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Textos complementares
Unidade II - A ação humana e os valores
Capítulo 3.3. – Ética, direito e política
Texto 1
Segundo a compreensão moderna, “Estado” é um conceito definido juridicamente: do ponto de vista
objetivo, refere-se a um poder estatal soberano, tanto interna quanto externamente; quanto ao espaço, refere-se a
uma área claramente delimitada, o território do Estado; e socialmente refere-se ao conjunto dos que o integram, o
povo do Estado. O domínio estatal constitui-se nas formas do direito positivo, e o povo de um Estado é portador da
ordem jurídica limitada à região de validade do território desse mesmo Estado. No uso político da linguagem, os
conceitos "nação" e "povo" têm a mesma extensão. Para além da fixação jurídica, no entanto, "nação" também
tem o significado de uma comunidade política marcada por uma ascendência comum, ao menos por uma língua,
cultura e história em comum. Um povo transforma-se em "nação" nesse sentido histórico apenas sob a forma
concreta de uma forma de vida em especial. Os dois componentes, que estão incluídos em conceitos como
"Estado nacional" ou "nação de cidadãos de um mesmo Estado", remetem para dois processos que de modo
algum decorreram paralelamente na história - da formação de Estados (1), por um lado, e de nações (2), por outro.
(1) Em grande parte, o êxito histórico do Estado nacional pode ser esclarecido em decorrência dos méritos
do aparato estatal moderno como tal. É evidente que o Estado territorial com monopólio de poder e administração
diferenciada, autónoma e financiada por impostos pode cumprir melhor os imperativos funcionais da modernização
social, cultural e sobretudo económica do que as formações políticas de origem mais remota. Neste contexto,
basta lembrar as caracterizações de tipos ideais elaboradas por Marx e Max Weber.
(a) O poder executivo do Estado apartado do rei e burocraticamente configurado constituía-se de uma
organização de postos especializados segundo áreas do conhecimento, ocupados por funcionários públicos
juridicamente treinados e pode apoiar-se sobre o poder enquartelado do exército, polícia e poder carcerário
existentes. Para monopolizar esses recursos do uso legítimo do poder, foi preciso impor a "paz nacional". Só é
soberano o Estado que pode manter a calma e a ordem no interior e defender efetivamente as suas fronteiras
externas. Internamente, tem de se poder impor a outros poderes concorrentes e firmar-se internacionalmente
como concorrente em igualdade de direitos. O status de um sujeito no direito internacional baseia-se no
reconhecimento internacional como membro "igual" e "independente" no sistema de Estados; e para isso ele
precisa de uma posição de poder suficientemente forte. A soberania interna pressupõe a capacidade de imposição
da ordem jurídica estatal; a soberania externa, a capacidade de autoafirmação com vista à concorrência
"anárquica" pelo poder entre os Estados.
(b) Ainda mais importante para o processo de modernização é a separação do Estado da "sociedade civil",
ou seja, a especificação funcional do aparato estatal. O Estado moderno é a um só tempo Estado diretivo e fiscal,
o que significa que se restringe essencialmente a tarefas administrativas. Abandona as tarefas produtivas que até
então vinham a ser cumpridas no âmbito do domínio político para uma economia de mercado distinta do Estado.
Nesse sentido ocupa-se das "condições gerais de produção", ou seja, do arcabouço jurídico e da infraestrutura
necessários ao trânsito capitalista de mercadorias e à organização do trabalho social correspondente. As
exigências financeiras do Estado são supridas por uma captação de impostos gerida de forma privada. As
vantagens dessa especialização funcional é paga pelo sistema administrativo com a sua dependência da
capacidade produtiva de uma economia orientada pelos mercados. Pois embora os mercados possam ser
instituídos e supervisionados politicamente, eles seguem uma lógica própria que escapa ao controlo estatal.
A diferenciação entre o Estado e a economia reflete-se na diferenciação entre o direito público e privado. À
medida que o Estado moderno se serve do direito positivo como de um meio de organização da sua dominação,
vincula-se a um instrumento que - com os conceitos da lei, do direito subjetivo (que se deduz a partir daí) e da
pessoa jurídica (como detentora de direitos) - confere validade a um princípio novo, explicitado por Hobbes: numa
ordem do direito positivo eximida da moral (apenas sob um certo sentido, é claro) permite-se aos cidadãos tudo
aquilo que não é proibido. Embora o próprio poder estatal já esteja domesticado na sua condição de Estado de
direito, e a coroa já esteja "sob a lei", o Estado não pode servir-se do instrumento do direito sem organizar os
trâmites na esfera da sociedade civil (distinta dele mesmo), e isso de tal forma que as pessoas em particular
possam chegar ao gozo de liberdades subjetivas - distribuídas de forma desigual, num primeiro momento. Com a
separação entre os direitos privado e público, o cidadão individual no papel do "súbdito" - tal como ainda se
expressou Kant - é quem ganha uma área crucial de autonomia privada.
(2) Hoje vivemos todos em sociedades nacionais que devem a sua unidade a uma organização desse tipo.
Tais Estados já existiam muito antes de haver "nações" em sentido moderno. Somente a partir das revoluções do
final do século XVIII é que Estado e nação se fundiram para se tornar Estado nacional. Antes de me dedicar ao
que há de específico nessa vinculação, gostaria de lembrar, sob a forma de uma pequena incursão na história dos
conceitos, o aparecimento da formação da consciência moderna que permite interpretar povo como "nação", num
sentido diverso do exclusivamente jurídico.
