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Decidi dedicar minha vida a refletir e causar reflexão,
questionar valores e desenvolver meus próprios valores.
Mochila murcha nas costas, sem dinheiro nem paradeiro,
sem parentes além da humanidade inteira.
Eduardo Marinho
8
Sumário
Prólogo ------------------------------------------------------------ 11
Quanto... -------------------------------------------------------- 16
Prazer, Aline ----------------------------------------------------- 18
Portas Abertas --------------------------------------------------- 20
Cadê suas malas? ------------------------------------------------ 22
Embarcando ---------------------------------------------------- 23
A chegada ------------------------------------------------------- 25
Amsterdã -------------------------------------------------------- 28
A sobremesa da Disney ------------------------------------------ 31
Mudanças ------------------------------------------------------- 34
Aalsmeer -------------------------------------------------------- 40
Antuérpia ------------------------------------------------------- 44
O baile da Cinderela -------------------------------------------- 48
Bruxelas --------------------------------------------------------- 50
Mudança de planos --------------------------------------------- 53
Hasselt ---------------------------------------------------------- 55
Tevê ------------------------------------------------------------- 58
Pé direito sim, Berlim ------------------------------------------- 61
Vivendo e entendendo ------------------------------------------ 68
Nudismo em questão -------------------------------------------- 70
O caso do pão -------------------------------------------------- 71
Imersão --------------------------------------------------------- 72
Caso ou acaso? -------------------------------------------------- 76
Achados na natureza -------------------------------------------- 80
Adiando, a mando ---------------------------------------------- 82
POLIZEI e caipirinhas ------------------------------------------ 84
Pedalando por sentimentos -------------------------------------- 88
Ainda em Leipzig ----------------------------------------------- 91
Viver sem dinheiro e nadar pelado ------------------------------ 95
Gerstun...quem? ------------------------------------------------- 98
9
Alemanha lado B: Dresden e Cottbus --------------------------- 99
Um dia de Woodstock ----------------------------------------- 103
Saga Berlim ---------------------------------------------------- 106
Carências manifestam ------------------------------------------ 108
Bavária, Bavária! ---------------------------------------------- 111
Vamos pra França então! -------------------------------------- 113
O banheiro do pedágio ---------------------------------------- 117
Paris ----------------------------------------------------------- 119
Travessia ------------------------------------------------------- 126
London Calling ------------------------------------------------ 132
Estrada -------------------------------------------------------- 143
Quando não se tem planos ------------------------------------- 147
Sérvia ---------------------------------------------------------- 158
Segundas intenções -------------------------------------------- 165
Prijepolje ------------------------------------------------------ 174
Budapeste ------------------------------------------------------ 183
Quando não é pra ser ------------------------------------------ 194
Surpresas e emoções ------------------------------------------- 200
Cabeça de elefante --------------------------------------------- 205
Alegría --------------------------------------------------------- 207
Aline cigana --------------------------------------------------- 214
Praga, finalmente ---------------------------------------------- 220
Driblando dificuldades ----------------------------------------- 228
Viena ---------------------------------------------------------- 236
Milão ---------------------------------------------------------- 238
E então, o pervertido ------------------------------------------- 244
Suíça ----------------------------------------------------------- 245
Sol e neve ------------------------------------------------------ 248
Noventa e dois ------------------------------------------------- 251
O livro contado em fotos -------------------------------------- 255
11
Prólogo
por Lua Muliterno
17 de junho de 2014, final de tarde,
praia do Jabaquara – Paraty/RJ.
Tentando ignorar que o Brasil está jogando nesse momento, trou-
xe a passear comigo pela praia do Jabaquara a minha xará, a Lua.
A Lua me traz o conforto de não saber absolutamente o que é Copa
do Mundo. A Lua é uma cadela jovem que passa a maior parte do
tempo presa no camping que nos serve de base.
Sensível à sua angústia, grata à sua ignorância, compartilho
com ela a vista desse horizonte, desse momento de deserto no fim
da faixa de areia, onde é possível ouvir o som do mar acima do
barulho daquela música vazia e promocional que não para de tocar
ao longe.
Quase que coincidentalmente, vim escrever bem onde dormi na
minha primeira passagem por Paraty, há cerca de 11 meses. No meio
da semana da FLIP — Festa Literária Internacional de Paraty. Paraty
superlotada com todo tipo de gente.
Era auge do inverno. Minha primeira cicloviagem. TPM à flor da
pele.Crisenorelacionamentocommeucompanheiro.Completamente
sem dinheiro há semanas. Há 10 dias pedalando pela BR, numa
bicicleta velha de ferro e com o pneu em último grau de decomposição.
