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Contar uma história a um adulto é diferente de contar a mesma história a uma
criança. Um adulto não dará a mínima importância a uma história, no entanto, se não
for contada com cuidado pode facilmente definir as bases para um crescimento
problemático de uma criança.
         Por isso mesmo Mollieta contava todos os tipos de história aos filhos. Príncipes e
princesas, pobres que ficaram ricos, ricos que ficaram pobres, monstros bons, monstros
maus, pessoas más, pessoas boas…
         Os seus dois filhos, Sereno e Issiria, gostavam de a ouvir falar sobre os mais
variados assuntos, mas claro que cada um tinha uma queda por determinado género.
         Issiria gostava de ouvir as histórias de heróis, e Sereno preferia aquelas onde
monstros caminhavam sobre Solo. Era a história dos “velhos mortos” que ele mais
gostava de ouvir.
         No entanto, Sereno também gostava de ouvir histórias de batalhas ganhas
pela casa dele, os Arco, contra os seus antigos rivais, os Helimir.
         A rivalidade das duas casas era histórica e estóica, e o motivo pela inicio da
mesma era já desconhecido, razão pela qual Asserius, o Conde Velho de Arco, propôs
fazer as pazes com Varas Helimir. A desconfiança entre as duas casas aumentou, mas
fez-se paz e assim viviam há quase duzentos anos.
         O esposo de Mollieta, Segur II Arco, revelava uma certa preocupação para
com Divius Helimir, sucessor de Diacus Helimir, antigo Conde de Planalto. Nunca
gostou da atitude de Divius quando visitava a casa dos Helimir, e também não
apreciou as visitas que o rapaz fazia à casa dos Arco.
         Segur, o Conde de Árvore Branca, senhor seu esposo, governava a casa Arco
há dez anos. Juntos tinham dois filhos e um terceiro a caminho. No entanto esta era
das quatro gravidezes que tivera a mais complicada. Na primeira tivera um aborto. E
receava pelo mesmo nesta.
         Issiria tinha apenas cinco anos. Possuia o cabelo do pai, escuro e tinha caracóis
dignos de uma Dama. Sereno era todo ele, Segur. Tinha toda a sua cara, e ainda o
seu cabelo.
         Segur que até ali se encontrava a tratar das colheitas entrou no quarto e
saudou Mollieta respeitando o protocolo.
         − Minha senhora. – Disse fazendo-lhe uma pequena vénia.
         Ela sorriu. – Pareces cansado.
         − É mais o aborrecimento que o cansaço. Tratar das colheitas é entediante.
Prefiro quando estou lá fora com os agricultores.
         − Estiveste com Sereno? – A voz dela soou fraca e Segur fitou-a por algum
tempo.
− Sim. – Um sorriso orgulhoso fugiu-lhe. – Hoje conseguiu-me tirar a espada num
treino que pedi a Muir para lhe dar. Um golpe… Sublime.
         − Oxalá nunca precise de a usar.
         − Também não o desejo minha senhora, mas, ainda bem que o sabe fazer. – E
tocou-lhe a face com os lábios. Ela retribui-lhe o beijo.
         − Deseja-me Sorte.
         Segur iria embarcar numa viagem para Torre Média, uma cidade pertencente
ao Condado de          Árvore Branca, onde        o Castelão Jamir Edinus regia. Ia,
essencialmente, tratar de assuntos de colheita.
         A colheita era a maior preocupação de um Conde antes das estações frias.
Cabia-lhe inspeccionar todos os relatórios da Castelão, bem como a qualidade dos
produtos. Dependendo disso o Conde decidia se devia exportar ou importar os bens
recolhidos ou até enviá-los para uma cidade que estivesse mais necessitada que
outra.
         Mollieta sabia que o senhor seu esposo aproveitaria para ver tudo
meticulosamente. Produção de armas, números, sentenças, até a própria lealdade do
Castelão.
         Acontecia ocasionalmente um ou outro Castelão revoltar-se e cabia aos
Duques convocar as tropas e resolver o assunto, a maioria das vezes, à força.
         Segur acreditava que a guerra entre a sua casa e os Helimir começara devido
a algo do género. Não sabia bem quem se revoltara, mas reparara que os números de
habitantes em Planalto disparara enquanto os de Árvore Branca diminuíram.
         − Jamir disse que viu alguns soldados de Incendiária perto do castelo. –
Retomou. – O mais provável é que fosse uma escolta de alguém bem-nascido que se
dirigia para Porto Vivo com o intuito de se dirigir ao alto mercado.
         − Divius não te enviou uma carta a avisar?
         − Divius também tem muitos assuntos sérios a tratar nesta altura. Não pode
controlar tudo. Enviarei um grupo homens para baterem a estrada. No caso de serem
vistos podem dizer que estão de patrulha, uma medida tomada por mim para
combater os foras da lei.
         − Envia More, filho de Muir. O rapaz faz bastante sucesso nas armas.
         − Sim ele saiu ao pai. Talvez o mande. E por falar em filhos, como está o
próximo membro da casa Arco?
         Mollieta levou a mão à barriga inchada num gesto reflexo e sentiu os
movimentos do bebé. Tinha mexido o dia todo. – Ele não pára. Está com uma vontade
enorme de sair.
− Quando chegar pode ser que já tenha nascido. – Sorriu e sentou-se na cama
ao lado de Mollieta olhando e esfregando o ventre da mesma. – Posso adiar a
viagem. – Disse.