Segundo o uso linguístico clássico dos romanos, "natio", assim como "gens", é um conceito que surge por
oposição a "civitas”. As nações são, em primeiro lugar, comunidades de ascendência comum, que se integram
geograficamente por vizinhança e assentamento, culturalmente por uma língua, hábitos e tradição em comum,
mas que ainda não se encontram reunidas no âmbito de uma forma de organização estatal ou política. Essa raiz
mantém-se vigente por toda a parte, durante a Idade Média e o início da Era Moderna, quando "natio" e "língua"
se equivalem. Assim, por exemplo, os estudantes das universidades medievais eram subdivididos em "nationes",
de acordo com sua origem enquanto conterrâneos. Com o crescimento da mobilidade geográfica, o conceito
serviu em geral para as diferenciações internas das ordens de cavalaria, universidades, mosteiros, concílios, ligas
comerciais, etc. Portanto, a origem nacional, que era atribuída por outros, esteve associada desde o início com a
delimitação negativa entre o próprio e o estrangeiro.
É num outro contexto que a expressão "nação" vem a assumir um significado contrário e de caráter
apolítico. Da associação de feudatários do Império Alemão haviam-se desenvolvido estados de classe; eles
baseavam-se em contratos em que o rei ou imperador, que dependia de impostos e proteção militar, concedia
privilégios à nobreza, à Igreja e às cidades, ou seja, concedia-lhes uma participação limitada no exercício do
domínio político. E essas classes dominantes, reunidas em "parlamentos" ou "câmaras", representavam o "país"
ou mesmo a "nação" diante da corte. Como "nação", a aristocracia assumia uma existência política que ainda era
negada ao povo enquanto conjunto de súbditos. Isso explica o sentido revolucionário de formulações como "King
in Parliament” e tanto mais a identificação do "terceiro estado" com a "nação".
A transformação da "nação aristocrática" em "nação popular", que avança a partir de fins do século XVIII,
pressupõe uma mudança de consciência, inspirada por intelectuais, que se impõe inicialmente na burguesia
citadina, sobretudo academicamente letrada, antes de alcançar eco em camadas mais amplas da população e
ocasionar progressivamente uma mobilização das massas. A consciência nacional popular cristaliza-se em
"comunidades imaginárias" (Anderson) engendradas nas diferentes histórias nacionais, as quais se tornaram o
cerne da consolidação de uma nova autoidentificação coletiva: "Assim surgiram as nações nas últimas décadas do
século XVIII e ao longo do século XIX (...): construídas por um grupo bem delimitado de eruditos, jornalistas e
poetas - nações populares na ideia, mas ainda longe de sê-lo na realidade" [
3]. Na mesma medida em que essa
ideia se difundiu, também ficou claro, no entanto, que o conceito político de nação popular, modificado a partir do
conceito de nação aristocrática, havia emprestado do conceito de "nação" como designação de ascendência e
procedência (mais antigo e anterior à política) também a força que o movia à formação de estereótipos. A
autoestilização positiva da própria nação transformava-se agora num eficiente mecanismo de defesa contra tudo o
que fosse estrangeiro, mecanismo de desvalorização de outras nações e de exclusão de minorias nacionais,
étnicas e religiosas - em especial dos judeus. Na Europa, o nacionalismo vinculou-se de forma muito consequente
ao anti semitismo.
J. Habermas (2002). Inclusion of the other: studies in political theory. Trad. e adaptado por Vítor João Oliveira. Acedido em
23.03.2008 em http://qualia-esob.blogspot.com/search/label/Filosofia%20Pol%C3%ADtica.
Texto 2
É revestindo o sentido da obrigação moral e do seu duplo negativo, a interdição, que a lei acede ao
estatuto normativo que a utilização vulgar lhe reconhece. Tirarei partido, para a análise que proponho, do facto de
que o termo lei depende indiferentemente do registo do direito e do da moralidade. Veremos adiante a que ponto a
compreensão do laço entre o ético e o jurídico é necessária para a justa apreciação do papel da consciência a
este nível. Proponho, portanto, que entremos na problemática da norma pelo lado da legalidade, a fim de mostrar
como o movimento, pelo qual a legalidade reenvia à moralidade, se conclui pelo reenvio da moralidade à
consciência.
Três traços do legal retêm-nos, na medida em que designam o ponto de injeção da dialética de
interiorização que acabei de evocar.
Em primeiro lugar, a interdição é a face severa que a lei nos mostra. O próprio Decálogo enuncia-se nesta
gramática de imperativos negativos: Não matarás; Não dirás falsos testemunhos, etc. À primeira vista, estaríamos
tentados a não perceber o interdito da sua dimensão repressiva; na verdade, se alinharmos por Nietzsche,
somente o ódio do desejo aí se dissimularia, com o risco, então, de não tomar em consideração o que podemos
denominar a função estruturante do interdito. Lévi-Strauss demonstrou-o brilhantemente no caso do interdito talvez
mais universalmente proclamado, o do incesto. Ao interditar os homens de tais clãs, tribos, ou grupos sociais, de
ter por parceiro sexual a sua mãe, a sua irmã, ou a sua filha, o interdito institui a distinção entre o laço social da
aliança e o laço simplesmente biológico da procriação. Poderíamos estabelecer uma demonstração comparável
para o interdito da morte, mesmo quando ele se proclama duma justiça vingativa, retirando à vítima o alegado
direito à vingança; o direito penal instaura uma justa distância entre duas violências: a do crime e a do castigo.
[
Não seria difícil fazer a mesma demonstração com a interdição do falso testemunho, que, ao proteger a instituição
da linguagem, instaura o laço de confiança mútua entre os membros de uma mesma comunidade linguística.
O segundo traço, comum à norma jurídica e à norma moral, é a sua pretensão à universalidade. Digo bem,
pretensão, pois no plano empírico as normas sociais variam mais ou menos no espaço e no tempo. Mas é
essencial que, apesar desta relatividade de facto, e por ela, seja visada uma validade de direito. A interdição de
morte perderia o seu carácter normativo se não a julgássemos válida para todos, em todas as circunstâncias e
sem exceção. Que a um segundo tempo procuremos justificar as exceções, quando se trata de ajudar uma pessoa
em perigo, na guerra, na hipótese controversa duma guerra justa, ou, durante milénios, no caso da pena de morte,
esta tentativa para dar razão das exceções é uma homenagem prestada à universalidade da regra; é preciso uma
regra para justificar a exceção à regra, uma espécie de regra suspensiva, revestindo a mesma exigência de
legitimidade de validade que a regra de base.
