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Reflexões sobre o Neo-Realismo e um artigo de Fernando
Lopes-Graça para a Revista Vértice (1949)
Márcio Páscoa1
Resumo:
Uma das maiores preocupações do movimento Neo-realista era a
aproximação da arte com o público. No palco dos debates do movimento
acontecidos no auge da linha dura da política salazarista foram questionados
fortemente os valores nacionais, estéticos e pedagógicos vigentes em
Portugal. Lopes Graça publicou, em 1949 na revista Vértice, o conteúdo de uma
palestra sua na Academia de Amadores de Música em que põe em causa estes
assuntos.
Palavras-chave: Neo-realismo; Fernando Lopes-Graça; Música
Em maio de 1949, o número 69 da revista Vértice, editada em Coimbra, trouxe o
conteúdo de uma palestra realizada por Fernando Lopes-Graça na Academia de Amadores de
Música, ocasião que precedeu uma apresentação do Coro do Grupo Dramático Lisbonense,
que desempenharia algumas das canções populares portuguesas a que o autor dedicara-se.
O artigo da publicação coimbrã intitulou-se «Valor estético, pedagógico e patriótico da
canção popular portuguesa» e chamou-me bastante a atenção pela coincidência com os temas
de preocupação com a corrente neo-realista em franca atividade àqueles dias. No decorrer do
exame de algumas tendências estéticas do século XX, resultantes de um interesse sobre as
origens destas no século XIX, de minha mais detida apreciação, deparei-me com o curso do
Neo-realismo português e a tese que lançavam seus agentes, proclamando diferenças entre seu
movimento e o Naturalismo, bem como as manifestações do Realismo precedente.
As máximas de Mário Dionísio para o Neo-Realismo admitiam a sua vinculação ao
Romantismo e ao Realismo do século anterior, mas de maneira a descrever a realidade tal
qual se mostra, intentando modifica-la para uma situação idealizada. Dizia ele tratar-se em
verdade de um Novo Humanismo e com isso o Neo-Realismo não era apenas a crítica à
burguesia e suas convenções, que o Realismo pregara, ou ainda a fuga romântica da realidade
1
Doutor em Ciências Musicais Históricas pela Univerdidade de Coimbra, Mestre em Musicologia pelo Instituto
de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. É professor do curso de música da UEA,
onde ministra as disciplinas Linguagem e Estruturação Musical IV, História da Música I, Música Brasileira e
Prática Orquestral.
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do movimento mais antigo. Cabia ao Homem então a tomada de posição consciente, pela
defesa dos interesses da coletividade, do bem comum. O Neo-Realismo «não compreende o
homem desligado da vida social e encara-o, portanto, de um ângulo diferente de observação,
mas deseja também o maior aprofundamento do indivíduo. Serve-se de todas as descobertas
fecundas do interiorismo e apenas rejeita o que lhe parece tão só fruto de uma imaginação
sem controle» [Torres, 1977, p.66].
O próprio Lopes-Graça, num acérrimo escrito seu sobre o fado, anos antes já admitira
que «todo sentimento é legítimo... [e a sua variedade] psicologicamente tão admissível, tão
natural, tão humana» [Lopes-Graça, 1978, p.226], mas que isso nada tinha «que ver com uma
classificação ética dos sentimentos» [Idem]. Obviamente porque que tal classificação surge
dos componentes ideológico-culturais que revestem os agentes artísticos. Estavam ambos a
refletir as afirmações de Bento de Jesus Caraça, para quem:
a vida orgânica da sociedade deixou de ter direção efetiva . As
consequências do que assim é diagnosticado não são menos claras: é o
espectro da guerra tornado meio de solução de conflitos tornados
contraditórios pela imediatidade de interesses que agem por si próprios, sem
uma direção cultural que os reconduza a finalidades que trascendam o
imediato [Pita, 1996, p.13]
A necessidade da dialética nesta relação entre o Homem e a Arte afastava a hipótese
de se confundir o movimento neo-realista com o Naturalismo e expressões precedentes.