       − Antes das estações frias, meu senhor? Que iriam pensar os súbditos de um
Conde que abandona assuntos tão importantes para ficar junto da mulher grávida?
       − Aqueles que têm filhos iriam pensar que as colheitas podiam esperar.
       − Não. Torre Média está a quatro dias de distância. Uma coruja chegava lá
num dia só para o caso dele nascer.
       − Dele. – Segur fitou Mollieta. – Dizem que quando a mão deseja um rapaz é
um rapaz e que quando deseja uma rapariga é uma rapariga.
       − O meu senhor não deve acreditar em tudo o que dizem. Sereno nasceu
rapaz porque os deuses assim quiserem, bem como Issiria.
       Segur levantou-se da cama e agarrou na espada. A espada e o anel eram o
selo da família. A espada era feita do mais requintado aço. Tinha uns cinquenta
centímetros de lâmina e o punho era só de uma mão. No fim do punho uma pequena
esfera em ouro talhada com a imagem de uma meia-lua atravessada por uma flecha
equilibrava o peso da lâmina. Ou assim diziam os entendidos.
       − Tenho de ir minha senhora. Dei ordens a Gula para não a perder de vista
todo o dia. Qualquer coisa que necessite, ela providenciará.
       − Não era necessário meu senhor.
       Por uma última vez ele aproximou-se dele e beijou-a nos lábios.
       − Amo-te. – Disse.
       − Também te amo. – Respondeu colocando de lado todas as formalidades.
       Mollieta era filha de Moergus Taniu, Castelão de Mármore. O seu casamento
fora arranjado como todos os casamentos das grandes casas, no entanto, Mollieta viu
em Segur alguém como não tinha conhecido até aquele dia e apaixonar-se por ele
foi fácil. Foi uma tarefa sem esforço e que aconteceu por acaso.
       Apesar do nervosismo que sentiu, mesmo depois do casamento Mollieta dava
graças por lhe terem escolhido Segur. Tinha ouvido que o motivo tinha sido um rumor
de rebelião de Mármore contra a casa Arco, mas independentemente do motivo
estava feliz e não ligava a esses pormenores.
       Tinha conhecimento de filhas de senhores poderosos que eram obrigadas a
casar com tiranos que as usavam para ter herdeiros legítimos, apresentar em eventos
e pouco mais.
       Uma vida assim parecia impossível de imaginar a Mollieta. No entanto a sua
irmã que casara com um nobre em Porto Vivo não tivera tanta sorte. O seu esposo
Ilidius Cercan era um nobre mercante, rico, mas supérfluo. Providenciava à irmã Mellita
uma vida sem dificuldades e rodeada de luxos, mas não o que Mollieta considerava a
verdadeira felicidade.
       A única coisa que parecia fazer a irmã feliz, para além do dinheiro do marido
eram os filhos que o mesmo lhe tinha dado. Iliar o mais velho e herdeiro, Rufus e Vira.
       Iliar tinha doze anos, sendo mais velho que Sereno três anos. Falava-se por todo
o condado no seu talento natural para os negócios do pai e de um manejo com facas
superior a qualquer criança da mesma idade. Era apelidado de Dobrão, pelo jeito
que tinha de multiplicar os mesmos e o senhor seu pai mantinha-o vigiado todo o dia.
       Eram vários os caçadores de recompensas pagos por outros mercadores que
tentavam surripiar a vida aos nobres mercantes concorrentes e foi devido a um que
Iliar ficou conhecido pelo manejo das facas, quando matou um homem que o
encurralou num beco de mercado.
       Sereno o seu filho era habilidoso com a espada, mas nunca o tinham
diferenciado pelo mesmo. More, filho de Muir, o mestre d’armas, era o jovem que
consideravam ter maior potencial para a luta e a estratégia. Provavelmente fruto do
treino de Muir.
       Segur não dava a Sereno a mesma liberdade que Muir dava a More. Sereno
precisava de aprender bem mais do que manejar uma espada. Precisava de saber o
que o povo precisa, precisava de saber como interagir em diplomacia, precisava de
saber liderar. Não só o aspecto bélico interessava a um líder, principalmente nestes
tempos de paz, mas sim a maneira como tratava os seus súbditos e como prestava o
seu serviço aos mesmos.
       Segur pensava em casar Sereno com Bélia, uma princesa do Sul. Já tinham
falado acerca disso várias vezes. Segur achava mais seguro que fosse assim. Divius
Helimir tinha uma filha muito pequena e ele queria evitar um casamento entre os dois.
Se os Arco se unissem aos Helimir uma guerra poderia desencadear entre o povo e
Sereno estaria sujeito a algo que o pai tentava evitar, guerra.
       − Gula! – Chamou Mollieta.
       A aia estava no quarto ao lado, onde iria pernoitar e viver enquanto Segur
estivesse ausente.
       − Sim, senhora minha.
       − Trás os meus filhos aqui por favor.
       − Pois não. – E retirou-se.
       Mollieta colocou a mão sobre o ventre, sentindo o seu futuro filho ou filha a
mexer-se.
       “Há-de ser guerreiro”. – Pensou. – “Um traquina…”
       Gula não demorou muito a trazer-lhe os filhos. Sereno trajava um blusão
masculino azul-escuro e umas calças de couro rasgadas de ter andado a brincar.
