A Companhia de Jesus, ordem religiosa fundada por Inácio de Loyola em 1534, tem tradição missionária de propagar a fé católica em todo o mundo. Seu espírito disciplinado pode indicar que o Papa Francisco dará continuidade a esse compromisso, enfrentando desafios como a perda de fiéis para igrejas pentecostais. A ortodoxia doutrinária exigida pela ordem também sugere defesa inabalável da fé católica durante seu pontificado.
1. SAO FRANCISCO DE ASSIS A homenagem ao santo
pobre constitui uma carta de intenções do papado
Bergoglio mantinha hábitos espar- mensagem evangelizadora: "Não mais ponto não passou despercebido aos car-
tanos. Sua rotina de trabalho começava esperar que o povo vá à Igreja, mas le- deais que o elegeram. Deram a vez ao
às 4 e meia da manhã e terminava às 9 var a Igreja até o povo". O primeiro homem que poderia ter sido papa há oi-
horas da noite. Morava sozinho, em um amálgama entre o pastor e os fiéis é, to anos. VEJA apurou que, na primeira
o
apartamento no 2 andar do edifício da como se viu na noite de 13 de março, a das cinco votações, os votos se distribuí-
arquidiocese, ao lado da Catedral de oração. Fazia tempo que não se rezava ram entre vários nomes. Na segunda,
Buenos Aires, na Praça de Maio. Fazia um Pai-Nosso e uma Ave-Maria de for- três candidatos se destacaram: Bergo-
sua própria comida. Andava de ônibus ma tão unida e fervorosa na Praça de glio, o italiano Angelo Scola, conside-
e de metro. Ao ser nomeado cardeal, São Pedro. rado o favorito, e o canadense Mare
não comprou batina nova — pediu que O cardeal Bergoglio desembarcou Ouellet, outra opção citada ao nome
lhe fosse dada a de seu antecessor, An- em Roma duas semanas antes do início lançado pela Cúria, o do brasileiro Odi-
tonio Quarracino, mono havia três do conclave. Não usou o carro do Vati- lo Scherer. A vantagem de Bergoglio
anos. E propôs aos fiéis desejosos de cano à sua disposição. Ia a pé para a consolidou-se no terceiro escrutínio.
vir à Itália, para acompanhar a entrega Santa Sé, onde se desenrolaram as con- No quinto, ele obteve um "grande con-
do chapéu cardinalício, que doassem gregações-gerais—mas, convenhamos, senso". A Capela Sistina explodiu em
aos pobres o dinheiro destinado à via- é um prazer andar em Roma. Aos 76 aplausos quando se atingiu o mínimo de
gem. Esteve no Brasil em 2007, para a anos, parecia velho demais para enfren- dois terços dos votos, 77 de 115. Um
a
5 Conferência do Episcopado Latino- tar o jogo pesado imposto por uma Cú- dos principais articuladores da candida-
Americano e do Caribe, realizada em
ria corrupta e pervertida. Em 2005, no tura vitoriosa foi Óscar Maradiaga, de
Aparecida, durante a visita de Bento
entanto, ele foi o principal oponente de Honduras. "Caros irmãos, que Deus
X V I . É um dos que assinam o docu-
Ratzinger, nas quatro votações do con- lhes perdoe", disse o papa Francisco.
mento final do encontro, com fone
clave vencido pelo ex-alemão — e esse Que tenham feito a escolha certa. •
veja | 20 DE MARÇO, 2013 | 69
2. »apa • AS IDEIAS
O MUNDO E A FE
SEGUNDO BERGOGLIO
Como arcebispo de Buenos Aires, o novo pontífice CRENÇA
refletiu com clareza — e simplicidade até exagerada
— sobre questões fundamentais do cotidiano mA Igreja defende a autonomia das questões
humanas. Uma autonomia saudável é uma
laicidade saudável, em que se respeitam as
ABORTO diferentes competências. A Igreja não vai dizer
aos médicos como devem realizar uma operação.
é é O problema moral do aborto é de natureza pré-religiosa. No O que não é bom é o laicismo militante, aquele
momento da concepção está o código genético da pessoa. Ali que toma uma posição antitranscendental ou exige
já existe um ser humano. Separo o tema do aborto de qualquer que o religioso não saia da sacristia. A Igreja dá os
concepção religiosa. É um problema científico. Não permitir o valores, e os outros que façam o resto. 93
desenvolvimento de um ser que já dispõe do código genético
de um sçr humano não é ético. Abortar é matar alguém que não
pode se defender. f¥ DEUS
66 Ao homem de hoje lhe diria que faça a
ATEÍSMO experiência de entrar na intimidade para
conhecer a experiência, o rosto de Deus. Por
ééQuando eu me encontro com pessoas ateias, compartilho com isso me agrada tanto o que disse Jó depois
elas as questões humanas, mas não coloco logo de cara em discussão de sua dura experiência e de diálogos que
a questão de Deus, exceto se elas me incitam a isso. Quando isso não lhe esclareceram nada: 'Antes eu te
ocorre, eu explico a elas por que creio. (...) Não pretendo fazer conhecia só por ouvir falar, mas agora
proselitismo — eu as respeito e me mostro como sou. (...) Não tenho eu te vejo com meus próprios olhos'.
nenhum tipo de reticências. Não diria que um ateu está condenado Ao homem, digo que não conheça
porque estou convencido de que não tenho o direito de julgar a Deus de ouvidos. O Deus vivo é
sua honestidade — sobretudo se ele tiver virtudes, aquelas que aquele que se vê com seus olhos,
engrandecem as pessoas. De toda forma, conheço mais gente dentro de seu coração, f f
agnóstica do que ateia. O agnóstico duvida; o ateu está convencido.
