O documento descreve a vida e obra da poetisa brasileira Cora Coralina, nascida em 1889 na cidade de Goiás. Detalha sua infância difícil, seu primeiro amor frustrado e seu relacionamento com Cantídio Brêtas, com quem teve filhos. Também fala sobre suas atividades como vendedora, sua volta a Goiás aos 70 anos e o reconhecimento de sua obra poética, que imortalizou pessoas e histórias de Goiás.
1. “Cora Coralina, de Goiás”
Gilson P. Borges
No coração do Planalto Central, no centro da cidade de Goiás, Estado de Goiás,
ainda pulsa, na Casa Velha da Ponte, toda a força da poesia de Cora Coralina. Sua obra
imortalizou pessoas, estórias e lendas de Goiás, traduzindo todo o encanto dessa cidade que
acaba de ser agraciada pela Unesco com o título de Patrimônio Histórico da Humanidade.
Quem tem gravada na memória a imagem dessa simpática velhinha, dificilmente
imagina a verdadeira realidade vivenciada por essa incrível mulher.
Cora Coralina, ou Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, nasceu na cidade de
Goiás, em 1889, fruto da união entre Francisco de Paula Lins dos Guimarães e Jacintha
Luiza do Couto Brandão Peixoto. Ele era o segundo marido de Jacintha, 43 anos mais velho
que ela, e faleceu dois meses após o nascimento de Cora.
Segundo Vicência Brêtas Tahan, filha de Cora Coralina, em seu livro Cora
Coragem, Cora Poesia, a infância da poetisa não foi muito fácil. Primeiramente, ela
frustrou todas as expectativas de sua mãe, que desejava um filho. Além disso, todos na
cidade consideravam-na uma garota estranha (“Eu era triste, nervosa e feia.”), e mesmo
uma das alunas mais atrasadas nas aulas da Mestra Silvina (“Nunca os algarismos me/
entraram no entendimento./ De certo pela pobreza que marcaria/ para sempre minha vida./
Precisei pouco dos números.”). Como se esses “defeitos” não bastassem, ela se entregava,
ainda, ao “fútil” hábito de ler, ao invés de se preparar para conseguir um bom marido. Aos
16 anos ela apaixonou-se por um rapaz chamado José, estudante de medicina do Rio de
Janeiro, que passava suas férias escolares em Goiás. Entretanto, os pais dele decidiram
mandá-lo de volta ao Rio, antes do término de suas férias, pois temiam que ele se
envolvesse com aquela “estranha” mulher. A partir de então, a falta de pretendentes e o
afastamento de suas amigas, já casadas e voltadas exclusivamente para assuntos que
envolviam família e filhos, levaram Cora a sentir-se mais e mais solitária. Por causa disso,
ela mergulhou ainda mais fundo em seus livros e, com a idade “avançada” de 18 anos,
passou a ser vista como um caso perdido.
Alguns meses após seu vigésimo aniversário, embora já estivesse fadada ao triste
destino de solteirona, sua vida mudou quando um novo chefe de polícia, o advogado
2. Cantídio Tolentino de Figueiredo Brêtas, chegou a Goiás. Entre todas as moças casadoiras
da cidade, mais bonitas e “talentosas” que Cora, ele se apaixonou por ela, sendo
prontamente retribuído. Tudo parecia perfeito entre eles e ela poderia finalmente entregar-
se ao matrimônio, contrariando todas as expectativas dos moradores do lugar. Seu sonho,
no entanto, não durou muito tempo, pois descobriu-se que Cantídio não só já era casado em
São Paulo, onde tinha três filhos, mas também havia se tornado pai de outra criança no
Norte do país, quando morou por lá, antes de mudar-se para Goiás. A mãe de Cora, então,
proibiu-a de vê-lo, destruindo, dessa forma, toda e qualquer esperança de casamento para
ela. Desafiando a autoridade de sua mãe, entretanto, Cora continuou a encontrar Cantídio
em segredo e, como resultado desses encontros, ela se viu grávida. Como os habitantes
conservadores da cidade, naquela época, não aceitariam sua gravidez e sua união com um
homem que já era casado, Cora e Cantídio decidiram fugir para o Estado de São Paulo.
