ATIVIDADE 1 - SISTEMAS DISTRIBUÍDOS E REDES - 52_2024.docx
Novos quilombos Metamorfoses étnicas e a difícil memória da escravidão no Brasil
1. Novos quilombos
Metamorfoses étnicas e a difícil
memória da escravidão no Brasil
Hebe Maria Mattos
O’DWYER, Eliane Cantarino (org.). começou a ter seus direitos tradicio-
Quilombos. Identidade étnica e territo- nais de uso do solo ameaçados, mo-
rialidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, bilizando-se, com a ajuda de diversos
2002, 268 p. aliados (políticos locais, advogados),
contra as ameaças com que passaram
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de
a conviver. Em 1995, enviaram re-
(org.). Terras de Preto no Maranhão:
presentação à Fundação Palmares so-
Quebrando o mito do isolamento. São
licitando a regularização de seu ter-
Luís: Centro de Cultura Negra do
Maranhão (CCN-MA) e Sociedade ritório, consoante os termos do art.
Maranhense de Direitos Humanos 68 do Ato das Disposições Consti-
(SMDH), 2002, 272 p. tucionais Transitórias da Constituição
Federal de 1988 (“Aos remanescen-
tes das comunidades dos quilombos
Cerca de duas centenas de in- que estejam ocupando suas terras é
divíduos, em sua maioria negros, reconhecida a propriedade definiti-
todos aparentados da matriarca Ma- va, devendo o Estado emitir-lhes os
ria da Cruz, vivem em Sacutiaba e títulos respectivos”). Os moradores
Riacho de Sacutiaba no oeste bahia- de Sacutiaba não têm qualquer me-
no. Segundo a memória da comu- mória familiar de escravos fugidos
nidade, seus antepassados chegaram entre seus antepassados. Todos se re-
na área a cerca de 200 anos, e lá vi- conhecem majoritariamente negros,
veram sem qualquer tipo de restri- apesar de “um ou outro caboclo”.
ção dos proprietários nominais das Sabem, também, da avó de Maria da
terras até as mesmas serem adquiri- Cruz, “nagô legítima”, bem como
das pelos atuais proprietários, em afirmam que a comunidade era do
1973. Desde então, a comunidade “tempo do nego véio”. “Não sei se
Topoi, Rio de Janeiro, março 2003, pp. 185-188.
2. 186 • TOPOI
meu pai foi escravo” (diz Maria da e de terras de pretos, por seus próprios
Cruz) “mas deve ter sido porque é integrantes. O relatório do Projeto
herança de nego. Podem ter liberta- Vida de Negro, sobre as terras de pre-
do, mas foi”. Afirma-se assim uma tos no Maranhão, coordenado pelo
identidade étnica referenciada à ori- antropólogo Alfredo Wagner, foi
gem na escravidão e em um campe- escrito em 1988 e 1989 e está sen-
sinato precocemente formado por do finalmente publicado. Na mesma
pretos forros na região. A menção a época, aprovava-se na nova Consti-
acampamentos de escravos fugidos tuição Federal, o artigo 68 do Ato
nas proximidades da área não está das Disposições Transitórias (ADCT).
ausente das fontes históricas. Nesse Apesar de algumas limitações
sentido, “a identidade histórica de formais, próprias de um relatório de
remanescente de quilombo emerge pesquisa, o texto de Terras de Preto
como resposta atual diante de uma no Maranhão lançou as bases de dois
situação de conflito e confronto”. dos pilares a partir dos quais iria se
Em torno deste eixo, estrutura-se o desenvolver a discussão sobre o re-
laudo antropológico de identifica- conhecimento dos grupos remanes-
ção como remanescente de quilom- centes de quilombos referidos na
bo da comunidade negra rural de Constituição e do papel dos laudos
Sacutiaba e Riacho de Sacutiaba antropológicos neste processo: 1) a
(produzido para fins de aplicação do definição das terras de pretos, a par-
artigo 68 do Ato das Disposições tir da auto-identificação étnica dos
Constitucionais Transitórias da Consti- integrantes e do uso comum das ter-
tuição Brasileira de 1988) e agora ras; 2) o levantamento de documen-
publicado, entre outros laudos, no tação histórica sobre a existência de
livro Quilombos, identidade étnica e quilombos, especialmente no sécu-
territorialidade, editado pela FGV e lo XIX, próximos às áreas nas quais
a Associação Brasileira de Antropo- se situam as comunidades.