Temos de ser coerentes com a mensagem que recebemos da Bíblia:
todo homem é a imagem de Deus, seja ele crente ou não. Por essa DIVÓRCIO
única razão, tem uma série de virtudes, qualidades, grandezas.
Caso tenha baixezas, como eu também as tenho, podemos 66A discussão em torno do
compartilhá-las para nos ajudarmos mutuamente a superá-las. 99 divórcio é diferente daquela
do matrimónio de pessoas do
mesmo sexo. A Igreja sempre
CIÊNCIA repudiou a lei do divórcio, mas
há antecedentes antropológicos
66A ciência tem sua autonomia, que deve ser respeitada e distintos neste caso. (...) É um valor
Ni
encorajada. Não se deve interferir na autonomia dos cientistas. muito forte no catolicismo o casamento até
Exceto se extrapolarem seu campo de atuação e se envolverem que a morte os separe. Hoje, contudo, na doutrina
com o transcendente. A ciência é fundamentalmente instrumento católica, lembra-se a seus fiéis divorciados e
do mandato de Deus, que disse: Tenham muitos e muitos filhos, recasados que eles não estão excomungados —
espalhem-se por toda a terra e a dominem'. Dentro de sua autonomia, ainda que vivam em uma situação à margem do
a ciência transforma a incultura em cultura. Mas cuidado: quando a que exigem a indissolubilidade matrimonial e o
autonomia da ciência não põe limites a si mesma e vai além. ela pode sacramento do matrimónio — e é pedido a eles
sair das mãos de sua própria criação. É o mito de Frankenstein. 99 que participem da vida paroquial, f f
70 | 20 DE MARÇO. 2013 | veja
3. IGREJA
66 Uma coisa boa que aconteceu com a Igreja foi a perda dos Estados
Pontifícios, porque deixa claro que a única posse do papa é meio quilómetro
quadrado. Mas, quando o papa era rei temporal e rei espiritual, aí se
misturavam as intrigas de corte e tudo isso. Agora não se misturam? Sim,
ainda existe isso, porque existe ambição em homens da Igreja, existe
— lamentavelmente — pecado de carreirismo. Somos humanos e nos
tentamos, temos de estar muito atentos para cuidar da unção que recebemos,
porque ela é um presente de Deus. As disputas pelo poder, que existiram
e existem na Igreja, se devem a nossa condição humana. Mas, nesse
momento, a pessoa deixa de ser eleita para o serviço e se converte em uma
pessoa que escolhe viver como quer e se mistura com o lixo interior.?^
66 Um líder religioso pode ser muito fone, muito firme, mas isso
sem exercer a agressão. Jesus disse que aquele que manda deve ser
como aquele que serve. Para mim, essa ideia é válida para a pessoa
religiosa de qualquer credo. O verdadeiro poder de uma liderança religiosa
vem de seu serviço. Quando deixa de servir, o religioso se transforma
em um mero gestor, em um agente de ONG. O líder religioso compartilha,
sofre, serve a seus irmãos.**
PEDOFILIA
Sé Que o celibato traga como consequência a pedofilia está descartado. Mais
de 70% dos casos de pedofilia se dão no entorno familiar e na vizinhança:
avôs, tios, padrastos e vizinhos. O problema não está vinculado ao
celibato. Se um padre é pedófilo, ele o é antes de ser padre. Agora,
quando isso ocone, jamais se deve fazer vista grossa. Não se pode estar
em uma posição de poder e destruir a vida de outra pessoa. (...) Não
creio em posições que pleiteiam sustentar ceno espírito corporativo
para evitar danos à imagem da instituição. Esta solução creio que
foi proposta certa vez nos Estados Unidos: mudar os padres de
paróquia. Isso e' uma estupidez porque, dessa forma, o padre
leva o problema na bagagem. A reação corporativa leva a tal
consequência, por isso não concordo com essas medidas.
Recentemente, na Irlanda, foram revelados casos após
vinte anos, e o papa disse claramente: 'Tolerância zero
com este crime'. Admiro a valentia e a retidão de Bento
X V I sobre esse assunto.ff
é é A vida crista também é uma espécie de atletismo,
de disputa, de corrida, em que é preciso se desvencilhar
das coisas que nos separam de Deus. Além disso,
quero salientar que uma questão &o demónio e outra
é demonizar as coisas ou as pessoas. O homem está sob
tentação constante, mas não é por isso que temos de demonizá-lo.ff
UNIÃO HOMOSSEXUAL
é é N ã o sejamos ingénuos: não se trata de uma simples luta política.