Issiria trajava um vestido amarelo com desenhos de flores laranjas. Tinha os caracóis do
cabelo soltos e bem definidos.
       Os dois olhavam para ela de uma maneira estranha devido à sua gravidez.
Sereno parecia mais calmo, talvez por saber que não havia hipótese daquilo lhe
acontecer.
       Issiria fez muitas perguntas no início incluindo como é que as mulheres
engravidaram. Essa foi uma pergunta de Sereno, também, mas Mollieta dignou-se
apenas a responder a ele. Era o mais velho, teria o peso do Condado às costas a partir
dos dezasseis anos e como um herdeiro é parte importante de um Conde, deveria
saber destas coisas mais cedo que a irmã.
       Não fazia intenção de esconder nada a Issiria, mas preferiu guardar essa
informação para mais tarde. Ainda tencionava ter a sua menina por perto durante
muito tempo.
       − Então não vão dar um beijo à mãe?
       Aproximaram-se dela e abraçaram-na já cientes do cuidado que era
necessário para não a magoar.
       − Então? Como correu o vosso dia?
       − O More disse que eu era um menino mimado. – Começou Sereno. – E que era
por isso que lutava pior que ele. Mas eu ganhei ao pai.
       − Ele diz isso porque tem ciúmes querido. Se praticares tanto como ele
consegues ser igual ou melhor.
       − O Muir também disse que precisava de treinar mais, mas o pai quer-me perto
dele para aqueles assuntos chatos. Nem tenho tempo para brincar com Ekla.
       Ekla era filha de uma criada das cozinhas. Brincava constantemente com
Sereno, e eram uma espécie de namorados, supunha ela. Apesar de Sereno repudiar
essa ideia como outra criança da sua idade, Mollieta via nele os traços de uma
criança e achava-o engraçado.
       Issiria sonhava muito com príncipes e deixava qualquer criado de lado.
Gostava de brincar com as pequenas damas das casas inferiores e ouvir os
contadores de histórias. Adorava ir ao alto mercado, mas o seu pai, Segur, tentava
não lhe dar demasiado abuso, apesar de ser a menina dos olhos dele.
       Apesar de várias características fúteis normais numa criança, Issiria tinha uma
espécie de inclinação para olhar as coisas com transparência. Assuntos de estado e
guerra não era o mesmo que “assuntos de homens” para ela. Daria uma boa
diplomata quando crescesse.
       − Vais ter tempo. Tenho a certeza que Ekla não se importa. E tu minha filha?
       − A Dama Tenta esteve a ensinar-nos boas maneiras. Diz que temos de saber
comportar-nos.
− Ela tem razão…
          − Ela também disse que tinha de casar com um príncipe que é dez anos mais
velho que eu.
          Mollieta não esperava aquilo da Dama Tenta. Teria de falar com ela e ordenar-
lhe que moderasse os assuntos que com os quais abordava as crianças.
          − Não te preocupes minha filha. Só casarás com um príncipe que gostes. Achas
que o teu pai deixava acontecer o contrário?
          − A Dama Tenta disse que era o pai quem escolhia o príncipe.
          − Tenho a certeza de que quando chegar a altura o teu pai vai perguntar-te
antes de escolher. Não te preocupes com isso. Ainda és muito nova.
          − A Dama Tenta diz que a idade passa por nós mais depressa do que
pensamos. Mas eu acho que ela só diz isso por ser velha, como todas as velhas dizem.
          − Não deves usar essa expressão Issiria. A Dama Tenta é de uma idade
avançada e merece mais respeito de todos nós por isso.
          − No outro diz disse-me que eu não sabia andar como um herdeiro. – Disse
Sereno.
          − Meninos, a Dama Tenta foi ensinada por pessoas muito severas…
          − Mais severas que ela? – Perguntou Issiria.
          − Mais severas que ela. É a função dela certificar-se que os filhos do Conde se
sabem comportar à altura do seu estatuto. O que ela vos diz e faz é para o vosso
próprio bem.
          − Tenho sono. – Disse Sereno enquanto rebolava na cama. – Conta-nos uma
história. Uma nova.
          − Sim! – Apoiou Issiria.
          − Uma nova? – As duas crianças responderam afirmativamente à pergunta da
mãe. – Não sei se ainda tenho.
          − Disseste que tinhas histórias guardadas para quando fossemos maiores. –
Reclamou Sereno.
          Mollieta riu-se e recordou-se desse leque de histórias que tinha guardado para
depois.
          − Muito bem. – Disse ela. – Acho que tenho uma boa para vocês. – Os dois
filhos, um de cada lado da cama olharam-na à espera da história. – Sabem que nas
terras mais quentes, existiu um povo que era muito diferente de nós.
          “Vestiam-se de maneira diferente. Rezavam a outros deuses. Eram muito
diferentes daquilo que somos agora. Pensa-se que terão sido levados à destruição por
eles mesmos, pois eram uma civilização corrupta e tiveram mais olhos que barriga.
Nessa altura os casamentos entre casas, ou entre camponeses e por vezes entre os
dois eram realizados de livre vontade, ou seja, ninguém era obrigado a casar com
quem não queria. Se perguntarem aos vossos professores eles vão dizer-vos que essa
mistura das linhas de sangue foi um factor importante para o declínio da civilização.”