[Sousa, 1959, pp.162 e 166]
Para os adeptos do Neo-realismo a concepção de seu movimento era:
corresponder à leitura ou assimilação estética de novas problemáticas
humanas levantadas pela contemporaneidade, revelando-se em múltiplas
experiências pessoais e sensibilidades artísticas diversas, mas comumente
estimuladas por uma visão materialista que, sobre a evolução dos
acontecimentos histórico-sociais, se desenvolver no sentido de uma atividade
consciente, incluída a ação criadora na arte.[Idem, p.23]
Mais uma vez remetiam-se a Bento Caraça, para quem «Ciência, filosofia, arte,
religiões, tem portanto uma raiz comum: a atividade social dos homens, ... e [que se] refletem
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consequentemente nas mentalidades diferenciadas, nos eus intensificados, as condições gerais
do meio físico e social em que foram criadas.» [Caraça, 1945, pp.273-276]
A consciência da intervenção objetiva na realidade enfatizou-se justamente no Pós-
Guerra, o momento da tomada do controle, quando aos neo-realistas não parecia mais haver
dúvida de que era preciso denunciar as diferenças entre a vida, o meio e as necessidades dos
poderosos contra os anseios populares. A estratégia foi, da literatura às artes visuais, o
«redescobrimento» do povo. Não aquele que vivia sob as convenções da oficialidade ditada
pelos governos ou da sociedade burguesa consumista, mas o trabalhador dos serviços menos
prestigiados ou ainda melhor, o homem campesino, cujos valores estiveram esquecidos ou
implicitamente encobertos sob pechas que não lhe correspondiam. Era precisamente, no
entender de Armando Bacelar, um fator proeminente de aproximação entre arte e
público.[Bacelar, Não por fazer algo palatável ao gosto mais fácil,
não uma arte «facilitada», «adulterada» de valor crítico, mas uma arte que se comunicasse
com o povo, algo mais orgânico, nos dizeres de um Bandeira. [Bandeira, 1949]
Assim, segundo Vergílio Ferreira, a arte deveria até inserir os costumes e posturas típicos das
gentes do povo e não a fala escorreita das linguagens clássicas e normatizantes, sendo
permissíveis mesmo algumas «imperfeições».[Ferreira, 1945, pp.41-46]
O mesmo Vergílio Ferreira a quem Lopes-Graça chamou de «artista, pedagogo de
mérito e homem de bem», no artigo aqui em causa, quando se referiu à iniciativa de um grupo
de canto popular em Portugal que o primeiro encetou no Porto.
Estava realmente em causa no presente artigo da Vértice o que o título o diz muito
bem. A orientação estética adequada, com o intuito pedagógico de difundir a arte resultariam
no serviço patriótico de fazer o país descobrir-se e quiçá entender-se.
Em «Valor estético, pedagógico e patriótico da canção popular portuguesa», Lopes-
Graça começa por contar duas histórias a que chamou aparentemente banais, mas que
identificou como significativas do «lamentável estado de consciência artística e, digamos
mesmo, patriótica, de uma parte do nosso povo, como das nossas elites intelectuais.» [Lopes-
Graça,
No primeiro relato disse ter ficado transido de horror quando na travessia dos
cacilheiros ouviu uma colônia balnear infantil toda a cantar «as piores banalidades revisteiras,
fados e outras canções de proveniência duvidosa, na generalidade providas de letras de gosto
e idade ainda mais duvidosos». [Idem] Considerou isto um reflexo do que as crianças ouvem
à sua volta, ou pior, que aquilo era o que lhe haviam ensinado. Salvaguardando iniciativas
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como as de Vergílio Ferreira, denuncia mesmo o largo uso das cochiches revisteiras em
desfavor do folclore infantil que considerava mais educativo. [Ibidem]
No segundo relato, Lopes-Graça falou do constrangimento passado num congresso
europeu quando nos momentos lúdicos ao lado de intelectuais de outras nacionalidades, mal
conseguiram os portugueses cantarolar suas canções folclóricas, temendo aqui o músico que
fossem parar no «fadinho» [Ibidem, p.270] A interrogação que se fez no congresso sobre a
existência ou não de canções características portuguesas não provocou unicamente o
constrangimento.
Como reflexo disto, Lopes-Graça reconheceu posteriormente e em especial neste
artigo, que o setor intelectual estava divorciado, como também as classes cultas estavam, do
povo e das manifestações populares, tanto na literatura como nas artes.[Ibidem] Disse mesmo
que «em geral o intelectual português pouco ou nada conhece do povo» e que quando o povo
aparecia nas preocupações dos intelectuais e artistas era tão somente com intenção pitoresca.
[Ibidem] Mais que isso, Lopes-Graça atribuiu ao setor intelectual português uma vergonha
contra tudo que tivesse a origem popular:
Para estes intelectuais a cultura é por assim dizer uma questão de boas
maneiras, de polícia do espírito, um produto superior de civilização que não
admite contatos com o vulgo, com aquelas forças telúricas que se acham ainda
próximas do primitivismo animal. Voltar-se para as coisas do povo é, assim,
uma ofensa à dignidade da cultura e o nosso intelectual de maneira nenhuma
deseja passar por menos culto aos olhos dos seus pares ou das gentes polidas
que constituem a sua roda de admiradores, descendo um momento à praça
pública para cantar uma canção beirã ou alentejana, coisa apenas do povo e
que entre o povo deve ficar [Idem, p.271]
O complexo de superioridade, disse o músico, estava por certas camadas da capital e
da burguesia do país, que adotava costumes pseudo civilizados. Chamou o lisboeta de
provinciano, principalmente por ter horror naquilo que menos o desdouraria, as suas canções
genuinamente populares, preferindo o fado das vedetas às manifestações folclóricas,
admissíveis somente como pitoresco indígena. [Ibidem]
Já mencionado mais de uma vez aqui o fado, em circunstâncias que não lhe
favorecem, deve-se lembrar das reservas que Lopes-Graça tinha ao gênero, a que dedicou um
artigo intitulado «Variações sobre o fado» [Lopes-Graça, 1978, pp.221-228], escrito doze
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anos antes deste que se está a gizar aqui. Naquele ensaio de 1937 reclamava dentre muitas
coisas, de uma certa superficialidade grosseira, a mesma que denunciava nas iniciativas de
concertos ditos populares, então em voga, e sobre os quais acidamente se opôs em escritos
como «Cultura ou demagogia social?», de 1945. [Lopes-Graça, 1974] Enquanto era este uma
iniciativa um tanto o quanto à simpatia da «política do espírito» que antes poderoso António
Ferro pregara aos portugueses, aquele se impingia como representante musical nacional da
alma portuguesa num dirigismo tipicamente fascista.