O terceiro traço que gostaria de reter concerne o laço entre a norma e a pluralidade humana. O que é
interdito, universalmente condenado, são, em última análise, toda uma série de males feitos a outrem. Um si e o
seu outro são também os protagonistas obrigatórios da norma ético-jurídica. Deste modo é proposto, tanto pelo
direito como pela moral, o que Kant chamava o estado de «insociável sociabilidade», que torna tão frágil o laço
inter-humano. Face a esta ameaça permanente de desordem, a mais elementar exigência do direito, dizia o
mesmo filósofo na sua Doutrina do Direito, é separar o meu do teu. Encontramos a mesma ideia na justa distância,
aplicada desta vez na delimitação de esferas concorrentes de liberdades individuais. Agarremo-nos a estes três
traços em prol do argumento que se segue: papel estruturante do interdito, pretensão à validade universal, pôr em
ordem da pluralidade humana, a fim de atrair o movimento que, remontando da legalidade à moralidade, termina o
seu percurso na noção de consciência moral, como contrapartida da lei.
No que respeita ao primeiro traço a saber, o papel do interdito, o que distingue fundamentalmente a
legalidade da moralidade salta aos olhos; a legalidade só exige uma obediência exterior, o que Kant chamava de
simples conformidade à lei, para a distinguir do respeito à lei por amor do dever. A esse carácter exterior da
legalidade acrescenta-se esse outro traço que a distingue da moralidade, a saber, a autorização da correção
física, com vista a restaurar o direito, a dar uma satisfação às vítimas, em resumo, a deixar, como se diz, a última
palavra à lei. Na medida em que a simples conformidade à moralidade tem, assim, o apoio do medo da punição,
compreende-se que a passagem da simples legalidade à moralidade verdadeira possa ser assimilada a um
processo de interiorização da norma.
No que concerne ao segundo traço, a pretensão da legalidade à universalidade, a moralidade apresenta
uma segunda modalidade de interiorização. À ideia de um legislador exterior opõe-se a de uma autonomia
pessoal, no sentido forte do termo autonomia, interpretada por Kant como legislação que uma liberdade se dá a si
mesma. Pela autonomia, uma vontade racional emerge do simples arbitrário, colocando-se sob a síntese da
liberdade e da lei. A admiração que podemos ter pelo elogio kantiano da autonomia não deve impedir de avaliar o
preço a pagar por esta interiorização da lei tomada sob o ângulo universal. Apenas uma regra formal, tal como a
experiência de universalização, à qual se devem submeter todos os nossos projetos, todos os nossos planos de
vida, em resumo, o que Kant chama as máximas de ação, pode aspirar à espécie de universalidade que faz
vulgarmente falta na simples legalidade social.
Este formalismo encontra, é verdade, uma contrapartida certa na elevação ao plano da pura moralidade
do terceiro traço que reconhecemos à legalidade, a saber, o papel que a norma exerce, a título de princípio de
ordem, no plano da pluralidade humana. É sobretudo em discípulos contemporâneos de Kant, em Rawls, na
Teoria da Justiça, em Habermas na sua Ética da Discussão, que este carácter dialógico ou dialogal da norma
consegue expressar-se. Já Kant tinha em consideração esta pluralidade de sujeitos morais no segundo imperativo
categórico, ordenando no sentido de tratar a humanidade, na nossa pessoa e na pessoa de outrem, como um fim
em si e não apenas como um meio. É contudo, na ideia de justiça, segundo Rawls, e de argumentação, segundo
Habermas, que vemos inteiramente desenvolvidas as implicações dialógicas ou dialogais do segundo imperativo
categórico, sob a figura do respeito mútuo que as pessoas se devem.
Posto isto, não é difícil compreender em que sentido o processo de interiorização, pelo qual a simples
legalidade social se eleva à moralidade, conclui o seu percurso na consciência moral. Nesta fase da nossa
meditação, a consciência não é mais do que a obediência íntima à lei enquanto lei, pelo puro respeito por ela e
não pela simples conformidade ao enunciado da regra. O respeito é aqui a palavra decisiva. Num capítulo célebre
da Crítica da Razão Prática, Kant faz dele o único móbil da vida moral. É um sentimento por certo, mas o único
sentimento da razão, pela sua própria autoridade inscrita em nós. Fazendo eco de Rosseau e do seu célebre
elogio da «voz da consciência», Kant vê neste sentimento, simultaneamente, a humilhação da nossa
sensibilidade, ávida de satisfações egoístas, e a exaltação da nossa humanidade acima do reino animal. Mas não
nos espantaríamos de encontrar sob este vocábulo de «voz da consciência» todos os traços da legalidade social,
interiorizados em pura moralidade. A «voz da consciência» é, antes de mais, a voz do interdito, certamente
estruturante mas rigoroso. É também a voz do universal, do qual se afirma a intransigência. Por fim, sob os traços
da ideia da justiça e sob o aguilhão de uma ética da discussão, a «voz da consciência» acrescenta a estes dois
traços do rigor e da intransigência o da imparcialidade. Imparcial, a «voz da consciência» diz-me que qualquer
outra vida é tão importante como a minha, para retomar a fórmula recente de Thomas Nagel em Igualdade e
Parcialidade.
Eis até onde pode chegar uma meditação sobre a consciência na sua relação com a lei, encarada no seu
nível radicalmente formal. Definem-na três palavras: o rigor, a intransigência, a imparcialidade.
Coloca-se então a questão de saber se podemos ficar por aí. O respeito kantiano não é de facto nada,
sobretudo se desenvolvermos as aplicações dialogais, como numa ética da justiça ou numa ética da discussão.