Assim, viajando em lombo de cavalo e de trem, eles chegaram à cidade de São Paulo, de
onde partiram, alguns dias depois, para Jaboticabal.
Em Jaboticabal, Cora dedicou-se a instituições de caridade, que tinham como
principais objetivos a distribuição de leite para crianças carentes, proporcionar tratamento
médico para pessoas idosas e obter empregos para os mendigos da cidade. Ela também
comprou uma fazenda, onde iniciou uma plantação de rosas, as quais eram vendidas para
amigos e vizinhos. Após 15 anos vivendo juntos, Cora e Cantídio receberam a notícia da
morte da primeira esposa dele e eles puderam finalmente se casar. Essa união documentada,
todavia, não durou muito. Em 1934 Cantídio também veio a falecer. Esse acontecimento
levou Cora a mudar-se para a cidade de São Paulo, onde seus filhos poderiam continuar a
estudar. A fim de custear a educação deles, ela abriu uma pensão, que lhe rendia algum
dinheiro, mas, ao mesmo tempo, deixava-a exausta. Ela, então, fechou a pensão e tornou-se
vendedora de livros. Seu próximo empreendimento foi mudar-se para Penápolis, onde abriu
uma loja de tecidos. Mudou-se mais uma vez, algum tempo depois, para Andradina, onde
comprou uma fazenda e começou a cultivar milho e algodão. Nessa última localidade, Cora
teve uma grande surpresa. Um deputado do Rio de Janeiro pediu-a em casamento, mas ela,
apesar de muito lisonjeada, não pretendia casar-se novamente e recusou a proposta.
Em 1956, Cora Coralina retornou a Goiás e começou a fazer e vender doces na Casa
Velha da Ponte. Nessa época, ela passou a considerar seriamente a idéia de publicar seus
3. poemas e, para isso, aos 70 anos de idade, iniciou um curso de datilografia, sendo não só a
estudante mais idosa da escola, mas também um símbolo de coragem e persistência para os
mais jovens.
Um dia, enquanto preparava seus doces, Cora caiu e quebrou uma perna. Seu
médico sugeriu que ela fosse para Goiânia, onde os hospitais estariam melhor equipados
para tratá-la. Quando deixou Goiás, seus amigos presentearam-na com dúzias e dúzias de
rosas, as quais ela decidiu levar, dentro da ambulância, para enfeitar seu quarto de hospital.
Ao chegar em Goiânia, o médico abriu a porta da ambulância e, ao ver a quantidade enorme
de flores, questionou a razão de terem-na levado para o hospital, se já estava morta. Cora,
então, informou ao doutor que ainda pretendia continuar viva por mais algum tempo.
Assim, foi operada e passou a locomover-se com o auxílio de muletas, as quais seriam
posteriormente homenageadas com o poema “Ode às muletas” (“Muletas utilíssimas!.../
Pudesse a velha musa/ vos cantar melhor!.../ Eu as venero em humilde gratidão”).
Após o acidente, Cora passou a dar palestras e entrevistas por todo o país,
divulgando sua obra e, aos 94 anos, foi homenageada com o título de doutora Honoris
Causa pela Universidade Federal de Goiás. Suas freqüentes viagens, contudo, não foram
benéficas para sua saúde e, após um forte resfriado, ela foi forçada a retornar a Goiás, onde
seu estado piorou, culminando com o seu falecimento, em 1985, em Goiânia. Ao abandonar
a vida, ela deixou quatro filhos, dezesseis netos e vinte e nove bisnetos. Seu corpo foi
enterrado junto ao de seu pai, na cidade de Goiás, em um túmulo adornado com o seguinte
epitáfio composto por ela:
Morta… serei árvore
Serei tronco, serei fronde
E minhas raízes
Enlaçadas às pedras do meu berço
São as cordas quebradas de uma lira.
Enfeitai de folhas verdes
A pedra do meu túmulo
Num simbolismo
De vida vegetal.
