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Pedaços


Sofia Duarte
Olhos que se fecham, ouvindo os sons
                                   que ecoam dentro de nós. Não são eles que
                                   nos devolvem a paixão de momentos passados
                                   e momentos criados? Melodias que vão
                                   acalentando cá dentro, como se dissessem que
                                   cuidam de nós, que nunca permitirão que nós
                                   deixemos de sentir esta grande paixão pelo
                                   que fazemos, pelo dom que temos. Paixões
                                   essas que nos dão sentido à vida, que nos
                                   fazem sermos realmente quem somos. Todos
                                   somos um pouco de todas as melodias da vida…
                                   Amores, desamores, mágoas… São tantas as
                                   coisas que nos fazem gritar cá dentro, que nos
                                   faz sangrar até ao mais íntimo. Por vezes
                                   conseguem até matar, de tanto que fervem cá
                                   dentro. Mas são tantas as coisas que
                                   sentimos, tantas as coisas que fazemos, tantas
as coisas que amamos e que temos paixão que muitas vezes apenas pensamos no que
queríamos ter, não olhando à nossa volta, não vendo que o que mais queremos está
muitas vezes tão perto.

     Tantos altos e baixos, tantas sensações… Um turbilhão de emoções…
I.   O Início.

     Numa noite como tantas outras, em que uma saída normal não se tornaria tão
normal assim. Jamais haveria tal acontecer na vida de Salvatore, um simples mortal
que sentia o mundo apenas quando se sentia em casa, não num habitual lar em que
tudo nos pertence e nos faz sentir donos da nossa própria vida, mas num lugar que
nunca o deixava voltar a ter vontade de jamais esperar. Não seria de esperar, nem de
alguém pensar em tal lugar para se sentir realmente verdadeiro, ficar preenchido por
dentro e voltar à mundana vida que esta humanidade nos dá, era um local de
esperanças e desesperos de quem nunca voltará a deixar de sentir a perda. Mas ele
perdia-se por dentro, divagava pelos vários momentos da sua vida e de todas as
vidas que continuavam a esperar chegarem ao final, ou seria o inicio?

     Inconscientemente, na luz que lhe acalentava cada poro da sua humilde vida,
nunca imaginaria que pudesse ver tal tormento. Chamas iluminando a noite, onde as
estrelas da noite não vieram e as nuvens das tormentas teimavam a permanecer e a
ceifar cada brotar de vida circundante, saíam do céu como se quisessem gritar ao
mundo as verdades que preenchiam cada pecado praticado por todos. Salvatore
avistou essas chamas que começavam a varrer a cidade, matando cada pessoa em
que caísse. Multidões corriam em busca de protecção, procuravam o lugar que
Salvatore chamava paz, corriam em busca da vida, poupando a sua. Muitos iam
sendo atingidos, muitos não conseguiam, mas Salvatore tentava, tentava ajudar…
Os gemidos de dor e de mágoa iam aumentando, o medo das chamas os atingirem
antes que estas cessassem fazia-nos gemer e pedir amparo, corriam e apenas
pensavam na sua vida, ultrapassando muitos que já não conseguiam avançar mais,
esmagando-os como se pequenos ramos fossem.

     Todos corriam, todos gritavam de medo e de dor, uns por avistarem as chamas
a vir em sua direcção, outros ao ver o sofrimento que iriam acabar por ter…
Salvatore também temia pela sua vida, mas ao ver uma pequena menina, decidiu
correr para a resgatar. Tinha uma cara tão apavorada, cheia de medo, chorava num
canto, tapando a cara, não conseguindo ver nada, desejando que seus pais
estivessem bem… Como poderia salvá-la se nem sabia se ele estaria a salvo? Não
pensou mais, ele pressentia que ela merecia ser salva, que ele poderia dar a sua vida
pela dela…

     Quando se aproximou e pegou-a ao colo, viu que ela trazia um coração, um
pedaço de metal em forma de coração, um simples coraçãozinho que lhe punha a vida
em risco. Depressa tirou o colar de seu pescoço, mas o raio já os estava a atingir,
atingindo-o no braço, mas a única coisa que pensava era em tirar aquela menina dali.
Tentou levá-la até à campa de sua mãe, onde se sentia sempre em paz, para que ela
o ajudasse a voltar a ter forças e puder salvar a menina. Mas depressa tudo se
apagou…

     As chamas finalmente cessaram, no centro da cidade havia um mar de corpos
queimados, vários eram aqueles que tinham expressões de terror. O cheiro era
nauseabundo e alguns corpos tinham sido esmagados, deixando todo o interior
dilacerado… Vários animais estavam do mesmo modo, queimados ou esmagados pela
angústia anteriormente vivida e que apenas deixou um rasto de morte.

     Salvatore não sabia como tinha chegado à cidade, apenas se lembrava de
estar a suportar aquela menina. Decidiu ir a caminho do único lugar que tinha
memória antes de tudo se ter apagado. Não sabia como estava vivo e desejava saber
se algo ou alguém tivesse conseguido.

     A cidade ainda era distante de sua casa, que se encontrava ao lado do
cemitério. Há vários anos que era vizinho do coveiro, agora era seu filho que lá
trabalhava pois o seu amigo Henry já lá tinha cinquenta anos, mais três que os seus.
Lembrava-se do dia em que o tinha conhecido, depois de ter regressado ao local
onde sua mãe nascera, antes de se mudar com o seu pai para Roma, depois de sua
mãe ter morrido.

     Inicialmente Roma fascinava-o, tentara ser artista, mas em vão pois de artes só
sabia apreciar. Depois de muitas tentativas para que o deixassem aprender, acabou
por não ver nada nele que realmente fosse artístico. Não tinha vivido o suficiente
para querer pintar, ou não tinha vontade de o fazer… Só mesmo noutra vida é que
poderia ter a sorte de calhar num corpo que tivesse a criatividade e o sonho que
havia perdido à muito.
Depressa as suas divagações esvoaçaram, focando-se num arvoredo que
parecia mexer-se. Alguém teria escapado e ficando assim protegido e ter-se
escapado das chamas? Não sabia como tinha escapado, pois não se lembrava de
mais nada depois do apagão, nem fazia a mínima ideia de como tinha chegado ao
centro da cidade… Mas estaria muito feliz por ter alguém que se tivesse salvado
daquela tão abaladora tormenta. Ia-se aproximando lentamente pois não sabia o que
estava naquele local a mexer-se.

      Para seu espanto, era apenas um pequeno gato que estava dormitando entre o
arvoredo, parecendo não notar nada do que se tinha passado anteriormente.
Apenas ia dormindo o seu sono profundo e talvez sonhava com muito sol enquanto
brincava com tudo o que o rodeava, não sentindo qualquer coisa que viesse do
mundo exterior deste sonho tão pacífico como os dias anteriores. Era tão bom que
todos os momentos fossem apenas um sonho dele, que acordasse deste terrível
pesadelo… Pena que o que via e cheirava parecia real demais para apenas um sonho,
nas o quanto desejava que disso se tratasse!

      Seu pêlo era tão negro, tão brilhante como a lua que sobre eles brilhava…
Esperava que houvesse alguém que tivesse sobrevivido como eles, alguém que lhe
pudesse acordar e deixar que ele parasse de procurar outras vidas. Era curioso,
tinha voltado para fugir de si mesmo e acabara novamente como tinha chegado: com
esperança de que pudesse ser ele mesmo e acabara novamente com ele próprio,
novamente procurando…

      Seria ironia se não houvesse tal acontecimento, ele acabara com vontade de
fugir de tudo, sua vida nunca teria paz? Desejava ter alguém ao seu lado, ser
compreendido e amado, amar e observar alguém… Tinha encontrado amigos
maravilhosos, finalmente tinha-se sentido bem mas tudo se acabou após sete anos
de felicidade… Não podia voltar a ter alguém, iria voltar a destruir essas vidas,
voltaria a sentir-se só e pior, causar a infelicidade ao outros.

      Pelo menos tinha este gatinho que seria a sua companhia… Queria mudar esta
cidade que fora destruída, mas primeiro iria procurar pelos seus amigos, por aquela
rapariguinha que tentara salvar antes de tudo se ter apagado.
Quanto mais se aproximava, aqueles corpos angustiosos mais o torturavam…
Não sabia o que poderia ver quando chegasse perto de sua casa, mas nada o
confortava… De certeza que não iria gostar nada de ver o seu querido amigo tão
chamuscado como os outros, poderia suportar tudo se ele não tivesse no mesmo
estado que os outros. Ia caminhando como que ia para um precipício, esperando que
alguém o arrancasse deste terror que lhe ia quebrando cada pedaço do seu interior,
deixando-o totalmente partido na sua solidão.

     Quando chegara, Henry fora o seu melhor amigo, ele o levou e deixou que ele
não voltasse a divagar por entre a neblina. Desejava que ele estivesse agora ao seu
lado para o acompanhar e dizer-lhe que tudo ficaria bem, mesmo que não fosse assim
que ia acontecer.

     Seus olhos brotaram lágrimas, deparando-se com o seu amigo encostado
junto de uma fonte, fechou os olhos para parar com esta tortura. Seu amigo estava
quase irreconhecível, seu peito estava aberto e em volta dele havia um rio de
sangue… Parecia ter sido o ultimo jantar de um lobo que estava deitado mais à frente.
Salvatore aproximou-se de seu amigo e tocou-lhe na face, as lágrimas percorriam
aquela pele amarela, o coração dele estava tão estilhaçado como o do seu amigo,
que tinha sido arrancado por aquele lobo. Ele abraçava-o, esperava que o
acordassem e lhe dissessem que tudo estava bem, que não se tinha passado dum
mau sonho, mas o pesadelo tremendo teimava em continuar torturando e quebrando
cada parte do seu interior.

     Levantou-se, não podia fazer nada quanto ao seu amigo, ele estava com o
olhar apontando misericórdia, pedindo que tudo não se passasse de um sonho, tal
como Salvatore. Se pudesse… Ele queria arrancar suas entranhas, gritar com
todas as suas forças, queria deixar de viver e dedicar-se apenas a devolver os
pedaços que faltavam à sua vida. A sua solidão não vinha de toda esta destruição,
ela perseguia-o e fustigava todos os que a tentassem afastar dele.

     Suas lágrimas nunca cessariam, seu coração despedaçado iria sangrar e
chorar para todo o sempre. Ninguém merecia o que ele tinha feito, Henry não
merecia perder a sua vida apenas por sua culpa. Sim, a culpa era toda dele, ele não
tinha o direito de entrar na vida das outras pessoas e arrancar-lhes a deles. Sentia
que a culpa era toda dele, todo aquele tormento se devia à sua paz que aquela
cidade lhe provocava.

     Queria ver sua mãe, ela não estava viva mas estava sempre dentro dele, bem
como agora os seus amigos que agora estavam mortos e queimados. Dava seus
passos como se caminhasse para a sua morte, sua melodiosa cerimónia para o seu
fim, não iria continuar a deixar que quem o rodeava sofresse por ele. Por essa mesma
razão ia fazer o melhor para todos, o melhor para ele…

     O cheiro dos corpos que ia ultrapassando, toda aquela destruição já não lhe
incomodava, aquele terror todo já não lhe dava medo, queria que tudo fosse rápido e
sem grandes cerimonias, era o melhor… Seu corpo parou, seu sangue congelou e
não consegui dar mais nenhum passo. Como seria possível? Devia de ser um
pequeno pesadelo com certeza! Não havia qualquer possibilidade de ele estar ali, ao
pé da menina que tentara salvar, tão morto quanto ela. Via seu corpo mas sentia-se
vivo, conseguia respirar e mexer-se enquanto tocava em qualquer objecto! Como é
que o seu corpo estava ali?

     Observou que aquele gato que tinha pegado ao colo o tinha seguido, se ele o
via era porque permanecia vivo, mas como? Quando o gato começou a mover-se
Salvatore não o seguiu, estava congelado nos seus pensamentos e naquela
angústia. Afinal todos tinham morrido, mas então porque ele estava ali e aqui ao
mesmo tempo? Seria um sonho, só podia ser um sonho…

     O gato agora andava às voltas, parecia querer mostrar algo… Ele parecia que
sabia a resposta para todas aquelas perguntas, que sabia a razão daquele
sofrimento todo. Seus pés moviam-se para se aproximarem do gato, a busca para
todas as respostas parecia estar a acabar. Tinha na sua mão aquele colar que tinha
tirado da menina, na sua mão morta… Levantou a sua mão, aquela que tinha tocado
em Henry, ainda um pouco ensanguentada, limpou-a e viu que tinha a marca daquele
colar na mão que agora tinha… Reparou numa poça de água que estava lá perto e
não se reconhecia, o seu rosto de quarenta e sete anos estava naquele homem que
tinha morrido, quem era ele agora? Perguntou isso ao gato, mas apenas o viu a
deitar-se ao lado daquela mão que sustentava o colar.

     Voltou-se novamente para a água, aparentava ter vinte e poucos anos e seus
olhos eram de um mar penetrante, um misto de azul e verde, um misto de vida e de luz.
Seu cabelo era cor de terra molhada, como se tivesse surgido vida de uma pequena
semente plantada, e ao mesmo tempo solto e revolto, esvoaçando pelo vento que
despenteava seus cabelos. Salvatore não se reconhecia naquele corpo, seus lábios
estavam tensos, como de quem quisesse descobrir toda a verdade.

     Sua pele era branca como o luar, nascendo de novo à vida, num novo ciclo,
numa nova era… Não compreendia como se tinha tornado assim nem como tinha
aquele colar marcado na sua nova pele. O colar! Como não tinha ainda reparado!
Tudo tinha começado com aquele colar… Decidiu pegar nele, mas quando o fez
tudo ficou branco…
II. Nova vida.

      Custava-me a crer que minha vida se iria resumir a isto, uma sombra deitada
num jardim a olhar os sinais da noite… Não sabia o que iria acontecer nesta nova
fase, mas Emma Peterson não iria jamais desistir! Era o meu primeiro dia de trabalho
depois do estágio, agora teria de enfrentar uns quantos génios que teria de tratar
como reis da Sibéria, caso assim o desejassem… Seria uma experiência totalmente
nova nesta na sua nova vida.

      Não sabia se o que desejava era mesmo ficar lá como interna, talvez ficasse tão
doida quanto eles, mas queria arriscar. Conhecer todos os estados do ser humano
era um objectivo que tinha desde pequena… Adorava perguntar aos meus pais o que
eles pensavam, quase que seria uma psiquiatra deles se não me tivessem explicado
que tudo o que agora penso viria com o tempo, que teria bastante tempo para
entender o mundo dos homens. Na realidade, por mais que me custe, nunca chegou a
acontecer…

      A humanidade é tão complexa e tão pragmática que, enquanto age duma
forma, vai deixando seus pensamentos só para si. Detestava isso quando era
pequena, tudo o que me escondessem apenas me deixava chateada com isto que é
ser-se civilizado.

      Talvez por essa razão agora tinha aceitado esta proposta de emprego, porque
as pessoas com quem eu iria trabalhar diziam o que realmente pensavam e sentiam,
apesar de não estarem conscientes da realidade.

      Toda a equipa me recebeu com muita amabilidade, mas o que realmente me
preocupa são as pessoas que irão desenvolver-se comigo, essas realmente ainda
eram uma grande dúvida neste meu trabalho. Já pouco falta para que os conheça a
todos, gostava que tivesse capacidade para os ajudar, já que não me posso ajudar a
mim… Eu sempre acreditei que iria conseguir, e vou conseguir, disso não tenho
qualquer dúvida! Eu quero acreditar que vou estar tão bem quanto os que vou
tentar ajudar, deixando de lado tudo o que se anda a passar cá dentro… Apenas me
mantendo concentrada nas soluções para quem me rodeia.
Agora que chegara a hora de conhecer todos aqueles que apenas conheço de
ficha, não me parecendo nenhum difícil de conviver… Sim, era psiquiatra e trabalhava
num manicómio, ou ia trabalhar… É que ainda não comecei, e estas dúvidas vão
ficando. Será que iriam aceitar que ela passasse a tratar deles em vez do tão
honroso doutor Humbert? Ficava mais descansada sabendo que ele a
acompanharia até que tivesse total confiança nos seus novos clientes… Nada
comparado ao seu estágio em que, apesar de não estarem emocionalmente bem,
continuavam no mundo real.

     Era essa a razão de agora estar sem qualquer tipo de sono, porque não
parava de pensar nesse estágio que me custou mais do que uns meses de vida… Não
parava de pensar, de sentir e acabei por sair dum estágio apenas com a
possibilidade de trabalhar para esquecer. Estes pensamentos estão a dar cabo da
minha cabeça! Foca-te, por favor foca-te no novo trabalho que tens amanhã! A
minha cabeça quando lateja me deixa estas noites sem dormir, oxalá pudesse
esquecer do que se passa cá dentro! Tinha de me recolher e tentar adormecer,
amanhã teria de parecer a mais segura possível.




     Minhas pálpebras sentiram um foco de luz, aquecendo-as e ardendo-me os
olhos enquanto os abria. Apesar de me ter deitado tinha passado a noite toda a
navegar pela enorme tempestade que teimava em manter-me à deriva em meus
pensamentos.

     Por mais que eu quisesse que tudo não passasse de um momento mau, já parte
do passado, por mais que andasse com a vida para a frente, jamais iria querer reviver
estes momentos. Por mais bons que fossem, por mais perfeitos, agora latejavam na
minha mente e permaneciam lá. Esperando puderem voltar….

     Agora era a hora de seguir em frente, deixar bem arrumado toda esta noite e
esperar que na seguinte fosse tudo mais fácil, assim esperava todos os dias, assim
um dia ia acontecer. Agora era a hora de me preparar para ajudar, para fazer alguém
bem consigo próprio.
Estavam todos à minha espera, preparados para a mudança… Foi o que
pensei quando eles me olharam enquanto entrava na sala de convívio deles. Eles
esperavam por alguém que nunca conheceram, mas continuavam com uma expressão
serena como se soubessem que eu estaria ali apenas para ajudar. As apresentações
foram feitas de diferentes modos, cada caso tinha a sua forma de aproximação.
Talvez porque a primeira impressão era forte pois estariam ligados a mim e eu a eles
bastante tempo, caso eu conseguisse ajudá-los da melhor forma possível. Não me
iria manter cá caso sentisse que não fazia parte da vida deles, que eles sabiam que eu
estava ao seu lado para os ajudar.

     Mas nunca pensei em ver Kate, ou Katie, como ela desejava que lhe chamasse,
tão realista. Creio que se a visse em qualquer outra parte nunca chegaria a pensar
nela como uma doente. Mas cada caso era um caso, tal como o doutor Humbert
referiu antes que entrássemos para que eu os conhecesse: “Por mais duro que fosse
ver uma pessoa mentalmente desgastada, tínhamos de ter a noção de que essa
pessoa acreditava na sua realidade”.

     Mas eu não sabia bem porque ela me parecia tão saudável e plausível quanto
eu, e algo me dizia que iria ter muito gosto em trabalhar com ela, seria uma experiência
bastante importante para o meu desenvolvimento intelectual e, apesar de tudo, para
a minha forma de ver o mundo. Era uma espécie de sexto sentido, ela me dizia algo e
eu não percebia, talvez com o tempo soubesse o que aquele olhar negro me queria
dizer… Seria por ter uma filha ou neta parecida comigo? Teria algo que a marcasse
tanto? Parecia não estar ali, mas ao mesmo tempo estava pois nada do que o doutor
falava ela parecia vacilar na resposta. Talvez seja uma experiência que desejava ter,
saber e conhecer alguém assim tão bem que nunca me pudesse dizer e pensar algo
que era completamente o oposto.

     Estava desejosa de puder falar com ela, saber tudo o que ela tem lá dentro, as
vidas que ela já viveu (porque não me poderia esquecer que ela estava lá porque vivia
duas vidas, pelo que era estranho ter esta pequena sensação que estava agora a
vivenciar) e entender o porquê de ela estar assim, podendo assim ajudá-la a
ultrapassar tudo isto, voltando para as pessoas que a amam.




     Já se tinham passado umas horas depois da minha primeira visita ao meu novo
local de trabalho, Humbert deixou-me em liberdade durante a tarde para que
pudesse estudar as reacções que eles tinham de mim. Também fez questão que eu
saísse de lá, pois não gostara nada da minha cara de quem a noite se tinha tornado
tão longa como o dia. Talvez ele tivesse reparado na enorme questão que estava
passando por mim adentro, tornando tudo numa enorme tempestade, não fosse eu
exagerar sempre…

     Por isso decidi vir para aqui, não há nada melhor do que a praia… Ainda por
cima fica perto da minha nova casa, junto ao meu local de trabalho para que esteja
sempre perto dos meus pacientes… Agora que pensava nisso, devia ser complicado
para eles que o seu psiquiatra duma vida fosse embora. Apesar de lhes prometer
que nunca os abandonaria, não seria o mesmo que estar sempre ao lado deles
sempre que precisassem e isso pesava muito em mim. Ainda pesa, apesar dele me
dizer que tudo virá com o tempo… Nem tudo vem com o tempo, mas eu vou esperar
que esta não seja uma excepção! Quero mesmo ajudá-los da melhor forma.

     Apesar de ser Primavera o oceano permanecia fresco, podendo assim
congelar os meus pensamentos na sensação da imensidão da água batendo nas
minhas pernas, mudando a temperatura que me toca na pele… Subindo, subindo,
deixando-me vaguear pelos pensamentos que se vão diluindo nesta sensação… Não
tirei a roupa, nem tinha intenção de entrar tanto, mas estava a fazer-me tão bem…

     Senti-me a ser puxada de volta, voltando os pensamentos, voltando a tentar
não pensar nisso. Não, não queria voltar para tudo de novo! Levantei-me para voltar
para a água, mas algo me agarrou… Só ao virar-me é que soube a causa desta volta à
praia, tinha sido um homem que me tinha tirado de lá. Senti-me furiosa e tentei tirar o
meu braço da sua mão que se mantinha firme, sem qualquer movimento por mais que
eu tentasse me libertar. Estava frustrada, chateada e ofuscada com toda esta
mudança repentina. Sentia-me tão bem na água fresca do mar, estava tão bem até
que este homem me fez o favor de me tirar de um bom momento.

     E a forma como ele estava a olhar para mim ainda me metia mais furiosa,
parecia que eu era uma maluca que estava a tentar matar-me, talvez era mesmo isso
que agora passava pela sua cabeça… Não conseguia entender muito bem, aqueles
olhos me estavam a deixar totalmente enervada, quem era ele para me tocar desta
maneira como se fosse uma doida! Mas não saíam palavras da minha boca,
permanecia imóvel, esperando que ele me largasse o braço para que pudesse voltar
para casa. Sim, porque com certeza ele não iria permitir que eu voltasse para a água
e isso revoltava-me.

     Sim, ia voltar agora mesmo para minha casa. Mas então porque é que não me
mexia? Talvez estivesse meia atordoada de ter acabado de sair da água
hipnotizante, porque eu estava hipnotizada neste momento, devia ser mesmo da
água. Sua mão largou o meu braço e depressa ele se foi embora, sem qualquer
palavra. Mas já não pensava que ela se fosse matar? Talvez tenha entendido isso
quando parei de me tentar libertar. Mas agora era tempo de voltar para casa, o meu
estômago já o confirmava, era hora de jantar e nem tinha dado por nada…

     Amanhã seria um novo dia, com novas descobertas e novos problemas.
Estaria à altura de conseguir dar-me tanta auto-estima como tentava mostrar aos
que me rodeavam? Seria algo que tentaria trabalhar o mais rápido possível, mas o
mais importante era não me cruzar com aquele estranho mais nenhuma vez pois não
gostei nada de ele ter-me puxado da água, mesmo que já fosse tarde, mesmo que
parecesse que eu me estava a matar. Não gostava mesmo nada daquela mão a
agarrar o meu braço como se eu fosse fazer alguma loucura, como se fosse uma
maluca… Ai se ele soubesse que não o sou mas que vou trabalhar com muitos…
Toquei na minha face pois reparei que estava a sorrir, era uma situação tão cómica
assim para me deixar de bom humor? Sinceramente, não tinha a mínima vontade de
saber a resposta desta pergunta, mais valia focar-me.

     O caminho até casa parecia méis longo do que fora quando tinha vindo para a
praia, talvez fosse por estar cheia de fome e com imensa vontade de me enrolar nos
lençóis da minha cama e dormir para ter a energia suficiente para o trabalho de
amanhã. O estômago pareceu concordar comigo pois depressa de pronunciou
enquanto estávamos a chegar a casa.

      Quando me deitei a minha cabeça encheu-se de momentos que se passaram
hoje, quem diria que iria ter tanta curiosidade numa velhota maluca e ser levada por
um homem desconhecido que pensava que eu me estava a matar? Era absolutamente
incrível!