Pretende-se a destruição do plano de Deus. É uma jogada do pai
da mentira para confundir e enganar os filhos de Deus.ff
veja | 20 DE MARÇO, 2013 | 71
4. Papa 1 A ORDEM RELIGIOSA
A TROPA DE
CHOQUE DA
IGREJA
Fundada no século X V I por Inácio de Loyola, um
ex-militar espanhol, a Companhia de Jesus tem uma
dedicação histórica à propagação da fé. Foi nessa
disciplina missionária que se formou o papa Francisco
í J E R Ô N I M O TEIXEIRA China à África, do Canadá ao Paraguai,
B
os jesuítas — como são chamados os
astaram alguns cartazes espalha- membros da Companhia — levaram a
dos pôr Paris, em outubro de cruz a todos os recantos do planeta. Se o
1534, para lançar a cidade em um espírito orientador da ordem serve como
frenesi de violência religiosa. No pista para a atuação do novo papa. pode-
espírito provocador da Reforma, os pan- se esperar o compromisso missionário de
fletos denunciavam a falsidade da missa propagar e defender a fé católica — e, se
papal, atacando uma das bases doutriná- o esforço no século X V I era fazer frente
rias do catolicismo: a transubstanciação, aos reformadores Lutero e Calvino, ago-
na Eucaristia, do pão e do vinho em carne ra o desafio é conter a sangria que as igre-
e sangue de Jesus. Em resposta, o rei jas neopentecostais têm promovido no
Francisco I conduziu procissões solenes. rebanho católico. Também se poderá pre-
Protestantes foram perseguidos, espanca- ver uma inabalável ortodoxia doutrinária:
dos, mortos. Alguns foram queimados em fundada por um ex-soldado. a Compa-
frente à Catedral de Notre Dame. Pode-se nhia de Jesus exige disciplina férrea e
supor que a tensão que eclodiu nesses obediência absoluta de seus membros.
episódios tenebrosos já estivesse latente Dois dos participantes do encontro
dois meses antes, quando sete compa- em Paris foram consagrados como san-
nheiros de devoção, com idade entre 19 e tos da igreja (Pierre Favre foi apenas
43 anos, se reuniram para uma cerimónia beatificado): os espanhóis Francisco Xa-
simples em uma capela do bairro de vier, um dos possíveis inspiradores do
Montmartre. Mas a reunião se deu na nome do novo papa — ao lado do óbvio
mais disciplinada serenidade: o grupo fez Francisco de Assis —, e Inácio de Loyo-
votos de obediência à Igreja Católica, e la. Missionário por excelência, Xavier
Pierre Favre, o único que já havia sido levou sua pregação a Goa, possessão
ordenado padre, oficiou uma missa. Lan- portuguesa na índia, à China e ao Japão.
çava-se ali a semente de um empreendi- Mais do que a do companheiro Loyola,
mento monumental, que se desenvolveu sua biografia mistura-se a histórias de
nos cinco continentes e atravessou cinco milagres e portentos: um caranguejo le-
séculos até alcançar, na semana passada, ria certa vez lhe devolvido um crucifixo
a consagração superlativa do papado. A que caíra no mar, e consta que o cadáver «
Companhia de Jesus, ordem à qual per- do santo — ele morreu na China, em 1
tence o papa Francisco, dedicou-se sobre- 1552 — não se decompôs ao longo dos E
tudo ao ensino e à propagação da fé. Da quinze meses entre o falecimento e a I
72 | 20 DE MARÇO. 2013 | Veja
5. OBEDIENTE COMO UM CADÁVER
Loyola (em vestes douradas)
em quadro de Rubens: poma
de lança da Comrarreforrna
chegada a Goa. Mas Inácio de Loyola é
o fundador e o grande teórico da Com-
panhia de Jesus. Nascido em 1491, na
juventude ele se dedicou à carreira mili-
tar, abreviada em um combate contra os
franceses, em 1521, em Pamplona,
quando uma bala de canhão dilacerou
suas pernas. Na lenta e dolorosa conva-
lescença, lendo obras devocionais sobre
a vida de Cristo, Loyola decidiu consa-
grar sua vida à fé. Seu empreendimento
caiu nas boas graças do papa Paulo I I I ,
que deu a aprovação canónica à nova
ordem, em 1540. Loyola foi o primeiro
superior-geral dos jesuítas, e nesse pos-
to morreu, em Roma, em 1556. Legou à
ordem os Exercícios Espirituais — uma
série de orações e meditações a ser se-
guidas, com rigor, ao longo de um mês
— e um código de disciplina estrito: o
jesuíta deveria ser obediente "como um
cadáver" (perinde ac cadáver; na fórmu-
la latina). Outra citação célebre do santo
recomenda que. se a Igreja disser que
aquilo que vemos como branco é na ver-
dade preto, se aceite o que a Igreja diz,
por dever de obediência.