Mas serão as pessoas verdadeiramente reconhecidas na sua singularidade insubstituível, uma vez que o respeito
se dirige mais à lei do que às pessoas, vistas em si mesmas como a simples expressão duma humanidade
abstrata? E como seriam elas, mesmo sob o signo da ideia de imparcialidade, se colocarmos entre parêntesis as
adesões fortemente correlativas das avaliações fortes, de que falámos na primeira parte, sob o horizonte da
persecução de uma vida boa? É desta dúvida que provém a investigação de um terceiro nível de correlação entre
lei e consciência.
P. Ricoeur (1997). O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget, pp.187-192.
Texto 3
O objeto da justiça diz respeito ao que Rawls chama a «estrutura de base», que congrega as instituições
sociais mais importantes, a Constituição e as primeiras estruturas económicas, bem como «a maneira pela qual
elas repartem os direitos e os deveres fundamentais e determinam a repartição dos benefícios extraídos da
cooperação social» (Rawls, 1987, 33). No seio desta estrutura de base os homens ocupam posições sociais
variadas dando-lhes perspetivas de vida diferentes e colocando-os em posições de desigualdade. É à correção
destas desigualdades que se deve aplicar a justiça e, por esta forma, fornecer um critério permanente para avaliar
a maneira de efetuar a distribuição dos bens na «estrutura base». Chegado a este ponto, Rawls adota a atitude
teórica do contratualista.
O meu objetivo é apresentar uma conceção da justiça que generalize e leve a um nível mais elevado de
abstração a teoria muito conhecida do contrato social tal como se encontra, entre outros, em Locke, Rousseau e
Kant. (Rawls, 1987, 37)
O contrato responde contudo a um objetivo diferente do perseguido pelos contratualistas anteriores. O seu
emprego destina-se não a pôr em evidência um tipo legítimo de organização política, mas a definir os princípios da
justiça, ou seja, a identificar regras que pessoas livres e racionais, colocadas «numa posição inicial de igualdade»,
escolheriam para formar a sua associação. Na perspetiva rawlsiana, pode-se considerar que «a posição original»
corresponde ao estado de natureza na teoria clássica (em Locke e Rosseau especialmente). Da mesma maneira
que esta é estranha a situações históricas (embora por vezes os relatos dos viajantes que percorreram a América
pós-colombiana tenham inspirado nela as «descrições») e possua no discurso contratualista um estatuto
exclusivamente teórico, «a posição original» a partir da qual Rawls articula o seu próprio discurso «é uma situação
puramente hipotética definida de maneira a conduzir a uma certa conceção de justiça». Ela implica por outro lado
que a determinação dos princípios da justiça seja conduzida à retaguarda do que ele chama «o véu de ignorância»
a fim de evitar a «parasitagem» das escolhas efetuadas por uns e por outros em função das suas situações
pessoais desiguais.
De uma maneira ou de outra, devemos invalidar os efeitos das contingências particulares que opõem os
homens uns aos outros e lhes inspiram a tentação de utilizar as circunstâncias sociais e naturais em seu proveito
pessoal. É por isso que afirmo que os parceiros estão situados atrás de um véu de ignorância. Eles não sabem
como as diferentes possibilidades afetarão o seu próprio caso particular e são obrigados a julgar os princípios na
base única de considerações gerais. (Rawls, 1987, 168)
Assim, cada um ignora o seu lugar na sociedade, a repartição dos trunfos naturais que lhe dizem respeito
(particularmente inteligência e força), a sua própria conceção do bem, até os traços particulares da sua psicologia:
a aversão ao risco, a tendência para o pessimismo ou para o otimismo. Em compensação, o conhecimento geral
da sociedade humana é tido por adquirido, o que implica que cada um esteja em condições de compreender os
princípios da teoria económica e dos negócios políticos (do mesmo modo que, com Rosseau, o cidadão deve
poder assimilar racionalmente o terreno político no qual intervém a vontade geral). De maneira mais global, «os
parceiros conhecem todos os factos gerais que afetam a escolha dos princípios da justiça». Estabelecidas estas
premissas, Rawls afirma que os «parceiros» encarregados de estabelecer os princípios da justiça, racionais por
hipótese e colocados todos na mesma situação, serão convencidos pela mesma argumentação, e ninguém tentará
elaborar princípios para seu benefício. A racionalidade do comportamento deve entretanto ser objeto de uma
precisão: os indivíduos são «mutuamente desinteressados» (mutually disinterested), ou seja, indiferentes aos
interesses dos outros.
Doravante colocados na posição original e sob a cobertura do «véu de ignorância», ou seja, ignorando
tudo da sua posição na sociedade, os homens chegarão a acordo, segundo Rawls, sobre dois princípios:
Em primeiro lugar: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais alargado de liberdades de base
iguais para todos que seja compatível com o próprio sistema para os outros.
Em segundo lugar: as desigualdades sociais e económicas devem estar organizadas de maneira que, ao
mesmo tempo, a) se possa razoavelmente esperar que elas sejam para benefício de cada um e b) que elas
estejam ligadas a posições e a funções abertas a todos. (Rawls, 1987, 91).
O primeiro princípio tem prioridade relativamente ao segundo e a liberdade nunca pode ser limitada para
satisfazer as suas exigências mas somente «em nome da própria liberdade». Esta, contudo, não é absoluta. A
liberdade de consciência, por exemplo, «mesmo numa sociedade bem ordenada e com um contexto favorável»
pode ser objeto de regulamentos razoáveis. De igual modo, os limites estabelecidos à liberdade concedida às
crianças justificam-se por dados naturais. Enfim – e sobre este ponto Rawls regressa à lógica de Rosseau – estes
limites devem ser aceitáveis pelos que os suportam:
Os princípios da justiça devem ser classificados por ordem lexical e, por consequência, a liberdade não se
pode limitar senão em nome da própria liberdade. Há dois casos: a) uma redução da liberdade deve reforçar o
sistema total da liberdade que todos partilham, e b) uma desigualdade deve ser aceitável para os cidadãos que
têm uma menor liberdade. (Rawls, 1987, 287).