      As situações que andam a passar na minha vida eram doutro mundo, talvez
pudesse fazer uma comédia dela e ganhar bastante com isso ao ponto de ficar sem
trabalhar a vida toda… Sonhar, era uma boa forma de tentar fazer o sono vir e não
fugir dos meus pensamentos. Pelo menos já teria um sonho esta noite, nem que fosse
um sonho acordada… Mas adoraria puder dormir um pouco, parece que o oceano me
deixou realmente uma nova vontade, que me vai deixar adormecer, nem que seja para
sonhar com o que vou pensando…




      Mais uma noite em claro, as várias memórias iam voltando… Deixando que o
sono mais uma vez se fosse embora. Agora que ia a caminho do meu trabalho,
encontrando-me primeiro com Humbert, como ele fazia questão que eu o tratasse
desse jeito, para que me pudesse dizer como é que eles tinham reagido à minha
presença. Na realidade, o primeiro impulso com certeza seria de não me quererem,
pois Humbert estava com eles há vários anos e criaram laços com ele… Teria de ser
tudo feito com a maior preocupação para que nada corresse mal, seria um tempo
perdido caso eles não me quisessem por perto.

      Pelo que parecia, as minhas preocupações estavam certas, alguns não
aceitaram de bom grado que eu fosse a sua nova doutora, nada que eu lhes negasse
depois de vários anos habituados a apenas uma pequena equipa de pessoas a
conviverem todos os dias. Mas parecia que havia uma excepção pois o doutor
Humbert parecia estar contente com a minha chegada e chegou mesmo a dizer-me
que hoje mesmo ia trabalhar.
Quando ele me disse o nome Katherine Levi eu nem estava a pensar em
Katie, mas depressa a minha memória me disse que era aquela velhota que tinha-me
causado aquele pressentimento estranho. E ter noção que iria hoje mesmo estar
com ela, conhecê-la por dentro e descobrir tudo o que a sua ficha não dizia era
fantástico! Estava desejosa de estar com ela, só esperava que ela tivesse confiança
suficiente para que me falasse abertamente, sem medos.

     Quando acabei de analisar todos os dados sobre Katie pude finalmente ir ter
com ela, inicialmente seria acompanhada pelo Humbert para ver se realmente eu
podia iniciar a minha pesquisa pelo seu misterioso mundo. Uma das recomendações
era ouvi-la e não fazer caso das coisas que ela dizia pois, segundo ela, a sua
capacidade sobre-humana era de conseguir viver junto de outras vidas e ter
pequenos flashes de memórias futuras, como uma vidente.

     Katie estava sentada num sofá, com uma mesinha à sua frente com o café da
manhã e outras duas poltronas viradas para a mesa. Parecia que ela estaria à nossa
espera para tomarmos o café da manhã com ela, o que seria óptimo pois eu ainda não
tinha comido nada desde o jantar, sempre que passo noites em branco perco o
apetite quando me levanto. Agora seria a altura ideal para que eu comesse,
agradecia à aquela ideia que alguém tinha tido, estava esfomeada e não me apetecia
nada deixar que o meu estômago me avisasse do que devia de fazer.

     Era incrível a forma como ela falava... Eu ficava maravilhada com cada gesto
que ela fazia, toda aquela graciosidade, todo aquele brilho de volta dela… Pergunto-
me se não me importaria de ficar no mesmo estado do que ela para que fosse tão
graciosa e feliz em qualquer condição. Sim, porque ela sabia muito bem a razão pela
qual ela estava lá, e não tinha qualquer medo de dizer que, apesar de ninguém
acreditar no que ela dizia e fazia, afirmava que tudo o que vinha da sua cabeça era
verdadeiro. Toda aquela confiança e aquela convicção punham-me dúvidas sobre o
estado que a psicologia dizia sobre ela, sabia que algumas pessoas acreditam mesmo
no que estão a dizer, mesmo que seja totalmente irreal. Mas eu começava a duvidar
de mim, não estaria ela correcta?
O mais estranho era que ela sabia o que passava pela minha cabeça… Reparei
nisso quando ela pediu a Humbert que nos deixasse a sós. Ele observou-a um
pouco apreensivo, acabando por concordar e deixar-nos ir para a sua varanda, no
seu quarto. Ela dizia que era uma vista maravilhosa, mas não tão maravilhoso como
Magnificat como eu iria ver… Talvez pela minha expressão ou apenas porque sabia
que eu não estava de certeza a perceber nada, ela disse-me que nós as duas iríamos
ver esse local e que eu não me tinha de preocupar com nada, que todos os meus
pensamentos e noites em branco iriam desaparecer…

     O meu cérebro parou por uns instantes, assimilando tudo aquilo que ela me
tinha dito, parecia totalmente irreal e, ao mesmo tempo, algo bem próximo… Era
mesmo estranho tudo isto, mas desde o inicio algo em mim me disse que Katie era a
chave de algo, que situação viria a viver com aquela senhora? Só esperava alguma
vez a conseguir entender, pois acredito piamente que caso a saiba decifrar,
aplicando toda a sabedoria que emanava dela, que eu conseguia sentir, pudesse me
dizer o que fazer. Talvez ela me pudesse ajudar em mim e eu ajudar a ela, mas não
acreditava que ela tivesse qualquer problema. Teria de deixar isto tudo para mim, ou
então passaria a fazer parte não da equipa mas sim dos doentes pois se não
acreditavam em Katie, nunca acreditariam em mim.
III.   Inacreditável

      Tinha passado uma semana e eu nem tinha dado conta… As sessões com
Katie tornavam-se a cada dia mais interessantes, ela contava as histórias como se
ela estivesse mesmo lá, com tanto pormenor e tanta característica que parecia que na
realidade se passara na sua vida. Eu reparei que ela inicialmente tinha um pouco de
medo em me contar aquilo, talvez porque eu iria com certeza pensar nela como uma
maluca ou pensava que ela estaria a gozar comigo, a realidade é que pensei nisso…

      Mas como poderia duvidar se seus olhos me diziam que era verdade? Parecia
que ela me estava a mostrar um mundo paralelo, eu até podia superar bem isso se ela
não me tivesse mostrado também o meu passado sem que eu jamais tivesse contado
nada, ela me apoiava e queria ajudar-me. Até aí tudo bem, estranhei um pouco mas
consegui aceitar que ela conseguisse ver de uma certa forma o que se tinha passado
com essa pessoa como se ela estivesse presente e sentisse o mesmo, mas o problema
não foi bem o passado…

      Ela estava-me preparando para algo que eu não fazia a mínima ideia do que
era, eu pensava em mil e uma coisas, mas nunca encontrava algo que fosse o
suficiente claro para a minha cabeça. Queria que eu estivesse preparada, que
tivesse calma e que pensasse bem antes de fazer algo que me fosse arrepender, mas
o que ela me pediu me deixou ainda mais curiosa! O que se iria passar?

      Sentia-me sem quaisquer forças para descobrir o que estaria para acontecer,
não seria nada de bom, disso tinha eu a certeza. Só esperava que nada de mal lhe
pudesse acontecer, caso fosse a minha morte melhor, isso não me afligiria mais que
outra coisa qualquer. Desde que não fosse outra destruição de vida humana, como
Katie me tinha contado…

      Ainda me lembrava de quando ela me contou o que se passou… Ainda me
lembro da sua cara, daquelas lágrimas que iam saindo enquanto aprofundava mais e
mais, não deixando qualquer espaço para dúvidas. Aquela visão que a velhota me
estava dando apenas por palavras, vendo todo aquele mar de destruição, toda
aquela dor e angustia que saía da sua voz transparente, mostrando exactamente o
que ela sentia em relação ao que via…
Desejei que ela parasse, ela sabia que eu estava a querer que ela parasse, mas
não o fez. Continuou dizendo que eu deveria estar preparada, devia de saber isto
antes que chegasse a hora… Agora que pensava nisso com melhor exactidão, tudo o
que ela me estava contando a cada dia que se passava, talvez se tivesse a aproximar
o dia em que isso iria acontecer.

     Não queria ser eu aquele desgraçado que passava por tudo aquilo, atado, sem
que nada se possa fazer. Como se estivéssemos presos, olhando para a única coisa
que podíamos olhar e queimando-nos por dentro, fazendo-nos partir tudo o que
sentimos aos pedacinhos, perdendo a nossa esperança… Não que já a não tivesse
perdido, isso já era passado, mas a sensação de nada puder fazer vendo a
destruição que sinto por dentro se espalhar em minha volta… Meus olhos se
fecharam sem que desse por isso e lágrimas fluíam de meu rosto, jamais aguentaria
esta sensação de perder, de não poder fazer nada senão queimar-me por dentro,
aos poucos e poucos… Caminhar pela dor, aumentando os pedaços em que a
esperança de desfazia, não querendo que ela se fosse embora, encontrando um
novo brilho, um novo rumo…

     O dia tinha sido longo, já estava cansada e não conseguia mesmo assim dormir.
Estava à espera do que sabia que estava para vir, não sabendo que coisa era essa.
Talvez fosse mais fácil não saber do que Katie se referia, talvez fosse melhor que ela
realmente estivesse louca e que eu desse conta disso… Mas eu atirava-me para a
espera do que estava para vir, infelizmente sabia que era verdade… Talvez esta
verdade nunca chegasse a acabar comigo, mas eu não queria enfrentar esse futuro,
negava-me vivamente. Como poderia estar preparada para algo que não sei o que é?
Podia até saber, bem lá no fundo, eu sei que o meu inconsciente o sabia pois desde
inicio que ele berrou cá dentro, gritando que Katie estava certa. Eu não estava
preparada, não queria estar preparada.

     Talvez a doida aqui fosse eu, fora eu que bebera daquela água insana… Era
eu que vivia um pesadelo, estava louca na minha própria mente, em constante
batalha… Talvez lutava por desejar o que não quero, por querer o que não era para
mim. Algo na minha mente me tentava dizer o que se iria passar, mas eu continuava
bloqueando sem querer saber.

     Sim, a louca era eu. Lutava contra mim e para mim. Insana de vida e
sentimentos, tirando qualquer sentido do sentido da vida. Quem devia estar presa
era eu, não merecia a liberdade. Exagerar era um grave crime, punível pela loucura
constante num vasto sofrimento do eu. Sim, definitivamente estava louca.

     “Deveras?” não me precisei de virar para saber quem me respondia, ela saberia
que precisava dela agora. Ela sempre o sabia. Mas seria demasiado contagioso o
que eu sentia? Poderia ela se tornar como esta mulher? Emma Peterson, uma louca
que trabalhava com loucos. Nada poderia ser tão interessante, esta conclusão era
incrivelmente engraçada…

     Óptimo! Agora ria-me da minha loucura… Nada pior, pelo menos já o tinha
reparado, um começo… Um começo para a aceitação.

     “Tu sabes que não é fácil, mas acredito que vais conseguir superar tudo.”

     Ela sabia que me estava a acalmar com a sua mão no meu ombro, era
inacreditável como ela me conseguia conhecer tão bem. Talvez a idade dela lhe
tivesse permitido ajudar as pessoas com o que conseguia ver delas, ou então tinha
mesmo um enorme jeito para estar ao pé de quem precisa e ser a pessoa sempre
certa nesses momentos… Já estava bastante mais calma, a maior parte do exagero
tinha-se concentrado novamente cá dentro, pronto a atacar novamente.

     “Tens de ter calma e controlar isso, já não falta muito para que o teu mundo
mude. Confia em mim, tudo correrá bem… Mas lembra-te sempre que nem tudo é o
que parece. Promete-me     que te lembras de permanecer calma e quieta quando o
momento chegar, promete-me Emma!”

     Eu não conseguia entender ainda nada do que ela estava a dizer-me, mas não
havia outra forma de a sossegar. Eu afirmei com a minha cabeça, esperando que ela
soubesse mesmo que tudo correria bem. Ela de certeza que sabia disso, porque
senão os seus conselhos seriam infundados, não havia razão para me preocupar.
Mas porque eu me sentia assim tão preocupada?
Quando voltei a abrir os olhos já Katie se tinha sentado à minha frente e me
observava atentamente, talvez para ver se era necessário confortar-me antes de
continuar com o seu treino intensivo para o meu não-sei-quê do futuro. E estava
correcta, parecia que começava a conhecê-la também…

     Falou-me de mais uma história… Segundo ela houve um inicio para aquela
catástrofe e existe alguém que faz parte desse inicio. Falou-me de uma forma muito
vaga, parecia querer encobrir algo… E eu estava curiosa, queria saber o que ela
estava tentando encobrir.

     Como me viu curiosa decidiu mudar de conversa, decidiu contar-me uma outra
história. Uma outra vida… Duas pessoas numa, uma pessoa que necessitava de se
libertar, que estava presa ao seu trabalho e que nada sentia além disso. Uma pessoa
que sentiu, mas que agora já não sentia… Uma pessoa que já não sabia sentir, que já
não sabia o que isso era há muito tempo… Uma pessoa que já não sabia chorar, que
tinha todas as forças e imortalidade mas que não sentia… Uma pessoa que
procurava todos aqueles pedaços que a faziam voltar a sentir, mas que ainda não
tinha encontrado… Uma pessoa que não era nada além do que se lembrava sentir,
apenas as lembranças a faziam procurar…

     Apesar de ser bastante vaga, de não ter contado nada mais além disso, eu
estava certa de que essa pessoa era exactamente o seu oposto: nada sentia, um
tédio certamente… Talvez não fosse mau exagerar, sofrimento a mais ainda era
sentir algo, por mais chato que fosse eu admitir isso.

     As coisas más são para sentirmos as coisas boas. Sim, era isso que eu já não
me lembrava há algum tempo de tão ocupada que estava em torturar-me. Agora iria
preferir viver com as más pois assim nunca perdia as boas pois não as tinha. Notei na
sua cara que tinha reparado que eu estava decidida em algo, mas ainda bem que ela
não sabia em quê… Dei-lhe as boas noites antes que ela me perguntasse muito, não
tinha como lhe falar disto, não ia querer ouvir o que certamente diria… Eu tomara
uma decisão e não a iria mudar, era tudo uma questão de controlo.

     Achei incrível, ela despediu-se e foi-se embora sem pronunciar qualquer
questão sobre o que eu estivera a pensar… Não era habitual dela, havia algo que eu
deveria saber? Sinceramente, eu queria acreditar que não queria saber. Talvez um
pouco de ar fresco me fizesse bem, o jardim seria um óptimo sítio para pensar à luz
das estrelas.




     Assim que me deitei na relva comecei a pensar em tudo o que ela me tinha dito
nesta semana. Tinha-me dado tanta informação que eu ainda não a tinha analisado e
tentar perceber o significado, apesar de não gostar muito da ideia de descobrir o
que se iria passar.

     Falara-me de uma cidade que era bastante antiga, sendo destruída pedra por
pedra, para que nela se ocupasse um novo sentimento de esperança. A descrição
que me ia dizendo fazia-me desejar ver essa cidade, ela dera-lhe o nome de
Magnificat. Tinha achado que essa cidade devia ser um paraíso onde ela tinha
vivido enquanto pequena na altura, mas porque me tinha contado isso? Certamente
havia algo mais sobre esse local, seria para lá que eu iria? Ou ela iria viver com seus
familiares lá? Seria esse o futuro? Eu iria lá visitá-la e acabaria perdendo o
emprego? Bem, esta definitivamente era uma história sem resposta.

     Depois falou-me do bem e do mal… Que o bem regia o mal e que apenas
poderia ser defendido por um grupo em especial… Ela tinha dito que eles
acreditavam que o mundo poderia ficar muito pior caso não defendessem essa paz.
Dissera que essa paz só tinha sido quebrada uma vez. Teria ligação com a
destruição que ela me tinha contado? Teriam todas estas histórias ligação?

     Não conseguiria dormir sem uma explicação, tinha mesmo de ir ao seu quarto
para que ela me dissesse o que realmente me queria dizer, que eu estava preparada
para ouvir, que queria saber o porquê de toda esta história. Só não podia dar muito
nas vistas, ninguém me poderia ver a lá ir… Ainda pensavam que eu ia espiá-la ou algo
pior! Tinha de ter o maior cuidado se não queria ser apanhada. As respostas para
todas estas perguntas tinham de existir, eu não sairia de lá até que ela me dissesse o
porquê de tudo isto.
Esperava que ela ainda estivesse acordada pois assim seria mais rápido ter as
respostas e não a ter de acordar… Não sabia se ela me iria responder caso tivesse
mal-humorada. Eu não iria dormir com este dilema, e não queria passar outra noite
em branco.




     Fiquei surpresa quando me aproximava da porta do seu quarto, ela parecia
ainda estar acordada… Que estaria a fazer para manter as luzes acesas? Pelo menos
iria ser mais fácil fazer-lhe as perguntas que precisavam urgentemente de respostas.

     Quando abri a porta fiquei imobilizada, não conseguia dar mais nenhum
passo… Na realidade não tinha noção do que eu estava a fazer, só sabia o que
estava diante dos meus olhos. Não queria acreditar no que via, minha mente não
conseguia parar… Aquela visão estava a perturbar-me, eu queria gritar por ajuda
mas não conseguia nem mexer-me, não conseguia fugir para pedir ajuda, sentia-me
presa, sem puder fazer nada… Senti que algo estava a sair de meus olhos e a
passear-se pela face, senti que tinha conseguido chamar a atenção daquele homem
que estava de costas para mim, vendo quem ele era, surgindo dentro de mim uma ira
incontrolável, mas mesmo assim não me conseguia mover, não conseguia gritar e pedir
que ele parasse…

     Katie estava morta? Que ele lhe estava a fazer? Aquela luz que saía da sua
mão dirigindo-se ao coração de Katie ainda não me tinha saído da mente, apesar de
ter sido apenas uns segundos, para mim pareceram uma eternidade… Finalmente
consegui correr, corri para ela… Mas não conseguia chegar-lhe, sentia novamente
aquela mão no meu braço a impedir-me.

     “Como pôde?” Eu disse quase num sussurro, não estava a conseguir falar, as
lágrimas não paravam de fluir nos meus olhos e a minha mente não parava de pensar
em matá-lo, tirando-lhe peça por peça…

     “Nem tudo o que parece é. Mas creio que você não terá tempo para o saber.”

     Ele iria também matar-me? Ou faria algo pior? Eu não queria outra coisa
senão aproximar-me dela e chorar, o que ele lhe tinha feito?
“Tem calma, tudo se resolverá pois ela irá connosco.”

     Aquela voz… Eu conhecia aquela voz, mas eu a tinha visto ali, morta! Estaria
eu doida? Eu não estava a ver muito bem pois ainda não tinha parado de chorar, mas
olhei para a direcção de onde a voz veio e vi que não era ela. A sua voz estava
naquela mulher, como?

     “Eu ainda não o decidi, não creio que seja seguro que ela fique cá mas também
não acredito que ela seja indefesa…” A voz do homem me dava raiva, não conseguia
ouvi-lo mais. Tentei soltar-me mas sem conseguir novamente, tal como da primeira
vez na praia.

     “ Acredite em mim, eu sei o que digo. Emma, sou eu mesma, a Katie.”

     Eu pestanejei, a Katie? Mas ela não parecia ter mais de trinta! Voltei-me para
onde tinha visto o corpo que continuava lá…

     “Mas como é isto possível?” Arranjei forças suficientes para perguntar a única
coisa que estava agora a ecoar intensamente na minha cabeça. Ainda não tinha
conseguido perceber como Katie podia estar naquela cama e aquela mulher
estranha dizer ser a Katie…

     “Não tenho paciência para isto. Isto acaba agora!” Ouvi aquele homem dizer,
não sabendo do que ele estava falando, mas depressa tudo se escureceu. Estaria
eu morta? Então como conseguia continuar a pensar? Tentei abrir os olhos, mexer-
me, falar, mas nada! Absolutamente nada! Estaria eu morta? Então como ainda
tinha consciência? Talvez fosse o restante oxigénio do meu cérebro, talvez tudo já
tivesse acabado… Talvez fosse um sonho, estava tão cansada… Estaria morta?
IV.     Magnificat – Novo lar

      Abri meus olhos e vi que na verdade estava a dormir, mas então porque parecia
tudo tão real? Não estava morta porquê? Respirei fundo, tentando colocar tudo no
lugar, perceber o que era e o que não era real. Mas tudo se complicou quando eu me
decidi levantar pois não estava no meu quarto, nem sequer sabia onde estava!

      O quarto parecia saído de um palácio, confortável e antigo. Seus
adornamentos eram todos de um vermelho de cetim e tinha duas janelas de onde
entrava a luz do sol que me dizia que já era dia.

      Lá estava aquele homem, sentado numa poltrona ao pé da porta, certamente
esperando que eu acordasse. Onde eu estava? O que se tinha passado e o que eu
fazia neste quarto com aquele homem me observando daquela maneira? Não sabia
bem ao certo o que fazer, levantar ou não me levantar, falar ou manter-me quieta… Iria
matar-me? Então porque estava aqui? O que se estava a passar?

      Depressa saí dos meus pensamentos ao ver aquele homem se levantando, se
dirigindo à porta de saída… Mas o que se estava a passar? Estaria eu
completamente doida ou apenas tudo tinha endoidecido à minha volta?

      Já que estava sozinha, decidi me levantar. Queria ver tudo isto que me
rodeava, para ter a certeza que não seria um pesadelo, não sabia qual era a parte
que o desejava e qual o detestava. Aquele homem era desprezível, mesmo que fosse
apenas um sonho. Como ele tinha a coragem de aparecer assim na minha vida? Já
não bastava Pedro para me encher de memórias? Teria de viver com o homem sem
nome também?

      Fiquei maravilhada quando abri a janela e observei o que ela me tinha tentado
mostrar enquanto divagava pela minha cabeça… Era definitivamente uma boa
paisagem, as árvores que balançavam pelo som do vento, aquelas flores que
permaneciam belas ao pé daquele lago onde patos nadavam e dançavam com toda
aquela vida que os rodeavam. Apetecia-me fazer parte daquele momento
harmonioso, assim também poderia encontrar essa harmonia dentro de mim, me
encontrar de todo o meu ser e puder fazer parte da vida não tendo consciência do
que possa existir além da luz…

     Observei o resto do quarto, mas destas vez o seu interior. Parecia saído de um
conto de fadas, daqueles bem antigos de decorações dos tempos das grandes
riquezas e nenhuma preocupação real. Realmente era um local maravilhoso, mas não
deixava de pensar em tudo o que tinha acontecido na noite passada… Talvez se
saísse daqui pudesse procurar por aquela mulher que me parecia Katie, apesar de
ter visto o seu corpo morto na cama, ao lado daquele homem desprezível.

     O que tinha se passado para eu estar agora aqui? Pelo menos nunca tinha
ouvido falar deste palácio quando era pequena… Sim, porque desde pequena que
gostava de palácios. Os meus pais me mostravam palácios de todos os cantos do
mundo, e só um palácio poderia ter tanta beleza interior como exterior…

     Antes de sair reparei numa porta que estava à direita da cama e decidi abrir,
para ver o que se encontrava no outro lado. Era uma casa de banho, paredes azuis
contrastavam com um balcão com vários tons de azul e cinzento e um enorme espelho
por cima… O lavatório por cima do balcão era de um branco perto do dourado, bem
como os restantes utensílios presentes na casa de banho. Havia um cheiro a lavanda
no ar, talvez pela própria planta que estava a um canto ou pelas pequenas janelas
abertas para um pequeno canteiro de lavanda pendurado no exterior.

     Tinha de confessar que quem quer que fosse a pessoa que tinha decorado
aquele sitio tinha bastante capacidade para tornar qualquer cubículo num paraíso…
Estava desejosa de poder ver a restante decoração da casa, bem como a paisagem
que tinha visto da janela, queria ver tudo mais de perto.

     Depois de me refrescar fui em direcção da porta por onde aquele homem tinha
saído, quando a ia a abrir esta abriu automaticamente e eu recuei para trás… Aquele
homem tinha voltado e não estava sozinho, mas eu não conhecia aquela mulher que
vinha com ele… Seria a dona daquela magnifica casa? Esperava não estar a
incomodar, mas o que me espantava era a expressão daquele homem que vinha com
ela, aquele que ainda há umas semanas me tinha tentado salvar dum suposto suicídio.
Tinha exactamente a mesma expressão quando eu tentava libertar-me da sua
mão no meu braço, quando eu estava a resmungar de ele não me libertar. Mas o que
significava aquela expressão?

     “Faça o favor de fazer exactamente tudo o que esta senhora lhe disser e não
existirão mais problemas. Voltarei mais logo, quando este relógio marcar as seis
horas, certifique-se que estará pronta a essa hora.” Depressa me deu o relógio que
trazia consigo e desapareceu pela porta…

     Estava atónica com o que ele me tinha dito, não tinha percebido nada de nada!
Talvez esta mulher me ajudasse a perceber o que se estava a passar. Talvez ela me
pudesse dizer onde estava… Por isso decidi arriscar e perguntar-lhe onde eu estava,
porém a sua expressão ficou espantada e demorou um pouco a chegar-se a mim…
Parecia ter medo de algo… Que seria?

