O documento descreve as observações do autor durante uma viagem à Ucrânia, começando em Kiev e terminando em Odessa. Ele descreve as marcas ainda visíveis da revolução de Maidan em Kiev e o legado ainda presente da era soviética no dia-a-dia dos ucranianos. Ele também discute as eleições gregas e seu significado para a liberdade e soberania na União Europeia.
1. PÚBLICO,QUA7JAN2015 | 47
DR
De Kiev a Odessa
na viragem do ano
Eleições
e liberdade
A
s marcas dos acontecimentos
de há cerca de um ano na Praça
Maidan são ainda visíveis na
capital da Ucrânia. Mas se é
fácil notar os efeitos do passado
recente, o legado de setenta
anos de regime soviético (1922-
1991) continua igualmente
bem vivo no quotidiano dos
ucranianos, embora à mistura
com as tendências alucinantes do mundo
globalizado do século XXI.
Um “minibus” mais ou menos oficial
levou-nos do aeroporto até um daqueles
bairros periféricos de construção retilínea,
típica do período estalinista e hoje em
processo de degradação. Enquanto
aguardamos o encontro com o nosso
contacto, ocorre o primeiro sobressalto:
de mochila às costas e com a mala de
viagem ao lado (ainda com a etiqueta da Air
France), logo senti um pequeno encosto. Ao
virar-me, reparei que um jovem apanhava
do chão o que me pareceu ser um rolo de
notas de 100 dólares. Como não falo russo
nem ucraniano, foi a minha companheira
que argumentou e por certo travou um
desenlace que poderia ter sido grave. O
gesto do jovem, bem vestido, pretendia
simular generosidade, já que me interpelou
perguntando se aquele dinheiro era
meu. Mas, como de imediato ficou claro,
tratava-se naturalmente de uma manobra
de diversão de um pequeno grupo de
meliantes para apanhar mais um turista
tolo ou distraído.
Passado o susto, seguimos por caminhos
esconsos nos acessos ao bairro. A lama
cola-se aos carros ao ponto de esconder
por completo as matrículas. Suponho que
seja proibido, mas não importa, porque
o cenário revela um padrão. Ao subir no
elevador até ao 13.º andar com a nossa
anfitriã, senti-me num cenário próprio da
era de Estaline ou Brejnev. Os solavancos,
a dimensão ampla, o chão sujo, a escassa
iluminação, o intercomunicador do
tempo da II Guerra e todo o ambiente na
entrada daquele edifício me conduziu
ao passado. Fragmentos de um mundo,
onde, segundo algumas opiniões, “apesar
de tudo, as coisas funcionavam” (ou
pareciam funcionar). Muita gente ainda
recorda que naquela época a vida era mais
previsível e havia menos corrupção (ou
estava mais escondida?). Porém, o outro
lado da aparente segurança — isso também
não foi esquecido — era o excesso de zelo
de funcionários e o medo instalado em
cada família, em cada apartamento destes
mesmos prédios, porque as paredes tinham
ouvidos e uma conversa que levantasse
suspeitas podia resultar no desaparecimento
silencioso da família inteira. Nos tempos do
A
senhora Merkel e o senhor
Schäuble não podem impor
à Europa uma doutrina de
soberania limitada semelhante
àquela que Brejnev instituiu
para os países do Leste
europeu depois da Primavera
de Praga em 1968 e da invasão
da então Checoslováquia
pelos blindados do Pacto de
Varsóvia. É isso que está em causa nas
eleições que vão disputar-se na Grécia,
berço da democracia e da civilização
europeia. Um problema de liberdade: os
eleitores gregos têm o direito de decidir
livremente sem chantagens nem ameaças.
Mas não é só um problema de liberdade
para a Grécia. Está em causa também uma
concepção da Europa, a liberdade e a
soberania dos países da União Europeia.
Ou uma Europa entendida como União
entre Estados soberanos e iguais, ou uma
Europa diminuída e pervertida, com um
país dominante
e uma Comissão
Europeia submissa
a ditarem as regras
e a decidirem o que
cada país pode ou
não pode fazer.
Uma tal Europa
é um atentado à
liberdade e uma
nova forma de
autoritarismo. Por
isso as eleições
gregas são tão
importantes. Não
se trata de ser por
ou contra o Syriza,
mas de ser por ou
contra o direito de os
gregos escolherem
quem muito bem
entenderem. Uma
ameaça a este direito
dos eleitores gregos
é uma ameaça
à liberdade e à
soberania de todos
os povos da União
Europeia.