J-J. Chevalier ; Y. Guchet (2004). As grandes obras políticas: de Maquiavel à atualidade. Mem Martins: Publicações Europa América,
pp. 406-410 (adaptado).

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  • 1. Textos complementares Unidade II - A ação humana e os valores Capítulo 3.3. – Ética, direito e política Texto 1 Segundo a compreensão moderna, “Estado” é um conceito definido juridicamente: do ponto de vista objetivo, refere-se a um poder estatal soberano, tanto interna quanto externamente; quanto ao espaço, refere-se a uma área claramente delimitada, o território do Estado; e socialmente refere-se ao conjunto dos que o integram, o povo do Estado. O domínio estatal constitui-se nas formas do direito positivo, e o povo de um Estado é portador da ordem jurídica limitada à região de validade do território desse mesmo Estado. No uso político da linguagem, os conceitos "nação" e "povo" têm a mesma extensão. Para além da fixação jurídica, no entanto, "nação" também tem o significado de uma comunidade política marcada por uma ascendência comum, ao menos por uma língua, cultura e história em comum. Um povo transforma-se em "nação" nesse sentido histórico apenas sob a forma concreta de uma forma de vida em especial. Os dois componentes, que estão incluídos em conceitos como "Estado nacional" ou "nação de cidadãos de um mesmo Estado", remetem para dois processos que de modo algum decorreram paralelamente na história - da formação de Estados (1), por um lado, e de nações (2), por outro. (1) Em grande parte, o êxito histórico do Estado nacional pode ser esclarecido em decorrência dos méritos do aparato estatal moderno como tal. É evidente que o Estado territorial com monopólio de poder e administração diferenciada, autónoma e financiada por impostos pode cumprir melhor os imperativos funcionais da modernização social, cultural e sobretudo económica do que as formações políticas de origem mais remota. Neste contexto, basta lembrar as caracterizações de tipos ideais elaboradas por Marx e Max Weber. (a) O poder executivo do Estado apartado do rei e burocraticamente configurado constituía-se de uma organização de postos especializados segundo áreas do conhecimento, ocupados por funcionários públicos juridicamente treinados e pode apoiar-se sobre o poder enquartelado do exército, polícia e poder carcerário existentes. Para monopolizar esses recursos do uso legítimo do poder, foi preciso impor a "paz nacional". Só é soberano o Estado que pode manter a calma e a ordem no interior e defender efetivamente as suas fronteiras externas. Internamente, tem de se poder impor a outros poderes concorrentes e firmar-se internacionalmente como concorrente em igualdade de direitos. O status de um sujeito no direito internacional baseia-se no reconhecimento internacional como membro "igual" e "independente" no sistema de Estados; e para isso ele precisa de uma posição de poder suficientemente forte. A soberania interna pressupõe a capacidade de imposição da ordem jurídica estatal; a soberania externa, a capacidade de autoafirmação com vista à concorrência "anárquica" pelo poder entre os Estados. (b) Ainda mais importante para o processo de modernização é a separação do Estado da "sociedade civil", ou seja, a especificação funcional do aparato estatal. O Estado moderno é a um só tempo Estado diretivo e fiscal, o que significa que se restringe essencialmente a tarefas administrativas. Abandona as tarefas produtivas que até então vinham a ser cumpridas no âmbito do domínio político para uma economia de mercado distinta do Estado.
  • 2. Nesse sentido ocupa-se das "condições gerais de produção", ou seja, do arcabouço jurídico e da infraestrutura necessários ao trânsito capitalista de mercadorias e à organização do trabalho social correspondente. As exigências financeiras do Estado são supridas por uma captação de impostos gerida de forma privada. As vantagens dessa especialização funcional é paga pelo sistema administrativo com a sua dependência da capacidade produtiva de uma economia orientada pelos mercados. Pois embora os mercados possam ser instituídos e supervisionados politicamente, eles seguem uma lógica própria que escapa ao controlo estatal. A diferenciação entre o Estado e a economia reflete-se na diferenciação entre o direito público e privado. À medida que o Estado moderno se serve do direito positivo como de um meio de organização da sua dominação, vincula-se a um instrumento que - com os conceitos da lei, do direito subjetivo (que se deduz a partir daí) e da pessoa jurídica (como detentora de direitos) - confere validade a um princípio novo, explicitado por Hobbes: numa ordem do direito positivo eximida da moral (apenas sob um certo sentido, é claro) permite-se aos cidadãos tudo aquilo que não é proibido. Embora o próprio poder estatal já esteja domesticado na sua condição de Estado de direito, e a coroa já esteja "sob a lei", o Estado não pode servir-se do instrumento do direito sem organizar os trâmites na esfera da sociedade civil (distinta dele mesmo), e isso de tal forma que as pessoas em particular possam chegar ao gozo de liberdades subjetivas - distribuídas de forma desigual, num primeiro momento. Com a separação entre os direitos privado e público, o cidadão individual no papel do "súbdito" - tal como ainda se expressou Kant - é quem ganha uma área crucial de autonomia privada. (2) Hoje vivemos todos em sociedades nacionais que devem a sua unidade a uma organização desse tipo. Tais Estados já existiam muito antes de haver "nações" em sentido moderno. Somente a partir das revoluções do final do século XVIII é que Estado e nação se fundiram para se tornar Estado nacional. Antes de me dedicar ao que há de específico nessa vinculação, gostaria de lembrar, sob a forma de uma pequena incursão na história dos conceitos, o aparecimento da formação da consciência moderna que permite interpretar povo como "nação", num sentido diverso do exclusivamente jurídico. Segundo o uso linguístico clássico dos romanos, "natio", assim como "gens", é um conceito que surge por oposição a "civitas”. As nações são, em primeiro lugar, comunidades de ascendência comum, que se integram geograficamente por vizinhança e assentamento, culturalmente por uma língua, hábitos e tradição em comum, mas que ainda não se encontram reunidas no âmbito de uma forma de organização estatal ou política. Essa raiz mantém-se vigente por toda a parte, durante a Idade Média e o início da Era Moderna, quando "natio" e "língua" se equivalem. Assim, por exemplo, os estudantes das universidades medievais eram subdivididos em "nationes", de acordo com sua origem enquanto conterrâneos. Com o crescimento da mobilidade geográfica, o conceito serviu em geral para as diferenciações internas das ordens de cavalaria, universidades, mosteiros, concílios, ligas comerciais, etc. Portanto, a origem nacional, que era atribuída por outros, esteve associada desde o início com a delimitação negativa entre o próprio e o estrangeiro. É num outro contexto que a expressão "nação" vem a assumir um significado contrário e de caráter apolítico. Da associação de feudatários do Império Alemão haviam-se desenvolvido estados de classe; eles baseavam-se em contratos em que o rei ou imperador, que dependia de impostos e proteção militar, concedia privilégios à nobreza, à Igreja e às cidades, ou seja, concedia-lhes uma participação limitada no exercício do domínio político. E essas classes dominantes, reunidas em "parlamentos" ou "câmaras", representavam o "país" ou mesmo a "nação" diante da corte. Como "nação", a aristocracia assumia uma existência política que ainda era negada ao povo enquanto conjunto de súbditos. Isso explica o sentido revolucionário de formulações como "King in Parliament” e tanto mais a identificação do "terceiro estado" com a "nação".