     “Me desculpe, pensava que você deveria saber onde estava… Está em
Magnificat e eu estou aqui para lhe tirar as medidas e vesti-la para que consiga se
adaptar.”

     Magnificat? Era um país? Uma cidade? Uma vila? Uma aldeia? Eu nunca
tinha ouvido falar deste sitio… Mas espera! Ouvi sim! Não me lembrava bem do que
Katie disse, mas ela falou-me de Magnificat, não sabia bem ao certo o que me tinha
dito, mas tinha-se referido a este sitio… Mas porque eu teria de me adaptar? O que
estava a acontecer?

     Depressa a mulher tirou-me as medidas e depois perguntou-me se preferia
usar cores claras ou escuras… Eu nem me lembrei bem do que dizer e acabei por
deixar ela escolher. Para que precisava de novas roupas? Eu estava bem com o que
tinha e sempre podia ir comprar mais algumas a algum sitio… Esperava que chegasse
depressa às seis horas para que pudesse arrancar toda a informação daquele
homem. Tinha todo o direito de saber o que se estava a passar!




     Faltavam apenas dez minutos para as seis horas e eu já estava vestida.
Definitivamente aquela mulher tinha um grande jeito para realçar as características
de uma pessoa e tornando, ao mesmo tempo, a roupa confortável e segura. Eu
estava a observar-me no espelho da casa de banho, agora parecia tão elegante
como o resto da casa. Queria tanto sair daqui e ver o que restava deste palácio,
fugir e ver tudo através da descoberta…

     Seria extremamente interessante deixar aquele homem surpreendido pelo meu
desaparecimento, mas aposto que com certeza estaria alguém a vigiar a porta para
que eu não saísse do quarto. Para além disso, ele teria muito que me contar! Não ia
deixar que ele me deixasse assim sem saber de nada por muito tempo!

     O que estava para vir? Ouvi umas batidas na porta, certamente seria ele.
Antes que eu chegasse à porta, esta se abriu e emanou uma fragrância que me
prendeu a respiração… Assim que reparei na porta vi que era aquela mulher que
tinha estado comigo na outra noite, aquela que tinha a voz que me lembrava Katie de
uma certa forma… Mas depressa vi que ela não estava sozinha, aquele homem estava
com ela, será que finalmente me iam dizer o que se estava a passar?

     Não conseguia parar de olhar a expressão daquele homem, não sabia bem o
que esperar dele, não sabia nem o seu nome… Só sabia o som a sua voz ríspida, que
tanto me enervava. O que se tinha passado com Katie? Onde ela estava?

     “Acho melhor ir para lá para fora, Salvatore. Eu e Emma precisamos de falar,
a sós.” A sua voz me roubou dos meus pensamentos, parecia que estava ouvindo
Katie a falar.

     “Mas não devemos chegar atrasados à reunião. É nosso dever estar lá
presentes antes que os restantes cheguem.” O seu som cortante voltou a
enraivecer-me, mas que a reunião se referia?

     “Vá lá para fora, tenho que falar com ela. E se está assim tão preocupado,
então vá, Emma não irá.” A sua calma e tenacidade eram de louvar, mas porque
queria estar a sós comigo?

     “Você sabe tanto como eu que não podemos deixar você aqui com ela, você
ainda agora veio e terá de se apresentar ao conselho.” A sua voz transmitia um
pouco de astúcia e decididamente isso estava a enfurecer-me.
“Se é esse o problema é fácil! Fique aqui com ela e explique-lhe você.” Essa
ideia de ouvi-lo a dizer-me tudo o que se passava não era desagradável de todo…
Mas o que eu estava a pensar! Era algo horrível! “Sabe tão bem como eu que
Salvatore devia preparar primeiro o conselho antes de falar do caso de Emma. E
não se esqueça que não tem sido um grande cavalheiro! Nem lhe chegou a mostrar
qualquer parte da sua casa além de seu quarto!” Esta casa era daquele grosseiro?
Impossível!

     “De acordo. Eu ficarei com ela até que seja o momento apropriado, mas não
sairá desta casa. Por razões de segurança o melhor é mantê-la em segredo.”

     Depois de se terem decidido finalmente o que fazer comigo, como se eu fosse
um fantoche deles, acabei por sentar-me na cama à espera duma explicação que
teimava em demorar. Observei-o enquanto fechava a porta, sentando-se de seguida
na poltrona, exactamente como quando eu acordei nesta manhã. Esperava que ele
me fosse dar uma explicação, mas parecia tudo menos isso.

     Ele continuava me olhando, sem proferir qualquer palavra… Mas o que se
estava a passar? Queria perguntar-lhe, gritar-lhe tudo o que ele me fazia sentir.
Nada saía da minha boca, ela nem se abria… Sentia-me derivando naquele aroma,
pedindo que aquele perfume nunca acabasse, que pudesse sentir mais de perto… O
que estava a passar-se comigo? Não havia forma de eu me sentir assim, queria fugir
de tudo, deixar tudo para trás e voltar para a minha indiferença.

     Quando dei por mim, já estava levantada, me dirigindo à saída… Meu corpo
finalmente se tinha manifestado, afinal havia algo que eu conseguia fazer… Ia fugir,
para bem longe. Eu sabia que não me iriam deixar o fazer, mas eu tinha de o fazer
para o meu próprio bem, tinha de sair o quanto antes, antes que as coisas piorassem
e eu não tivesse controlo delas.

     Como era de esperar, eu já sabia que iria acontecer, Salvatore me segurou
pelo braço. Agora aquele aroma estava mais próximo, me lembrei do que aconteceu
na praia, não me ia conseguir libertar e, por mais que negasse, não me queria libertar.
Meu coração batia rapidamente, já nem conseguia perceber porquê até o meu
coração corria… Desejava, mas não queria… A boca dele se abriu, seus lábios
abriam e fechavam sem que eu prestasse qualquer atenção no que diziam. Ele
soltou-me e dirigiu-se para a casa de banho, sem dizer mais nada, deixando-me
sozinha… Podia fugir agora, seria o mais certo a fazer mas eu não conseguia deixar
de olhar a porta por onde ele entrou, permanecia imóvel, esperando que ele voltasse.

     Pensei em tudo o que fosse possível para me deixar voltar ao normal, o que se
estava a passar? Eu tinha de saber… Não iria permitir que o silêncio continuasse.
Tinha o dever de saber tudo o que se passava, bem como descobrir o que tinha
acabado de acontecer.

     Comecei a ir em direcção ao Salvatore, não sabia o que ia fazer, só sabia que
precisava de ir ter com ele, aquela vontade veio do nada… Não conseguia pensar
agora, estava com demasiada vontade de ter com ele e olhar novamente para aquela
expressão que desconhecia. Queria ver o que aquele olhar me dizia, sentir aquele
olhar me torturando novamente, puder olhar para ele novamente.

     Quando entrei, vi-o molhando a cara… Parecia frustrado com alguma coisa,
nem tinha reparado que eu tinha entrado até ver o meu reflexo no espelho. Disse
algo baixinho e foi para a janela, observando a paisagem… Estaria tão confuso
quanto eu? Não estava entendendo nada, mas esperava que ele me dissesse.

     Respirando fundo, ele voltou-se para me encarar. Esperava entender o seu
olhar mas nada decifrava… Ele apenas me olhava, gostava tanto de saber o que ele
estava a pensar neste momento para que seu olhar não me marcasse tanto…

     Abriu várias vezes a boca, tentando me dizer algo, mas sempre a fechava,
fechando também seus olhos e massajando a cabeça com a mão. Depois voltava e
olhar-me, esperando que tivesse força para me falar, talvez… Eu não entendia o que
se passava naquela cabeça, haveria algo o perturbando?

     Eu aproximei-me, até que estava a um passo de estar extremamente próxima
dele, concentrei-me para que pudesse falar as palavras certas, para que não me
faltasse a voz. Segurei as suas mãos, ele olhou para mim confuso, eu também não
sabia nem um pouco o que estava a fazer… Mas agora não era o momento para
questionar as minhas acções, era o momento para saber a verdade.
“ Quero que me conte tudo, Salvatore. Não tenha receio de me assustar ou
ofender, conte-me tudo!” A minha voz tinha saído mais confiante do que eu
realmente estava, observei-o e meditar as minhas palavras enquanto continuava a
olhar-me violentamente.

     Começava a faltar-me o ar, apesar de estarmos bastante perto da janela...
Tirei as minhas mãos das suas e fui para o quarto, esperando que a varanda me
desse todo o ar possível para que pudesse respirar mais controladamente. Nem
pensei realmente que estava à espera que ele me explicasse, apenas queria voltar a
ter ar nos meus pulmões, que se tornava impossível estando com ele por perto. O
que se estava a passar comigo? Todo aquele ódio que sentia por aquele homem
tinha desaparecido, mas então o que eu sentia agora? Acreditei que não queria
ouvir mesmo a resposta para esta pergunta que me ecoava cá dentro.

     Já me sentia mais calma, já respirava normalmente… Mas depressa perdi
novamente o controlo da respiração e virei-me rapidamente, aquele homem estava
novamente sentado na poltrona me observando. Mal eu me virei ele indicou-me para
que me sentasse na poltrona que tinha estado na casa de banho, mas parecia que ele
a tinha trazido para a frente da dele. Nem tinha reparado nisso enquanto estava
mergulhada nos meus pensamentos. Ele iria agora explicar-me tudo o que se estava
a passar? Finalmente saberia o que estava aqui a fazer?




     Estava agora sozinha, deitada na cama que não era minha, num mundo do qual
não fazia parte…. Salvatore contou-me tudo, desde o que se tinha passado com ele
e como começou a procurar o que tinha perdido, mas não me disse como é que tinha
descoberto o que lhe tinha acontecido. E quando eu lhe perguntei ele desviou-se
da pergunta com uma vontade alucinante, parecia que eu não tinha o direito de saber
disso e eu compreendi. Aliás, a vida era dele. Mas isso não me deixou menos curiosa,
apenas me deu vontade de descobrir como tinha descoberto à minha maneira.
Soube que afinal Katie não tinha morrido, tinha apenas se transformado em algo
superior. Era um pouco estranho, saber que ele podia imortalizar as pessoas que
estavam com um pedaço dele, dando-lhes a vida em troca da parte de si. Ele me
disse que Katie era a última peça para que ele estivesse completamente junto
novamente, ela tinha sido o último pedaço que ele tinha perdido naquele terrível
momento que lhe tinha dado a vida por muito tempo.

     Eu curiosamente lhe perguntei porque eu estava agora aqui, entre imortais. A
sua resposta foi uma meia resposta, deixando-me curiosa ao ponto de ficar
pensando e pensando em todas as palavras que me tinha dito. Eu vim porque, ao ver
uma transformação e conhecer essa pessoa transformada, estaria em perigo não só
pelos mortais mas também por outra espécie de imortais. Pela expressão que ele fez
com certeza seria alguém que se tinha virado contra esta forma de eles viver, ele me
disse que todos os desta cidade tinham o dever de estar sempre presentes em todas
as partes do mundo, não permitindo assim que algo acontecesse de mal. Eu vi que
ele estava então falando daqueles que me punham em perigo. Ele não me querer
contar nada sobre eles era muito estranho para mim. Se eu estava em perigo então
deveria saber quem é que me ia pôr em perigo?

     Salvatore não era o que tinha pensado dele, estava apenas preocupado com o
que poderia acontecer… Ele disse-me que se eu fosse apanhada pelo inimigo iria ser
complicado para Magnificat, mas não me disse o porquê. Estas explicações só me
tinham dado ainda mais questões a fazer, mas parecia que iam continuar sem
resposta. Talvez fosse melhor assim, não saber tudo me deixava mais descansada…
Mas então porque não queria que eu saísse desta casa? Talvez o perigo estivesse
bem mais próximo que eu pensava e ele sabia disso… Pelo menos poderia sair sempre
que ele estivesse disponível para me acompanhar, amanhã seria o dia em que ele me
iria mostrar o resto da casa… Pergunto-me quando é que eu podia ver a cidade.
Estava tão curiosa que quase lhe tinha perguntado como ela era, mas pensei em
esperar que ele me dissesse quando me fosse mostrar o restante palácio… Era
engraçado quanto acolhedor era esta pequena divisão, imagino o resto da casa.
Agora que já era noite, já tinha jantado e as minhas roupas feitas neste dia já
estavam todas no armário, era hora de descansar para o longo dia que aí vinha…
Podia agora descansar…
V.     Não pode ser…




     O sol já entrava pelas janelas, sentia-o aquecendo e iluminando todo o quarto.
Estava feliz por hoje puder ver o resto da casa e quem sabe o resto da cidade…
Levantei-me rapidamente e Salvatore já lá estava, sentado na poltrona de sempre
com o mesmo olhar… Eu ainda não sabia o que significava mas agora não era tempo
para essas coisas, queria sair daqui e ver o restante desta humilde casa, como
Salvatore lhe tinha dito. Eu poderia descrever de muitas maneiras, mas humilde
estaria bem longe da minha definição, era uma casa para ele mas para mim a melhor
definição era um palacete cheio de requinte…

     Depois de me preparar para sair, tomei o pequeno-almoço que ele me tinha
trazido. Estava delicioso! Mas o que realmente importava era eu sair daqui.
Enquanto comia ele estava a me dizer como íamos fazer à minha vida, iria manter a
minha morada numa casa que ele tinha à beira-mar e Katie iria pegar a
correspondência todos os dias. Mantinha o meu telefone activo para que ninguém
desconfiasse da minha súbita mudança, pois já dava suficiente nas vistas sair do meu
emprego pouco depois de ter entrado nele.

     Por mais que tivesse imaginado o restante palácio, por muitos que tivesse visto
em fotografias, nada parecia tão incrivelmente belo e perturbantemente encantador.
As cores claras dos corredores a contrastarem com o chão de madeira, o cheiro a
natureza que vinha das grandes janelas que iluminam todo o nosso caminho, a voz
que vai ecoando de Salvatore que me faz sentir como se nada mais importasse
senão estes momentos… Tudo o que me rodeava me transmitia paz, tudo tão cheio
de harmonia e de luz… Cheio de natureza e requinte… Estava surpreendida a cada
nova descoberta…

     Quando acabamos de passear pelo palácio, ele queria que voltássemos para o
quarto ou que ficássemos na sala de estar… Eu queria sair, voar pelo vento que
soprava lá fora e seguir as árvores, descobrindo pássaros a chilrar em seus ninhos.
Salvatore não achava prudente, pensaria que eu iria tentar fugir ou algo assim? Eu
não era assim tão infantil. Não foi preciso muito para que o convencesse, era até
bastante fácil, apenas fazendo um beicinho e já estava! Finalmente ia respirar o ar de
lá de fora e sentir aquela natureza à minha volta, queria-me deitar sobre a erva e
olhar o céu, vendo as nuvens e querer voar com elas…

      Eu definitivamente parecia uma infantil, mas não estava minimamente
preocupada com isso pois era o que estava a sentir… Sentia vontade de sonhar mais
algo, ver por entre as coisas. Talvez fosse por estar num sítio tão diferente do
habitual, talvez fosse por me sentir diferente. Queria viver neste momento o que
sentia.

      Na entrada da casa não se via nada além de uma pequena estrada de pedra
que ia não sabia para onde, rodeada por árvores, todas muito grandes e antigas.
Mas o que realmente queria ver era a parte da janela do quarto, era onde se podia
deitar sem ser incomodada com nada humano, rodeada de natureza. Perguntei a
Salvatore onde era esse local e ele me disse que era da parte de trás da casa, eu
agarrei a sua mão e corri, desejando chegar lá o quanto antes. Estava tão feliz que
não me importava o que estava a fazer… Apenas o fazia, nada de pensamentos, nada
de raciocínio. Hoje tudo isso iria ficar para trás.




      Fiquei um longo tempo deitada na erva, desfrutando de cada pedaço de
natureza que me incutia ânimo, paz. Sentia-me deslumbrada com tanta maravilha
junta. Justamente Magnificat, um bom nome para descrever tal sitio, se a cidade
fosse tão magnifica como o que tinha visto… Olhei de relance para Salvatore, que
estava também deitado pois eu tinha feito questão que ele não ficasse ao seu lado
sem aproveitar o maravilhoso tempo que estava… Ele estava olhando para mim
novamente com aquele olhar… Eu desviei o olhar o mais rápido que pude, mas sabia
que era difícil não me ter visto a olhar para ele.

      Levantou-se pouco depois, esticando a mão para que eu me levantasse
também… Que iria acontecer desta vez? Ele me guiava por entre as árvores que
estavam detrás da casa, eu estava com expectativa… O que me faltava mostrar?
“Fecha os teus olhos pois não quero que vejas isto antes que te deixe no
chão.” Ele me pediu, pegando-me ao colo com uma certa facilidade. Eu sabia que
eles tinham mais força que os mortais. Apenas fiz o que ele queria, fechei os olhos
esperando que ele me deixasse no chão para puder ver o que faltava.

     Quando me pousou meteu suas mãos em cima das minhas para que se criasse
uma curiosidade em mim, ou apenas para que eu me pudesse preparar… Moveu
lentamente as minhas mãos de meus olhos com as suas, não tendo intenção de mas
largar… Meus pensamentos não conseguiam definir o que meus olhos viam: estava no
limite da cidade, havia uma enorme distância entre as montanhas e os meus pés.

     “Quando a cidade foi destruída ela se elevou na terra e anda a flutuar por
entre todo o planeta, eu próprio ainda não sei como funciona. É algo maravilhoso,
acordar todos os dias e ver o nosso horizonte mudar.” A sua voz estava terna,
adorava aquela voz… Era tudo tão irreal, tudo tão envolvente… Era muito fácil
gostar de viver aqui, eu nem tinha visto a cidade e já gostava!




     Depois de uma semana, continuando apenas a puder sair com Salvatore me
escoltando, permanecia a maioria do tempo olhando a paisagem, deitando-me na
erva, falando de coisas normais… Hoje não era excepção, estava novamente deitada,
observando o céu… Até que fechei os olhos para sentir melhor o calor do sol no meu
corpo, que me ia aquecendo e deixando mole…

     Ouvi um som que não me era estranho, até que me lembrei do que era e dei um
pulo, atendendo logo de seguida sem ver quem me telefonava, ele estava ao meu lado
a rir-se da minha reacção…

     “Ouve lá priminha! Tu não te estás a esquecer que amanha é o meu casamento
pois não? Por onde andas? O tio disse-me que despediste-te do teu trabalho…
Está tudo bem?” Estremeci ao ouvir aquelas palavras, com tudo isto nem me tinha
lembrado do casamento da minha prima Francisca. Salvatore ouvia atentamente o
que se estava a passar, eu neste momento precisava de tudo menos de reprovação.
Por isso tentei não olhar para ele, tentei agir ao natural.
“Sim, claro que não me esqueço…” Enquanto ela falava comigo, Salvatore
tentava dizer-me algo que não estava a entender… Surpreendeu-me quando me tirou
o telemóvel da mão, falando assim com a minha prima. Não gostei minimamente
quando ele lhe perguntou se ele poderia ir, arranjando a desculpa de ser meu
namorado… Que mal me poderia acontecer no casamento da minha prima?
Estremeci só de pensar… Realmente era uma ideia engenhosa, seria a melhor
maneira de permanecer perto de mim. Mas tão perto assim?

     Mal eu tinha terminado a chamada, ele já se tinha levantado e desaparecido do
nada… Voltou segundos depois, levando-me novamente para o quarto. Mal aquela
mulher chegou já sabia que seria uma noite cheia de escolhas e mais escolhas para
estar apresentável naquele casamento. Por isso tinha andado tão rápido, para que
tudo fosse feito a horas de estarmos presentes naquele casamento.




     Não tinha dormido nada bem, esta ideia de expor um imortal apenas por falar
demais me estava a preocupar imenso… Teria de me afastar o máximo da minha
família para que não reparassem nesta farsa. Todo o cuidado era pouco. Já me
batiam à porta, parecia que já estava na hora dessa farsa, só me faltavam os sapatos
para que estivesse pronta. Saí da casa de banho e fui abrir a porta, aquele aroma
rapidamente se instalou nos meus pulmões, me deixando extasiada com toda aquela
formalidade que tinha… Seu fato era bege, contrastando com o meu vestido verde-
esmeralda. Ficava como um anjo, para mim os anjos teriam o cabelo dele, sem
qualquer dúvida… Aqueles olhos olhavam para mim, aqueles olhos que me iam deixar
ficar completamente perdida se me continuassem a olhar assim…

     Estava na hora de irmos. Não podia deixar perder-me assim. Consegui deixar
de o olhar, depois de um pouco de esforço… Então lá fomos nós, prontos para esta
farsa. O dia ia tornar-se longo…

     Por mais que tentasse, ele nunca me tinha largado a mão, nunca se tinha
afastado de mim… Até na fotografia de família ele teve de entrar, ficando de meu
lado. Toda a família estava radiante com o casamento, e radiante com eu estar com
alguém na minha vida. Sempre fora uma família cujo único objectivo era casar seus
filhos e ter seus netos, estavam todos esperançosos que eu tivesse o mesmo destino
que todos. Detestava tudo isto por essa pressão, era ultrajante estarem toda uma
vida a pensarem nessas coisas.

     Mas o mais estranho era a expressão de Salvatore, eu nunca sabia o que ela
queria significar até vê-la em alguém… O noivo olhava assim, do mesmo jeito, para a
minha prima… Essa ideia arrepiou-me, ele talvez pensava que era frio pois tirou o seu
casaco, colocando-o sobre os meus ombros e abraçando-me, para me manter
quente. Tudo na minha cabeça se desligou, sentia meu coração correr novamente,
deixando-me de um modo estranho, encostei a minha cabeça ao peito dele, mas não
era uma tontura pois tudo piorou… O coração continuou a bater cada vez mais
rápido e a minha respiração estava cada vez mais rápida.

     Não sabia quando tinha saído dali, apenas sabia que estava na piscina,
sentindo subitamente uma grande vontade de ver o peito que me tinha aquecido.
Meus dedos iam deslocando-se lentamente pelos botões, desapertando um a um até
que poderia libertá-lo da camisa. Se a água estava fria eu não podia sentir,
estávamos todos molhados e não podíamos ficar com esta roupa molhada, o melhor
era que eu o ajudasse a tirar a dele para que não tivesse frio. Eu não tinha reparado
que toda aquela roupa que me tinha dado frio estava espalhada, flutuando pela
água… Apenas queria tocar naquele corpo que estava ali, para que eu tocasse e
abusasse dele. Hum… Como a sua pele era macia e o seu toque me aquecia… Seus
lábios no meu pescoço sugavam, querendo mais e mais, procurando a minha face,
subindo até aos meus lábios, abrindo-os e brincando com eles. Seus olhos se
cruzaram com os meus, perguntando-me o que se iria passar de seguida, desejando-
me e querendo perder-se nos meus olhos… Perder-se em mim…

     Eu não podia, não podia fazer isto! Tinha de correr dali, tinha de fugir dele…
Não podia fazer isto, não queria ficar com ele… Queria fugir, queria deixar tudo
para trás…

     Separei-me dele e tentei correr, tentei fugir. Apenas consegui sair da piscina,
ele logo me alcançou e, pegando-me ao colo, abriu um portal… Tínhamos chegado a
sua casa, ao seu quarto, e minhas lágrimas escorriam vergonhosamente do meu rosto.
Ele me pousou suavemente na cama, deixando-me sem qualquer palavra, fechando a
porta e colocando a chave numa maleta, que fechou num cofre junto à cómoda que
se situava junto da poltrona. Ficou olhando-me lá, encostado à cómoda, estávamos
completamente molhados, completamente nus. Começou a aproximar-se, dando
passo a passo, como se estivesse dançando uma valsa, como se quisesse que eu
dançasse com ele, convidando-me a juntar à dança… Uma dança que quase me
rouba, quase me aperta cá dentro, não me deixando pensar claramente…

     Quando se aproximou o suficiente sentou-se ao meu lado, passando a sua
mão sobre a minha cara, limpando todas as minhas lágrimas… Encostou a minha
cabeça ao seu peito, continuando a passar-me a mão sobre a minha face, eu fui me
acalmando… Respirando cada vez mais profundamente, deixando-me levar pelo
compasso da sua mão aquecendo-me lentamente… Deixando-me concentrar apenas
na sua mão que me ia acalmando, fazendo meus olhos se fecharem, fazendo-me
perder nas suas carícias…
VI.    Esperança




     Sentia-me bem aqui… Não tinha frio nem muito calor, estava perfeito. Perfeito
demais, eu não podia negar mais o que estava acontecendo mas podia não querer
que acontecesse. Conseguiria manter o que não queria? Deixaria tudo isto para
que o que estava cá dentro permanecesse escondido, não permitindo que isso
saltasse à tona?