O combate ao protestantismo nas-
cente nao estava na ordem imediata de
prioridades de Inácio de Loyola. Os je-
suítas, porém, logo ocuparam a linha de
frente da Contrarreforma. "Nao há hoje
nenhum instrumento erguido por Deus
contra os hereges maior do que sua or-
dem sagrada", dizia Gregório X I I I , papa
de 1572 a 1585. A Companhia também
foi a ponta de lança do catolicismo na
colonização da América. Com ímpeto
aventureiro, embrenhou-se nas matas,
fundou colégios e povoações e conver-
teu povos indígenas reunidos nas suas
Reduções. "Esta terra é nossa empresa",
disse Manuel da Nóbrega, chefe da pri-
meira missão jesuíta no Brasil. Nóbrega
e o companheiro de ordem José de An-
chieta fundaram, em 1554, o colégio do
Planalto de Piratininga, embrião da ci-
dade de São Paulo. Os objetivos religio-
sos dos jesuítas nem sempre coincidiam
com as ambições terrenas dos europeus
que se aventuravam na América selva-
gem. Por se oporem à escravização dos
índios, jesuítas como Nóbrega, Anchieta
veja 120 D E MARÇO, 2013 | 73
6. INIMIGOS NO PODER O marquês de Pombal expulsou os jesuítas de Portugal
(no quadro abaixo, eles são recebidos com fogos na Itália): a Independência da e, j á no século X V I I , Antônio Vieira an-
Companhia era vista como ameaça petas monarquias europeias daram às tunas com os colonos portu-
gueses. Os jesuítas não tinham pruridos
em reconer às armas quando necessário
— na Guena dos Trinta Anos, houve
inacianos que apontaram canhões para
tropas protestantes — , mas, no geral,
acreditavam na propagação da fé antes
pela persuasão do que pela espada. Tam-
bém se dedicavam a entender minima-
mente a cultura dos povos que preten-
diam catequizar: Anchieta aprendeu tu-
pi, e o jesuíta italiano Matteo Ricci,
missionário na China nofimdo século
X V I , foi o primeiro tradutor ocidental de
Confúcio. Houve quem idealizasse essa
propensão intelectual dos inacianos,
vendo aí uma espécie de multiculturalis-
mo avant la leme. Mas o fim último
sempre foi o crescimento da Igreja: Ric-
ci só se dedicou ao pensamento de Con-
fúcio porque viu nele compatibilidades
com o cristianismo; Anchieta e outros
missionários na América só aprenderam
línguas nativas porque isso era necessá-
rio à catequese dos índios. Poderosos,
numerosos, cultos, os jesuítas eram alvo
de muito rancor, dentro e fora da Igreja,
e não estranha que só agora um jesuíta
74 | 20 D E MARÇO. 201.Í | veja
7. Papa m A ORDEM RELIGIOSA
HERÓI CIVILIZADOR
José de Anchieia, um
dos fundadores de São MULTICULTURAIS
Paulo: o jesuíta Jesuítas (de preto)
estudou tupi para na corte de Akbar,
catequizar os índios índia, no século XVI:
ímpeto aventureiro
tenha chegado ao papado. Foram cos- determinação papal, e a Companhia de trema direita do entreguerras, o francês
tumeiramente associados a fantasiosas Jesus seguiu forte e atuante no império Louis Billot, um jesuíta, foi o único car-
conspirações para assassinar monarcas. russo. A reabilitação efetiva dos jesuí- deal do século X X a ser forçado pela
No século XV11I, os inimigos da ordem tas viiiasó em 1814. Igreja à renúncia. Na 11 Guerra, porém,
teriam seu momento de triunfo. Gover- ^QIoje?)sob o comando do superior- houve jesuítas que protegeram judeus e
nante de fato no reinado do débil José geraTSríolfo Nicolas, um espanhol, a foram mortos em campos de concentra-
I . Sebastião José de Carvalho e Melo, Companhia de Jesus é a maior ordem da ção. O credo marxista da Teologia da
futuro marquês de Pombal, considerava Igreja Católica, com cerca de 19000 Libertação teve sua penetração na ordem,
a ordem uma ameaça ao poder central membros em mais de 130 países. No que, no entanto, também abriga conser-
da coroa — e a expulsou de Portugal e mundo todo. administra 180 colégios e vadores como Jorge Mário Bergoglio,
de suas colónias em 1759. Seguiu-se 200 universidades e faculdades (seis no agora papa Francisco. Sob essa aparente
um decreto do mesmo teor na França, Brasil). Em face das forças agressiva- variedade, porém, estão as diretrizes que
em 1764. Em 1773, finalmente, o papa mente temporais dos séculos XTX e XX. o ex-soldado Inácio de Loyola deitou no
Clemente XIV, sob pressão das monar- a Companhia teria reações variadas. Em século X V I : disciplina, educação, ímpe-
quias europeias, extinguiu a ordem. consequência de sua adesão à Action to missionário — prováveis linhas de
Catarina, a Grande, optou por ignorar a Française, malogrado movimento de ex- força do novo papado. •
76 | ao DE MARÇO. 2013 | veja
8. Papa 1 A IGREJA NA POLÍTICA
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E AGORA,
CRISTINA?
Nestor considerava-o seu único verdadeiro opositor.