Média de 80km por dia. Comendo apenas o que conseguia pedindo
em restaurantes e postos de gasolina.
Chovia muito em Paraty e não tínhamos barraca. Aqui ao lado
há um barquinho emborcado sobre tocos de quase um metro. Esse
foi o meu teto durante as duas noites que passei aqui. Prendemos a
minha rede debaixo do barco, enquanto que ele prendeu a dele —
uma rede com cobertura e zíper, tipo uma barraca suspensa — nas
duas árvores ao lado do barquinho.
Quando abri os olhos ao acordar, eu vi, sem que tivesse precisado
sequer mover a cabeça,o nascer do sol mais incrível que já contemplei.
12
Apesar de todo o perrengue pelo qual passava na época, eu sentia
que algumas coisas mágicas e raras, como aquele momento, eram
mensagens: “Nunca se arrependa de ter se permitido viver situações
limite, você é jovem e um dia vai ver que valeu a pena.”
Estava muito confusa e assustada naquela época. Sentia-me
perdida e carente. Sentia-me suja com minhas roupas que já eram
quase molambos. E morria de medo do que poderia vir a acontecer
no futuro. Aquela viagem foi marcada pela inércia. Não havia um
propósito claro. De repente, me encontrava seguindo os passos da
primeira pessoa que quis levar-me consigo desde Minas Gerais até
qualquer lugar que fosse.
Segundo dia em Paraty. Saí a pedir por um trampo qualquer nos
quiosques da praia. Logo no primeiro, a senhora com quem falei
educadamente nem sequer olhou pra mim:
“Já tem gente demais aqui!”
Antes que eu terminasse de dar as costas, um homem gordo,
careca e suado gritou de dentro da cozinha:
“Eu tô precisando, dá a volta!”
Entrei pela porta dos fundos. Tentei iniciar uma conversa para
saber o que eu faria e quanto eu receberia ao fim do dia. O homem
me interrompeu bruscamente:
“Depois a gente conversa, vai lavando logo isso.”
E me empurrou até a pilha de pratos sujos.
Esse era o primeiro quiosque da praia. O mais próximo da
movimentação do evento literário. Talvez fosse um dos mais
lucrativos também. Porém, ali dentro, foi um dos piores ambientes
onde já estive.
A começar pela hostilidade no tratamento interpessoal. Os só-
cios e funcionários do quiosque se xingavam todo tempo. Não era
uma maneira informal escrota de se tratarem. Eles realmente se
odiavam. Desconfiavam, se acusavam. Brigavam entre um pedido
e outro. Uma ajudante de cozinha — a pessoa que me parecia
menos odiosa ali dentro — comentou: “Ontem tava pior.”
Pior, pra mim, só poderia ser a miragem do bujão de gás entrando
também na briga e explodindo.
A maior parte das pessoas me ignorava completamente. O
“cozinheiro” (entre aspas porque ali não se cozinhava nada de
13
verdade, fritava-se comida congelada e arroz se fazia no micro-
ondas) era o único que parecia notar a minha presença. E notava até
demais! Poderia tê-lo denunciado por assédio sexual e moral. Mas
me mantive sem voz. Passei o dia inteiro lavando pratos e panelas,
limpando balcão e fazendo compras. Sem descanso.
Nem sequer pude comer o que sobrava dos clientes, porque
eles reaproveitavam a comida. Sim! Até o resto de alface ou tomate
que vinha num prato sujo era separado, lavado e colocado em um
novo prato de salada lindamente decorado. Uma mesma tigela de
arroz ou feijão passava várias vezes pelo micro-ondas. E voltava
com o mesmo preço caro às mesas dos fregueses classe alta.
Um enorme cachorro tipo vira-lata dormia sobre o grande saco
de laranjas, que nunca eram lavadas antes de virarem suco. Um gato
passeava livremente pelas prateleiras. O pano de chão era lavado na
pia de pratos, ao lado da comida. Fumava-se constantemente. Se a
vigilância sanitária visitasse aquilo lá...
Eles venderam dezenas de águas de coco a R$ 5,00 cada. Ao final
de um dia exaustivo, recebi R$ 20,00.
Sei que fui ingênua. Sei que deveria ter acordado antes e imposto
mínimas condições. Mas só sei disso agora. Foi uma rica experiência.
Aprendi definitivamente a não aceitar qualquer tipo de humilhação,
independentemente das circunstâncias. Só depois que a minha
dignidade foi ferida, pude compreender a sua importância.