     Sentia o braço de Salvatore aquecendo a minha barriga, estava a prender-me
a algo que racionalmente não queria. Ia esperar que pudesse sair daqui para puder
pensar no que iria fazer agora. Eu sabia que por mais que pudesse, não iria
esquecer-me daquele seu cheiro…

     Finalmente podia sair, ele já se tinha movido para o outro lado. Agora podia ir
apanhar um pouco de ar, esclarecer as coisas que ferviam cá dentro. Peguei no
lençol que me aquecia e enrolei-o à minha volta, para que não sentisse o vento no
meu corpo nu. Inspirei todo o ar possível, apoiando-me à varanda como se fosse o
meu único barco de salva-vidas.

     A minha mente estava definitivamente perdida, não sabendo o que realmente
fazer. Se a minha vida tinha sido complicada, isso neste momento já não tinha
qualquer valor. Agora o que tinha todo o valor, por mais que não quisesse, estava
deitado naquele quarto…

     Meu corpo estremeceu quando senti as suas mãos sobrepostas nas minhas,
sussurrando um bom dia para mim. Emanava aquele aroma que estava tão perto de
mim, fazendo que me esquecesse de tudo, fazendo-me esquecer de mim…

     Minha respiração descontrolada ia contra aqueles lábios, abrindo-se e
entregando-se completamente. Palavras não iam adiantar de nada agora, nada que
pudesse pensar me iria fazer mudar, eu estava agora, aqui com ele. Como deveria de
estar. Não importava o como, onde e quando. Apenas importavam estes momentos
que nós tínhamos, ele seria o meu palácio se quisesse. Não queria saber da
imortalidade nem de mim, o que importava era o que eu desejava, o que queria.
Já não me importava se estava em perigo, poderia morrer até, desde que ele
permanecesse ao meu lado. Tinha encontrado o meu próprio pedaço, o meu
Salvatore, apenas precisava de o ter a meu lado.

     Meu corpo se arrepiava, o lençol tinha-se desprendido de mim, sentia seus
lábios quentes sobre a minha pele, fechando meus olhos podia sentir todo o seu
calor, enquanto me levava de volta para a cama. Pousou-me suavemente,
permanecendo imóvel até que eu olhei para ele, ele sorriu para mim. Aquele sorriso
mexeu cá dentro, desejando saber como ele ficaria quando lhe tirasse aquele sorriso
da cara. Empurrei-o, deitando-o ao meu lado na cama, passando minha mão pelo seu
corpo aos poucos, descobrindo novas sensações e tirando aquele seu sorriso da
cara, o deixando ofegante. Não o iria deixar com capacidade de sorrir para mim,
aquele sorriso fazia-me querer mais e mais…

     Queria olhar vezes sem conta o seu olhar, sentindo o seu cheiro se misturando
com o meu… Era tão bom que tudo isto fosse duradouro, mas eu tinha um destino
diferente do dele… Não iria ser imortal, acabaria por não puder mais estar deste
modo com ele, me encadeando e deixando ser eu mesma. Queria captar cada
pedaço dele, para que pudesse jamais esquecer tudo o que ele era para mim.

     Pensar em perder estes momentos me deixava com um vazio cá dentro, sem
puder fazer nada que me desse um sentido na vida. Deixei-me levar pelas carícias
que ele me fazia, mas teria de me manter racional para que nunca me esquecesse de
tudo o que Salvatore me poderia sentir? Racionalizar era um imenso erro
certamente. Apenas sentir bastava para que nunca me esquecesse.




     Os dias iam passando e iluminando cada parte da minha nova vida, adorava
tudo o que via, adorava tudo o que Salvatore fazia para tornar a imortalidade o mais
mortal possível. Tudo parecia como se duma cidade qualquer se tratasse, como se
ele fosse um qualquer. Mas não era, tudo parecia ter sido feito para a pessoa ideal,
não poderia ver o mundo tão bem guardado sem os Magnificat o protegendo. Era
maravilhoso! Tudo o que era feito para nunca faltar nada para que a humanidade
conseguisse sobreviver às desgraças que Francesca tramava. Ele ainda não tinha
conseguido arranjar um modo de a destruir, e isso o torturava, eu podia ver isso
dentro do seu olhar, enquanto me contava o que se passava nas reuniões. Parecia
que Francesca se estava a tentar aproximar de algo mas, por mais que tentassem,
ainda não tinham conseguido descobrir.

     Eu estava preocupada, não a conhecia mas sabia que de certeza que não seria
nada de bom e poderia meter Salvatore em perigo. Detestava que esse pensamento
me passasse pela cabeça, mas era essa a dura realidade. Ela desejava acabar com
ele para que pudesse ficar com Magnificat e assim ir com os seus planos avante, sem
que ninguém a impedisse. O pior é que parecia que eu seria a chave, mas eu era
apenas uma humana vulgar. Como seria eu a chave para tudo isto? Katie sempre me
repetia que eu era a única que poderia destruir a defesa de Magnificat e que
Francesca sabia disso. Eu gostaria de saber como, não sabia o que eu tinha de
especial, talvez fosse por ter roubado o coração do regente de Magnificat. Temia
só em pensar o que ela poderia fazer comigo contra Salvatore, eu faria de tudo para
que isso não acontecesse.

     Agora podia ir com ele à cidade, mas estava tão radiante por o ter ao meu lado
que na realidade isso já não tinha importância. Por mais que Magnificat fosse
maravilhosa, eu continuava observando aquele rosto que se mantinha sereno ao meu
lado, aquele que sorria para mim… Ele sorria com vontade que eu lhe tirasse esse
sorriso, poderia até afirmar que ele queria mesmo que eu o fizesse. Tudo o que tinha
pré-desenhado para a minha vida se tinha esfumado em poucos dias, lá estava o
desenho do meu futuro: aquele sorriso que me dizia que era apenas para mim, que só
eu o poderia tirar.

     Queria permanecer ao lado dele, sempre. Eu sabia que mais importante do
que o tempo que eu ia viver era apenas se ele estaria nesse tempo. Poderiam ser
anos, poderiam ser segundos… Apenas o queria ao meu lado, o resto não importava.

     Katie me tinha dito que ele não me tornaria imortal sem que ele perdesse essa
imortalidade. Na transformação era necessário que houvesse uma troca, a
imortalidade era uma partilha que Salvatore fazia com quem tinha um pedaço seu,
retirando-lhe esse pedaço e dando a imortalidade como prémio. Eu não tinha
nenhum pedaço, não podia dar nada mais do que a minha frágil mortalidade para ele.

      Eu estremeci, só de pensar isso me doía cá dentro. Eu jamais queria viver mais
do que estava destinada, muito menos se quem eu mais amo fosse fazer parte dela
apenas por um tempo. Ele me olhou com curiosidade, não sabia o que se tinha
passado comigo e eu não estava disposta a dizer-lho.

      Sorri para ele, encostando a minha cabeça ao seu peito para que deixasse de
pensar. Eu nunca conseguia pensar quando estava tão perto dele, tão perto do seu
aroma que me enlouquecia. Sorri ao pensar nisso… Definitivamente tinha paz dos
meus pensamentos, eles fugiam da minha cabeça e me deixavam apenas pensando
naquela paz… Pensando no que iria certamente acontecer quando estivéssemos em
casa. Casa! Como a minha vida tinha mudado, lá estava eu, num palacete, chamando
de casa… Era o meu lar, se Salvatore quisesse que fosse. O meu lar era ele, tudo o
que rodeava se tornava em nada quando sentia a sua pele na minha, sendo apenas
um só. Imortalidade e mortalidade unidas, sem que o tempo nos fosse acrescentado.
Não existe tempo para quem ama, o tempo foge, se esconde.

      A única coisa que não me conseguia habituar era ser o centro das atenções
para todas estas pessoas imortais. Talvez eles se perguntassem a razão pela qual o
regente tivesse trazido uma mortal para a sua cidade, sabendo o que me acabaria por
acontecer. Mas não queria pensar nesse fim, só a ideia de não puder mais ver aquele
olhar me acalentando, torná-lo num olhar fechado e negro… Essa ideia atormentava-
me.




      Adorava a noite, era o melhor momento para nós. Talvez fosse o único
momento em que estávamos juntos sem que alguém pensasse no que nos iria
acontecer. Desde sempre detestei pensar no futuro, apesar de o ter feito desde
que me lembro... Tudo se tornava em ilusões esperadas e ilusões que não
aconteceriam. Mas aquela ideia de viver um dia de cada vez era difícil para mim, eu
gostava de sonhar. Queria agora deixar que o futuro se desenvolvesse por si.
Esperar que algo aconteça tinha deixado de ter importância pois tinha tudo o que
era necessário.

        Ri-me do que me veio à cabeça, tinha tudo o que era necessário: muita
imaginação, uma cama e o meu objecto preferido em que passava agora o tempo a
imaginar. Salvatore fazia-me tanto bem que eu necessitava de lhe dar do meu bem,
isso me fazia feliz. Deixa-lo feliz era tão importante para que aquele sorriso
permanecesse sempre naquela cara que me dava tanta vontade de beijar. Perdia-me
naqueles olhos, naquele corpo, naquela voz… Encontrava-me nele, ele era o que eu
andava à procura. Poderia fazer tudo com ele sem que ele se importasse, podia ter
mil e um desejos que ele nunca iria vacilar. Era interessante pensar no que ele
poderia querer de mim, ele já tinha tudo! Tinha vida para fazer de tudo, para viver de
tudo.

        Mas agora ele estava na casa de banho, eu esperava que ele viesse para perto
de mim. Não sentir aquele cheiro me fazia sentir vazia, não conseguia sorrir sem que
ele olhasse para mim, não me sentia bem sem ouvir a sua voz no meu ouvido,
sussurrando tudo o que eu precisava de ouvir. Ele era tudo o que eu tinha para me
manter bem, a ideia de o perder me deixava louca, mas logo o sentia e tudo voltava a
ser meu. Eu estava bem apenas vivendo toda aquela maravilha que ele era.

        Lá vinha aquela maravilha em minha direcção, pegando em mim e me levando
para junto dele. Ficamos molhados como da primeira vez, aquela primeira vez em que
este louco me tentou salvar… Ele salvou-me de mim, roubando-me.

        Desta vez eu sabia o que fazer com aquele olhar, ficaria gravado para sempre
em mim a sua respiração contra o meu corpo, estremecia a cada novo toque e sorria
enquanto lhe dava resposta a toda esta loucura. Éramos loucamente felizes, loucos
de sentir tudo em tão pouco. Desejava que tudo se transformasse em cada vez mais,
com ele nada era igual. Seria sempre diferente, eu queria que fosse sempre
diferente. Eu o amava e não tinha qualquer pena disso, não havia mais nada que eu
quisesse no momento. Amar sem fim, ser amada sem fim…
Tudo tão perfeito, todas as imperfeições nos fazia elevar o nosso amor ao
melhor de sempre. Cada momento de prazer se elevava ao máximo, não me deixando
outra coisa a fazer senão responder aquele homem que me endoidecia tanto.

     Sentia-me tão feliz que não poderia jamais descrever… Apenas sentia e ficava
esperando que pudesse tortura-lo tanto como me torturava agora. Seus lábios iam
beijando-me o pescoço, indo lentamente até a minha boca que esperava
ansiosamente, mas quando se aproximava, voltava para trás, brincando com a minha
pele, deixando-me uma sede dele que jamais poderia saciar.

     Aquela água nos batia suavemente na pele, estava fria agora, parecia que
nada poderia estar mais quente do que nós juntos, brincando com carícias e sentindo
as reacções do outro… Era maravilhoso este homem que me deixava completamente
doida, partindo o amor que sentia por ele em mil pedaços, espalhados por cada parte
do meu corpo, fazendo-me amá-lo por inteira. Se todos os dias da minha vida
acabassem comigo partida em mil pedaços, perdendo-me totalmente nele, deixando-
o partir-me por inteiro, eu jamais queria que eles acabassem. Ficava contente por ele
estar sempre disponível, disponível só para mim…
VII.       Cativa




      Meus sentidos estavam todos apenas numa coisa só, tentava permanecer
imóvel para que Salvatore não reparasse que eu já não estava a dormir. Adorava a
forma como ele me mexia o cabelo, sentia-me arrepiada mas era muito bom sentir os
seus dedos flutuando pela minha pele, enquanto movia meus cabelos e tentava não
me acordar… Era tão cuidadoso que eu adorava aquele momento do dia, mas
parecia que ele já tinha reparado que eu estava acordada pois seus dedos passaram
a massajar o meu corpo enquanto seus lábios passeavam pelo meu pescoço, indo em
direcção do meu ouvido e beijando-o. Ele sabia o quanto avassalador isso era?
Fazia-me tremer, e beijava novamente o meu pescoço, passeando seus dedos como
se tentasse tocar alguma melodia, talvez fosse a melodia da loucura pois eu estava a
ficar louca.

      Como continuava a permanecer imóvel, apesar da enorme dificuldade em me
concentrar nisso, ele deixou de me torturar, deixando-me numa tortura ainda maior…
Não o sentir do meu lado era como não sentir a vida, parecia que estava a dar
resultado, o meu corpo já não queria obedecer-me. Deixei que ele se saciasse, meu
corpo queria enlouquecer, gritar com todas as letras que o amava.

      Mostrar-lhe o quanto o amava, morder-lhe de tanta tortura e sugar-lhe de
tanta loucura. Sua pele ardia na minha, seus olhos incendiavam de tanta tentação, a
loucura estava certa nesta manhã. Eu gargalhei ao pensar nisso, seria uma manhã
muito curta, mais valia aproveitá-la ao máximo! E como eu ia fazê-lo! Agora sim
estava uma completa louca, sorrindo de triunfo perante o homem que ofegava tanto
como eu. Não sei o que poderia ser melhor, torturar ou ser torturada. Talvez o
melhor fosse o total de cada um, e não me faltaria tempo para o fazer. O melhor seria
deixar que esta manhã se tornasse em dia, o melhor era se pudesse ser uma
eternidade. Mas os momentos passavam a horas e os dias teimavam a correr, estava
tudo a correr de mim, queria agarrar tudo e ficar neste momento…
A cama que tinha ardido em chamas já estava fria, já a algum tempo que
Salvatore me tinha deixado a dormir. Certamente tinha-se reunido novamente, para
saber se já sabiam algo sobre os planos de Francesca… Eu sabia que ele se
preocupava a cada vez mais e mais por não saber o que se estava a passar. Não
queria que ele se preocupasse tanto, se eu pudesse ajudar em alguma coisa…. Mas
eu era apenas uma mera mortal, não tinha nada que fazer para lhe resolver os
problemas. Sentia-me completamente inútil.

     Bateram à porta do meu quarto, não era habitual que o fizessem… Era mesmo
estranho… Será que tinha mesmo de abrir? Apenas queria continuar a pensar numa
maneira de o ajudar, de conseguir tirar aquele peso da sua cabeça… Outra batida,
ainda mais forte que a anterior… Ter-se-ia passado algo com ele? Pulei da cama e
depressa vesti uma peça de roupa que estava deitada na poltrona, não importava o
que realmente vestia. Mais uma batida, mesmo antes de eu abrir…

     Fiquei imóvel, espantada ao ver aquele homem me observando. Pedro era
imortal? Acho que fiquei mais pálida do que o previsto pois o seu olhar ficou ainda
mais estranho que o que eu me lembrava, quando o tinha visto no meu estágio. Ele
agarrou meu braço e me guiou para algures… Eu não estava a entender nada, o que
ele estava a tentar fazer? Tentei soltar-me, mas sem qualquer efeito… Antes que eu
tivesse pensado em gritar já ele me tinha prendido, tapando a minha boca. Ia em
direcção a um buraco nas árvores que nunca tinha reparado que lá estava…

     Entramos nesse buraco até ao interior do chão de Magnificat, não sabia
minimamente o que se estava a passar. Meus olhos não se conseguiam adequar à
pouca luz que iluminava o caminho, também não precisava muito de ver pois estava a
ser elevada para que não houvesse qualquer capacidade de fugir.

     De repente deu-se um ligeiro clique na minha cabeça, será que era Francesca
que estava por detrás de tudo isto? Eu jamais iria ajudá-la a destruir algo como
Magnificat. Não queria fazer parte disto, Salvatore era a única coisa que me
importava, ele e tudo o que tinha criado para o bem da humanidade…
Tudo o que receava finalmente se confirmou, era Francesca que estava por
detrás de tudo isto. Estava agora numa sala em que tudo era sombrio e pouco
iluminado, ao centro da sala estava uma criança de cabelos loiros, me observando
enquanto eu era levada para junto dela… Seu olhar sombrio me dava vontade de a
esfolar viva, pena que ela fosse imortal e eu não conseguia sequer lhe ferir. Era
inútil, não poderia acabar com ela pois era apenas uma mortal indefesa, poderia fazer
tudo o que quisesse de mim, torturar uma mortal era extremamente fácil, mas eu me
iria conter o suficiente, nem que tivesse de morrer por isso.

     O rosto dela ficou mais gelado, parecia que a minha determinação se notava
na minha expressão. Ela jamais iria conseguir arrancar-me algo. Por mais mal que ela
quisesse a Salvatore, a minha morte seria um peso mas havia algo muito mais
importante, a humanidade estava toda em perigo. Eu sei que ele conseguiria detê-la,
mais cedo ou mais tarde, não me importava que eu não pudesse estar do seu lado
para ver Francesca morta. Faria de tudo para que eu não fosse a destruição de
tudo o que fora construído mesmo antes de eu existir.

     Agora estava de joelhos no chão, mas não baixava o olhar daquele rosto que
estava determinado em ceifar a vida de todos os que não se juntassem a ela. Eu
poderia travar este monstro? Mas como poderia fazer?

     Ela se levantou, se aproximando de mim, seu aroma era igual ao de Salvatore e
isso confundiu-me. Estariam os dois ligados por aquele raio imortal? Cada passo
que ela dava em minha direcção fazia crescer em mim o ódio por ela, me fazia querer
matá-la mais e mais… Tinha de haver algum jeito de a destruir, mas não sabia como o
fazer, não sabia como matar uma imortal, eu era apenas uma mortal…

     Mas afinal de contas o que ela me queria? Eu achei muito estranho quando ela
mandou que todos saíssem para que pudéssemos ficar a sós. Pensava que ela me iria
torturar até que eu aceitasse destruir tudo por ela, mas parecia que o seu esquema
era ainda mais perigoso… Teria de me manter à deriva e aceitar tudo sem muitas
complicações, mas com algumas contradições para que ela não reparasse        que eu
estava a tentar arranjar uma forma de acabar com ela. Quando todos finalmente
saíram, ela recuou e voltou a sentar-se, observando-me…
Estava agora por detrás da casa, deitada no jardim pensando no que eu tinha
acabado de fazer. Eu sabia que estava a ser vigiada pela Francesca e ao mínimo
detalhe ela iria matar todos aqueles que eu amo, eu jamais permitiria que a minha
família fosse destruída por causa de Magnificat. Ela realmente sabia que a tortura
não iria resultar, talvez fosse por isso que agora a minha família estava em risco, eu
seria a chave para tudo. Só não sabia como contar tudo a Salvatore, sendo vigiada
a todo o tempo.

     Era por isso que ele nunca sabia os passos seguintes dela, todos os seus
olhos estavam postos sobre esta casa, sabendo cada passo. Eu teria de me manter
exactamente igual, permanecer aquela humana mortal que amanhã já não seria. Eu
aceitara o seu acordo, mas iria usar isso contra ela. Transformar-me em imortal seria
um erro que ela não iria querer ter cometido, eu não me importava nas consequências
da morte dela para a minha nova vida, eu sabia eu se eu não a matasse não
conseguiria salvar nada nem ninguém.

     Respirei fundo, pensando da forma como iria dizer a Salvatore tudo isto sem
que Francesca sequer sonhasse… Teria de aproveitar as nossas noites, esse era o
único momento que lhe poderia sussurrar a verdade, enquanto ele se perdia em mim…
Ia ser cruel na realidade, manter-me racional para que pudesse ter o seu apoio.
Estava a procurar todas as maneiras possíveis de lhe contar, mas esta era a melhor
de todas.

     Não lhe tencionava contar o que estava eminente no contracto, não queria que
ele desejasse perder tudo apenas por mim. Afinal de contas eu acabaria por morrer,
sendo tão mortal como eu era. Agora iria ser imortal e preparava a minha morte…
Era uma tremenda ironia, só esperava ter o apoio incondicional de Salvatore, para
que tudo não custasse tanto. Eu sabia que tudo ficaria bem depois, não importava
realmente o que se passaria comigo depois, desde que todos permanecessem
seguros.

     Eu queria saber como conseguiríamos aniquilar aquela destruidora de vidas.
Eu já sabia onde ela se refugiava, já sabia onde a poderia encontrar para acabar
com ela. Mas teria de me manter quieta o suficiente para que ela não desconfiasse
de mim, até mesmo chegar a acreditar que eu realmente estava no lado dela. Isso sim
seria o que ela merecia, que eu lhe mostrasse quem iria morrer! Tinha de ser
cautelosa para que nada corresse mal ou então seria o meu fim, o fim de todos nós.

        Agora era a vez de manter as aparências, iria ter com Salvatore e faria como
se nada tivesse acontecido, ele não devia desconfiar de nada antes que eu lhe
pudesse contar. O importante agora era criar um pouco de confiança naquele
monstro, e nada melhor do que fazer o que ela queria. Eu sabia que amanhã o Pedro
voltaria para me levar novamente, quando soubesse que não haveria risco de eu ser
apanhada para que eu fosse transformada. Como se eu não os tivesse a apanhar a
eles!

        Teria de fingir que dormia, isto de ser mortal era complicado… Um imortal teria
muito pouco que dormir e que comer, apenas dormiam umas duas horas por semana e
comiam uma vez por dia. Eu tinha reparado nisso quando comecei a conviver com
Salvatore, muitas vezes me sentia mal por ele ter de permanecer ao meu lado apenas
para me proteger, e tinha falhado pois o perigo estava literalmente por debaixo dos
nossos pés.

        Gostaria de saber como é que eles tinham conseguido criar aquela espécie de
casa debaixo da própria cidade de Magnificat e a razão pela qual nunca tinham
atacado antes… Estava desejosa de ouvir as justificações de Francesca. Talvez o
meu súbito interesse pelo tema a fizesse pensar que eu estava realmente orgulhosa
de estar do seu lado, sentir que eles é que eram o lado certo para mim. Eu realmente
acreditava que isto estava certo, ficava feliz por puder ajudar Magnificat e o seu tão
apreciado regente. Apenas teria de ser uma verdadeira artista, moldando tudo em
volta da grande mentira, eu agora era a única pessoa que poderia permanecer em
ataque sem que ninguém desconfiasse.

        Enquanto estivera com ela, tentando parecer que estava a entender tudo o
que ela acreditava, que apenas queria manter os melhores, sendo ela a governadora
do mundo de imortais. Toda a mortalidade iria ser arrasada e ela governaria todo o
planeta sem qualquer possibilidade de ser destronada.
Eu rapidamente vi que a ambição tinha gerado tudo isto, mas tinha criado algo
maravilhoso: um imortal com ânsia de manter o mundo em paz, exactamente como era
antes de ter sido feito aquele feitiço que iria transformar aquela pequena menina
numa poderosa e destrutiva rainha do mundo.

     Apenas teria de mostrar tanta ambição como ela, me fazer grande aliada aos
seus olhos, fingindo que esse mundo que ela sonhava seria o melhor a ser feito. Não
parecia ter sido muito difícil a enganar, certamente ela já teria tentado convencer
Salvatore do mesmo, mas não tinha tido sorte. Por mais imortal que fosse, ele
permanecia um humano, sentindo e querendo viver como se a sua vida tivesse algum
final. Eu estremecia de temor só de pensar num final, eu jamais pensaria que ele
poderia ser aniquilado.

     Eu pensava em várias explicações para eu ser a chave da destruição dele mas
não conseguia encontrar qualquer resposta. Acreditava que depois de Francesca
me transformar eu iria saber, não gostava minimamente dessa ideia… Teria de manter
as aparências, parecer normal para Salvatore e ambiciosa para ela. Ia ser um grande
pedido à minha parte artística, apetecia-me contar tudo a ele e dizer-lhe tudo o que
se estava a passar. Mas antes teria de me acalmar pois esta noite seria doce, eu o
teria apenas para mim.