Cristina herdou o crítico severo. Bergoglio
se tomou papa, sabe muito bem quem são os
Kirchner e não vai esquecer
NATHALIA WATKINS E porém, ele se revelava ainda mais incó- Congresso uma lei do Partido Socialis-
0
A N D R É ELER, DE BUENOS AIRES modo. Em um país onde a política é ta para regulamentar o casamento entre
disputada nas trincheiras, reunia-se fre- homossexuais. De alguns expoentes da
verdadeiro representante da quentemente com os principais líderes oposição, ouvia-se que a iniciativa não
oposição." Foi assim que o ex- da oposição e setores marginalizados passava de uma investida pessoal de
presidente argentino Nestor pelo governo. "O novo papa é o religio- Nestor para atingir seu rival de batina.
Kirchner definiu o arcebispo so mais politizado que poderíamos ter", O confronto entre o cardeal e o kirch-
de Buenos Aires, Jorge Mário Bergoglio diz Julio Burdman, cientista político da nerismo renasce agora com a nomea-
— o agora papa Francisco. Em suas ho- Universidade de Belgrano, em Buenos ção de Bergoglio, apenas protocolar-
milias dominicais na Catedral Metro- Aires. "Ele é metade teólogo, metade mente comemorada por Cristina e j á
politana, Bergoglio mandava mensa- político." As rusgas com o governo muito explicitamente politizada pela
gens ásperas para os governantes na atingiram o ápice entre 2009 e 2010, presidente.
Casa Rosada. Distante das colunas que quando a presidente Cristina Kirchner Como arcebispo da capital, Bergo-
sustentam o frontispício da catedral. e o marido, Nestor, impulsionaram no glio liderou uma campanha nacional
78120 on MARÇO, 20131 veja
9. contra a lei pelo matrimónio homosse- uma carta. Cristina rebateu dizendo 25 de maio para celebrar a independên-
xual, convocando os fiéis a protestar às que "o discurso dos líderes da Igreja cia do país. "Nosso Deus é de todos,
portas do Congresso. Em uma cidade parece do tempo das Cruzadas". mas cuidado que o diabo também chega
conhecida pelo liberalismo de seus A relação com o casal presidencial a todos, aos que usam calças e aos que
costumes e por ser um dos principais já havia se transformado numa guerra usam batina", disse o presidente, em
destinos turísticos da comunidade gay. surda em 2004. Um ano depois da posse uma mais do que explícita referência ao
o cardeal ousou defender princípios de Nestor Kirchner, Bergoglio alertou, adversário. Três anos depois, quando os
que a Igreja considera imutáveis. "Aqui em uma homilia, para os riscos dos agricultores paralisaram as estradas
também está a inveja do Demónio, pe- "anúncios estridentes" e do "exibicio- contra uma lei que aumentava os im-
la qual entrou o pecado no mundo, que nismo", definindo, ainda bem cedo, o postos sobre as exportações, Bergoglio
arteiramente pretende destruir a ima- que viria a ser a essência do governo ar- sentou-se com os trabalhadores para,
gem de Deus: homem e mulher que gentino. Em 2005, Nestor, pouco afeito em seguida, pedir a Cristina que tivesse
recebem a ordem de crescer, se multi- à religião, cancelou sua presença na "um gesto de grandeza" que resolvesse
plicar e dominar a terra", escreveu, em missa que ocorre na catedral todo dia o conflito. Não foi atendido.
veja | 20 DE MARÇO, 2013 | 79
10. EMOÇÃO NA PARÓQUIA ja. A iniciativa, mais o fato de ela ser, seguiu na direção oposta. Há dois me-
Fiéis na Catedral de Buenos Aires, como o novo papa, contrária ao aborto, ses, supostamente com o propósito de
na qual Bergoglio rezava missas, prenunciava uma trégua com o cardeal. encontrar os responsáveis pelo atenta-
celebram a escolha do papa argentino Mas a votação sobre o casamento gay do, ela formalizou com o Irã um acordo
de novo os separou, e um velho assunto cujas condições favorecem muito mais
O episódio marcou a radicalização entrou em pauta para reforçar a discór- o escamoteamento do que o esclareci-
do kirchnerismo e deu início à perse- dia: a relação do governo com a comu- mento dos fatos e a punição dos culpa-
guição ao grupo de comunicações Cla- nidade judaica na Argentina, a maior da dos. Até agora, as investigações apon-
rín, crítico do governo. Em uma nação América Latina. Favorável ao diálogo tam para a autoria do grupo radical liba-
onde a oposição política foi reduzida a entre as crenças, Bergoglio aproximou- nês xiita Hezbollah, financiado pelos
pó, o arcebispo foi uma das poucas vo- se dos rabinos depois do atentado con- iranianos. "Estes últimos dias têm sido
zes que insistiram em incomodar os ou- tra a Associação Mutual Israelita Ar- difíceis para Cristina", diz o cientista
vidos dos Kirchner. Após a morte de gentina (Amia), em 1994, que deixou político argentino Orlando D'Adamo,
Nestor, em 2010. Cristina, católica pra- 85 mortos e mais de 300 feridos no cen- do Centro de Opinião Pública da Uni-
ticante, retomou os contatos com a Igre- tro de Buenos Aires. Cristina Kirchner versidade de Belgrano. "Há duas sema-
