não era só parte da minha alma, era parte do meu ser físico também. Ou então, o que explicava essa falta de ar que me assolava? Ele era mais do que eu imaginava, mais do que eu queria que fosse. Por mais que eu soubesse que nunca nos separaríamos, sempre tive o cuidado de não deixá-lo ser mais do que eu mesma. Não consegui. Ele era parte indispensável para a sobrevivência daquela menininha frágil e insegura que agora sofre por ter tido arrancado de si seu escudo protetor, seu porto-seguro. Digam a ela que agora é ela e o mundo, não há mais ninguém para que ela se esconda por trás quando o bicho-papão puxar-lhe o pé, ninguém mais vai mandar o grandalhão da escola ir embora, ninguém vai pegar na sua mão e dizer-lhe que está tudo bem quando tiver um pesadelo. Ela vai chorar, sim, vai chorar muito, mas é preciso que digam isso a ela. Ela precisa ouvir de mais alguém para acordar e perceber que seu príncipe encantado se fora, que foi apenas uma parte de sua vida que agora está no passado. É uma verdade que ela tem que enfrentar.
  • 27. Na carta, não contei aos meus pais que o Bruce pretendia me matar. Nunca diria uma coisa dessas! Eles seriam capazes de matá-lo. No mínimo, pegaria a prisão perpétua. Eu não suportaria a idéia de ter o meu amado machucado, embora fosse isso o que ele iria fazer comigo. Os líderes da sua quadrilha se encarregariam de tudo. Além do mais, acho que ele sofrera um bocado naquela última semana. É triste (abominável, incompreensível, cruel seriam palavras mais adequadas) saber que o primeiro (e certamente último) amor da sua vida não passara de um teatro unilateral, onde apenas o ator principal representava. A atriz, coitada dela, não passava de uma personagem fundamental para a trama se desenrolar. Ela, ao contrário, fora enganada por esse incrível ator, que durante quatro anos dissimulou e a fez acreditar cegamente em todas as palavras de amor, imaginando que sua vida era um conto de fadas. Mas como tudo que é bom dura pouco, essa farsa tinha que acabar. O “Felizes para Sempre” não existe na vida real, e ela deveria saber disso. Mas a pobre estava tão feliz que não conseguiu ver as mentiras por traz de todas aquelas promessas. Felizmente, um personagem secundário do teatro errou a cena. E um simples erro foi suficiente para dar uma sacudida do mundo perfeito e derrubar a princesinha do seu cavalo. Ela estava apaixonada, mas crescida o bastante para saber quando é hora de parar de brincar. E chegou a vez dessa princesinha entrar no jogo. Chegou a hora de representar o mesmo teatro. Por mais que machucasse seu pobre coraçãozinho, ela parou de agir pela emoção e deixou o cérebro comandar a situação. Fez tudo o que lhe veio à mente para dar um gostinho de dor àquele que lhe enganara por todos esses longos anos. E o pior, iria matá-la depois do casamento. Mas ela fechou as cortinas mais cedo do que todos esperavam. Ao menos nessa última semana, eu consegui machucá-lo. Sei que consegui. Já que ele me enganara durante tanto tempo, eu não deixaria que saísse ileso. Ele literalmente acabou com a minha vida, me deixou no fundo do poço. Como, depois dele, eu teria forças para me apaixonar de novo? Dizem que quando se é traída uma vez, jamais se volta a confiar em alguém. Acho que esse será o meu caso. Sozinha, naquele apartamento, sem me relacionar com ninguém, esperando pacientemente o nada. Pela janela, via meu país ficando para trás, juntamente com a vontade de viver. Dhay Souza