     Não sei se foi por puder mudar tudo isto, ou talvez porque o desejava mais que
tudo. Esta noite parecia incrivelmente insaciável, não conseguia me cansar de estar
com ele e perder-me nele. Seus braços animados me abriam um conjunto variado de
sensações, me deixavam indefesa perante aquele homem que me pegava e incendiava
todas as partes do meu corpo. O coração já seria cinza se não conseguíssemos
apagar este fogo todo, mas eu queria mesmo que ele fosse pó. Assim meu coração
entranhava-se em Salvatore e jamais o deixaria, ele já me tinha por tudo e em tudo.
Queria fazer parte dele todo o tempo, estar nele era como nunca mais querer voltar.
Ficaria dentro daquele meu abrigo e permaneceria nele sempre, para sempre.

     As chamas que nos envolviam nunca deixavam de queimar os nossos
movimentos frenéticos, desejando que esse fogo se tornasse mais e mais, bem cá
dentro… Se eu não me pudesse cansar, se não precisasse de comer ou dormir, não
me importaria de sentir essas chamas sempre aumentando. Gostava de pensar que
apenas aqueles momentos serviriam para que me alimentasse, não o corpo, o corpo
tem o seu próprio alimento. Essas chamas alimentavam a minha motivação, o meu
amor crescia ardorosamente e a determinação para acabar com todo este sofrimento
ia se envolvendo mais e mais.