80 120 DE MARÇO. 2013 | veja
11. ELE LAVOU AS MÃOS?
A acusação de que o cardeal Bergo-
glio entregou à ditadura militar
argentina dois padres acusados de
nalista Sergio Rubin conta que durante
o regime militar Bergoglio protegeu alu-
nos e deu os próprios documentos de
subversão tem poucos elementos que identidade a um estudante parecido
a sustentam, muitos que a enfraque- com ele para que escapasse pela Trí-
cem e pelo menos um que ajuda a plice Fronteira. Bergoglio nuncafoiacu-
fazer com que a sua discussão seja sado de colaborar com o regime em
obscurecida pela paixão. Em 1976, os nenhum dos inquéritos oficiais. 0 pró-
jesuítas Orlando Yorio e Francisco Jalics prio cardeal, em um relato nunca con-
foram presos e levados para a Escola testado, contou ter persuadido o padre
Superior de Mecânica da Armada, que que rezava missas para o ditador Jorge
de superior mesmo tinha apenas o em- Videla a dizer que estava doente, para
prego detécnicasde tortura. Yorio e Jalics substituí-lo na função e interceder
ficaram seis meses presos, foram tortu- pessoalmente pela libertação dos je-
rados mas escaparam da morte, destino suítas - o que de fato ocorreu. As cir-
de 150 outros religiosos assassinados cunstâncias em que esses fatos se
pelo regime entre 1976 e 1983. passaram ficou conhecida como "a
Jalics, que hoje vive na Alemanha, guerra suja" - e em uma guerra a pri-
relata em um livro que, pouco antes de meira vítima é a verdade. Não é sur-
sua prisão, pediu a "um homem" que presa que essas acusações tenham
fizesse saber aos militares que ele e sido ressuscitadas pouco antes de
Yorio não eram terroristas. Esse homem, Bergoglio ser escolhido papa e tenham
cujo nome ele não revela, teria descum- ganhado corpo depois de sua eleição.
prido a promessa e feito "uma falsa Ele é critico da presidente Cristina Kirch-
denúncia" sobre eles aos militares. A ner, o que para seus fanáticos segui-
conclusão de que esse homem seria dores constitui um pecado mortal.
Bergoglio é de Horácio
Verbistky, um jornalista
que trabalhava ao
mesmotempopara os
esquerdistas e para os
militares. Horácio diz
ter tido acesso a uma
carta que Yorio man-
dara a um amigo antes
de morrer em que ele
acusa Bergoglio.
Alice Oliveira, mi-
litante de direitos hu-
nas. ela perdeu seu maior aliado, Hugo manos e ex-juíza, é
Chavez. Agora viu seu opositor tomar- uma das testemunhas
se papa." isentas que absolvem
Em Roma, a intromissão do novo Bergoglio da acusa-
papa em temas mundanos deve arrefe- ção. Na biografia que
cer — como arrefeceu o poder temporal escreveu sobre o car-
desde a Reforma Protestante, que redu- deal, O Jesuíta, o jor-
ziu os limites do papado na Europa, e o
surgimento de movimentos como o Re- PEDIDO AO GENERAL
nascimento e o Iluminismo, que favore- Bergoglio diz ter
ceram a razão e enfraqueceram os pila- intercedido junto
res do poder divino. Mesmo assim, são a Videla (na foto,
diversos os exemplos de representantes numa missa em 1975)
da Igreja que se imiscuíram no jogo do pelos jesuítas presos
poder nas últimas décadas.
12. Papa B A IGREJA NA POLÍTICA
Pio XTJ, que comandou a Igreja du- e do mundo pós-guerra. Pio X I I soube PODER O futuro papa Pio XII
rante a I I Guerra, foi o exemplo mais que o líder soviético havia se referido a (em 1920, em Berlim), sobre quem
controverso. Por um lado. conseguiu ele com ironia. Ao tomar conhecimento Stalin perguntou: "Quantas
manter-se neutro o suficiente para poupar de que o papa pedira o fim da opressão divisões ele tem?"
Roma de um ataque destruidor. Usando aos católicos, Stalin perguntou: "O papa?
de sua habilidade diplomática, evitou que Quantas divisões (exércitos) ele tem'?" que, por baixo da cortina, a Polónia era o
hospitais, escolas e templos católicos fos- Resposta de Pio X I I : "Ele encontrará mais católico dos países sob o domínio
sem destruídos por tropas nazistas e fas- nossas divisões no céu". dos governos comunistas ateus. A viagem
cistas ao redor da Europa. Contudo, não Os regimes totalitários que Stalin im- abalou o regime e fortaleceu seus oposi-
se furtou a costurar acordos com os regi- plantou à força no Leste Europeu ruiriam tores, como o sindicato Solidariedade.