       “Um moço de recados mostrava-se na altura enamorado pela filha de um
mercador ex-soldado. A beleza da filha do mercador era falada por todos os lados e
os pretendentes aglomeravam-se à porta do mercador. E sua bela filha gozava os
presentes que os infinitos pretendentes lhe ofereciam. Tinha assim uma vida mais
luxuosa e menos preocupada que a maioria das mulheres naquela altura.”
       “O moço de recados sabia que tinha de conseguir distinguir-se dos outros
pretendentes de alguma maneira. Tinha de oferecer à filha do mercador algo que
nenhum dos outros pretendentes conseguiria igualar.”
       “Ao passar pelo centro da cidade ouviu dois soldados conversarem acerca da
peça de arte que iria ser trazida para casa do rei mercador. Tratava-se de uma adaga
toda feita em ouro e encrustada de pedra preciosas. Simbolizava o facto da riqueza
de um homem poder ser usada para a conquista.”
       “O moço pensou que tal peça iria dar-lhe de imediato a mão da filha do
mercador em casamento e então decidiu roubá-la. Esperou pela noite, quando as
ruas estavam vazias de gente e a adaga tinha menos guardas. Matou os dois soldados
que a guardavam e roubou-a para mais tarde a oferecer à filha do mercador.”
       “Houve uma grande perseguição ao ladrão do objecto, mas a verdade é que
o rei não tinha como saber que o fez e aproveitando o momento troçou do ladrão,
dizendo que ele poderia ficar com aquela peça de tão pequeno valor para o rei. Ele
não se importava. O moço viu aquela como a altura ideal e entrou na casa do
mercador. Esteve com a filha do mercador e os seus pretendentes todo o dia dizendo
sempre que a sua oferta seria para quando ele e a filha do mercador estivessem
sozinhos.”
       “Quando todos os outros pretendentes não conseguiram competir com a
curiosidade que o moço instalou na filha do mercador, retiraram-se derrotados, mas
na esperança de regressarem ao outo dia. O moço puxou da adaga de dentro da
bolsa e mostrou-a à filha do mercador, convencido que esta iria deslumbrar-se com o
objecto e a fortuna que este simbolizava. Mas a filha do mercador era menos fútil do
que se falava e tinha melhor bom censo do que o moço pensava e disse-lhe: Nunca
passaria um dia da minha vida ao lado de um patife como tu!”
       “Destroçado e sem pensar, o moço agarrou o punho da adaga e esventrou a
filha do mercador logo ali. O mercador capturou o moço e deixou-o em praça
pública para ser apedrejado até à morte. Apesar da dor que passou pelas pedras
arremessadas que lhe partiram ossos, e lhe esfolaram a pele, o moço de recados
nunca sentiu uma dor tão grande, como o arrependimento por ter matado a filha do
mercador, aquela que ele considerava a luz da sua vida.”
Seguiu-se um silêncio breve antes de Sereno perguntar se a história já tinha
terminado. Mollieta viu na cara dos filhos a angústia da história não ter um final feliz.
           − Perceberam a moral da história?
           − Se roubarmos acontece-nos coisas más? – Perguntou Issiria.
           − Também. – Riu-se Mollieta. – Mas o principal é que quando gostamos das
pessoas podemos fazer coisas más, sem nos apercebermos disso e que quando essas
pessoas nos magoam também fazemos coisas sem pensar, coisas que depois nos
custam.
           − O moço era um ladrão e teve o que mereceu. – Contestou apressadamente
Issiria.
           − Eu acho que se ele gostasse mesmo da filha do mercador que não a
matava. – Sereno rebolou na cama para junto da mãe. – Se calhar ele era daquelas
pessoas que tem uma… que gostam muito de uma coisa e não pensam em mais
nada.
           − Uma obsessão? – Sugeriu Mollieta
           − Sim. Isso. Isso quer dizer que ele não gostava mesmo dela…
           Mollieta imaginou como o mundo era tão mais simples quando se é uma
criança.
           − Sabem. As pessoas podem ser más e boas ao mesmo tempo. Ninguém é só
mau ou só bom.
           − Tu és só boa pessoa mãe. – Disse Issiria.
           − Mas há pessoas boas que não gostam de mim. – Depois de ver a expressão
confusa de ambos decidiu contornar. – Um dia mais tarde vocês vão perceber. Agora
está na hora de iram dormir. A Gula vai levar-vos.
           Despediram-se de Mollieta com beijos e abraços e deixaram-na para irem
repousar. O futuro filho ou filha tinha estado sossegado durante a história e isso deu-lhe
que pensar.
           Gostava que fosse um rapaz, mas o motivo pelo qual o desejou, fê-la arrepiar-
se. Sereno era forte e inteligente e seria um bom Conde um dia. Desejava um rapaz
porque isso iria afirmar a posição de Sereno, só isso.
           Segur tinha quase sempre ao seu lado Samuel, o irmão mais novo. No entanto
Valdir, o irmão do meio estava exilado em Primeira Forja por ter conspirado contra o
lugar de Segur. Outro qualquer tinha sido executado, mas Segur não conseguiu fazer
isso ao irmão, mesmo depois de este o ter tentado matar.
           Gula regressara ao quarto ao lado. Tinha ordens para verificar o estado de
Mollieta mesmo que esta não respondesse ao seu chamado.
           − Posso fazer mais alguma coisa pela minha senhora?
Mollieta deitou-se, desconfortável no colchão de palha, sentindo o filho
pontapear o ventre com toda a força.