     Eu conseguiria, estava pronta para todo o dia de amanhã. Estava impaciente
para que tudo terminasse e voltasse a puder arder nele, me mantendo como parte da
sua alma. Meu sorriso não deixou de teimar em permanecer na minha face, eu estava
feliz e nada iria mudar isso. Eu poderia ajudar a única pessoa que me fazia sorrir, eu
estaria lá para que ele deixasse de se preocupar com Francesca. Era inevitável a
minha decisão, iria acabar com tudo não tardava nada. Agora necessitava de dormir
para que Salvatore não suspeitasse de nada…
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  • 2. Olhos que se fecham, ouvindo os sons que ecoam dentro de nós. Não são eles que nos devolvem a paixão de momentos passados e momentos criados? Melodias que vão acalentando cá dentro, como se dissessem que cuidam de nós, que nunca permitirão que nós deixemos de sentir esta grande paixão pelo que fazemos, pelo dom que temos. Paixões essas que nos dão sentido à vida, que nos fazem sermos realmente quem somos. Todos somos um pouco de todas as melodias da vida… Amores, desamores, mágoas… São tantas as coisas que nos fazem gritar cá dentro, que nos faz sangrar até ao mais íntimo. Por vezes conseguem até matar, de tanto que fervem cá dentro. Mas são tantas as coisas que sentimos, tantas as coisas que fazemos, tantas as coisas que amamos e que temos paixão que muitas vezes apenas pensamos no que queríamos ter, não olhando à nossa volta, não vendo que o que mais queremos está muitas vezes tão perto. Tantos altos e baixos, tantas sensações… Um turbilhão de emoções…
  • 3. I. O Início. Numa noite como tantas outras, em que uma saída normal não se tornaria tão normal assim. Jamais haveria tal acontecer na vida de Salvatore, um simples mortal que sentia o mundo apenas quando se sentia em casa, não num habitual lar em que tudo nos pertence e nos faz sentir donos da nossa própria vida, mas num lugar que nunca o deixava voltar a ter vontade de jamais esperar. Não seria de esperar, nem de alguém pensar em tal lugar para se sentir realmente verdadeiro, ficar preenchido por dentro e voltar à mundana vida que esta humanidade nos dá, era um local de esperanças e desesperos de quem nunca voltará a deixar de sentir a perda. Mas ele perdia-se por dentro, divagava pelos vários momentos da sua vida e de todas as vidas que continuavam a esperar chegarem ao final, ou seria o inicio? Inconscientemente, na luz que lhe acalentava cada poro da sua humilde vida, nunca imaginaria que pudesse ver tal tormento. Chamas iluminando a noite, onde as estrelas da noite não vieram e as nuvens das tormentas teimavam a permanecer e a ceifar cada brotar de vida circundante, saíam do céu como se quisessem gritar ao mundo as verdades que preenchiam cada pecado praticado por todos. Salvatore avistou essas chamas que começavam a varrer a cidade, matando cada pessoa em que caísse. Multidões corriam em busca de protecção, procuravam o lugar que Salvatore chamava paz, corriam em busca da vida, poupando a sua. Muitos iam sendo atingidos, muitos não conseguiam, mas Salvatore tentava, tentava ajudar… Os gemidos de dor e de mágoa iam aumentando, o medo das chamas os atingirem antes que estas cessassem fazia-nos gemer e pedir amparo, corriam e apenas pensavam na sua vida, ultrapassando muitos que já não conseguiam avançar mais, esmagando-os como se pequenos ramos fossem. Todos corriam, todos gritavam de medo e de dor, uns por avistarem as chamas a vir em sua direcção, outros ao ver o sofrimento que iriam acabar por ter… Salvatore também temia pela sua vida, mas ao ver uma pequena menina, decidiu correr para a resgatar. Tinha uma cara tão apavorada, cheia de medo, chorava num canto, tapando a cara, não conseguindo ver nada, desejando que seus pais estivessem bem… Como poderia salvá-la se nem sabia se ele estaria a salvo? Não
  • 4. pensou mais, ele pressentia que ela merecia ser salva, que ele poderia dar a sua vida pela dela… Quando se aproximou e pegou-a ao colo, viu que ela trazia um coração, um pedaço de metal em forma de coração, um simples coraçãozinho que lhe punha a vida em risco. Depressa tirou o colar de seu pescoço, mas o raio já os estava a atingir, atingindo-o no braço, mas a única coisa que pensava era em tirar aquela menina dali. Tentou levá-la até à campa de sua mãe, onde se sentia sempre em paz, para que ela o ajudasse a voltar a ter forças e puder salvar a menina. Mas depressa tudo se apagou… As chamas finalmente cessaram, no centro da cidade havia um mar de corpos queimados, vários eram aqueles que tinham expressões de terror. O cheiro era nauseabundo e alguns corpos tinham sido esmagados, deixando todo o interior dilacerado… Vários animais estavam do mesmo modo, queimados ou esmagados pela angústia anteriormente vivida e que apenas deixou um rasto de morte. Salvatore não sabia como tinha chegado à cidade, apenas se lembrava de estar a suportar aquela menina. Decidiu ir a caminho do único lugar que tinha memória antes de tudo se ter apagado. Não sabia como estava vivo e desejava saber se algo ou alguém tivesse conseguido. A cidade ainda era distante de sua casa, que se encontrava ao lado do cemitério. Há vários anos que era vizinho do coveiro, agora era seu filho que lá trabalhava pois o seu amigo Henry já lá tinha cinquenta anos, mais três que os seus. Lembrava-se do dia em que o tinha conhecido, depois de ter regressado ao local onde sua mãe nascera, antes de se mudar com o seu pai para Roma, depois de sua mãe ter morrido. Inicialmente Roma fascinava-o, tentara ser artista, mas em vão pois de artes só sabia apreciar. Depois de muitas tentativas para que o deixassem aprender, acabou por não ver nada nele que realmente fosse artístico. Não tinha vivido o suficiente para querer pintar, ou não tinha vontade de o fazer… Só mesmo noutra vida é que poderia ter a sorte de calhar num corpo que tivesse a criatividade e o sonho que havia perdido à muito.
  • 5. Depressa as suas divagações esvoaçaram, focando-se num arvoredo que parecia mexer-se. Alguém teria escapado e ficando assim protegido e ter-se escapado das chamas? Não sabia como tinha escapado, pois não se lembrava de mais nada depois do apagão, nem fazia a mínima ideia de como tinha chegado ao centro da cidade… Mas estaria muito feliz por ter alguém que se tivesse salvado daquela tão abaladora tormenta. Ia-se aproximando lentamente pois não sabia o que estava naquele local a mexer-se. Para seu espanto, era apenas um pequeno gato que estava dormitando entre o arvoredo, parecendo não notar nada do que se tinha passado anteriormente. Apenas ia dormindo o seu sono profundo e talvez sonhava com muito sol enquanto brincava com tudo o que o rodeava, não sentindo qualquer coisa que viesse do mundo exterior deste sonho tão pacífico como os dias anteriores. Era tão bom que todos os momentos fossem apenas um sonho dele, que acordasse deste terrível pesadelo… Pena que o que via e cheirava parecia real demais para apenas um sonho, nas o quanto desejava que disso se tratasse! Seu pêlo era tão negro, tão brilhante como a lua que sobre eles brilhava… Esperava que houvesse alguém que tivesse sobrevivido como eles, alguém que lhe pudesse acordar e deixar que ele parasse de procurar outras vidas. Era curioso, tinha voltado para fugir de si mesmo e acabara novamente como tinha chegado: com esperança de que pudesse ser ele mesmo e acabara novamente com ele próprio, novamente procurando… Seria ironia se não houvesse tal acontecimento, ele acabara com vontade de fugir de tudo, sua vida nunca teria paz? Desejava ter alguém ao seu lado, ser compreendido e amado, amar e observar alguém… Tinha encontrado amigos maravilhosos, finalmente tinha-se sentido bem mas tudo se acabou após sete anos de felicidade… Não podia voltar a ter alguém, iria voltar a destruir essas vidas, voltaria a sentir-se só e pior, causar a infelicidade ao outros. Pelo menos tinha este gatinho que seria a sua companhia… Queria mudar esta cidade que fora destruída, mas primeiro iria procurar pelos seus amigos, por aquela rapariguinha que tentara salvar antes de tudo se ter apagado.
  • 6. Quanto mais se aproximava, aqueles corpos angustiosos mais o torturavam… Não sabia o que poderia ver quando chegasse perto de sua casa, mas nada o confortava… De certeza que não iria gostar nada de ver o seu querido amigo tão chamuscado como os outros, poderia suportar tudo se ele não tivesse no mesmo estado que os outros. Ia caminhando como que ia para um precipício, esperando que alguém o arrancasse deste terror que lhe ia quebrando cada pedaço do seu interior, deixando-o totalmente partido na sua solidão. Quando chegara, Henry fora o seu melhor amigo, ele o levou e deixou que ele não voltasse a divagar por entre a neblina. Desejava que ele estivesse agora ao seu lado para o acompanhar e dizer-lhe que tudo ficaria bem, mesmo que não fosse assim que ia acontecer. Seus olhos brotaram lágrimas, deparando-se com o seu amigo encostado junto de uma fonte, fechou os olhos para parar com esta tortura. Seu amigo estava quase irreconhecível, seu peito estava aberto e em volta dele havia um rio de sangue… Parecia ter sido o ultimo jantar de um lobo que estava deitado mais à frente. Salvatore aproximou-se de seu amigo e tocou-lhe na face, as lágrimas percorriam aquela pele amarela, o coração dele estava tão estilhaçado como o do seu amigo, que tinha sido arrancado por aquele lobo. Ele abraçava-o, esperava que o acordassem e lhe dissessem que tudo estava bem, que não se tinha passado dum mau sonho, mas o pesadelo tremendo teimava em continuar torturando e quebrando cada parte do seu interior. Levantou-se, não podia fazer nada quanto ao seu amigo, ele estava com o olhar apontando misericórdia, pedindo que tudo não se passasse de um sonho, tal como Salvatore. Se pudesse… Ele queria arrancar suas entranhas, gritar com todas as suas forças, queria deixar de viver e dedicar-se apenas a devolver os pedaços que faltavam à sua vida. A sua solidão não vinha de toda esta destruição, ela perseguia-o e fustigava todos os que a tentassem afastar dele. Suas lágrimas nunca cessariam, seu coração despedaçado iria sangrar e chorar para todo o sempre. Ninguém merecia o que ele tinha feito, Henry não merecia perder a sua vida apenas por sua culpa. Sim, a culpa era toda dele, ele não
  • 7. tinha o direito de entrar na vida das outras pessoas e arrancar-lhes a deles. Sentia que a culpa era toda dele, todo aquele tormento se devia à sua paz que aquela cidade lhe provocava. Queria ver sua mãe, ela não estava viva mas estava sempre dentro dele, bem como agora os seus amigos que agora estavam mortos e queimados. Dava seus passos como se caminhasse para a sua morte, sua melodiosa cerimónia para o seu fim, não iria continuar a deixar que quem o rodeava sofresse por ele. Por essa mesma razão ia fazer o melhor para todos, o melhor para ele… O cheiro dos corpos que ia ultrapassando, toda aquela destruição já não lhe incomodava, aquele terror todo já não lhe dava medo, queria que tudo fosse rápido e sem grandes cerimonias, era o melhor… Seu corpo parou, seu sangue congelou e não consegui dar mais nenhum passo. Como seria possível? Devia de ser um pequeno pesadelo com certeza! Não havia qualquer possibilidade de ele estar ali, ao pé da menina que tentara salvar, tão morto quanto ela. Via seu corpo mas sentia-se vivo, conseguia respirar e mexer-se enquanto tocava em qualquer objecto! Como é que o seu corpo estava ali? Observou que aquele gato que tinha pegado ao colo o tinha seguido, se ele o via era porque permanecia vivo, mas como? Quando o gato começou a mover-se Salvatore não o seguiu, estava congelado nos seus pensamentos e naquela angústia. Afinal todos tinham morrido, mas então porque ele estava ali e aqui ao mesmo tempo? Seria um sonho, só podia ser um sonho… O gato agora andava às voltas, parecia querer mostrar algo… Ele parecia que sabia a resposta para todas aquelas perguntas, que sabia a razão daquele sofrimento todo. Seus pés moviam-se para se aproximarem do gato, a busca para todas as respostas parecia estar a acabar. Tinha na sua mão aquele colar que tinha tirado da menina, na sua mão morta… Levantou a sua mão, aquela que tinha tocado em Henry, ainda um pouco ensanguentada, limpou-a e viu que tinha a marca daquele colar na mão que agora tinha… Reparou numa poça de água que estava lá perto e não se reconhecia, o seu rosto de quarenta e sete anos estava naquele homem que
  • 8. tinha morrido, quem era ele agora? Perguntou isso ao gato, mas apenas o viu a deitar-se ao lado daquela mão que sustentava o colar. Voltou-se novamente para a água, aparentava ter vinte e poucos anos e seus olhos eram de um mar penetrante, um misto de azul e verde, um misto de vida e de luz. Seu cabelo era cor de terra molhada, como se tivesse surgido vida de uma pequena semente plantada, e ao mesmo tempo solto e revolto, esvoaçando pelo vento que despenteava seus cabelos. Salvatore não se reconhecia naquele corpo, seus lábios estavam tensos, como de quem quisesse descobrir toda a verdade. Sua pele era branca como o luar, nascendo de novo à vida, num novo ciclo, numa nova era… Não compreendia como se tinha tornado assim nem como tinha aquele colar marcado na sua nova pele. O colar! Como não tinha ainda reparado! Tudo tinha começado com aquele colar… Decidiu pegar nele, mas quando o fez tudo ficou branco…
  • 9. II. Nova vida. Custava-me a crer que minha vida se iria resumir a isto, uma sombra deitada num jardim a olhar os sinais da noite… Não sabia o que iria acontecer nesta nova fase, mas Emma Peterson não iria jamais desistir! Era o meu primeiro dia de trabalho depois do estágio, agora teria de enfrentar uns quantos génios que teria de tratar como reis da Sibéria, caso assim o desejassem… Seria uma experiência totalmente nova nesta na sua nova vida. Não sabia se o que desejava era mesmo ficar lá como interna, talvez ficasse tão doida quanto eles, mas queria arriscar. Conhecer todos os estados do ser humano era um objectivo que tinha desde pequena… Adorava perguntar aos meus pais o que eles pensavam, quase que seria uma psiquiatra deles se não me tivessem explicado que tudo o que agora penso viria com o tempo, que teria bastante tempo para entender o mundo dos homens. Na realidade, por mais que me custe, nunca chegou a acontecer… A humanidade é tão complexa e tão pragmática que, enquanto age duma forma, vai deixando seus pensamentos só para si. Detestava isso quando era pequena, tudo o que me escondessem apenas me deixava chateada com isto que é ser-se civilizado. Talvez por essa razão agora tinha aceitado esta proposta de emprego, porque as pessoas com quem eu iria trabalhar diziam o que realmente pensavam e sentiam, apesar de não estarem conscientes da realidade. Toda a equipa me recebeu com muita amabilidade, mas o que realmente me preocupa são as pessoas que irão desenvolver-se comigo, essas realmente ainda eram uma grande dúvida neste meu trabalho. Já pouco falta para que os conheça a todos, gostava que tivesse capacidade para os ajudar, já que não me posso ajudar a mim… Eu sempre acreditei que iria conseguir, e vou conseguir, disso não tenho qualquer dúvida! Eu quero acreditar que vou estar tão bem quanto os que vou tentar ajudar, deixando de lado tudo o que se anda a passar cá dentro… Apenas me mantendo concentrada nas soluções para quem me rodeia.
  • 10. Agora que chegara a hora de conhecer todos aqueles que apenas conheço de ficha, não me parecendo nenhum difícil de conviver… Sim, era psiquiatra e trabalhava num manicómio, ou ia trabalhar… É que ainda não comecei, e estas dúvidas vão ficando. Será que iriam aceitar que ela passasse a tratar deles em vez do tão honroso doutor Humbert? Ficava mais descansada sabendo que ele a acompanharia até que tivesse total confiança nos seus novos clientes… Nada comparado ao seu estágio em que, apesar de não estarem emocionalmente bem, continuavam no mundo real. Era essa a razão de agora estar sem qualquer tipo de sono, porque não parava de pensar nesse estágio que me custou mais do que uns meses de vida… Não parava de pensar, de sentir e acabei por sair dum estágio apenas com a possibilidade de trabalhar para esquecer. Estes pensamentos estão a dar cabo da minha cabeça! Foca-te, por favor foca-te no novo trabalho que tens amanhã! A minha cabeça quando lateja me deixa estas noites sem dormir, oxalá pudesse esquecer do que se passa cá dentro! Tinha de me recolher e tentar adormecer, amanhã teria de parecer a mais segura possível. Minhas pálpebras sentiram um foco de luz, aquecendo-as e ardendo-me os olhos enquanto os abria. Apesar de me ter deitado tinha passado a noite toda a navegar pela enorme tempestade que teimava em manter-me à deriva em meus pensamentos. Por mais que eu quisesse que tudo não passasse de um momento mau, já parte do passado, por mais que andasse com a vida para a frente, jamais iria querer reviver estes momentos. Por mais bons que fossem, por mais perfeitos, agora latejavam na minha mente e permaneciam lá. Esperando puderem voltar…. Agora era a hora de seguir em frente, deixar bem arrumado toda esta noite e esperar que na seguinte fosse tudo mais fácil, assim esperava todos os dias, assim um dia ia acontecer. Agora era a hora de me preparar para ajudar, para fazer alguém bem consigo próprio.
  • 11. Estavam todos à minha espera, preparados para a mudança… Foi o que pensei quando eles me olharam enquanto entrava na sala de convívio deles. Eles esperavam por alguém que nunca conheceram, mas continuavam com uma expressão serena como se soubessem que eu estaria ali apenas para ajudar. As apresentações foram feitas de diferentes modos, cada caso tinha a sua forma de aproximação. Talvez porque a primeira impressão era forte pois estariam ligados a mim e eu a eles bastante tempo, caso eu conseguisse ajudá-los da melhor forma possível. Não me iria manter cá caso sentisse que não fazia parte da vida deles, que eles sabiam que eu estava ao seu lado para os ajudar. Mas nunca pensei em ver Kate, ou Katie, como ela desejava que lhe chamasse, tão realista. Creio que se a visse em qualquer outra parte nunca chegaria a pensar nela como uma doente. Mas cada caso era um caso, tal como o doutor Humbert referiu antes que entrássemos para que eu os conhecesse: “Por mais duro que fosse ver uma pessoa mentalmente desgastada, tínhamos de ter a noção de que essa pessoa acreditava na sua realidade”. Mas eu não sabia bem porque ela me parecia tão saudável e plausível quanto eu, e algo me dizia que iria ter muito gosto em trabalhar com ela, seria uma experiência bastante importante para o meu desenvolvimento intelectual e, apesar de tudo, para a minha forma de ver o mundo. Era uma espécie de sexto sentido, ela me dizia algo e eu não percebia, talvez com o tempo soubesse o que aquele olhar negro me queria dizer… Seria por ter uma filha ou neta parecida comigo? Teria algo que a marcasse tanto? Parecia não estar ali, mas ao mesmo tempo estava pois nada do que o doutor falava ela parecia vacilar na resposta. Talvez seja uma experiência que desejava ter, saber e conhecer alguém assim tão bem que nunca me pudesse dizer e pensar algo que era completamente o oposto. Estava desejosa de puder falar com ela, saber tudo o que ela tem lá dentro, as vidas que ela já viveu (porque não me poderia esquecer que ela estava lá porque vivia duas vidas, pelo que era estranho ter esta pequena sensação que estava agora a
  • 12. vivenciar) e entender o porquê de ela estar assim, podendo assim ajudá-la a ultrapassar tudo isto, voltando para as pessoas que a amam. Já se tinham passado umas horas depois da minha primeira visita ao meu novo local de trabalho, Humbert deixou-me em liberdade durante a tarde para que pudesse estudar as reacções que eles tinham de mim. Também fez questão que eu saísse de lá, pois não gostara nada da minha cara de quem a noite se tinha tornado tão longa como o dia. Talvez ele tivesse reparado na enorme questão que estava passando por mim adentro, tornando tudo numa enorme tempestade, não fosse eu exagerar sempre… Por isso decidi vir para aqui, não há nada melhor do que a praia… Ainda por cima fica perto da minha nova casa, junto ao meu local de trabalho para que esteja sempre perto dos meus pacientes… Agora que pensava nisso, devia ser complicado para eles que o seu psiquiatra duma vida fosse embora. Apesar de lhes prometer que nunca os abandonaria, não seria o mesmo que estar sempre ao lado deles sempre que precisassem e isso pesava muito em mim. Ainda pesa, apesar dele me dizer que tudo virá com o tempo… Nem tudo vem com o tempo, mas eu vou esperar que esta não seja uma excepção! Quero mesmo ajudá-los da melhor forma. Apesar de ser Primavera o oceano permanecia fresco, podendo assim congelar os meus pensamentos na sensação da imensidão da água batendo nas minhas pernas, mudando a temperatura que me toca na pele… Subindo, subindo, deixando-me vaguear pelos pensamentos que se vão diluindo nesta sensação… Não tirei a roupa, nem tinha intenção de entrar tanto, mas estava a fazer-me tão bem… Senti-me a ser puxada de volta, voltando os pensamentos, voltando a tentar não pensar nisso. Não, não queria voltar para tudo de novo! Levantei-me para voltar para a água, mas algo me agarrou… Só ao virar-me é que soube a causa desta volta à praia, tinha sido um homem que me tinha tirado de lá. Senti-me furiosa e tentei tirar o meu braço da sua mão que se mantinha firme, sem qualquer movimento por mais que eu tentasse me libertar. Estava frustrada, chateada e ofuscada com toda esta
  • 13. mudança repentina. Sentia-me tão bem na água fresca do mar, estava tão bem até que este homem me fez o favor de me tirar de um bom momento. E a forma como ele estava a olhar para mim ainda me metia mais furiosa, parecia que eu era uma maluca que estava a tentar matar-me, talvez era mesmo isso que agora passava pela sua cabeça… Não conseguia entender muito bem, aqueles olhos me estavam a deixar totalmente enervada, quem era ele para me tocar desta maneira como se fosse uma doida! Mas não saíam palavras da minha boca, permanecia imóvel, esperando que ele me largasse o braço para que pudesse voltar para casa. Sim, porque com certeza ele não iria permitir que eu voltasse para a água e isso revoltava-me. Sim, ia voltar agora mesmo para minha casa. Mas então porque é que não me mexia? Talvez estivesse meia atordoada de ter acabado de sair da água hipnotizante, porque eu estava hipnotizada neste momento, devia ser mesmo da água. Sua mão largou o meu braço e depressa ele se foi embora, sem qualquer palavra. Mas já não pensava que ela se fosse matar? Talvez tenha entendido isso quando parei de me tentar libertar. Mas agora era tempo de voltar para casa, o meu estômago já o confirmava, era hora de jantar e nem tinha dado por nada… Amanhã seria um novo dia, com novas descobertas e novos problemas. Estaria à altura de conseguir dar-me tanta auto-estima como tentava mostrar aos que me rodeavam? Seria algo que tentaria trabalhar o mais rápido possível, mas o mais importante era não me cruzar com aquele estranho mais nenhuma vez pois não gostei nada de ele ter-me puxado da água, mesmo que já fosse tarde, mesmo que parecesse que eu me estava a matar. Não gostava mesmo nada daquela mão a agarrar o meu braço como se eu fosse fazer alguma loucura, como se fosse uma maluca… Ai se ele soubesse que não o sou mas que vou trabalhar com muitos… Toquei na minha face pois reparei que estava a sorrir, era uma situação tão cómica assim para me deixar de bom humor? Sinceramente, não tinha a mínima vontade de saber a resposta desta pergunta, mais valia focar-me. O caminho até casa parecia méis longo do que fora quando tinha vindo para a praia, talvez fosse por estar cheia de fome e com imensa vontade de me enrolar nos
  • 14. lençóis da minha cama e dormir para ter a energia suficiente para o trabalho de amanhã. O estômago pareceu concordar comigo pois depressa de pronunciou enquanto estávamos a chegar a casa. Quando me deitei a minha cabeça encheu-se de momentos que se passaram hoje, quem diria que iria ter tanta curiosidade numa velhota maluca e ser levada por um homem desconhecido que pensava que eu me estava a matar? Era absolutamente incrível! As situações que andam a passar na minha vida eram doutro mundo, talvez pudesse fazer uma comédia dela e ganhar bastante com isso ao ponto de ficar sem trabalhar a vida toda… Sonhar, era uma boa forma de tentar fazer o sono vir e não fugir dos meus pensamentos. Pelo menos já teria um sonho esta noite, nem que fosse um sonho acordada… Mas adoraria puder dormir um pouco, parece que o oceano me deixou realmente uma nova vontade, que me vai deixar adormecer, nem que seja para sonhar com o que vou pensando… Mais uma noite em claro, as várias memórias iam voltando… Deixando que o sono mais uma vez se fosse embora. Agora que ia a caminho do meu trabalho, encontrando-me primeiro com Humbert, como ele fazia questão que eu o tratasse desse jeito, para que me pudesse dizer como é que eles tinham reagido à minha presença. Na realidade, o primeiro impulso com certeza seria de não me quererem, pois Humbert estava com eles há vários anos e criaram laços com ele… Teria de ser tudo feito com a maior preocupação para que nada corresse mal, seria um tempo perdido caso eles não me quisessem por perto. Pelo que parecia, as minhas preocupações estavam certas, alguns não aceitaram de bom grado que eu fosse a sua nova doutora, nada que eu lhes negasse depois de vários anos habituados a apenas uma pequena equipa de pessoas a conviverem todos os dias. Mas parecia que havia uma excepção pois o doutor Humbert parecia estar contente com a minha chegada e chegou mesmo a dizer-me que hoje mesmo ia trabalhar.
  • 15. Quando ele me disse o nome Katherine Levi eu nem estava a pensar em Katie, mas depressa a minha memória me disse que era aquela velhota que tinha-me causado aquele pressentimento estranho. E ter noção que iria hoje mesmo estar com ela, conhecê-la por dentro e descobrir tudo o que a sua ficha não dizia era fantástico! Estava desejosa de estar com ela, só esperava que ela tivesse confiança suficiente para que me falasse abertamente, sem medos. Quando acabei de analisar todos os dados sobre Katie pude finalmente ir ter com ela, inicialmente seria acompanhada pelo Humbert para ver se realmente eu podia iniciar a minha pesquisa pelo seu misterioso mundo. Uma das recomendações era ouvi-la e não fazer caso das coisas que ela dizia pois, segundo ela, a sua capacidade sobre-humana era de conseguir viver junto de outras vidas e ter pequenos flashes de memórias futuras, como uma vidente. Katie estava sentada num sofá, com uma mesinha à sua frente com o café da manhã e outras duas poltronas viradas para a mesa. Parecia que ela estaria à nossa espera para tomarmos o café da manhã com ela, o que seria óptimo pois eu ainda não tinha comido nada desde o jantar, sempre que passo noites em branco perco o apetite quando me levanto. Agora seria a altura ideal para que eu comesse, agradecia à aquela ideia que alguém tinha tido, estava esfomeada e não me apetecia nada deixar que o meu estômago me avisasse do que devia de fazer. Era incrível a forma como ela falava... Eu ficava maravilhada com cada gesto que ela fazia, toda aquela graciosidade, todo aquele brilho de volta dela… Pergunto- me se não me importaria de ficar no mesmo estado do que ela para que fosse tão graciosa e feliz em qualquer condição. Sim, porque ela sabia muito bem a razão pela qual ela estava lá, e não tinha qualquer medo de dizer que, apesar de ninguém acreditar no que ela dizia e fazia, afirmava que tudo o que vinha da sua cabeça era verdadeiro. Toda aquela confiança e aquela convicção punham-me dúvidas sobre o estado que a psicologia dizia sobre ela, sabia que algumas pessoas acreditam mesmo no que estão a dizer, mesmo que seja totalmente irreal. Mas eu começava a duvidar de mim, não estaria ela correcta?
  • 16. O mais estranho era que ela sabia o que passava pela minha cabeça… Reparei nisso quando ela pediu a Humbert que nos deixasse a sós. Ele observou-a um pouco apreensivo, acabando por concordar e deixar-nos ir para a sua varanda, no seu quarto. Ela dizia que era uma vista maravilhosa, mas não tão maravilhoso como Magnificat como eu iria ver… Talvez pela minha expressão ou apenas porque sabia que eu não estava de certeza a perceber nada, ela disse-me que nós as duas iríamos ver esse local e que eu não me tinha de preocupar com nada, que todos os meus pensamentos e noites em branco iriam desaparecer… O meu cérebro parou por uns instantes, assimilando tudo aquilo que ela me tinha dito, parecia totalmente irreal e, ao mesmo tempo, algo bem próximo… Era mesmo estranho tudo isto, mas desde o inicio algo em mim me disse que Katie era a chave de algo, que situação viria a viver com aquela senhora? Só esperava alguma vez a conseguir entender, pois acredito piamente que caso a saiba decifrar, aplicando toda a sabedoria que emanava dela, que eu conseguia sentir, pudesse me dizer o que fazer. Talvez ela me pudesse ajudar em mim e eu ajudar a ela, mas não acreditava que ela tivesse qualquer problema. Teria de deixar isto tudo para mim, ou então passaria a fazer parte não da equipa mas sim dos doentes pois se não acreditavam em Katie, nunca acreditariam em mim.
  • 17. III. Inacreditável Tinha passado uma semana e eu nem tinha dado conta… As sessões com Katie tornavam-se a cada dia mais interessantes, ela contava as histórias como se ela estivesse mesmo lá, com tanto pormenor e tanta característica que parecia que na realidade se passara na sua vida. Eu reparei que ela inicialmente tinha um pouco de medo em me contar aquilo, talvez porque eu iria com certeza pensar nela como uma maluca ou pensava que ela estaria a gozar comigo, a realidade é que pensei nisso… Mas como poderia duvidar se seus olhos me diziam que era verdade? Parecia que ela me estava a mostrar um mundo paralelo, eu até podia superar bem isso se ela não me tivesse mostrado também o meu passado sem que eu jamais tivesse contado nada, ela me apoiava e queria ajudar-me. Até aí tudo bem, estranhei um pouco mas consegui aceitar que ela conseguisse ver de uma certa forma o que se tinha passado com essa pessoa como se ela estivesse presente e sentisse o mesmo, mas o problema não foi bem o passado… Ela estava-me preparando para algo que eu não fazia a mínima ideia do que era, eu pensava em mil e uma coisas, mas nunca encontrava algo que fosse o suficiente claro para a minha cabeça. Queria que eu estivesse preparada, que tivesse calma e que pensasse bem antes de fazer algo que me fosse arrepender, mas o que ela me pediu me deixou ainda mais curiosa! O que se iria passar? Sentia-me sem quaisquer forças para descobrir o que estaria para acontecer, não seria nada de bom, disso tinha eu a certeza. Só esperava que nada de mal lhe pudesse acontecer, caso fosse a minha morte melhor, isso não me afligiria mais que outra coisa qualquer. Desde que não fosse outra destruição de vida humana, como Katie me tinha contado… Ainda me lembrava de quando ela me contou o que se passou… Ainda me lembro da sua cara, daquelas lágrimas que iam saindo enquanto aprofundava mais e mais, não deixando qualquer espaço para dúvidas. Aquela visão que a velhota me estava dando apenas por palavras, vendo todo aquele mar de destruição, toda aquela dor e angustia que saía da sua voz transparente, mostrando exactamente o que ela sentia em relação ao que via…