mes da Alemanha e Itália em torno de nas mãos de outro papa, o polonês João Nascida clandestina, a entidade foi reco-
disputas entre Igreja e estado. O fato de Paulo U. Logo após sua nomeação, ele nhecida meses depois, em negociações
ter resolvido questões administrativas afirmou sua intenção de visitar a Polónia, com o governo. Em um gesto simbólico,
importantes para a instituição nesses paí- até então isolada atrás da Cortina de Fer- o líder do movimento, o operário Lech
ses não o livrou de ser lembrado como o ro. Na ocasião, o presidente soviético Walesa, sacou do bolso uma caneta com
papa que, em nome da defesa dos interes- Leonid Brejnev orientou o Partido Co- o retrato do papa na hora de assinar o do-
ses da Igreja, cruzou os braços diante da munista daquele país a não receber o pa- cumento do sindicato. A relação enne o
morte de milhões de judeus. Saiu-se um pa — sem sucesso. No que se tornou a papa e Walesa, mais tarde eleito presi-
pouco melhor no confronto verbal com viagem mais importante do pontificado dente da República, foi fundamental não
Josef Stalin. Por meio do primeiro-minis- de João Paulo I I , mais de 10 milhões de só para a abertura da Polónia, mas para
tro inglês Winston Churchill, com quem pessoas, quase um terço da população, todo o Leste Europeu. As pregações de
se encontrou após a Conferência de lalta, saíram às ruas para recebê-lo. O compa- João Paulo I I contra o totalitarismo apro-
a qual redefiniu os contornos da Europa recimento das multidões deixou claro ximaram o pontífice dos Estados Unidos
82 | 20 D E MARÇO, 2013 | veja
13. Papa • A IGREJA NA POLÍTICA
GUERRA FRIA João Paulo II
com o presidente Ronald Reagan,
em 1987: contra o comunismo
e o integraram ao tabuleiro da Guerra
Fria. Mais tarde, ajudaram no desmonte
dos países sob a esfera soviética e na ins-
tauração de vários governos democráti-
cos em toda a região.
É cedo para saber quais bandeiras o
papa Francisco vai tomar para si, mas o
mais provável é que os assuntos internos
da Argentina sejam reduzidos à sua de-
vida dimensão. O país vive a euforia de
ser o berço do primeiro papa latíno-ame-
ricano. Na quinta-feira, um jornal porte-
nho anunciou a escolha de Bergoglio
com a manchete "La mano de Dios",
uma referência ao gol irregular feito na
Copa do México, em 1986, por Marado-
na (que agora terá de conviver com mais
alguém lhe fazendo sombra, além de
Lionel Messi).
No dia anterior, o anúncio do papa
argentino havia levado milhares de por-
tenhos a se aglomerar em frente à Cate-
dral de Buenos Aires. A algazarra que se
formou lá podia ser ouvida até da Casa
Rosada. Mesmo assim, só duas horas
depois que as notícias do Vaticano j á ti-
nham corrido o mundo a presidente
Cristina Kirchner divulgou uma carta
parabenizando seu conterrâneo.
Do cumprimento frio—que não men-
cionava nem o nome do cardeal nem o
fato de ele ser argentino —, a presidente
seguiu sem escalas para a provocação.
Disse desejar que, "em sua missão pasto-
ral, ele (o novo papa) carregue uma men-
sagem para que as grandes potências mun-
diais dialoguem. Que as grandes potências
do mundo, que têm armas e poder finan-
ceiro, possam ser finalmente convencidas
de que devem dar atenção aos países emer-
gentes e que elas se comprometam com
um diálogo de civilizações, em que as coi-
sas são resolvidas pela via diplomática e
não pela força". Mais do que uma referên-
cia disfarçada à derrota argentina na dis-
puta com a Inglaterra pelas Ilhas Malvi-
nas, os "cumprimentos" da presidente
soaram como uma tentativa de colocar o
adversário no ringue, e bem perto das cor-
das. Para desgosto de Cristina, porém, o
papa Francisco não deve ceder ao seu cha-
mado. Sua pátria agora é o mundo. A Ar-
gentina terá de esperar. m
COM REPORTAGEM DE T Â M A R A FISCH
14. A visão evolutiva
do aprendizado
A
té Freud, que só pensava... naquilo, reco-
nheceu a descoberta mental como uma im-
portante fonte de prazer para o homem em
"A civilização e seus descontentes". De fa-
to, há poucas atividades mais estimulantes do que
aprender coisas novas, conseguir perceber a luz
onde antes só havia trevas.
O aprendizado ocorre no cérebro. Durante
muitos séculos, o cérebro foi tratado como uma
* cãixa-preta, à qual não podíamos ter acesso di-
í reto, e cujas maquinações só poderiam ser de-
preendidas por meio da observação cuidadosa e
perspicaz do comportamento de pessoas. A
maioria dos profissionais de educação ainda
subscreve a esse paradigma. Sua visão sobre o
funcionamento cerebral é, portanto, formada pe-
las hipóteses não científicas de pensadores da
virada do século X I X para o X X , especialmente
Jean Piaget (1896-1980), Lev Vygotsky (1896-
1934) e Henri Wallon (1879-1962).