  • 3. A transformação da "nação aristocrática" em "nação popular", que avança a partir de fins do século XVIII, pressupõe uma mudança de consciência, inspirada por intelectuais, que se impõe inicialmente na burguesia citadina, sobretudo academicamente letrada, antes de alcançar eco em camadas mais amplas da população e ocasionar progressivamente uma mobilização das massas. A consciência nacional popular cristaliza-se em "comunidades imaginárias" (Anderson) engendradas nas diferentes histórias nacionais, as quais se tornaram o cerne da consolidação de uma nova autoidentificação coletiva: "Assim surgiram as nações nas últimas décadas do século XVIII e ao longo do século XIX (...): construídas por um grupo bem delimitado de eruditos, jornalistas e poetas - nações populares na ideia, mas ainda longe de sê-lo na realidade" [ 3]. Na mesma medida em que essa ideia se difundiu, também ficou claro, no entanto, que o conceito político de nação popular, modificado a partir do conceito de nação aristocrática, havia emprestado do conceito de "nação" como designação de ascendência e procedência (mais antigo e anterior à política) também a força que o movia à formação de estereótipos. A autoestilização positiva da própria nação transformava-se agora num eficiente mecanismo de defesa contra tudo o que fosse estrangeiro, mecanismo de desvalorização de outras nações e de exclusão de minorias nacionais, étnicas e religiosas - em especial dos judeus. Na Europa, o nacionalismo vinculou-se de forma muito consequente ao anti semitismo. J. Habermas (2002). Inclusion of the other: studies in political theory. Trad. e adaptado por Vítor João Oliveira. Acedido em 23.03.2008 em http://qualia-esob.blogspot.com/search/label/Filosofia%20Pol%C3%ADtica. Texto 2 É revestindo o sentido da obrigação moral e do seu duplo negativo, a interdição, que a lei acede ao estatuto normativo que a utilização vulgar lhe reconhece. Tirarei partido, para a análise que proponho, do facto de que o termo lei depende indiferentemente do registo do direito e do da moralidade. Veremos adiante a que ponto a compreensão do laço entre o ético e o jurídico é necessária para a justa apreciação do papel da consciência a este nível. Proponho, portanto, que entremos na problemática da norma pelo lado da legalidade, a fim de mostrar como o movimento, pelo qual a legalidade reenvia à moralidade, se conclui pelo reenvio da moralidade à consciência. Três traços do legal retêm-nos, na medida em que designam o ponto de injeção da dialética de interiorização que acabei de evocar. Em primeiro lugar, a interdição é a face severa que a lei nos mostra. O próprio Decálogo enuncia-se nesta gramática de imperativos negativos: Não matarás; Não dirás falsos testemunhos, etc. À primeira vista, estaríamos tentados a não perceber o interdito da sua dimensão repressiva; na verdade, se alinharmos por Nietzsche, somente o ódio do desejo aí se dissimularia, com o risco, então, de não tomar em consideração o que podemos denominar a função estruturante do interdito. Lévi-Strauss demonstrou-o brilhantemente no caso do interdito talvez mais universalmente proclamado, o do incesto. Ao interditar os homens de tais clãs, tribos, ou grupos sociais, de ter por parceiro sexual a sua mãe, a sua irmã, ou a sua filha, o interdito institui a distinção entre o laço social da aliança e o laço simplesmente biológico da procriação. Poderíamos estabelecer uma demonstração comparável para o interdito da morte, mesmo quando ele se proclama duma justiça vingativa, retirando à vítima o alegado direito à vingança; o direito penal instaura uma justa distância entre duas violências: a do crime e a do castigo. [
  • 4. Não seria difícil fazer a mesma demonstração com a interdição do falso testemunho, que, ao proteger a instituição da linguagem, instaura o laço de confiança mútua entre os membros de uma mesma comunidade linguística. O segundo traço, comum à norma jurídica e à norma moral, é a sua pretensão à universalidade. Digo bem, pretensão, pois no plano empírico as normas sociais variam mais ou menos no espaço e no tempo. Mas é essencial que, apesar desta relatividade de facto, e por ela, seja visada uma validade de direito. A interdição de morte perderia o seu carácter normativo se não a julgássemos válida para todos, em todas as circunstâncias e sem exceção. Que a um segundo tempo procuremos justificar as exceções, quando se trata de ajudar uma pessoa em perigo, na guerra, na hipótese controversa duma guerra justa, ou, durante milénios, no caso da pena de morte, esta tentativa para dar razão das exceções é uma homenagem prestada à universalidade da regra; é preciso uma regra para justificar a exceção à regra, uma espécie de regra suspensiva, revestindo a mesma exigência de legitimidade de validade que a regra de base. O terceiro traço que gostaria de reter concerne o laço entre a norma e a pluralidade humana. O que é interdito, universalmente condenado, são, em última análise, toda uma série de males feitos a outrem. Um si e o seu outro são também os protagonistas obrigatórios da norma ético-jurídica. Deste modo é proposto, tanto pelo direito como pela moral, o que Kant chamava o estado de «insociável sociabilidade», que torna tão frágil o laço inter-humano. Face a esta ameaça permanente de desordem, a mais elementar exigência do direito, dizia o mesmo filósofo na sua Doutrina do Direito, é separar o meu do teu. Encontramos a mesma ideia na justa distância, aplicada desta vez na delimitação de esferas concorrentes de liberdades