  • 18. Desejei que ela parasse, ela sabia que eu estava a querer que ela parasse, mas não o fez. Continuou dizendo que eu deveria estar preparada, devia de saber isto antes que chegasse a hora… Agora que pensava nisso com melhor exactidão, tudo o que ela me estava contando a cada dia que se passava, talvez se tivesse a aproximar o dia em que isso iria acontecer. Não queria ser eu aquele desgraçado que passava por tudo aquilo, atado, sem que nada se possa fazer. Como se estivéssemos presos, olhando para a única coisa que podíamos olhar e queimando-nos por dentro, fazendo-nos partir tudo o que sentimos aos pedacinhos, perdendo a nossa esperança… Não que já a não tivesse perdido, isso já era passado, mas a sensação de nada puder fazer vendo a destruição que sinto por dentro se espalhar em minha volta… Meus olhos se fecharam sem que desse por isso e lágrimas fluíam de meu rosto, jamais aguentaria esta sensação de perder, de não poder fazer nada senão queimar-me por dentro, aos poucos e poucos… Caminhar pela dor, aumentando os pedaços em que a esperança de desfazia, não querendo que ela se fosse embora, encontrando um novo brilho, um novo rumo… O dia tinha sido longo, já estava cansada e não conseguia mesmo assim dormir. Estava à espera do que sabia que estava para vir, não sabendo que coisa era essa. Talvez fosse mais fácil não saber do que Katie se referia, talvez fosse melhor que ela realmente estivesse louca e que eu desse conta disso… Mas eu atirava-me para a espera do que estava para vir, infelizmente sabia que era verdade… Talvez esta verdade nunca chegasse a acabar comigo, mas eu não queria enfrentar esse futuro, negava-me vivamente. Como poderia estar preparada para algo que não sei o que é? Podia até saber, bem lá no fundo, eu sei que o meu inconsciente o sabia pois desde inicio que ele berrou cá dentro, gritando que Katie estava certa. Eu não estava preparada, não queria estar preparada. Talvez a doida aqui fosse eu, fora eu que bebera daquela água insana… Era eu que vivia um pesadelo, estava louca na minha própria mente, em constante batalha… Talvez lutava por desejar o que não quero, por querer o que não era para
  • 19. mim. Algo na minha mente me tentava dizer o que se iria passar, mas eu continuava bloqueando sem querer saber. Sim, a louca era eu. Lutava contra mim e para mim. Insana de vida e sentimentos, tirando qualquer sentido do sentido da vida. Quem devia estar presa era eu, não merecia a liberdade. Exagerar era um grave crime, punível pela loucura constante num vasto sofrimento do eu. Sim, definitivamente estava louca. “Deveras?” não me precisei de virar para saber quem me respondia, ela saberia que precisava dela agora. Ela sempre o sabia. Mas seria demasiado contagioso o que eu sentia? Poderia ela se tornar como esta mulher? Emma Peterson, uma louca que trabalhava com loucos. Nada poderia ser tão interessante, esta conclusão era incrivelmente engraçada… Óptimo! Agora ria-me da minha loucura… Nada pior, pelo menos já o tinha reparado, um começo… Um começo para a aceitação. “Tu sabes que não é fácil, mas acredito que vais conseguir superar tudo.” Ela sabia que me estava a acalmar com a sua mão no meu ombro, era inacreditável como ela me conseguia conhecer tão bem. Talvez a idade dela lhe tivesse permitido ajudar as pessoas com o que conseguia ver delas, ou então tinha mesmo um enorme jeito para estar ao pé de quem precisa e ser a pessoa sempre certa nesses momentos… Já estava bastante mais calma, a maior parte do exagero tinha-se concentrado novamente cá dentro, pronto a atacar novamente. “Tens de ter calma e controlar isso, já não falta muito para que o teu mundo mude. Confia em mim, tudo correrá bem… Mas lembra-te sempre que nem tudo é o que parece. Promete-me que te lembras de permanecer calma e quieta quando o momento chegar, promete-me Emma!” Eu não conseguia entender ainda nada do que ela estava a dizer-me, mas não havia outra forma de a sossegar. Eu afirmei com a minha cabeça, esperando que ela soubesse mesmo que tudo correria bem. Ela de certeza que sabia disso, porque senão os seus conselhos seriam infundados, não havia razão para me preocupar. Mas porque eu me sentia assim tão preocupada?
  • 20. Quando voltei a abrir os olhos já Katie se tinha sentado à minha frente e me observava atentamente, talvez para ver se era necessário confortar-me antes de continuar com o seu treino intensivo para o meu não-sei-quê do futuro. E estava correcta, parecia que começava a conhecê-la também… Falou-me de mais uma história… Segundo ela houve um inicio para aquela catástrofe e existe alguém que faz parte desse inicio. Falou-me de uma forma muito vaga, parecia querer encobrir algo… E eu estava curiosa, queria saber o que ela estava tentando encobrir. Como me viu curiosa decidiu mudar de conversa, decidiu contar-me uma outra história. Uma outra vida… Duas pessoas numa, uma pessoa que necessitava de se libertar, que estava presa ao seu trabalho e que nada sentia além disso. Uma pessoa que sentiu, mas que agora já não sentia… Uma pessoa que já não sabia sentir, que já não sabia o que isso era há muito tempo… Uma pessoa que já não sabia chorar, que tinha todas as forças e imortalidade mas que não sentia… Uma pessoa que procurava todos aqueles pedaços que a faziam voltar a sentir, mas que ainda não tinha encontrado… Uma pessoa que não era nada além do que se lembrava sentir, apenas as lembranças a faziam procurar… Apesar de ser bastante vaga, de não ter contado nada mais além disso, eu estava certa de que essa pessoa era exactamente o seu oposto: nada sentia, um tédio certamente… Talvez não fosse mau exagerar, sofrimento a mais ainda era sentir algo, por mais chato que fosse eu admitir isso. As coisas más são para sentirmos as coisas boas. Sim, era isso que eu já não me lembrava há algum tempo de tão ocupada que estava em torturar-me. Agora iria preferir viver com as más pois assim nunca perdia as boas pois não as tinha. Notei na sua cara que tinha reparado que eu estava decidida em algo, mas ainda bem que ela não sabia em quê… Dei-lhe as boas noites antes que ela me perguntasse muito, não tinha como lhe falar disto, não ia querer ouvir o que certamente diria… Eu tomara uma decisão e não a iria mudar, era tudo uma questão de controlo. Achei incrível, ela despediu-se e foi-se embora sem pronunciar qualquer questão sobre o que eu estivera a pensar… Não era habitual dela, havia algo que eu
  • 21. deveria saber? Sinceramente, eu queria acreditar que não queria saber. Talvez um pouco de ar fresco me fizesse bem, o jardim seria um óptimo sítio para pensar à luz das estrelas. Assim que me deitei na relva comecei a pensar em tudo o que ela me tinha dito nesta semana. Tinha-me dado tanta informação que eu ainda não a tinha analisado e tentar perceber o significado, apesar de não gostar muito da ideia de descobrir o que se iria passar. Falara-me de uma cidade que era bastante antiga, sendo destruída pedra por pedra, para que nela se ocupasse um novo sentimento de esperança. A descrição que me ia dizendo fazia-me desejar ver essa cidade, ela dera-lhe o nome de Magnificat. Tinha achado que essa cidade devia ser um paraíso onde ela tinha vivido enquanto pequena na altura, mas porque me tinha contado isso? Certamente havia algo mais sobre esse local, seria para lá que eu iria? Ou ela iria viver com seus familiares lá? Seria esse o futuro? Eu iria lá visitá-la e acabaria perdendo o emprego? Bem, esta definitivamente era uma história sem resposta. Depois falou-me do bem e do mal… Que o bem regia o mal e que apenas poderia ser defendido por um grupo em especial… Ela tinha dito que eles acreditavam que o mundo poderia ficar muito pior caso não defendessem essa paz. Dissera que essa paz só tinha sido quebrada uma vez. Teria ligação com a destruição que ela me tinha contado? Teriam todas estas histórias ligação? Não conseguiria dormir sem uma explicação, tinha mesmo de ir ao seu quarto para que ela me dissesse o que realmente me queria dizer, que eu estava preparada para ouvir, que queria saber o porquê de toda esta história. Só não podia dar muito nas vistas, ninguém me poderia ver a lá ir… Ainda pensavam que eu ia espiá-la ou algo pior! Tinha de ter o maior cuidado se não queria ser apanhada. As respostas para todas estas perguntas tinham de existir, eu não sairia de lá até que ela me dissesse o porquê de tudo isto.
  • 22. Esperava que ela ainda estivesse acordada pois assim seria mais rápido ter as respostas e não a ter de acordar… Não sabia se ela me iria responder caso tivesse mal-humorada. Eu não iria dormir com este dilema, e não queria passar outra noite em branco. Fiquei surpresa quando me aproximava da porta do seu quarto, ela parecia ainda estar acordada… Que estaria a fazer para manter as luzes acesas? Pelo menos iria ser mais fácil fazer-lhe as perguntas que precisavam urgentemente de respostas. Quando abri a porta fiquei imobilizada, não conseguia dar mais nenhum passo… Na realidade não tinha noção do que eu estava a fazer, só sabia o que estava diante dos meus olhos. Não queria acreditar no que via, minha mente não conseguia parar… Aquela visão estava a perturbar-me, eu queria gritar por ajuda mas não conseguia nem mexer-me, não conseguia fugir para pedir ajuda, sentia-me presa, sem puder fazer nada… Senti que algo estava a sair de meus olhos e a passear-se pela face, senti que tinha conseguido chamar a atenção daquele homem que estava de costas para mim, vendo quem ele era, surgindo dentro de mim uma ira incontrolável, mas mesmo assim não me conseguia mover, não conseguia gritar e pedir que ele parasse… Katie estava morta? Que ele lhe estava a fazer? Aquela luz que saía da sua mão dirigindo-se ao coração de Katie ainda não me tinha saído da mente, apesar de ter sido apenas uns segundos, para mim pareceram uma eternidade… Finalmente consegui correr, corri para ela… Mas não conseguia chegar-lhe, sentia novamente aquela mão no meu braço a impedir-me. “Como pôde?” Eu disse quase num sussurro, não estava a conseguir falar, as lágrimas não paravam de fluir nos meus olhos e a minha mente não parava de pensar em matá-lo, tirando-lhe peça por peça… “Nem tudo o que parece é. Mas creio que você não terá tempo para o saber.” Ele iria também matar-me? Ou faria algo pior? Eu não queria outra coisa senão aproximar-me dela e chorar, o que ele lhe tinha feito?
  • 23. “Tem calma, tudo se resolverá pois ela irá connosco.” Aquela voz… Eu conhecia aquela voz, mas eu a tinha visto ali, morta! Estaria eu doida? Eu não estava a ver muito bem pois ainda não tinha parado de chorar, mas olhei para a direcção de onde a voz veio e vi que não era ela. A sua voz estava naquela mulher, como? “Eu ainda não o decidi, não creio que seja seguro que ela fique cá mas também não acredito que ela seja indefesa…” A voz do homem me dava raiva, não conseguia ouvi-lo mais. Tentei soltar-me mas sem conseguir novamente, tal como da primeira vez na praia. “ Acredite em mim, eu sei o que digo. Emma, sou eu mesma, a Katie.” Eu pestanejei, a Katie? Mas ela não parecia ter mais de trinta! Voltei-me para onde tinha visto o corpo que continuava lá… “Mas como é isto possível?” Arranjei forças suficientes para perguntar a única coisa que estava agora a ecoar intensamente na minha cabeça. Ainda não tinha conseguido perceber como Katie podia estar naquela cama e aquela mulher estranha dizer ser a Katie… “Não tenho paciência para isto. Isto acaba agora!” Ouvi aquele homem dizer, não sabendo do que ele estava falando, mas depressa tudo se escureceu. Estaria eu morta? Então como conseguia continuar a pensar? Tentei abrir os olhos, mexer- me, falar, mas nada! Absolutamente nada! Estaria eu morta? Então como ainda tinha consciência? Talvez fosse o restante oxigénio do meu cérebro, talvez tudo já tivesse acabado… Talvez fosse um sonho, estava tão cansada… Estaria morta?
  • 24. IV. Magnificat – Novo lar Abri meus olhos e vi que na verdade estava a dormir, mas então porque parecia tudo tão real? Não estava morta porquê? Respirei fundo, tentando colocar tudo no lugar, perceber o que era e o que não era real. Mas tudo se complicou quando eu me decidi levantar pois não estava no meu quarto, nem sequer sabia onde estava! O quarto parecia saído de um palácio, confortável e antigo. Seus adornamentos eram todos de um vermelho de cetim e tinha duas janelas de onde entrava a luz do sol que me dizia que já era dia. Lá estava aquele homem, sentado numa poltrona ao pé da porta, certamente esperando que eu acordasse. Onde eu estava? O que se tinha passado e o que eu fazia neste quarto com aquele homem me observando daquela maneira? Não sabia bem ao certo o que fazer, levantar ou não me levantar, falar ou manter-me quieta… Iria matar-me? Então porque estava aqui? O que se estava a passar? Depressa saí dos meus pensamentos ao ver aquele homem se levantando, se dirigindo à porta de saída… Mas o que se estava a passar? Estaria eu completamente doida ou apenas tudo tinha endoidecido à minha volta? Já que estava sozinha, decidi me levantar. Queria ver tudo isto que me rodeava, para ter a certeza que não seria um pesadelo, não sabia qual era a parte que o desejava e qual o detestava. Aquele homem era desprezível, mesmo que fosse apenas um sonho. Como ele tinha a coragem de aparecer assim na minha vida? Já não bastava Pedro para me encher de memórias? Teria de viver com o homem sem nome também? Fiquei maravilhada quando abri a janela e observei o que ela me tinha tentado mostrar enquanto divagava pela minha cabeça… Era definitivamente uma boa paisagem, as árvores que balançavam pelo som do vento, aquelas flores que permaneciam belas ao pé daquele lago onde patos nadavam e dançavam com toda aquela vida que os rodeavam. Apetecia-me fazer parte daquele momento harmonioso, assim também poderia encontrar essa harmonia dentro de mim, me
  • 25. encontrar de todo o meu ser e puder fazer parte da vida não tendo consciência do que possa existir além da luz… Observei o resto do quarto, mas destas vez o seu interior. Parecia saído de um conto de fadas, daqueles bem antigos de decorações dos tempos das grandes riquezas e nenhuma preocupação real. Realmente era um local maravilhoso, mas não deixava de pensar em tudo o que tinha acontecido na noite passada… Talvez se saísse daqui pudesse procurar por aquela mulher que me parecia Katie, apesar de ter visto o seu corpo morto na cama, ao lado daquele homem desprezível. O que tinha se passado para eu estar agora aqui? Pelo menos nunca tinha ouvido falar deste palácio quando era pequena… Sim, porque desde pequena que gostava de palácios. Os meus pais me mostravam palácios de todos os cantos do mundo, e só um palácio poderia ter tanta beleza interior como exterior… Antes de sair reparei numa porta que estava à direita da cama e decidi abrir, para ver o que se encontrava no outro lado. Era uma casa de banho, paredes azuis contrastavam com um balcão com vários tons de azul e cinzento e um enorme espelho por cima… O lavatório por cima do balcão era de um branco perto do dourado, bem como os restantes utensílios presentes na casa de banho. Havia um cheiro a lavanda no ar, talvez pela própria planta que estava a um canto ou pelas pequenas janelas abertas para um pequeno canteiro de lavanda pendurado no exterior. Tinha de confessar que quem quer que fosse a pessoa que tinha decorado aquele sitio tinha bastante capacidade para tornar qualquer cubículo num paraíso… Estava desejosa de poder ver a restante decoração da casa, bem como a paisagem que tinha visto da janela, queria ver tudo mais de perto. Depois de me refrescar fui em direcção da porta por onde aquele homem tinha saído, quando a ia a abrir esta abriu automaticamente e eu recuei para trás… Aquele homem tinha voltado e não estava sozinho, mas eu não conhecia aquela mulher que vinha com ele… Seria a dona daquela magnifica casa? Esperava não estar a incomodar, mas o que me espantava era a expressão daquele homem que vinha com ela, aquele que ainda há umas semanas me tinha tentado salvar dum suposto suicídio.
  • 26. Tinha exactamente a mesma expressão quando eu tentava libertar-me da sua mão no meu braço, quando eu estava a resmungar de ele não me libertar. Mas o que significava aquela expressão? “Faça o favor de fazer exactamente tudo o que esta senhora lhe disser e não existirão mais problemas. Voltarei mais logo, quando este relógio marcar as seis horas, certifique-se que estará pronta a essa hora.” Depressa me deu o relógio que trazia consigo e desapareceu pela porta… Estava atónica com o que ele me tinha dito, não tinha percebido nada de nada! Talvez esta mulher me ajudasse a perceber o que se estava a passar. Talvez ela me pudesse dizer onde estava… Por isso decidi arriscar e perguntar-lhe onde eu estava, porém a sua expressão ficou espantada e demorou um pouco a chegar-se a mim… Parecia ter medo de algo… Que seria? “Me desculpe, pensava que você deveria saber onde estava… Está em Magnificat e eu estou aqui para lhe tirar as medidas e vesti-la para que consiga se adaptar.” Magnificat? Era um país? Uma cidade? Uma vila? Uma aldeia? Eu nunca tinha ouvido falar deste sitio… Mas espera! Ouvi sim! Não me lembrava bem do que Katie disse, mas ela falou-me de Magnificat, não sabia bem ao certo o que me tinha dito, mas tinha-se referido a este sitio… Mas porque eu teria de me adaptar? O que estava a acontecer? Depressa a mulher tirou-me as medidas e depois perguntou-me se preferia usar cores claras ou escuras… Eu nem me lembrei bem do que dizer e acabei por deixar ela escolher. Para que precisava de novas roupas? Eu estava bem com o que tinha e sempre podia ir comprar mais algumas a algum sitio… Esperava que chegasse depressa às seis horas para que pudesse arrancar toda a informação daquele homem. Tinha todo o direito de saber o que se estava a passar! Faltavam apenas dez minutos para as seis horas e eu já estava vestida. Definitivamente aquela mulher tinha um grande jeito para realçar as características
  • 27. de uma pessoa e tornando, ao mesmo tempo, a roupa confortável e segura. Eu estava a observar-me no espelho da casa de banho, agora parecia tão elegante como o resto da casa. Queria tanto sair daqui e ver o que restava deste palácio, fugir e ver tudo através da descoberta… Seria extremamente interessante deixar aquele homem surpreendido pelo meu desaparecimento, mas aposto que com certeza estaria alguém a vigiar a porta para que eu não saísse do quarto. Para além disso, ele teria muito que me contar! Não ia deixar que ele me deixasse assim sem saber de nada por muito tempo! O que estava para vir? Ouvi umas batidas na porta, certamente seria ele. Antes que eu chegasse à porta, esta se abriu e emanou uma fragrância que me prendeu a respiração… Assim que reparei na porta vi que era aquela mulher que tinha estado comigo na outra noite, aquela que tinha a voz que me lembrava Katie de uma certa forma… Mas depressa vi que ela não estava sozinha, aquele homem estava com ela, será que finalmente me iam dizer o que se estava a passar? Não conseguia parar de olhar a expressão daquele homem, não sabia bem o que esperar dele, não sabia nem o seu nome… Só sabia o som a sua voz ríspida, que tanto me enervava. O que se tinha passado com Katie? Onde ela estava? “Acho melhor ir para lá para fora, Salvatore. Eu e Emma precisamos de falar, a sós.” A sua voz me roubou dos meus pensamentos, parecia que estava ouvindo Katie a falar. “Mas não devemos chegar atrasados à reunião. É nosso dever estar lá presentes antes que os restantes cheguem.” O seu som cortante voltou a enraivecer-me, mas que a reunião se referia? “Vá lá para fora, tenho que falar com ela. E se está assim tão preocupado, então vá, Emma não irá.” A sua calma e tenacidade eram de louvar, mas porque queria estar a sós comigo? “Você sabe tanto como eu que não podemos deixar você aqui com ela, você ainda agora veio e terá de se apresentar ao conselho.” A sua voz transmitia um pouco de astúcia e decididamente isso estava a enfurecer-me.
  • 28. “Se é esse o problema é fácil! Fique aqui com ela e explique-lhe você.” Essa ideia de ouvi-lo a dizer-me tudo o que se passava não era desagradável de todo… Mas o que eu estava a pensar! Era algo horrível! “Sabe tão bem como eu que Salvatore devia preparar primeiro o conselho antes de falar do caso de Emma. E não se esqueça que não tem sido um grande cavalheiro! Nem lhe chegou a mostrar qualquer parte da sua casa além de seu quarto!” Esta casa era daquele grosseiro? Impossível! “De acordo. Eu ficarei com ela até que seja o momento apropriado, mas não sairá desta casa. Por razões de segurança o melhor é mantê-la em segredo.” Depois de se terem decidido finalmente o que fazer comigo, como se eu fosse um fantoche deles, acabei por sentar-me na cama à espera duma explicação que teimava em demorar. Observei-o enquanto fechava a porta, sentando-se de seguida na poltrona, exactamente como quando eu acordei nesta manhã. Esperava que ele me fosse dar uma explicação, mas parecia tudo menos isso. Ele continuava me olhando, sem proferir qualquer palavra… Mas o que se estava a passar? Queria perguntar-lhe, gritar-lhe tudo o que ele me fazia sentir. Nada saía da minha boca, ela nem se abria… Sentia-me derivando naquele aroma, pedindo que aquele perfume nunca acabasse, que pudesse sentir mais de perto… O que estava a passar-se comigo? Não havia forma de eu me sentir assim, queria fugir de tudo, deixar tudo para trás e voltar para a minha indiferença. Quando dei por mim, já estava levantada, me dirigindo à saída… Meu corpo finalmente se tinha manifestado, afinal havia algo que eu conseguia fazer… Ia fugir, para bem longe. Eu sabia que não me iriam deixar o fazer, mas eu tinha de o fazer para o meu próprio bem, tinha de sair o quanto antes, antes que as coisas piorassem e eu não tivesse controlo delas. Como era de esperar, eu já sabia que iria acontecer, Salvatore me segurou pelo braço. Agora aquele aroma estava mais próximo, me lembrei do que aconteceu na praia, não me ia conseguir libertar e, por mais que negasse, não me queria libertar. Meu coração batia rapidamente, já nem conseguia perceber porquê até o meu coração corria… Desejava, mas não queria… A boca dele se abriu, seus lábios
  • 29. abriam e fechavam sem que eu prestasse qualquer atenção no que diziam. Ele soltou-me e dirigiu-se para a casa de banho, sem dizer mais nada, deixando-me sozinha… Podia fugir agora, seria o mais certo a fazer mas eu não conseguia deixar de olhar a porta por onde ele entrou, permanecia imóvel, esperando que ele voltasse. Pensei em tudo o que fosse possível para me deixar voltar ao normal, o que se estava a passar? Eu tinha de saber… Não iria permitir que o silêncio continuasse. Tinha o dever de saber tudo o que se passava, bem como descobrir o que tinha acabado de acontecer. Comecei a ir em direcção ao Salvatore, não sabia o que ia fazer, só sabia que precisava de ir ter com ele, aquela vontade veio do nada… Não conseguia pensar agora, estava com demasiada vontade de ter com ele e olhar novamente para aquela expressão que desconhecia. Queria ver o que aquele olhar me dizia, sentir aquele olhar me torturando novamente, puder olhar para ele novamente. Quando entrei, vi-o molhando a cara… Parecia frustrado com alguma coisa, nem tinha reparado que eu tinha entrado até ver o meu reflexo no espelho. Disse algo baixinho e foi para a janela, observando a paisagem… Estaria tão confuso quanto eu? Não estava entendendo nada, mas esperava que ele me dissesse. Respirando fundo, ele voltou-se para me encarar. Esperava entender o seu olhar mas nada decifrava… Ele apenas me olhava, gostava tanto de saber o que ele estava a pensar neste momento para que seu olhar não me marcasse tanto… Abriu várias vezes a boca, tentando me dizer algo, mas sempre a fechava, fechando também seus olhos e massajando a cabeça com a mão. Depois voltava e olhar-me, esperando que tivesse força para me falar, talvez… Eu não entendia o que se passava naquela cabeça, haveria algo o perturbando? Eu aproximei-me, até que estava a um passo de estar extremamente próxima dele, concentrei-me para que pudesse falar as palavras certas, para que não me faltasse a voz. Segurei as suas mãos, ele olhou para mim confuso, eu também não sabia nem um pouco o que estava a fazer… Mas agora não era o momento para questionar as minhas acções, era o momento para saber a verdade.
  • 30. “ Quero que me conte tudo, Salvatore. Não tenha receio de me assustar ou ofender, conte-me tudo!” A minha voz tinha saído mais confiante do que eu realmente estava, observei-o e meditar as minhas palavras enquanto continuava a olhar-me violentamente. Começava a faltar-me o ar, apesar de estarmos bastante perto da janela... Tirei as minhas mãos das suas e fui para o quarto, esperando que a varanda me desse todo o ar possível para que pudesse respirar mais controladamente. Nem pensei realmente que estava à espera que ele me explicasse, apenas queria voltar a ter ar nos meus pulmões, que se tornava impossível estando com ele por perto. O que se estava a passar comigo? Todo aquele ódio que sentia por aquele homem tinha desaparecido, mas então o que eu sentia agora? Acreditei que não queria ouvir mesmo a resposta para esta pergunta que me ecoava cá dentro. Já me sentia mais calma, já respirava normalmente… Mas depressa perdi novamente o controlo da respiração e virei-me rapidamente, aquele homem estava novamente sentado na poltrona me observando. Mal eu me virei ele indicou-me para que me sentasse na poltrona que tinha estado na casa de banho, mas parecia que ele a tinha trazido para a frente da dele. Nem tinha reparado nisso enquanto estava mergulhada nos meus pensamentos. Ele iria agora explicar-me tudo o que se estava a passar? Finalmente saberia o que estava aqui a fazer? Estava agora sozinha, deitada na cama que não era minha, num mundo do qual não fazia parte…. Salvatore contou-me tudo, desde o que se tinha passado com ele e como começou a procurar o que tinha perdido, mas não me disse como é que tinha descoberto o que lhe tinha acontecido. E quando eu lhe perguntei ele desviou-se da pergunta com uma vontade alucinante, parecia que eu não tinha o direito de saber disso e eu compreendi. Aliás, a vida era dele. Mas isso não me deixou menos curiosa, apenas me deu vontade de descobrir como tinha descoberto à minha maneira. Soube que afinal Katie não tinha morrido, tinha apenas se transformado em algo superior. Era um pouco estranho, saber que ele podia imortalizar as pessoas que estavam com um pedaço dele, dando-lhes a vida em troca da parte de si. Ele me
  • 31. disse que Katie era a última peça para que ele estivesse completamente junto novamente, ela tinha sido o último pedaço que ele tinha perdido naquele terrível momento que lhe tinha dado a vida por muito tempo. Eu curiosamente lhe perguntei porque eu estava agora aqui, entre imortais. A sua resposta foi uma meia resposta, deixando-me curiosa ao ponto de ficar pensando e pensando em todas as palavras que me tinha dito. Eu vim porque, ao ver uma transformação e conhecer essa pessoa transformada, estaria em perigo não só pelos mortais mas também por outra espécie de imortais. Pela expressão que ele fez com certeza seria alguém que se tinha virado contra esta forma de eles viver, ele me disse que todos os desta cidade tinham o dever de estar sempre presentes em todas as partes do mundo, não permitindo assim que algo acontecesse de mal. Eu vi que ele estava então falando daqueles que me punham em perigo. Ele não me querer contar nada sobre eles era muito estranho para mim. Se eu estava em perigo então deveria saber quem é que me ia pôr em perigo? Salvatore não era o que tinha pensado dele, estava apenas preocupado com o que poderia acontecer… Ele disse-me que se eu fosse apanhada pelo inimigo iria ser complicado para Magnificat, mas não me disse o porquê. Estas explicações só me tinham dado ainda mais questões a fazer, mas parecia que iam continuar sem resposta. Talvez fosse melhor assim, não saber tudo me deixava mais descansada… Mas então porque não queria que eu saísse desta casa? Talvez o perigo estivesse bem mais próximo que eu pensava e ele sabia disso… Pelo menos poderia sair sempre que ele estivesse disponível para me acompanhar, amanhã seria o dia em que ele me iria mostrar o resto da casa… Pergunto-me quando é que eu podia ver a cidade. Estava tão curiosa que quase lhe tinha perguntado como ela era, mas pensei em esperar que ele me dissesse quando me fosse mostrar o restante palácio… Era engraçado quanto acolhedor era esta pequena divisão, imagino o resto da casa. Agora que já era noite, já tinha jantado e as minhas roupas feitas neste dia já estavam todas no armário, era hora de descansar para o longo dia que aí vinha… Podia agora descansar…
  • 32. V. Não pode ser… O sol já entrava pelas janelas, sentia-o aquecendo e iluminando todo o quarto. Estava feliz por hoje puder ver o resto da casa e quem sabe o resto da cidade… Levantei-me rapidamente e Salvatore já lá estava, sentado na poltrona de sempre com o mesmo olhar… Eu ainda não sabia o que significava mas agora não era tempo para essas coisas, queria sair daqui e ver o restante desta humilde casa, como Salvatore lhe tinha dito. Eu poderia descrever de muitas maneiras, mas humilde estaria bem longe da minha definição, era uma casa para ele mas para mim a melhor definição era um palacete cheio de requinte… Depois de me preparar para sair, tomei o pequeno-almoço que ele me tinha trazido. Estava delicioso! Mas o que realmente importava era eu sair daqui. Enquanto comia ele estava a me dizer como íamos fazer à minha vida, iria manter a minha morada numa casa que ele tinha à beira-mar e Katie iria pegar a correspondência todos os dias. Mantinha o meu telefone activo para que ninguém desconfiasse da minha súbita mudança, pois já dava suficiente nas vistas sair do meu emprego pouco depois de ter entrado nele. Por mais que tivesse imaginado o restante palácio, por muitos que tivesse visto em fotografias, nada parecia tão incrivelmente belo e perturbantemente encantador. As cores claras dos corredores a contrastarem com o chão de madeira, o cheiro a natureza que vinha das grandes janelas que iluminam todo o nosso caminho, a voz que vai ecoando de Salvatore que me faz sentir como se nada mais importasse senão estes momentos… Tudo o que me rodeava me transmitia paz, tudo tão cheio de harmonia e de luz… Cheio de natureza e requinte… Estava surpreendida a cada nova descoberta… Quando acabamos de passear pelo palácio, ele queria que voltássemos para o quarto ou que ficássemos na sala de estar… Eu queria sair, voar pelo vento que soprava lá fora e seguir as árvores, descobrindo pássaros a chilrar em seus ninhos. Salvatore não achava prudente, pensaria que eu iria tentar fugir ou algo assim? Eu não era assim tão infantil. Não foi preciso muito para que o convencesse, era até
  • 33. bastante fácil, apenas fazendo um beicinho e já estava! Finalmente ia respirar o ar de lá de fora e sentir aquela natureza à minha volta, queria-me deitar sobre a erva e olhar o céu, vendo as nuvens e querer voar com elas… Eu definitivamente parecia uma infantil, mas não estava minimamente preocupada com isso pois era o que estava a sentir… Sentia vontade de sonhar mais algo, ver por entre as coisas. Talvez fosse por estar num sítio tão diferente do habitual, talvez fosse por me sentir diferente. Queria viver neste momento o que sentia. Na entrada da casa não se via nada além de uma pequena estrada de pedra que ia não sabia para onde, rodeada por árvores, todas muito grandes e antigas. Mas o que realmente queria ver era a parte da janela do quarto, era onde se podia deitar sem ser incomodada com nada humano, rodeada de natureza. Perguntei a Salvatore onde era esse local e ele me disse que era da parte de trás da casa, eu agarrei a sua mão e corri, desejando chegar lá o quanto antes. Estava tão feliz que não me importava o que estava a fazer… Apenas o fazia, nada de pensamentos, nada de raciocínio. Hoje tudo isso iria ficar para trás. Fiquei um longo tempo deitada na erva, desfrutando de cada pedaço de natureza que me incutia ânimo, paz. Sentia-me deslumbrada com tanta maravilha junta. Justamente Magnificat, um bom nome para descrever tal sitio, se a cidade fosse tão magnifica como o que tinha visto… Olhei de relance para Salvatore, que estava também deitado pois eu tinha feito questão que ele não ficasse ao seu lado sem aproveitar o maravilhoso tempo que estava… Ele estava olhando para mim novamente com aquele olhar… Eu desviei o olhar o mais rápido que pude, mas sabia que era difícil não me ter visto a olhar para ele. Levantou-se pouco depois, esticando a mão para que eu me levantasse também… Que iria acontecer desta vez? Ele me guiava por entre as árvores que estavam detrás da casa, eu estava com expectativa… O que me faltava mostrar?