      − Sim. Gostaria de tomar um chá de papoila para me ajudar a dormir.
      − Pois não.
      Gula retirou-se de imediato deixando-a só. Entrou passados poucos minutos,
carregando uma chávena de chá. Olhou para Mollieta e viu estas a contorcer-se de
dores na cama.
      − Chama… Chama a parteira!
      Gula atirou o chá para o lado e saiu a correr do quarto…

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Uma história de família e rivalidades no condado de Árvore Branca

  • 1. Contar uma história a um adulto é diferente de contar a mesma história a uma criança. Um adulto não dará a mínima importância a uma história, no entanto, se não for contada com cuidado pode facilmente definir as bases para um crescimento problemático de uma criança. Por isso mesmo Mollieta contava todos os tipos de história aos filhos. Príncipes e princesas, pobres que ficaram ricos, ricos que ficaram pobres, monstros bons, monstros maus, pessoas más, pessoas boas… Os seus dois filhos, Sereno e Issiria, gostavam de a ouvir falar sobre os mais variados assuntos, mas claro que cada um tinha uma queda por determinado género. Issiria gostava de ouvir as histórias de heróis, e Sereno preferia aquelas onde monstros caminhavam sobre Solo. Era a história dos “velhos mortos” que ele mais gostava de ouvir. No entanto, Sereno também gostava de ouvir histórias de batalhas ganhas pela casa dele, os Arco, contra os seus antigos rivais, os Helimir. A rivalidade das duas casas era histórica e estóica, e o motivo pela inicio da mesma era já desconhecido, razão pela qual Asserius, o Conde Velho de Arco, propôs fazer as pazes com Varas Helimir. A desconfiança entre as duas casas aumentou, mas fez-se paz e assim viviam há quase duzentos anos. O esposo de Mollieta, Segur II Arco, revelava uma certa preocupação para com Divius Helimir, sucessor de Diacus Helimir, antigo Conde de Planalto. Nunca gostou da atitude de Divius quando visitava a casa dos Helimir, e também não apreciou as visitas que o rapaz fazia à casa dos Arco. Segur, o Conde de Árvore Branca, senhor seu esposo, governava a casa Arco há dez anos. Juntos tinham dois filhos e um terceiro a caminho. No entanto esta era das quatro gravidezes que tivera a mais complicada. Na primeira tivera um aborto. E receava pelo mesmo nesta. Issiria tinha apenas cinco anos. Possuia o cabelo do pai, escuro e tinha caracóis dignos de uma Dama. Sereno era todo ele, Segur. Tinha toda a sua cara, e ainda o seu cabelo. Segur que até ali se encontrava a tratar das colheitas entrou no quarto e saudou Mollieta respeitando o protocolo. − Minha senhora. – Disse fazendo-lhe uma pequena vénia. Ela sorriu. – Pareces cansado. − É mais o aborrecimento que o cansaço. Tratar das colheitas é entediante. Prefiro quando estou lá fora com os agricultores. − Estiveste com Sereno? – A voz dela soou fraca e Segur fitou-a por algum tempo.
  • 2. − Sim. – Um sorriso orgulhoso fugiu-lhe. – Hoje conseguiu-me tirar a espada num treino que pedi a Muir para lhe dar. Um golpe… Sublime. − Oxalá nunca precise de a usar. − Também não o desejo minha senhora, mas, ainda bem que o sabe fazer. – E tocou-lhe a face com os lábios. Ela retribui-lhe o beijo. − Deseja-me Sorte. Segur iria embarcar numa viagem para Torre Média, uma cidade pertencente ao Condado de Árvore Branca, onde o Castelão Jamir Edinus regia. Ia, essencialmente, tratar de assuntos de colheita. A colheita era a maior preocupação de um Conde antes das estações frias. Cabia-lhe inspeccionar todos os relatórios da Castelão, bem como a qualidade dos produtos. Dependendo disso o Conde decidia se devia exportar ou importar os bens recolhidos ou até enviá-los para uma cidade que estivesse mais necessitada que outra. Mollieta sabia que o senhor seu esposo aproveitaria para ver tudo meticulosamente. Produção de armas, números, sentenças, até a própria lealdade do Castelão. Acontecia ocasionalmente um ou outro Castelão revoltar-se e cabia aos Duques convocar as tropas e resolver o assunto, a maioria das vezes, à força. Segur acreditava que a guerra entre a sua casa e os Helimir começara devido a algo do género. Não sabia bem quem se revoltara, mas reparara que os números de habitantes em Planalto disparara enquanto os de Árvore Branca diminuíram. − Jamir disse que viu alguns soldados de Incendiária perto do castelo. – Retomou. – O mais provável é que fosse uma escolta de alguém bem-nascido que se dirigia para Porto Vivo com o intuito de se dirigir ao alto mercado. − Divius não te enviou uma carta a avisar? − Divius também tem muitos assuntos sérios a tratar nesta altura. Não pode controlar tudo. Enviarei um grupo homens para baterem a estrada. No caso de serem vistos podem dizer que estão de patrulha, uma medida tomada por mim para combater os foras da lei. − Envia More, filho de Muir. O rapaz faz bastante sucesso nas armas. − Sim ele saiu ao pai. Talvez o mande. E por falar em filhos, como está o próximo membro da casa Arco? Mollieta levou a mão à barriga inchada num gesto reflexo e sentiu os movimentos do bebé. Tinha mexido o dia todo. – Ele não pára. Está com uma vontade enorme de sair.