Em menos de uma hora, gastei os 20 contos por completo,
comendo os doces típicos das ruas de Paraty. Merecia um pouco de
prazer e sensação de abundância, ao fim daquele dia tão hostil.
“Negra, vamo comigo pra Ilhabela. Se você ficar aqui, você vai
sofrer.”
Naquele meu estado de espírito, eu iria sofrer em qualquer lugar
mesmo. Então que ao menos sofresse nos braços de um corpo quente
e protetor.
Naquela noite, chegando ao barquinho emborcado, percebi a
ausência da minha rede. Esquecera na casa da senhora que aceitou
guardar nossas coisas.
Estendi o cobertor na areia, deitei em uma extremidade e rolei
com ele até virar recheio de rolinho de cobertor. Senti frio do mesmo
jeito, mas essa “panqueca” era suficiente para que eu conseguisse
14
dormir. Partimos ao nascer do outro dia.
Certos níveis de experiência negativa não são destino certo de
quem viaja. E não tem nada a ver com ter ou não ter dinheiro.
“Naquele meu estado de espírito, eu iria sofrer em qualquer lugar
mesmo.”
Eu atraí muitas dificuldades ao me deixar levar pela sensação de
abandono, privação e medo.
Foi uma fase difícil, mas necessária. Hoje sei que são menores as
chances de eu passar por isso novamente. Porque sou uma pessoa
mais forte, sensitiva e positiva:
* Tenho mais voz para me impor;
*Tenho mais capacidade de sentir qual o melhor caminho a escolher;
* Tenho mais confiança de que tudo ocorrerá da melhor maneira,
basta que me mantenha aberta aos sinais.
Sei que posso passar por outros tipos de situações ruins, mas
tenho plena confiança na sincronicidade do Universo.
Poucos aprendizados se comparam em importância com esse: você
não precisa e nem deve tentar controlar a sua vida por completo. O
controle te desconecta de uma rede mágica e invisível que te leva aonde
você realmente precisa ir, pelo caminho mais surpreendente. Sempre.
Essa rede permeia todos os seres, por isso costumamos chamar de
“sincronicidade do Universo”. Mas você pode dar o nome que mais
lhe convém.
Certa vez, contei um pouco da minha história a duas senhoras,
com saias na altura dos joelhos e cabelos presos em coque. Elas me
ofereceram ajuda e, ao nos despedirmos, uma delas afirmou:
“Realmente, minha filha, Deus tem um propósito na sua vida.”
Não há diferença entre “sincronicidade do Universo” e “Deus tem
um propósito na sua vida”. Essa sincronicidade afeta a todos nós. Ela
tem a ver com o que atraímos por ser quem somos; e com alguma lei
misteriosa que rege a tendência da natureza em evoluir holisticamente.
Não adianta querer controlar essa evolução, seu controle atende
apenas aos seus interesses egoístas e à sua perspectiva parcial das coisas.
Viajar é importante, principalmente porque nos evidencia essa
magia. Porque quando viajamos de verdade, perdemos o controle.
Podemos até saber onde queremos chegar, mas não temos poder
sobre o processo que nos levará até lá. Quanto menos mapas, quanto
15
menos relógios, quanto menos moedas, quanto menos medo e
proteção, mais entregues estamos à magia do cosmos.
O desconhecido é a energia de criatividade que nos permeia,
quando nos entregamos. Criatividade é a palavra. A sincronicidade
do Universo é mais criativa que a sua mente limitada, o seu ego. Se
entregue e verá...
Não quero dizer com isso que devemos ser inertes. Pelo contrário.
Para cumprir “o propósito de Deus na sua vida” é preciso estar livre,
leve e atento às demandas que a vida te apresenta.
Perder a necessidade de controlar para poder sintonizar-se com o
que tudo move. Não precisa tentar mudar o mundo. Permitindo ao
mundo mudar a ti mesmo, você será chamado a fazer o que deve ser
feito, quando tiver que ser feito e como deverá ser feito.
Sintonizar-se com o Infinito não é relaxar, é trabalhar, e muito! E
ser feliz por trabalhar.
16
Quanto...
...é necessário para que uma viagem de três meses à Europa seja
bem-sucedida?
Resolvi abrir essa pergunta a amigos, e as respostas que obtive
foram um tanto quanto previsíveis. A maioria delas basicamente dis-
se: “Muito.”
Pois antes de qualquer coisa eu gostaria de dizer que acho com-
pletamente equivocado relacionar o “quanto” diretamente a dinhei-
ro. É claro que eu contava com as respostas que me foram dadas, mas
eu quis ser ambígua, esperando que alguém me desse uma resposta
para além do quantitativo monetário. Pois bem. Eis que um antigo
hóspede, o argentino Aníbal Mandatori, captou a mensagem e res-
pondeu lindamente:
“Quanto maior o seu coração, menos dinheiro você vai precisar.”