  • 34. “Fecha os teus olhos pois não quero que vejas isto antes que te deixe no chão.” Ele me pediu, pegando-me ao colo com uma certa facilidade. Eu sabia que eles tinham mais força que os mortais. Apenas fiz o que ele queria, fechei os olhos esperando que ele me deixasse no chão para puder ver o que faltava. Quando me pousou meteu suas mãos em cima das minhas para que se criasse uma curiosidade em mim, ou apenas para que eu me pudesse preparar… Moveu lentamente as minhas mãos de meus olhos com as suas, não tendo intenção de mas largar… Meus pensamentos não conseguiam definir o que meus olhos viam: estava no limite da cidade, havia uma enorme distância entre as montanhas e os meus pés. “Quando a cidade foi destruída ela se elevou na terra e anda a flutuar por entre todo o planeta, eu próprio ainda não sei como funciona. É algo maravilhoso, acordar todos os dias e ver o nosso horizonte mudar.” A sua voz estava terna, adorava aquela voz… Era tudo tão irreal, tudo tão envolvente… Era muito fácil gostar de viver aqui, eu nem tinha visto a cidade e já gostava! Depois de uma semana, continuando apenas a puder sair com Salvatore me escoltando, permanecia a maioria do tempo olhando a paisagem, deitando-me na erva, falando de coisas normais… Hoje não era excepção, estava novamente deitada, observando o céu… Até que fechei os olhos para sentir melhor o calor do sol no meu corpo, que me ia aquecendo e deixando mole… Ouvi um som que não me era estranho, até que me lembrei do que era e dei um pulo, atendendo logo de seguida sem ver quem me telefonava, ele estava ao meu lado a rir-se da minha reacção… “Ouve lá priminha! Tu não te estás a esquecer que amanha é o meu casamento pois não? Por onde andas? O tio disse-me que despediste-te do teu trabalho… Está tudo bem?” Estremeci ao ouvir aquelas palavras, com tudo isto nem me tinha lembrado do casamento da minha prima Francisca. Salvatore ouvia atentamente o que se estava a passar, eu neste momento precisava de tudo menos de reprovação. Por isso tentei não olhar para ele, tentei agir ao natural.
  • 35. “Sim, claro que não me esqueço…” Enquanto ela falava comigo, Salvatore tentava dizer-me algo que não estava a entender… Surpreendeu-me quando me tirou o telemóvel da mão, falando assim com a minha prima. Não gostei minimamente quando ele lhe perguntou se ele poderia ir, arranjando a desculpa de ser meu namorado… Que mal me poderia acontecer no casamento da minha prima? Estremeci só de pensar… Realmente era uma ideia engenhosa, seria a melhor maneira de permanecer perto de mim. Mas tão perto assim? Mal eu tinha terminado a chamada, ele já se tinha levantado e desaparecido do nada… Voltou segundos depois, levando-me novamente para o quarto. Mal aquela mulher chegou já sabia que seria uma noite cheia de escolhas e mais escolhas para estar apresentável naquele casamento. Por isso tinha andado tão rápido, para que tudo fosse feito a horas de estarmos presentes naquele casamento. Não tinha dormido nada bem, esta ideia de expor um imortal apenas por falar demais me estava a preocupar imenso… Teria de me afastar o máximo da minha família para que não reparassem nesta farsa. Todo o cuidado era pouco. Já me batiam à porta, parecia que já estava na hora dessa farsa, só me faltavam os sapatos para que estivesse pronta. Saí da casa de banho e fui abrir a porta, aquele aroma rapidamente se instalou nos meus pulmões, me deixando extasiada com toda aquela formalidade que tinha… Seu fato era bege, contrastando com o meu vestido verde- esmeralda. Ficava como um anjo, para mim os anjos teriam o cabelo dele, sem qualquer dúvida… Aqueles olhos olhavam para mim, aqueles olhos que me iam deixar ficar completamente perdida se me continuassem a olhar assim… Estava na hora de irmos. Não podia deixar perder-me assim. Consegui deixar de o olhar, depois de um pouco de esforço… Então lá fomos nós, prontos para esta farsa. O dia ia tornar-se longo… Por mais que tentasse, ele nunca me tinha largado a mão, nunca se tinha afastado de mim… Até na fotografia de família ele teve de entrar, ficando de meu lado. Toda a família estava radiante com o casamento, e radiante com eu estar com alguém na minha vida. Sempre fora uma família cujo único objectivo era casar seus
  • 36. filhos e ter seus netos, estavam todos esperançosos que eu tivesse o mesmo destino que todos. Detestava tudo isto por essa pressão, era ultrajante estarem toda uma vida a pensarem nessas coisas. Mas o mais estranho era a expressão de Salvatore, eu nunca sabia o que ela queria significar até vê-la em alguém… O noivo olhava assim, do mesmo jeito, para a minha prima… Essa ideia arrepiou-me, ele talvez pensava que era frio pois tirou o seu casaco, colocando-o sobre os meus ombros e abraçando-me, para me manter quente. Tudo na minha cabeça se desligou, sentia meu coração correr novamente, deixando-me de um modo estranho, encostei a minha cabeça ao peito dele, mas não era uma tontura pois tudo piorou… O coração continuou a bater cada vez mais rápido e a minha respiração estava cada vez mais rápida. Não sabia quando tinha saído dali, apenas sabia que estava na piscina, sentindo subitamente uma grande vontade de ver o peito que me tinha aquecido. Meus dedos iam deslocando-se lentamente pelos botões, desapertando um a um até que poderia libertá-lo da camisa. Se a água estava fria eu não podia sentir, estávamos todos molhados e não podíamos ficar com esta roupa molhada, o melhor era que eu o ajudasse a tirar a dele para que não tivesse frio. Eu não tinha reparado que toda aquela roupa que me tinha dado frio estava espalhada, flutuando pela água… Apenas queria tocar naquele corpo que estava ali, para que eu tocasse e abusasse dele. Hum… Como a sua pele era macia e o seu toque me aquecia… Seus lábios no meu pescoço sugavam, querendo mais e mais, procurando a minha face, subindo até aos meus lábios, abrindo-os e brincando com eles. Seus olhos se cruzaram com os meus, perguntando-me o que se iria passar de seguida, desejando- me e querendo perder-se nos meus olhos… Perder-se em mim… Eu não podia, não podia fazer isto! Tinha de correr dali, tinha de fugir dele… Não podia fazer isto, não queria ficar com ele… Queria fugir, queria deixar tudo para trás… Separei-me dele e tentei correr, tentei fugir. Apenas consegui sair da piscina, ele logo me alcançou e, pegando-me ao colo, abriu um portal… Tínhamos chegado a sua casa, ao seu quarto, e minhas lágrimas escorriam vergonhosamente do meu rosto.
  • 37. Ele me pousou suavemente na cama, deixando-me sem qualquer palavra, fechando a porta e colocando a chave numa maleta, que fechou num cofre junto à cómoda que se situava junto da poltrona. Ficou olhando-me lá, encostado à cómoda, estávamos completamente molhados, completamente nus. Começou a aproximar-se, dando passo a passo, como se estivesse dançando uma valsa, como se quisesse que eu dançasse com ele, convidando-me a juntar à dança… Uma dança que quase me rouba, quase me aperta cá dentro, não me deixando pensar claramente… Quando se aproximou o suficiente sentou-se ao meu lado, passando a sua mão sobre a minha cara, limpando todas as minhas lágrimas… Encostou a minha cabeça ao seu peito, continuando a passar-me a mão sobre a minha face, eu fui me acalmando… Respirando cada vez mais profundamente, deixando-me levar pelo compasso da sua mão aquecendo-me lentamente… Deixando-me concentrar apenas na sua mão que me ia acalmando, fazendo meus olhos se fecharem, fazendo-me perder nas suas carícias…
  • 38. VI. Esperança Sentia-me bem aqui… Não tinha frio nem muito calor, estava perfeito. Perfeito demais, eu não podia negar mais o que estava acontecendo mas podia não querer que acontecesse. Conseguiria manter o que não queria? Deixaria tudo isto para que o que estava cá dentro permanecesse escondido, não permitindo que isso saltasse à tona? Sentia o braço de Salvatore aquecendo a minha barriga, estava a prender-me a algo que racionalmente não queria. Ia esperar que pudesse sair daqui para puder pensar no que iria fazer agora. Eu sabia que por mais que pudesse, não iria esquecer-me daquele seu cheiro… Finalmente podia sair, ele já se tinha movido para o outro lado. Agora podia ir apanhar um pouco de ar, esclarecer as coisas que ferviam cá dentro. Peguei no lençol que me aquecia e enrolei-o à minha volta, para que não sentisse o vento no meu corpo nu. Inspirei todo o ar possível, apoiando-me à varanda como se fosse o meu único barco de salva-vidas. A minha mente estava definitivamente perdida, não sabendo o que realmente fazer. Se a minha vida tinha sido complicada, isso neste momento já não tinha qualquer valor. Agora o que tinha todo o valor, por mais que não quisesse, estava deitado naquele quarto… Meu corpo estremeceu quando senti as suas mãos sobrepostas nas minhas, sussurrando um bom dia para mim. Emanava aquele aroma que estava tão perto de mim, fazendo que me esquecesse de tudo, fazendo-me esquecer de mim… Minha respiração descontrolada ia contra aqueles lábios, abrindo-se e entregando-se completamente. Palavras não iam adiantar de nada agora, nada que pudesse pensar me iria fazer mudar, eu estava agora, aqui com ele. Como deveria de estar. Não importava o como, onde e quando. Apenas importavam estes momentos que nós tínhamos, ele seria o meu palácio se quisesse. Não queria saber da imortalidade nem de mim, o que importava era o que eu desejava, o que queria.
  • 39. Já não me importava se estava em perigo, poderia morrer até, desde que ele permanecesse ao meu lado. Tinha encontrado o meu próprio pedaço, o meu Salvatore, apenas precisava de o ter a meu lado. Meu corpo se arrepiava, o lençol tinha-se desprendido de mim, sentia seus lábios quentes sobre a minha pele, fechando meus olhos podia sentir todo o seu calor, enquanto me levava de volta para a cama. Pousou-me suavemente, permanecendo imóvel até que eu olhei para ele, ele sorriu para mim. Aquele sorriso mexeu cá dentro, desejando saber como ele ficaria quando lhe tirasse aquele sorriso da cara. Empurrei-o, deitando-o ao meu lado na cama, passando minha mão pelo seu corpo aos poucos, descobrindo novas sensações e tirando aquele seu sorriso da cara, o deixando ofegante. Não o iria deixar com capacidade de sorrir para mim, aquele sorriso fazia-me querer mais e mais… Queria olhar vezes sem conta o seu olhar, sentindo o seu cheiro se misturando com o meu… Era tão bom que tudo isto fosse duradouro, mas eu tinha um destino diferente do dele… Não iria ser imortal, acabaria por não puder mais estar deste modo com ele, me encadeando e deixando ser eu mesma. Queria captar cada pedaço dele, para que pudesse jamais esquecer tudo o que ele era para mim. Pensar em perder estes momentos me deixava com um vazio cá dentro, sem puder fazer nada que me desse um sentido na vida. Deixei-me levar pelas carícias que ele me fazia, mas teria de me manter racional para que nunca me esquecesse de tudo o que Salvatore me poderia sentir? Racionalizar era um imenso erro certamente. Apenas sentir bastava para que nunca me esquecesse. Os dias iam passando e iluminando cada parte da minha nova vida, adorava tudo o que via, adorava tudo o que Salvatore fazia para tornar a imortalidade o mais mortal possível. Tudo parecia como se duma cidade qualquer se tratasse, como se ele fosse um qualquer. Mas não era, tudo parecia ter sido feito para a pessoa ideal, não poderia ver o mundo tão bem guardado sem os Magnificat o protegendo. Era maravilhoso! Tudo o que era feito para nunca faltar nada para que a humanidade conseguisse sobreviver às desgraças que Francesca tramava. Ele ainda não tinha
  • 40. conseguido arranjar um modo de a destruir, e isso o torturava, eu podia ver isso dentro do seu olhar, enquanto me contava o que se passava nas reuniões. Parecia que Francesca se estava a tentar aproximar de algo mas, por mais que tentassem, ainda não tinham conseguido descobrir. Eu estava preocupada, não a conhecia mas sabia que de certeza que não seria nada de bom e poderia meter Salvatore em perigo. Detestava que esse pensamento me passasse pela cabeça, mas era essa a dura realidade. Ela desejava acabar com ele para que pudesse ficar com Magnificat e assim ir com os seus planos avante, sem que ninguém a impedisse. O pior é que parecia que eu seria a chave, mas eu era apenas uma humana vulgar. Como seria eu a chave para tudo isto? Katie sempre me repetia que eu era a única que poderia destruir a defesa de Magnificat e que Francesca sabia disso. Eu gostaria de saber como, não sabia o que eu tinha de especial, talvez fosse por ter roubado o coração do regente de Magnificat. Temia só em pensar o que ela poderia fazer comigo contra Salvatore, eu faria de tudo para que isso não acontecesse. Agora podia ir com ele à cidade, mas estava tão radiante por o ter ao meu lado que na realidade isso já não tinha importância. Por mais que Magnificat fosse maravilhosa, eu continuava observando aquele rosto que se mantinha sereno ao meu lado, aquele que sorria para mim… Ele sorria com vontade que eu lhe tirasse esse sorriso, poderia até afirmar que ele queria mesmo que eu o fizesse. Tudo o que tinha pré-desenhado para a minha vida se tinha esfumado em poucos dias, lá estava o desenho do meu futuro: aquele sorriso que me dizia que era apenas para mim, que só eu o poderia tirar. Queria permanecer ao lado dele, sempre. Eu sabia que mais importante do que o tempo que eu ia viver era apenas se ele estaria nesse tempo. Poderiam ser anos, poderiam ser segundos… Apenas o queria ao meu lado, o resto não importava. Katie me tinha dito que ele não me tornaria imortal sem que ele perdesse essa imortalidade. Na transformação era necessário que houvesse uma troca, a imortalidade era uma partilha que Salvatore fazia com quem tinha um pedaço seu,
  • 41. retirando-lhe esse pedaço e dando a imortalidade como prémio. Eu não tinha nenhum pedaço, não podia dar nada mais do que a minha frágil mortalidade para ele. Eu estremeci, só de pensar isso me doía cá dentro. Eu jamais queria viver mais do que estava destinada, muito menos se quem eu mais amo fosse fazer parte dela apenas por um tempo. Ele me olhou com curiosidade, não sabia o que se tinha passado comigo e eu não estava disposta a dizer-lho. Sorri para ele, encostando a minha cabeça ao seu peito para que deixasse de pensar. Eu nunca conseguia pensar quando estava tão perto dele, tão perto do seu aroma que me enlouquecia. Sorri ao pensar nisso… Definitivamente tinha paz dos meus pensamentos, eles fugiam da minha cabeça e me deixavam apenas pensando naquela paz… Pensando no que iria certamente acontecer quando estivéssemos em casa. Casa! Como a minha vida tinha mudado, lá estava eu, num palacete, chamando de casa… Era o meu lar, se Salvatore quisesse que fosse. O meu lar era ele, tudo o que rodeava se tornava em nada quando sentia a sua pele na minha, sendo apenas um só. Imortalidade e mortalidade unidas, sem que o tempo nos fosse acrescentado. Não existe tempo para quem ama, o tempo foge, se esconde. A única coisa que não me conseguia habituar era ser o centro das atenções para todas estas pessoas imortais. Talvez eles se perguntassem a razão pela qual o regente tivesse trazido uma mortal para a sua cidade, sabendo o que me acabaria por acontecer. Mas não queria pensar nesse fim, só a ideia de não puder mais ver aquele olhar me acalentando, torná-lo num olhar fechado e negro… Essa ideia atormentava- me. Adorava a noite, era o melhor momento para nós. Talvez fosse o único momento em que estávamos juntos sem que alguém pensasse no que nos iria acontecer. Desde sempre detestei pensar no futuro, apesar de o ter feito desde que me lembro... Tudo se tornava em ilusões esperadas e ilusões que não aconteceriam. Mas aquela ideia de viver um dia de cada vez era difícil para mim, eu gostava de sonhar. Queria agora deixar que o futuro se desenvolvesse por si.
  • 42. Esperar que algo aconteça tinha deixado de ter importância pois tinha tudo o que era necessário. Ri-me do que me veio à cabeça, tinha tudo o que era necessário: muita imaginação, uma cama e o meu objecto preferido em que passava agora o tempo a imaginar. Salvatore fazia-me tanto bem que eu necessitava de lhe dar do meu bem, isso me fazia feliz. Deixa-lo feliz era tão importante para que aquele sorriso permanecesse sempre naquela cara que me dava tanta vontade de beijar. Perdia-me naqueles olhos, naquele corpo, naquela voz… Encontrava-me nele, ele era o que eu andava à procura. Poderia fazer tudo com ele sem que ele se importasse, podia ter mil e um desejos que ele nunca iria vacilar. Era interessante pensar no que ele poderia querer de mim, ele já tinha tudo! Tinha vida para fazer de tudo, para viver de tudo. Mas agora ele estava na casa de banho, eu esperava que ele viesse para perto de mim. Não sentir aquele cheiro me fazia sentir vazia, não conseguia sorrir sem que ele olhasse para mim, não me sentia bem sem ouvir a sua voz no meu ouvido, sussurrando tudo o que eu precisava de ouvir. Ele era tudo o que eu tinha para me manter bem, a ideia de o perder me deixava louca, mas logo o sentia e tudo voltava a ser meu. Eu estava bem apenas vivendo toda aquela maravilha que ele era. Lá vinha aquela maravilha em minha direcção, pegando em mim e me levando para junto dele. Ficamos molhados como da primeira vez, aquela primeira vez em que este louco me tentou salvar… Ele salvou-me de mim, roubando-me. Desta vez eu sabia o que fazer com aquele olhar, ficaria gravado para sempre em mim a sua respiração contra o meu corpo, estremecia a cada novo toque e sorria enquanto lhe dava resposta a toda esta loucura. Éramos loucamente felizes, loucos de sentir tudo em tão pouco. Desejava que tudo se transformasse em cada vez mais, com ele nada era igual. Seria sempre diferente, eu queria que fosse sempre diferente. Eu o amava e não tinha qualquer pena disso, não havia mais nada que eu quisesse no momento. Amar sem fim, ser amada sem fim…
  • 43. Tudo tão perfeito, todas as imperfeições nos fazia elevar o nosso amor ao melhor de sempre. Cada momento de prazer se elevava ao máximo, não me deixando outra coisa a fazer senão responder aquele homem que me endoidecia tanto. Sentia-me tão feliz que não poderia jamais descrever… Apenas sentia e ficava esperando que pudesse tortura-lo tanto como me torturava agora. Seus lábios iam beijando-me o pescoço, indo lentamente até a minha boca que esperava ansiosamente, mas quando se aproximava, voltava para trás, brincando com a minha pele, deixando-me uma sede dele que jamais poderia saciar. Aquela água nos batia suavemente na pele, estava fria agora, parecia que nada poderia estar mais quente do que nós juntos, brincando com carícias e sentindo as reacções do outro… Era maravilhoso este homem que me deixava completamente doida, partindo o amor que sentia por ele em mil pedaços, espalhados por cada parte do meu corpo, fazendo-me amá-lo por inteira. Se todos os dias da minha vida acabassem comigo partida em mil pedaços, perdendo-me totalmente nele, deixando- o partir-me por inteiro, eu jamais queria que eles acabassem. Ficava contente por ele estar sempre disponível, disponível só para mim…
  • 44. VII. Cativa Meus sentidos estavam todos apenas numa coisa só, tentava permanecer imóvel para que Salvatore não reparasse que eu já não estava a dormir. Adorava a forma como ele me mexia o cabelo, sentia-me arrepiada mas era muito bom sentir os seus dedos flutuando pela minha pele, enquanto movia meus cabelos e tentava não me acordar… Era tão cuidadoso que eu adorava aquele momento do dia, mas parecia que ele já tinha reparado que eu estava acordada pois seus dedos passaram a massajar o meu corpo enquanto seus lábios passeavam pelo meu pescoço, indo em direcção do meu ouvido e beijando-o. Ele sabia o quanto avassalador isso era? Fazia-me tremer, e beijava novamente o meu pescoço, passeando seus dedos como se tentasse tocar alguma melodia, talvez fosse a melodia da loucura pois eu estava a ficar louca. Como continuava a permanecer imóvel, apesar da enorme dificuldade em me concentrar nisso, ele deixou de me torturar, deixando-me numa tortura ainda maior… Não o sentir do meu lado era como não sentir a vida, parecia que estava a dar resultado, o meu corpo já não queria obedecer-me. Deixei que ele se saciasse, meu corpo queria enlouquecer, gritar com todas as letras que o amava. Mostrar-lhe o quanto o amava, morder-lhe de tanta tortura e sugar-lhe de tanta loucura. Sua pele ardia na minha, seus olhos incendiavam de tanta tentação, a loucura estava certa nesta manhã. Eu gargalhei ao pensar nisso, seria uma manhã muito curta, mais valia aproveitá-la ao máximo! E como eu ia fazê-lo! Agora sim estava uma completa louca, sorrindo de triunfo perante o homem que ofegava tanto como eu. Não sei o que poderia ser melhor, torturar ou ser torturada. Talvez o melhor fosse o total de cada um, e não me faltaria tempo para o fazer. O melhor seria deixar que esta manhã se tornasse em dia, o melhor era se pudesse ser uma eternidade. Mas os momentos passavam a horas e os dias teimavam a correr, estava tudo a correr de mim, queria agarrar tudo e ficar neste momento…
  • 45. A cama que tinha ardido em chamas já estava fria, já a algum tempo que Salvatore me tinha deixado a dormir. Certamente tinha-se reunido novamente, para saber se já sabiam algo sobre os planos de Francesca… Eu sabia que ele se preocupava a cada vez mais e mais por não saber o que se estava a passar. Não queria que ele se preocupasse tanto, se eu pudesse ajudar em alguma coisa…. Mas eu era apenas uma mera mortal, não tinha nada que fazer para lhe resolver os problemas. Sentia-me completamente inútil. Bateram à porta do meu quarto, não era habitual que o fizessem… Era mesmo estranho… Será que tinha mesmo de abrir? Apenas queria continuar a pensar numa maneira de o ajudar, de conseguir tirar aquele peso da sua cabeça… Outra batida, ainda mais forte que a anterior… Ter-se-ia passado algo com ele? Pulei da cama e depressa vesti uma peça de roupa que estava deitada na poltrona, não importava o que realmente vestia. Mais uma batida, mesmo antes de eu abrir… Fiquei imóvel, espantada ao ver aquele homem me observando. Pedro era imortal? Acho que fiquei mais pálida do que o previsto pois o seu olhar ficou ainda mais estranho que o que eu me lembrava, quando o tinha visto no meu estágio. Ele agarrou meu braço e me guiou para algures… Eu não estava a entender nada, o que ele estava a tentar fazer? Tentei soltar-me, mas sem qualquer efeito… Antes que eu tivesse pensado em gritar já ele me tinha prendido, tapando a minha boca. Ia em direcção a um buraco nas árvores que nunca tinha reparado que lá estava… Entramos nesse buraco até ao interior do chão de Magnificat, não sabia minimamente o que se estava a passar. Meus olhos não se conseguiam adequar à pouca luz que iluminava o caminho, também não precisava muito de ver pois estava a ser elevada para que não houvesse qualquer capacidade de fugir. De repente deu-se um ligeiro clique na minha cabeça, será que era Francesca que estava por detrás de tudo isto? Eu jamais iria ajudá-la a destruir algo como Magnificat. Não queria fazer parte disto, Salvatore era a única coisa que me importava, ele e tudo o que tinha criado para o bem da humanidade…
  • 46. Tudo o que receava finalmente se confirmou, era Francesca que estava por detrás de tudo isto. Estava agora numa sala em que tudo era sombrio e pouco iluminado, ao centro da sala estava uma criança de cabelos loiros, me observando enquanto eu era levada para junto dela… Seu olhar sombrio me dava vontade de a esfolar viva, pena que ela fosse imortal e eu não conseguia sequer lhe ferir. Era inútil, não poderia acabar com ela pois era apenas uma mortal indefesa, poderia fazer tudo o que quisesse de mim, torturar uma mortal era extremamente fácil, mas eu me iria conter o suficiente, nem que tivesse de morrer por isso. O rosto dela ficou mais gelado, parecia que a minha determinação se notava na minha expressão. Ela jamais iria conseguir arrancar-me algo. Por mais mal que ela quisesse a Salvatore, a minha morte seria um peso mas havia algo muito mais importante, a humanidade estava toda em perigo. Eu sei que ele conseguiria detê-la, mais cedo ou mais tarde, não me importava que eu não pudesse estar do seu lado para ver Francesca morta. Faria de tudo para que eu não fosse a destruição de tudo o que fora construído mesmo antes de eu existir. Agora estava de joelhos no chão, mas não baixava o olhar daquele rosto que estava determinado em ceifar a vida de todos os que não se juntassem a ela. Eu poderia travar este monstro? Mas como poderia fazer? Ela se levantou, se aproximando de mim, seu aroma era igual ao de Salvatore e isso confundiu-me. Estariam os dois ligados por aquele raio imortal? Cada passo que ela dava em minha direcção fazia crescer em mim o ódio por ela, me fazia querer matá-la mais e mais… Tinha de haver algum jeito de a destruir, mas não sabia como o fazer, não sabia como matar uma imortal, eu era apenas uma mortal… Mas afinal de contas o que ela me queria? Eu achei muito estranho quando ela mandou que todos saíssem para que pudéssemos ficar a sós. Pensava que ela me iria torturar até que eu aceitasse destruir tudo por ela, mas parecia que o seu esquema era ainda mais perigoso… Teria de me manter à deriva e aceitar tudo sem muitas complicações, mas com algumas contradições para que ela não reparasse que eu estava a tentar arranjar uma forma de acabar com ela. Quando todos finalmente saíram, ela recuou e voltou a sentar-se, observando-me…
  • 47. Estava agora por detrás da casa, deitada no jardim pensando no que eu tinha acabado de fazer. Eu sabia que estava a ser vigiada pela Francesca e ao mínimo detalhe ela iria matar todos aqueles que eu amo, eu jamais permitiria que a minha família fosse destruída por causa de Magnificat. Ela realmente sabia que a tortura não iria resultar, talvez fosse por isso que agora a minha família estava em risco, eu seria a chave para tudo. Só não sabia como contar tudo a Salvatore, sendo vigiada a todo o tempo. Era por isso que ele nunca sabia os passos seguintes dela, todos os seus olhos estavam postos sobre esta casa, sabendo cada passo. Eu teria de me manter exactamente igual, permanecer aquela humana mortal que amanhã já não seria. Eu aceitara o seu acordo, mas iria usar isso contra ela. Transformar-me em imortal seria um erro que ela não iria querer ter cometido, eu não me importava nas consequências da morte dela para a minha nova vida, eu sabia eu se eu não a matasse não conseguiria salvar nada nem ninguém. Respirei fundo, pensando da forma como iria dizer a Salvatore tudo isto sem que Francesca sequer sonhasse… Teria de aproveitar as nossas noites, esse era o único momento que lhe poderia sussurrar a verdade, enquanto ele se perdia em mim… Ia ser cruel na realidade, manter-me racional para que pudesse ter o seu apoio. Estava a procurar todas as maneiras possíveis de lhe contar, mas esta era a melhor de todas. Não lhe tencionava contar o que estava eminente no contracto, não queria que ele desejasse perder tudo apenas por mim. Afinal de contas eu acabaria por morrer, sendo tão mortal como eu era. Agora iria ser imortal e preparava a minha morte… Era uma tremenda ironia, só esperava ter o apoio incondicional de Salvatore, para que tudo não custasse tanto. Eu sabia que tudo ficaria bem depois, não importava realmente o que se passaria comigo depois, desde que todos permanecessem seguros. Eu queria saber como conseguiríamos aniquilar aquela destruidora de vidas. Eu já sabia onde ela se refugiava, já sabia onde a poderia encontrar para acabar
  • 48. com ela. Mas teria de me manter quieta o suficiente para que ela não desconfiasse de mim, até mesmo chegar a acreditar que eu realmente estava no lado dela. Isso sim seria o que ela merecia, que eu lhe mostrasse quem iria morrer! Tinha de ser cautelosa para que nada corresse mal ou então seria o meu fim, o fim de todos nós. Agora era a vez de manter as aparências, iria ter com Salvatore e faria como se nada tivesse acontecido, ele não devia desconfiar de nada antes que eu lhe pudesse contar. O importante agora era criar um pouco de confiança naquele monstro, e nada melhor do que fazer o que ela queria. Eu sabia que amanhã o Pedro voltaria para me levar novamente, quando soubesse que não haveria risco de eu ser apanhada para que eu fosse transformada. Como se eu não os tivesse a apanhar a eles! Teria de fingir que dormia, isto de ser mortal era complicado… Um imortal teria muito pouco que dormir e que comer, apenas dormiam umas duas horas por semana e comiam uma vez por dia. Eu tinha reparado nisso quando comecei a conviver com Salvatore, muitas vezes me sentia mal por ele ter de permanecer ao meu lado apenas para me proteger, e tinha falhado pois o perigo estava literalmente por debaixo dos nossos pés. Gostaria de saber como é que eles tinham conseguido criar aquela espécie de casa debaixo da própria cidade de Magnificat e a razão pela qual nunca tinham atacado antes… Estava desejosa de ouvir as justificações de Francesca. Talvez o meu súbito interesse pelo tema a fizesse pensar que eu estava realmente orgulhosa de estar do seu lado, sentir que eles é que eram o lado certo para mim. Eu realmente acreditava que isto estava certo, ficava feliz por puder ajudar Magnificat e o seu tão apreciado regente. Apenas teria de ser uma verdadeira artista, moldando tudo em volta da grande mentira, eu agora era a única pessoa que poderia permanecer em ataque sem que ninguém desconfiasse. Enquanto estivera com ela, tentando parecer que estava a entender tudo o que ela acreditava, que apenas queria manter os melhores, sendo ela a governadora do mundo de imortais. Toda a mortalidade iria ser arrasada e ela governaria todo o planeta sem qualquer possibilidade de ser destronada.
  • 49. Eu rapidamente vi que a ambição tinha gerado tudo isto, mas tinha criado algo maravilhoso: um imortal com ânsia de manter o mundo em paz, exactamente como era antes de ter sido feito aquele feitiço que iria transformar aquela pequena menina numa poderosa e destrutiva rainha do mundo. Apenas teria de mostrar tanta ambição como ela, me fazer grande aliada aos seus olhos, fingindo que esse mundo que ela sonhava seria o melhor a ser feito. Não parecia ter sido muito difícil a enganar, certamente ela já teria tentado convencer Salvatore do mesmo, mas não tinha tido sorte. Por mais imortal que fosse, ele permanecia um humano, sentindo e querendo viver como se a sua vida tivesse algum final. Eu estremecia de temor só de pensar num final, eu jamais pensaria que ele poderia ser aniquilado. Eu pensava em várias explicações para eu ser a chave da destruição dele mas não conseguia encontrar qualquer resposta. Acreditava que depois de Francesca me transformar eu iria saber, não gostava minimamente dessa ideia… Teria de manter as aparências, parecer normal para Salvatore e ambiciosa para ela. Ia ser um grande pedido à minha parte artística, apetecia-me contar tudo a ele e dizer-lhe tudo o que se estava a passar. Mas antes teria de me acalmar pois esta noite seria doce, eu o teria apenas para mim. Não sei se foi por puder mudar tudo isto, ou talvez porque o desejava mais que tudo. Esta noite parecia incrivelmente insaciável, não conseguia me cansar de estar com ele e perder-me nele. Seus braços animados me abriam um conjunto variado de sensações, me deixavam indefesa perante aquele homem que me pegava e incendiava todas as partes do meu corpo. O coração já seria cinza se não conseguíssemos apagar este fogo todo, mas eu queria mesmo que ele fosse pó. Assim meu coração entranhava-se em Salvatore e jamais o deixaria, ele já me tinha por tudo e em tudo. Queria fazer parte dele todo o tempo, estar nele era como nunca mais querer voltar. Ficaria dentro daquele meu abrigo e permaneceria nele sempre, para sempre. As chamas que nos envolviam nunca deixavam de queimar os nossos movimentos frenéticos, desejando que esse fogo se tornasse mais e mais, bem cá
  • 50. dentro… Se eu não me pudesse cansar, se não precisasse de comer ou dormir, não me importaria de sentir essas chamas sempre aumentando. Gostava de pensar que apenas aqueles momentos serviriam para que me alimentasse, não o corpo, o corpo tem o seu próprio alimento. Essas chamas alimentavam a minha motivação, o meu amor crescia ardorosamente e a determinação para acabar com todo este sofrimento ia se envolvendo mais e mais. Eu conseguiria, estava pronta para todo o dia de amanhã. Estava impaciente para que tudo terminasse e voltasse a puder arder nele, me mantendo como parte da sua alma. Meu sorriso não deixou de teimar em permanecer na minha face, eu estava feliz e nada iria mudar isso. Eu poderia ajudar a única pessoa que me fazia sorrir, eu estaria lá para que ele deixasse de se preocupar com Francesca. Era inevitável a minha decisão, iria acabar com tudo não tardava nada. Agora necessitava de dormir para que Salvatore não suspeitasse de nada…