Desde essa é p o c a porém, a compreensão que
vas sinapses (as estruturas neuronais que permi-
temos do cérebro fez grandes avanços, e a neuro-
tem a passagem de um sinal químico ou elétrico
ciência está conseguindo ligar habilidades e
entre neurónios vizinhos). É tão impossível en-
comportamentos humanos a áreas e processostender como seres humanos aprendem sem com-
m cerebrais específicos, abandonando o modelopreender o funcionamento do cérebro quanto
/
J
W "caixa-preta" por outro em que o cérebro é per-
querer chegar de um lugar a outro sem saber o
| cebido como um órgão material, que tem umaque são ruas, estradas, rios e pontes. E a maneira
I fisiologia, no qual agem células, neurotransmis-
responsável de buscar esse conhecimento é por
meio da ciência. Por mais
A maneira responsável de buscar conhecimento é por meio da brilhante que seja um obser-
ciência. Por mais brilhante que seja um observador da fase vador da fase avanço da ci-
ignorar todo o
pré-científica,
pré-científica, ignorar todo o avanço da ciência nas últimas ência nas últimas décadas se-
décadas seria não apenas anacrónico como irresponsável ria não apenas anacrónico
como irresponsável.
Um dos insights mais
sores etc. Uma das descobertas que essa ciência importantes desse período de pesquisa é que o
já conseguiu fazer é que, ao aprendermos, mudamos cérebro é, assim como um olho ou braço, fruto
a própria arquitetura física do órgão. Como bem de um processo evolutivo, moldado ao longo de
descreve, no fascinante In Search of Memory, centenas de milhares de anos para aumentar
Eric Kandel — um dos líderes da pesquisa nesse nossas possibilidades de reprodução e sobrevi-
campo, vencedor do Nobel de Medicina por suas vência. Como bem mostra Steven Pinker em
contribuições —. a formação de uma memória de livros como How the Mind Works e The Blank
longo prazo altera nossa rede neuronal em pelo Slate, a ideia de que nosso cérebro é uma tabu-
menos duas maneiras: não só aumenta a força do la rasa cujos conteúdos são preenchidos exclu-
sinal da sinapse na área relevante como cria no- sivamente por processos culturais é equivoca-
94 | 20 DE MARÇO. 2013 | veja
15. HA 2500 ANOS
Escola de Atenas, pintura do
renascentista italiano Rafael:
a Academia de Platão ainda
não tem substituto no ensino
demais e o aprendiz já sabe
a resposta antes de pensar,
não há pensamento nem,
portanto, dopamina. Se ele
é difícil demais e a pessoa
já pressente que não conse-
guirá encontrar a solução, o
cérebro "desliga-se": não
havendo a possibilidade de
dopamina, não vale a pena
gastar o maquinário neural.
Mas o que é, em termos
neurológicos, pensar? Pen-
sar é combinar informações
de maneira diferente. Essas
informações podem vir do
ambiente externo e/ou da
memória de longo prazo. A
memória de longo prazo é
aquela que armazena infor-
mações e processos que es-
tão fora da nossa consciên-
cia imediata. A tabuada, por
da. Entre os muitos achados dessa visão evolu- exemplo: ela não estava na sua mente antes de eu
tiva está a descoberta de que o cérebro evita o mencioná-la e desaparecerá de novo em alguns
pensar. Pensar é uma atividade dispendiosa, minutos, mas, sempre que você precisar fazer
tanto em termos de tempo como de energia, e uma multiplicação, ela virá, facilmente, à mente.
sempre que possível o cérebro substitui o pen- O local do cérebro em que esse novo processa-
samento por um procedimento automático gra- mento de informações se dá é a memória opera-
vado na memória. (Já imaginou como seria im- cional (ou "de trabalho", do inglês working me-
possível, por exemplo, dirigir um carro, se a mory). A memória operacional tem capacidade
cada esquina precisássemos pensar em como limitada — e, quanto mais perto ela estiver de seu
fazer uma curva, como indicar aos outros mo- limite, mais difícil vai ficando o pensar. Sua ca-
toristas que estamos dobrando, calcular o ân- pacidade é determinada geneticamente. Pensar
gulo certo da virada do volante, pensar onde bem, portanto, envolve quatro variáveis: infor-
está a alavanca do pisca-alerta etc?) mações externas, do ambiente; fatos na memória
Como mostra o psicólogo cognitivo Daniel de longo prazo; procedimentos na memória de
Willingham em Why Don 7 Siudenrs Like School?, longo prazo; e o tamanho do espaço disponível
o cérebro pensa em duas situações: quando é es- na memória operacional.
tritamente necessário (não há procedimento na A primeira implicação dessa descoberta é
memória que nos ajude) e quando nós acredita- que o domínio de fatos não apenas ajuda no ato
mos que seremos recompensados por resolver de pensar: ele é indispensável. Como mostra
determinado problema. A recompensa? Peque- Willingham, décadas de pesquisa em ciência
nas doses de dopamina, um poderoso neurotrans- cognitiva revelam que, se você não domina as in-
missor associado aos circuitos de prazer do cére- formações básicas de determinado assunto, não
bro, liberado quando se resolve uma questão (e conseguirá ter um raciocínio analítico/crítico a
também durante o consumo de cocaína). Para seu respeito. Até a leitura se torna mais fácil se o
que a dopamina seja liberada, o fundamental é cérebro j á conhece o assunto em questão: a pes-
calibrar a dificuldade do problema. Se ele é fácil quisa mostra que uma pessoa com ótima habili-
veja | 20 DE MARÇO. 2013 | 95