  • 3. − Quando chegar pode ser que já tenha nascido. – Sorriu e sentou-se na cama ao lado de Mollieta olhando e esfregando o ventre da mesma. – Posso adiar a viagem. – Disse. − Antes das estações frias, meu senhor? Que iriam pensar os súbditos de um Conde que abandona assuntos tão importantes para ficar junto da mulher grávida? − Aqueles que têm filhos iriam pensar que as colheitas podiam esperar. − Não. Torre Média está a quatro dias de distância. Uma coruja chegava lá num dia só para o caso dele nascer. − Dele. – Segur fitou Mollieta. – Dizem que quando a mão deseja um rapaz é um rapaz e que quando deseja uma rapariga é uma rapariga. − O meu senhor não deve acreditar em tudo o que dizem. Sereno nasceu rapaz porque os deuses assim quiserem, bem como Issiria. Segur levantou-se da cama e agarrou na espada. A espada e o anel eram o selo da família. A espada era feita do mais requintado aço. Tinha uns cinquenta centímetros de lâmina e o punho era só de uma mão. No fim do punho uma pequena esfera em ouro talhada com a imagem de uma meia-lua atravessada por uma flecha equilibrava o peso da lâmina. Ou assim diziam os entendidos. − Tenho de ir minha senhora. Dei ordens a Gula para não a perder de vista todo o dia. Qualquer coisa que necessite, ela providenciará. − Não era necessário meu senhor. Por uma última vez ele aproximou-se dele e beijou-a nos lábios. − Amo-te. – Disse. − Também te amo. – Respondeu colocando de lado todas as formalidades. Mollieta era filha de Moergus Taniu, Castelão de Mármore. O seu casamento fora arranjado como todos os casamentos das grandes casas, no entanto, Mollieta viu em Segur alguém como não tinha conhecido até aquele dia e apaixonar-se por ele foi fácil. Foi uma tarefa sem esforço e que aconteceu por acaso. Apesar do nervosismo que sentiu, mesmo depois do casamento Mollieta dava graças por lhe terem escolhido Segur. Tinha ouvido que o motivo tinha sido um rumor de rebelião de Mármore contra a casa Arco, mas independentemente do motivo estava feliz e não ligava a esses pormenores. Tinha conhecimento de filhas de senhores poderosos que eram obrigadas a casar com tiranos que as usavam para ter herdeiros legítimos, apresentar em eventos e pouco mais. Uma vida assim parecia impossível de imaginar a Mollieta. No entanto a sua irmã que casara com um nobre em Porto Vivo não tivera tanta sorte. O seu esposo Ilidius Cercan era um nobre mercante, rico, mas supérfluo. Providenciava à irmã Mellita
  • 4. uma vida sem dificuldades e rodeada de luxos, mas não o que Mollieta considerava a verdadeira felicidade. A única coisa que parecia fazer a irmã feliz, para além do dinheiro do marido eram os filhos que o mesmo lhe tinha dado. Iliar o mais velho e herdeiro, Rufus e Vira. Iliar tinha doze anos, sendo mais velho que Sereno três anos. Falava-se por todo o condado no seu talento natural para os negócios do pai e de um manejo com facas superior a qualquer criança da mesma idade. Era apelidado de Dobrão, pelo jeito que tinha de multiplicar os mesmos e o senhor seu pai mantinha-o vigiado todo o dia. Eram vários os caçadores de recompensas pagos por outros mercadores que tentavam surripiar a vida aos nobres mercantes concorrentes e foi devido a um que Iliar ficou conhecido pelo manejo das facas, quando matou um homem que o encurralou num beco de mercado. Sereno o seu filho era habilidoso com a espada, mas nunca o tinham diferenciado pelo mesmo. More, filho de Muir, o mestre d’armas, era o jovem que consideravam ter maior potencial para a luta e a estratégia. Provavelmente fruto do treino de Muir. Segur não dava a Sereno a mesma liberdade que Muir dava a More. Sereno precisava de aprender bem mais do que manejar uma espada. Precisava de saber o que o povo precisa, precisava de saber como interagir em diplomacia, precisava de saber liderar. Não só o aspecto bélico interessava a um líder, principalmente nestes tempos de paz, mas sim a maneira como tratava os seus súbditos e como prestava o seu serviço aos mesmos. Segur pensava em casar Sereno com Bélia, uma princesa do Sul. Já tinham falado acerca disso várias vezes. Segur achava mais seguro que fosse assim. Divius Helimir tinha uma filha muito pequena e ele queria evitar um casamento entre os dois. Se os Arco se unissem aos Helimir uma guerra poderia desencadear entre o povo e Sereno estaria sujeito a algo que o pai tentava evitar, guerra. − Gula! – Chamou Mollieta. A aia estava no quarto ao lado, onde iria pernoitar e viver enquanto Segur estivesse ausente. − Sim, senhora minha. − Trás os meus filhos aqui por favor. − Pois não. – E retirou-se. Mollieta colocou a mão sobre o ventre, sentindo o seu futuro filho ou filha a mexer-se. “Há-de ser guerreiro”. – Pensou. – “Um traquina…” Gula não demorou muito a trazer-lhe os filhos. Sereno trajava um blusão masculino azul-escuro e umas calças de couro rasgadas de ter andado a brincar.