individuais. Agarremo-nos a estes três traços em prol do argumento que se segue: papel estruturante do interdito, pretensão à validade universal, pôr em ordem da pluralidade humana, a fim de atrair o movimento que, remontando da legalidade à moralidade, termina o seu percurso na noção de consciência moral, como contrapartida da lei. No que respeita ao primeiro traço a saber, o papel do interdito, o que distingue fundamentalmente a legalidade da moralidade salta aos olhos; a legalidade só exige uma obediência exterior, o que Kant chamava de simples conformidade à lei, para a distinguir do respeito à lei por amor do dever. A esse carácter exterior da legalidade acrescenta-se esse outro traço que a distingue da moralidade, a saber, a autorização da correção física, com vista a restaurar o direito, a dar uma satisfação às vítimas, em resumo, a deixar, como se diz, a última palavra à lei. Na medida em que a simples conformidade à moralidade tem, assim, o apoio do medo da punição, compreende-se que a passagem da simples legalidade à moralidade verdadeira possa ser assimilada a um processo de interiorização da norma. No que concerne ao segundo traço, a pretensão da legalidade à universalidade, a moralidade apresenta uma segunda modalidade de interiorização. À ideia de um legislador exterior opõe-se a de uma autonomia pessoal, no sentido forte do termo autonomia, interpretada por Kant como legislação que uma liberdade se dá a si mesma. Pela autonomia, uma vontade racional emerge do simples arbitrário, colocando-se sob a síntese da liberdade e da lei. A admiração que podemos ter pelo elogio kantiano da autonomia não deve impedir de avaliar o preço a pagar por esta interiorização da lei tomada sob o ângulo universal. Apenas uma regra formal, tal como a experiência de universalização, à qual se devem submeter todos os nossos projetos, todos os nossos planos de vida, em resumo, o que Kant chama as máximas de ação, pode aspirar à espécie de universalidade que faz vulgarmente falta na simples legalidade social. Este formalismo encontra, é verdade, uma contrapartida certa na elevação ao plano da pura moralidade do terceiro traço que reconhecemos à legalidade, a saber, o papel que a norma exerce, a título de princípio de ordem, no plano da pluralidade humana. É sobretudo em discípulos contemporâneos de Kant, em Rawls, na
  • 5. Teoria da Justiça, em Habermas na sua Ética da Discussão, que este carácter dialógico ou dialogal da norma consegue expressar-se. Já Kant tinha em consideração esta pluralidade de sujeitos morais no segundo imperativo categórico, ordenando no sentido de tratar a humanidade, na nossa pessoa e na pessoa de outrem, como um fim em si e não apenas como um meio. É contudo, na ideia de justiça, segundo Rawls, e de argumentação, segundo Habermas, que vemos inteiramente desenvolvidas as implicações dialógicas ou dialogais do segundo imperativo categórico, sob a figura do respeito mútuo que as pessoas se devem. Posto isto, não é difícil compreender em que sentido o processo de interiorização, pelo qual a simples legalidade social se eleva à moralidade, conclui o seu percurso na consciência moral. Nesta fase da nossa meditação, a consciência não é mais do que a obediência íntima à lei enquanto lei, pelo puro respeito por ela e não pela simples conformidade ao enunciado da regra. O respeito é aqui a palavra decisiva. Num capítulo célebre da Crítica da Razão Prática, Kant faz dele o único móbil da vida moral. É um sentimento por certo, mas o único sentimento da razão, pela sua própria autoridade inscrita em nós. Fazendo eco de Rosseau e do seu célebre elogio da «voz da consciência», Kant vê neste sentimento, simultaneamente, a humilhação da nossa sensibilidade, ávida de satisfações egoístas, e a exaltação da nossa humanidade acima do reino animal. Mas não nos espantaríamos de encontrar sob este vocábulo de «voz da consciência» todos os traços da legalidade social, interiorizados em pura moralidade. A «voz da consciência» é, antes de mais, a voz do interdito, certamente estruturante mas rigoroso. É também a voz do universal, do qual se afirma a intransigência. Por fim, sob os traços da ideia da justiça e sob o aguilhão de uma ética da discussão, a «voz da consciência» acrescenta a estes dois traços do rigor e da intransigência o da imparcialidade. Imparcial, a «voz da consciência» diz-me que qualquer outra vida é tão importante como a minha, para retomar a fórmula recente de Thomas Nagel em Igualdade e Parcialidade. Eis até onde pode chegar uma meditação sobre a consciência na sua relação com a lei, encarada no seu nível radicalmente formal. Definem-na três palavras: o rigor, a intransigência, a imparcialidade. Coloca-se então a questão de saber se podemos ficar por aí. O respeito kantiano não é de facto nada, sobretudo se desenvolvermos as aplicações dialogais, como numa ética da justiça ou numa ética da discussão. Mas serão as pessoas verdadeiramente reconhecidas na sua singularidade insubstituível, uma vez que o respeito se dirige mais à lei do que às pessoas, vistas em si mesmas como a simples expressão duma humanidade abstrata? E como seriam elas, mesmo sob o signo da ideia de imparcialidade, se colocarmos entre parêntesis as adesões fortemente correlativas das avaliações fortes, de que falámos na primeira parte, sob o horizonte da persecução de uma vida boa? É desta dúvida que provém a investigação de um terceiro nível de correlação entre lei e consciência. P. Ricoeur (1997). O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget, pp.187-192.