Não morre aquele
Que deixou na terra
A melodia de seu cântico
4. Na música de seus versos.
Cora começou a compor seus poemas quando tinha 14 anos. Enquanto viveu em
São Paulo ela também publicou diversos artigos de contestação a injustiças sociais,
tornando-se uma mulher à frente de seu tempo, representante das mais diversas realidades,
como pode-se constatar em seu poema “Todas as vidas”:
Vive dentro de mim
Uma cabocla velha
De mau-olhado,
Acocorada ao pé do borralho,
Olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba. Terreiro.
Ogã, pai-de-santo...
Vive dentro de mim
A lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
D’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
Pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.
Vive dentro de mim
A mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
Toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de côco.
Pisando alho-sal.
Vive dentro de mim
A mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
Desabusada, sem preconceitos,
De casca-grossa,
5. De chinelinha,
E filharada.
Vive dentro de mim
A mulher roceira.
- Enxerto da terra,
Meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.
Vive dentro de mim
A mulher da vida.
Minha irmãzinha...
Tão desprezada,
Tão murmurada...
Fingindo alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
A vida mera das obscuras.
A alta qualidade de seu trabalho foi elogiada por Carlos Drummond de Andrade, na
seguinte carta a ela endereçada:
Rio de Janeiro, 14 de julho, 1979.
Cora Coralina:
Não tenho o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de
que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como a alguém que vive em
estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto. Seu verso é água corrente.
Seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. Ah, você me dá saudades
de Minas, tão irmã do seu Goiás! Dá alegria na gente saber que existe bem no
coração do Brasil um ser chamado Cora Coralina.
Todo o carinho. Toda a admiração do seu,
Carlos Drummond de Andrade.
Seus dons poéticos também foram louvados através de diplomas, prêmios,
medalhas, troféis e placas. Diversas bibliotecas, escolas, praças e ruas foram batizadas com
o seu nome e ela foi, ainda, eleita membro da Academia Feminina de Letras e Artes de
6. Goiás e da Academia Goiana de Letras. Sua obra encontra-se reunida nos livros Poemas
dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 1965; Meu Livro de Cordel, 1976; Vintém de Cobre,
1983; Estórias da Casa Velha da Ponte, 1986; Os Meninos Verdes, 1986 e O Tesouro da
Casa Velha, 1989. Em todos eles ela revive memórias de sua infância, incluindo sua antiga
professora, Mestra Silvina (“E a mestra?.../Está no céu./ Tem nas mãos um grande livro de
ouro/ e ensina a soletrar/ os anjos”), os becos de Goiás (“Becos da minha terra.../ Becos de
assombração./ Românticos, pecaminosos...”) e a Casa Velha da Ponte (“Velho
documentário de passados tempos, vertente viva de estórias e lendas”), que abriga segredos
e mistérios de outros tempos, como a estória do recebedor dos quintos reais da Coroa
Portuguesa, Thebas Ruiz, que, segundo a lenda, teria roubado uma grande quantidade de
ouro da Coroa e enterrado-o no porão da Casa. Após descoberto o roubo, Ruiz envenenou-
se, a fim de não ser mandado para a cadeia em Portugal, e fez o mesmo com um de seus
escravos, para que ele não revelasse a ninguém o esconderijo do ouro.
Atualmente, a Casa Velha da Ponte, construída em 1890, é um museu chamado
Casa de Cora Coralina e, em uma de suas salas, o visitante pode encontrar a simpática Sra.
Helena M. Lima que, através do projeto PROLER, busca incentivar o hábito da leitura. Para
isso, ela conta com a ajuda de “pílulas poéticas”, que trazem, em seu interior, trechos de
poemas de “Cora Coralina, de Goiás”, alcunha a ela conferida por Drummond através do
título de um artigo escrito por ele e publicado no Jornal do Brasil, de 27 de dezembro de
1980, onde faz a seguinte afirmação: “Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante
de Goiás. Mais do que o Governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e
influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de
sua invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada.”
Visitar Goiás e a Casa de Cora Coralina é, ainda hoje, experimentar um pouco da
magia presente nos becos, casas e igrejas da cidade, tão bem expressa na obra dessa imortal
poetisa.