No artigo para a Vértice, não veio Lopes-Graça registrar somente o seu dissabor com o
estado de coisas aludidas, mas as suas propostas efectivas que esteticamente o inscrevem ao
lado de uma ação neo-realista. Ao cabo do escrito estão publicadas as partituras de Janela,
canção popular de Trás-os Montes e Senhora do Amparo, canção popular da Beira Baixa,
ambas harmonizadas por Lopes-Graça.
Neste par de canções que deve ter constituído parte do concerto a que precedeu a
palestra publicada na Revista Vértice, o compositor não exibe os elementos técnicos que a
crítica de Macário Santiago Kastner asseverara em 1942 para alguma de suas obras, quais
fossem os do acompanhamento demasiadamente sobrecarregado, tornando-o excessivamente
espesso, [Kastner, 1942] bem como do abuso nos típicos cachos de segunda que o compositor
usava áquela época: «A aplicação de dissonâncias extremamente duras e de técnicas
problemáticas tornam a canção popular duma complexidade não intencionada», conclui
Kastner.[Idem]
Assim, talvez refletindo o teor de tais palavras e no compasso das discussões estéticas
e ações artísticas que transcorreram nos anos 40, desenvolveu as partituras acima citadas, de
1949.
Ficara claro para Lopes-Graça que o maior acesso delas se daria preservando a sua
essência, do que «intelectualiznado-as». O propósito educativo também estava em conta:
«Insisto em que a exploração e o estudo do nosso folclore musical poderia ser a base firme em
que assentar um sério trabalho de educação musical da nossa gente» [Lopes-Graça, 1949,
p.277], dizia ele.
Quanto à tradição, via que para além daquela popular estavam ali contidas as
influências do gregoriano e do árabe, ou seja da cultura passada que não se perdera, mas
conservara-se ainda que transformada, na acepção popular. [Idem]
Para o autor do hino do MUD, no ano em que Norton de Matos representou a
esperançosa candidatura pela oposição democrática, suspeitosamente derrotada por Oliveira
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Salazar, a sua maneira de reagir refletiu-se no uso intevencionista que fez através da obra de
arte, por sinal, característica do movimento neo-realista.
Não foi pois no grupo surrealista, cuja primeira exposição visual também se deu neste
1949, que amparou o discurso daquele seu momento, ainda que seja bem sabido que os
surrealistas também apoiaram Norton de Matos e eram contrários ao Fascismo. Mas afinal os
surrealistas eram fortemente acusados pelos neo-realistas de «incapazes de estabelecer válida
conexão analítica com o mundo circundante», [Campos Lima, 1949] e isto não favorecia a
conscientização do homem sobre suas circunstâncias. Era precisamente esta exigência de tese,
tão diferente do Neo-realismo brasileiro, nascido no desenvolvimentismo, que parecia pesar
na decisão de Lopes-Graça na ação artístico-intelectual de 1949.
É verdade que durante algum tempo Lopes-Graça por vezes também foi visto em certo
isolamento e em alguns momentos a sua ação lembra mais a idéia do Grupo dos
Independentes do Norte, das Artes Plásticas, que entre 1943 e 1950, organizou as Exposições
Independentes, dentre os quais Júlio Pomar e Abel Salazar são nomes expressivos pela
relação com o pensamento novo-humanista, neo-realista.
Mas são inequivocamente muitos os pontos da problemática Neo-realista que se
percebem em discussão neste momento de Lopes-Graça: o Novo Humanismo, o envolvimento
de Arte e Ideologia, com o ideário marxista-leninista ou socialista-marxista a latejar, a
preocupação social tomando a frente das questões temáticas da obra de arte, a busca sem
dogmas de uma união entre forma e conteúdo que satisfizesse aos princípios estético-
ideológicos e o cheiro de «pólvora» do Neo-realismo, de que falou Sacramento: «o problema
do Neo-realismo é sempre pólvora: ele é, há décadas, a única expressão possível de toda a
problemática social portuguesa.» [Sacramento, 1974, p.87]
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