  • 6. Texto 3 O objeto da justiça diz respeito ao que Rawls chama a «estrutura de base», que congrega as instituições sociais mais importantes, a Constituição e as primeiras estruturas económicas, bem como «a maneira pela qual elas repartem os direitos e os deveres fundamentais e determinam a repartição dos benefícios extraídos da cooperação social» (Rawls, 1987, 33). No seio desta estrutura de base os homens ocupam posições sociais variadas dando-lhes perspetivas de vida diferentes e colocando-os em posições de desigualdade. É à correção destas desigualdades que se deve aplicar a justiça e, por esta forma, fornecer um critério permanente para avaliar a maneira de efetuar a distribuição dos bens na «estrutura base». Chegado a este ponto, Rawls adota a atitude teórica do contratualista. O meu objetivo é apresentar uma conceção da justiça que generalize e leve a um nível mais elevado de abstração a teoria muito conhecida do contrato social tal como se encontra, entre outros, em Locke, Rousseau e Kant. (Rawls, 1987, 37) O contrato responde contudo a um objetivo diferente do perseguido pelos contratualistas anteriores. O seu emprego destina-se não a pôr em evidência um tipo legítimo de organização política, mas a definir os princípios da justiça, ou seja, a identificar regras que pessoas livres e racionais, colocadas «numa posição inicial de igualdade», escolheriam para formar a sua associação. Na perspetiva rawlsiana, pode-se considerar que «a posição original» corresponde ao estado de natureza na teoria clássica (em Locke e Rosseau especialmente). Da mesma maneira que esta é estranha a situações históricas (embora por vezes os relatos dos viajantes que percorreram a América pós-colombiana tenham inspirado nela as «descrições») e possua no discurso contratualista um estatuto exclusivamente teórico, «a posição original» a partir da qual Rawls articula o seu próprio discurso «é uma situação puramente hipotética definida de maneira a conduzir a uma certa conceção de justiça». Ela implica por outro lado que a determinação dos princípios da justiça seja conduzida à retaguarda do que ele chama «o véu de ignorância» a fim de evitar a «parasitagem» das escolhas efetuadas por uns e por outros em função das suas situações pessoais desiguais. De uma maneira ou de outra, devemos invalidar os efeitos das contingências particulares que opõem os homens uns aos outros e lhes inspiram a tentação de utilizar as circunstâncias sociais e naturais em seu proveito pessoal. É por isso que afirmo que os parceiros estão situados atrás de um véu de ignorância. Eles não sabem como as diferentes possibilidades afetarão o seu próprio caso particular e são obrigados a julgar os princípios na base única de considerações gerais. (Rawls, 1987, 168) Assim, cada um ignora o seu lugar na sociedade, a repartição dos trunfos naturais que lhe dizem respeito (particularmente inteligência e força), a sua própria conceção do bem, até os traços particulares da sua psicologia: a aversão ao risco, a tendência para o pessimismo ou para o otimismo. Em compensação, o conhecimento geral da sociedade humana é tido por adquirido, o que implica que cada um esteja em condições de compreender os princípios da teoria económica e dos negócios políticos (do mesmo modo que, com Rosseau, o cidadão deve poder assimilar racionalmente o terreno político no qual intervém a vontade geral). De maneira mais global, «os
  • 7. parceiros conhecem todos os factos gerais que afetam a escolha dos princípios da justiça». Estabelecidas estas premissas, Rawls afirma que os «parceiros» encarregados de estabelecer os princípios da justiça, racionais por hipótese e colocados todos na mesma situação, serão convencidos pela mesma argumentação, e ninguém tentará elaborar princípios para seu benefício. A racionalidade do comportamento deve entretanto ser objeto de uma precisão: os indivíduos são «mutuamente desinteressados» (mutually disinterested), ou seja, indiferentes aos interesses dos outros. Doravante colocados na posição original e sob a cobertura do «véu de ignorância», ou seja, ignorando tudo da sua posição na sociedade, os homens chegarão a acordo, segundo Rawls, sobre dois princípios: Em primeiro lugar: cada pessoa deve ter um direito igual ao sistema mais alargado de liberdades de base iguais para todos que seja compatível com o próprio sistema para os outros. Em segundo lugar: as desigualdades sociais e económicas devem estar organizadas de maneira que, ao mesmo tempo, a) se possa razoavelmente esperar que elas sejam para benefício de cada um e b) que elas estejam ligadas a posições e a funções abertas a todos. (Rawls, 1987, 91). O primeiro princípio tem prioridade relativamente ao segundo e a liberdade nunca pode ser limitada para satisfazer as suas exigências mas somente «em nome da própria liberdade». Esta, contudo, não é absoluta. A liberdade de consciência, por exemplo, «mesmo numa sociedade bem ordenada e com um contexto favorável» pode ser objeto de regulamentos razoáveis. De igual modo, os limites estabelecidos à liberdade concedida às crianças justificam-se por dados naturais. Enfim – e sobre este ponto Rawls regressa à lógica de Rosseau – estes limites devem ser aceitáveis pelos que os suportam: Os princípios da justiça devem ser classificados por ordem lexical e, por consequência, a liberdade não se pode limitar senão em nome da própria liberdade. Há dois casos: a) uma redução da liberdade deve reforçar o sistema total da liberdade que todos partilham, e b) uma desigualdade deve ser aceitável para os cidadãos que têm uma menor liberdade. (Rawls, 1987, 287). J-J. Chevalier ; Y. Guchet (2004). As grandes obras políticas: de Maquiavel à atualidade. Mem Martins: Publicações Europa América, pp. 406-410 (adaptado).