  • 5. Issiria trajava um vestido amarelo com desenhos de flores laranjas. Tinha os caracóis do cabelo soltos e bem definidos. Os dois olhavam para ela de uma maneira estranha devido à sua gravidez. Sereno parecia mais calmo, talvez por saber que não havia hipótese daquilo lhe acontecer. Issiria fez muitas perguntas no início incluindo como é que as mulheres engravidaram. Essa foi uma pergunta de Sereno, também, mas Mollieta dignou-se apenas a responder a ele. Era o mais velho, teria o peso do Condado às costas a partir dos dezasseis anos e como um herdeiro é parte importante de um Conde, deveria saber destas coisas mais cedo que a irmã. Não fazia intenção de esconder nada a Issiria, mas preferiu guardar essa informação para mais tarde. Ainda tencionava ter a sua menina por perto durante muito tempo. − Então não vão dar um beijo à mãe? Aproximaram-se dela e abraçaram-na já cientes do cuidado que era necessário para não a magoar. − Então? Como correu o vosso dia? − O More disse que eu era um menino mimado. – Começou Sereno. – E que era por isso que lutava pior que ele. Mas eu ganhei ao pai. − Ele diz isso porque tem ciúmes querido. Se praticares tanto como ele consegues ser igual ou melhor. − O Muir também disse que precisava de treinar mais, mas o pai quer-me perto dele para aqueles assuntos chatos. Nem tenho tempo para brincar com Ekla. Ekla era filha de uma criada das cozinhas. Brincava constantemente com Sereno, e eram uma espécie de namorados, supunha ela. Apesar de Sereno repudiar essa ideia como outra criança da sua idade, Mollieta via nele os traços de uma criança e achava-o engraçado. Issiria sonhava muito com príncipes e deixava qualquer criado de lado. Gostava de brincar com as pequenas damas das casas inferiores e ouvir os contadores de histórias. Adorava ir ao alto mercado, mas o seu pai, Segur, tentava não lhe dar demasiado abuso, apesar de ser a menina dos olhos dele. Apesar de várias características fúteis normais numa criança, Issiria tinha uma espécie de inclinação para olhar as coisas com transparência. Assuntos de estado e guerra não era o mesmo que “assuntos de homens” para ela. Daria uma boa diplomata quando crescesse. − Vais ter tempo. Tenho a certeza que Ekla não se importa. E tu minha filha? − A Dama Tenta esteve a ensinar-nos boas maneiras. Diz que temos de saber comportar-nos.
  • 6. − Ela tem razão… − Ela também disse que tinha de casar com um príncipe que é dez anos mais velho que eu. Mollieta não esperava aquilo da Dama Tenta. Teria de falar com ela e ordenar- lhe que moderasse os assuntos que com os quais abordava as crianças. − Não te preocupes minha filha. Só casarás com um príncipe que gostes. Achas que o teu pai deixava acontecer o contrário? − A Dama Tenta disse que era o pai quem escolhia o príncipe. − Tenho a certeza de que quando chegar a altura o teu pai vai perguntar-te antes de escolher. Não te preocupes com isso. Ainda és muito nova. − A Dama Tenta diz que a idade passa por nós mais depressa do que pensamos. Mas eu acho que ela só diz isso por ser velha, como todas as velhas dizem. − Não deves usar essa expressão Issiria. A Dama Tenta é de uma idade avançada e merece mais respeito de todos nós por isso. − No outro diz disse-me que eu não sabia andar como um herdeiro. – Disse Sereno. − Meninos, a Dama Tenta foi ensinada por pessoas muito severas… − Mais severas que ela? – Perguntou Issiria. − Mais severas que ela. É a função dela certificar-se que os filhos do Conde se sabem comportar à altura do seu estatuto. O que ela vos diz e faz é para o vosso próprio bem. − Tenho sono. – Disse Sereno enquanto rebolava na cama. – Conta-nos uma história. Uma nova. − Sim! – Apoiou Issiria. − Uma nova? – As duas crianças responderam afirmativamente à pergunta da mãe. – Não sei se ainda tenho. − Disseste que tinhas histórias guardadas para quando fossemos maiores. – Reclamou Sereno. Mollieta riu-se e recordou-se desse leque de histórias que tinha guardado para depois. − Muito bem. – Disse ela. – Acho que tenho uma boa para vocês. – Os dois filhos, um de cada lado da cama olharam-na à espera da história. – Sabem que nas terras mais quentes, existiu um povo que era muito diferente de nós. “Vestiam-se de maneira diferente. Rezavam a outros deuses. Eram muito diferentes daquilo que somos agora. Pensa-se que terão sido levados à destruição por eles mesmos, pois eram uma civilização corrupta e tiveram mais olhos que barriga. Nessa altura os casamentos entre casas, ou entre camponeses e por vezes entre os dois eram realizados de livre vontade, ou seja, ninguém era obrigado a casar com