logia — ABA (organizado por Elia- A aplicação prática do artigo
ne Cantarino O’Dwyer). constitucional causou inicialmente
Estes territórios étnicos já vi- profundas controvérsias entre antro-
nham sendo mapeados por antropó- pólogos e historiadores. Como não
logos e pelos movimentos negros existe no Brasil qualquer fenômeno
desde a década de 1970, chamados histórico da dimensão dos Saramaka
comunidades negras rurais por estes do Suriname ou dos remanescentes
3. NOVOS QUILOMBOS • 187
de quilombo da Jamaica, com seus nescente de quilombo sofreram um
territórios históricos definidos por verdadeiro processo de ressemanti-
tratados coloniais, como regula- zação no Brasil, com base na mobi-
mentar e definir os grupos rurais que lização das próprias comunidades
poderiam ser enquadrados como re- negras rurais que passaram a assim
manescentes dos quilombos? A ex- se autodenominar. É a construção
pressão remanescentes dos quilombos, prática desta orientação que pode ser
tomada em sentido estrito, como acompanhada nos dois livros aqui
continuidade histórica de comuni- considerados.
dades de ex-escravos fugidos, seria A introdução de Eliane Canta-
aplicável apenas a uns poucos gru- rino O’Dwyer para o livro da ABA
pos, em especial na região Amazô- reflete sobre este processo (“os qui-
nica, no norte do país. Richard Price lombos e a prática profissional dos
criticou fortemente alguns dos pri- antropólogos”). Apóia-se teorica-
meiros laudos antropológicos de mente em Fredrik Barth para afir-
identificação de áreas remanescentes mar a condição de remanescente de
de quilombo, redigidos por antro- quilombo como uma identidade
pólogos brasileiros, por caracteriza- construída, com base em um terri-
rem de forma superficial e imprecisa tório e em uma origem comum, a
determinados grupos contemporâ- partir da situação presente das comu-
neos de camponeses negros como nidades. Apesar da ênfase do livro
descendentes de antigas comunida- nas situações presentes, própria às
des quilombolas.1 abordagens antropológicas, o capí-
Em resposta a este tipo de ob- tulo de Alfredo Wagner, ainda com
jeção, a Associação Brasileira de An- base na experiência com as terras de
tropologia caminhou para uma pro- preto do Maranhão, procura fazer
posta de definição operacional do face à controvérsia entre antropólo-
termo remanescentes das comunida- gos e historiadores. Nesta empreita-
des dos quilombos do artigo consti- da, atribui muitas vezes aos historia-
tucional, considerando os processos dores paradigmas e perspectivas
de emergência étnica em curso. O bastante estereotipadas. Apesar dis-
grupo de trabalho sobre Terras de to, o autor acaba por corroborar
Quilombos da ABA (Associação Bra- muito do que a pesquisa histórica
sileira de Antropologia) considerou mais recente tem revelado sobre os
que as expressões quilombo e rema- últimos anos da sociedade escravis-
4. 188 • TOPOI
ta no Brasil. Seu argumento sobre Laudêncio, no Espírito Santo, em
um certo “acamponesamento” de texto de Oswaldo de Oliveira; Jama-
determinados setores da sociedade ri dos Pretos, no Maranhão, por
escravista, ocorrido nas últimas dé- Eliane Cantarino e José Paulo de
cadas do século passado e capaz de Carvalho; Furnas do Dionísio, no
propiciar o desenvolvimento de si- Mato Grosso, em belo ensaio de
tuações de autonomia próximas do Maria de Lourdes Bandeira e Triana
ideal de uma comunidade quilom- Dantas; concluindo com os Qui-
bola, poderia ser muitíssimo refor- lombos do Trombetas, também de
çado se incorporasse parte da produ- Eliane Cantarino O’Dwyer) nos
ção recente sobre a história social da descortinam, de forma surpreen-
abolição no Brasil.2 A legislação que dente, o cenário de um campo ne-
reconhece o direito dos remanescen- gro, tornado visível pela mobilização
tes de quilombos está, de fato, fazen- produzida pela aprovação do artigo
do emergir territórios negros orga- constitucional, fortemente marcado
nizados a partir da experiência dos por uma etnicidade construída a
últimos anos da escravidão. Um partir da memória dos últimos anos
campesinato negro formado por es- da escravidão no Brasil.
cravos forros e seus descendentes,
movimentos endêmicos de fugas de
Notas
cativos e comunidades escravas en-
raizadas, com uma economia autô-
noma altamente desenvolvida, fa-
1
Cf. Richard Price. Reinventando a Histó-
ria dos Quilombos. Rasuras e Confabula-
ziam parte daquele contexto. ções. In: Afro-Ásia, 23 (1999), 239-265.
Os interessantíssimos casos 2
Cf., entre outros, Gomes, Flávio dos San-
analisados no livro da ABA (Sacutia- tos. História de Quilombolas. Rio de Janei-
ba, no oeste bahiano, analisada por ro, Arquivo Nacional, 1995; Machado,
Sheila Brasileiro e José Augusto Maria Helena. O Plano e o Pânico. Rio de
Janeiro: EDUFRJ, 1994; Mattos, Hebe
Sampaio; Conceição das Crioulas,
Maria. Das Cores do Silêncio. Rio de Janei-
em Pernambuco, em laudo de Vâ- ro: Arquivo Nacional/ Ed. Nova Fronteira,
nia Rocha Souza; o Quilombo do 1995/1997.