Nem só com
tanques se invade um país e se mata uma
Primavera. Quem coloca os mercados acima
dos Estados e quem faz chantagem sobre o
sentido de votos dos eleitores gregos está a
invadir a Grécia e está a invadir-nos a todos
nós. Nas eleições gregas, não vai apenas
decidir-se o futuro político próximo da
Grécia. Vai definir-se o futuro da liberdade e
da democracia na Europa.
Fundador do PS
Gulag, o terror pesava nos dias seguintes
em todo o bairro, com a substituição
repentina de vizinhos e as trocas de olhares
silenciados pelo medo coletivo. Ninguém
dizia nada. Os testemunhos de alguns
residentes mais idosos, com quem mais
tarde contactei, confirmaram-no. Mas, ao
subir neste elevador degradado, tais relatos
misturam-se com a memória da literatura de
Kravchenko e Soljenitsin, que nos legaram
os primeiros testemunhos do que era
realmente o “paraíso socialista” e o mundo
soviético.
A Praça Maidan está agora limpa de
destroços da violência recente. Na mesma
subida onde os disparos de alegados
mercenários ceifaram cerca de cem vidas
num único dia, está exposto um memorial
dedicado às vítimas. Nele se alinham os
rostos daqueles jovens, a preto e branco, por
entre cravos vermelhos, numa simplicidade
tocante. O largo principal está decorado
com centenas de velas acesas, desenhando
o símbolo da bandeira nacional do país
e exibindo fotos gigantes dos momentos
mais intensos da “revolução do Maidan”.
Porém, o clima de consternação não deixa
de albergar o oportunismo de alguns, que
tentam aproveitar-se
da solenidade para
angariar “apoio” a
um suposto familiar
doente ou vítima dos
ataques atribuídos
a Putin. Uma amiga
assumidamente
nacionalista
interpela um
dos jovens que
se passeiam
com caixinhas
improvisadas,
penduradas ao
pescoço, para
o peditório de
apoio às famílias
das imaginárias
vítimas: “Mostra-
me a identificação!”
A seguir faz
telefonemas,
dirige-se à polícia:
Aosubirno
elevadoraté
ao13.ºandar,
senti-me
numcenário
própriodaera
deEstalineou
Brejnev
Naseleições
gregas,não
vaiapenas
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futuropolítico
próximoda
Grécia.Vai
definir-se
ofuturoda
liberdadeeda
democraciana
Europa
“Que vergonha, tenho aqui visitantes da
Europa a assistir a este oportunismo. O que
faz a polícia?”. O certo é que, depois de
muita insistência, os militares de serviço
foram identificar os suspeitos, vendo-se,
na sequência, alguns a esgueirarem-se
sorrateiros. Pode ser uma reação inócua,
mas são estes gestos que, aqui ou noutro
lugar, ajudam a construir a cidadania
democrática.
O comboio modelo soviético onde viajei
entre Chercassy e Odessa parece sugerir que
o tempo parou nos anos cinquenta do século
passado. Carruagens-cama com quatro
lugares em cada divisão, equipamentos
asseados, ambiente bem aquecido,
lençóis e serviço de chá assegurados pela
funcionária (uma em cada carruagem),
é mais uma peça “intacta” do período
soviético. Porém, tanto na tecnologia como
no modo de funcionamento, este fragmento
de “socialismo” também me fez viajar
no tempo até ao Portugal profundo do
período salazarista. Lá como cá, as rotinas
da época escondiam a violência por detrás
da fachada. O casal que nos acompanhou
numa parte do percurso contou histórias,
falou de política (um ponto em que
certamente as coisas mudaram muito).
Mostraram-se críticos de Putin e da política
da Rússia, embora o homem (cerca de 40
anos, operário da construção civil) trabalhe
em Moscovo, onde o salário é melhor. Na
Rússia, garantiu-nos, nunca revela a sua
opinião sobre tais matérias. Parece ser
uma tradição desta linha férrea: viagens
longas durante a noite podem suscitar todo
o tipo de conversas nos encontros casuais
entre passageiros. Tal como entram, saem,
cumprimentando-se, sem sequer revelarem
os nomes.
Chegados a Odessa, o nevão revelou-se
bem mais intenso do que esperávamos.
Mas o espírito natalício conjugado com
o humor típico dos “odessitas” ganham
outro colorido no fundo branco das amplas
avenidas da cidade, e até o caos do trânsito
no último dia do ano é encarado com um
sorriso condescendente.
Professor da Faculdade de Economia e
investigador do Centro de Estudos Sociais
DebateUcrânia DebateGréciaeUniãoEuropeia
ElísioEstanque ManuelAlegre