  • 7. quem não queria. Se perguntarem aos vossos professores eles vão dizer-vos que essa mistura das linhas de sangue foi um factor importante para o declínio da civilização.” “Um moço de recados mostrava-se na altura enamorado pela filha de um mercador ex-soldado. A beleza da filha do mercador era falada por todos os lados e os pretendentes aglomeravam-se à porta do mercador. E sua bela filha gozava os presentes que os infinitos pretendentes lhe ofereciam. Tinha assim uma vida mais luxuosa e menos preocupada que a maioria das mulheres naquela altura.” “O moço de recados sabia que tinha de conseguir distinguir-se dos outros pretendentes de alguma maneira. Tinha de oferecer à filha do mercador algo que nenhum dos outros pretendentes conseguiria igualar.” “Ao passar pelo centro da cidade ouviu dois soldados conversarem acerca da peça de arte que iria ser trazida para casa do rei mercador. Tratava-se de uma adaga toda feita em ouro e encrustada de pedra preciosas. Simbolizava o facto da riqueza de um homem poder ser usada para a conquista.” “O moço pensou que tal peça iria dar-lhe de imediato a mão da filha do mercador em casamento e então decidiu roubá-la. Esperou pela noite, quando as ruas estavam vazias de gente e a adaga tinha menos guardas. Matou os dois soldados que a guardavam e roubou-a para mais tarde a oferecer à filha do mercador.” “Houve uma grande perseguição ao ladrão do objecto, mas a verdade é que o rei não tinha como saber que o fez e aproveitando o momento troçou do ladrão, dizendo que ele poderia ficar com aquela peça de tão pequeno valor para o rei. Ele não se importava. O moço viu aquela como a altura ideal e entrou na casa do mercador. Esteve com a filha do mercador e os seus pretendentes todo o dia dizendo sempre que a sua oferta seria para quando ele e a filha do mercador estivessem sozinhos.” “Quando todos os outros pretendentes não conseguiram competir com a curiosidade que o moço instalou na filha do mercador, retiraram-se derrotados, mas na esperança de regressarem ao outo dia. O moço puxou da adaga de dentro da bolsa e mostrou-a à filha do mercador, convencido que esta iria deslumbrar-se com o objecto e a fortuna que este simbolizava. Mas a filha do mercador era menos fútil do que se falava e tinha melhor bom censo do que o moço pensava e disse-lhe: Nunca passaria um dia da minha vida ao lado de um patife como tu!” “Destroçado e sem pensar, o moço agarrou o punho da adaga e esventrou a filha do mercador logo ali. O mercador capturou o moço e deixou-o em praça pública para ser apedrejado até à morte. Apesar da dor que passou pelas pedras arremessadas que lhe partiram ossos, e lhe esfolaram a pele, o moço de recados nunca sentiu uma dor tão grande, como o arrependimento por ter matado a filha do mercador, aquela que ele considerava a luz da sua vida.”
  • 8. Seguiu-se um silêncio breve antes de Sereno perguntar se a história já tinha terminado. Mollieta viu na cara dos filhos a angústia da história não ter um final feliz. − Perceberam a moral da história? − Se roubarmos acontece-nos coisas más? – Perguntou Issiria. − Também. – Riu-se Mollieta. – Mas o principal é que quando gostamos das pessoas podemos fazer coisas más, sem nos apercebermos disso e que quando essas pessoas nos magoam também fazemos coisas sem pensar, coisas que depois nos custam. − O moço era um ladrão e teve o que mereceu. – Contestou apressadamente Issiria. − Eu acho que se ele gostasse mesmo da filha do mercador que não a matava. – Sereno rebolou na cama para junto da mãe. – Se calhar ele era daquelas pessoas que tem uma… que gostam muito de uma coisa e não pensam em mais nada. − Uma obsessão? – Sugeriu Mollieta − Sim. Isso. Isso quer dizer que ele não gostava mesmo dela… Mollieta imaginou como o mundo era tão mais simples quando se é uma criança. − Sabem. As pessoas podem ser más e boas ao mesmo tempo. Ninguém é só mau ou só bom. − Tu és só boa pessoa mãe. – Disse Issiria. − Mas há pessoas boas que não gostam de mim. – Depois de ver a expressão confusa de ambos decidiu contornar. – Um dia mais tarde vocês vão perceber. Agora está na hora de iram dormir. A Gula vai levar-vos. Despediram-se de Mollieta com beijos e abraços e deixaram-na para irem repousar. O futuro filho ou filha tinha estado sossegado durante a história e isso deu-lhe que pensar. Gostava que fosse um rapaz, mas o motivo pelo qual o desejou, fê-la arrepiar- se. Sereno era forte e inteligente e seria um bom Conde um dia. Desejava um rapaz porque isso iria afirmar a posição de Sereno, só isso. Segur tinha quase sempre ao seu lado Samuel, o irmão mais novo. No entanto Valdir, o irmão do meio estava exilado em Primeira Forja por ter conspirado contra o lugar de Segur. Outro qualquer tinha sido executado, mas Segur não conseguiu fazer isso ao irmão, mesmo depois de este o ter tentado matar. Gula regressara ao quarto ao lado. Tinha ordens para verificar o estado de Mollieta mesmo que esta não respondesse ao seu chamado. − Posso fazer mais alguma coisa pela minha senhora?
  • 9. Mollieta deitou-se, desconfortável no colchão de palha, sentindo o filho pontapear o ventre com toda a força. − Sim. Gostaria de tomar um chá de papoila para me ajudar a dormir. − Pois não. Gula retirou-se de imediato deixando-a só. Entrou passados poucos minutos, carregando uma chávena de chá. Olhou para Mollieta e viu estas a contorcer-se de dores na cama. − Chama… Chama a parteira! Gula atirou o chá para o lado e saiu a correr do quarto…