Quanto é necessário? É claro que, assim como muitos me res-
ponderam, vai depender bastante das expectativas do viajante. Mas
pense comigo: para uma viagem ser bem-sucedida, o esperado é que
você volte feliz, realizado e cheio de histórias para contar. Certo? Pois
eu quero mostrar que muito é possível sem dinheiro — às vezes mais
até do que quando se tem sobrando.
Quero mostrar a imensidão do mundo que fica escondida por
trás desse consumismo desenfreado. A ideia é inspirar outras pes-
soas a repensar valores pessoais e a perder essa dependência desne-
cessária de coisas materiais. Como diz a protagonista do documen-
tário Living Without Money (Vivendo Sem Dinheiro), Heidemarie
Schwermer, o dinheiro desvia nossa atenção do que é importante,
das coisas mais puras e do que de fato tem valor. Coisas materiais
serão sempre materiais, sem vida. O que nos traz felicidade de espí-
rito, confiança e vontade de viver são aqueles que passam por nossas
vidas. São as pessoas que conhecemos que fazem toda a diferença,
seja pra tornar uma viagem inesquecível ou nos dar forças pra seguir
em frente.
17
Ou seja: quanto é necessário pra uma viagem de três meses à
Europa ser bem-sucedida? Muita coragem e confiança, sobretudo em
você mesmo. Após divulgada a aventura na qual eu estava prestes a
embarcar, muitas pessoas me questionaram, com certa reprovação e
incredulidade:
“Mas você irá depender cem por cento dos outros?!”
Não. Eu vou depender cem por cento de mim.
18
Prazer, Aline
Sou brasileira, sim. Meu sobrenome, Campbell, veio lá de 1800,
da época da colonização, quando algum português com o pezinho
na Escócia desembarcou em terras mineiras. Meus pais são de Minas
Gerais, mas eu sou carioca da gema: nascida e criada no Rio.
Desde sempre meu lado artístico se fez presente e, por volta dos
12 anos, fui matriculada no meu primeiro curso de desenho. Nessa
época eu já havia demonstrado certo interesse também por música.
Aos 16 anos ganhei um piano e comecei os estudos mais sérios, fre-
quentando o Conservatório Brasileiro e a Escola de Música Villa-
Lobos, até os 22 anos.
Fui, porém, deixando a música meio de lado conforme crescia
meu interesse pelas artes plásticas, e o marco desse crescimento artís-
tico foi uma viagem de três meses que fiz ao Canadá. Minha primeira
vez fora do país. Já familiarizada com a comunidade Couch Surfing,
por hospedar estrangeiros no meu apartamento, resolvi que não ia
ficar hospedada numa casa de família, como os intercambistas nor-
malmente fazem, mas me mudaria a cada três ou quatro dias e, as-
sim, conheceria mais gente, falaria mais e aprenderia mais. Foi então
que, em apenas três meses, meu inglês mudou da água pro vinho, e
meu intercâmbio saiu baratinho, baratinho.
Mas voltemos às artes: em apenas dois anos, desde a minha volta
do Canadá, produzi mais do que nos outros 22 anos da minha vida.
E o que me proporcionou tal feito foi toda a inspiração que surgiu
quando eu comecei a abrir as minhas portas, literalmente, recebendo
em casa pessoas do mundo inteiro, sem nunca sequer tê-las visto
antes.
Basicamente é isso: hoje eu pago minhas contas e tiro meu susten-
to do dinheiro proveniente da hospedagem. Sou artista plástica por
amor e vocação. Meu apartamento é próprio. Tive a oportunidade
de ter pais que puderam me proporcionar essa facilidade. Não me
envergonho disso e nem penso em me matar de trabalhar somente
para comprar um com “o meu” dinheiro.
Honestamente, não consigo entender pessoas que também foram
beneficiadas com imóveis, mas que desejam a todo custo comprar
mais um, somente para provar que conseguem. Eu prefiro aceitar os
fatos e gastar energias produzindo algo para ir além disso, já que tal
19
conquista me foi concedida por circunstâncias da vida. De todo o
caso, é importante lembrar que há outros modelos de vida, e que a
sua “casa própria” pode caber em apenas uma mochila. E não pense
que essa realidade de viagens é distante de se alcançar. Porque não é.
Provar isso é um dos objetivos deste livro.
20
Portas Abertas
Na minha primeira experiência de hospedagem, eu coloquei seis
pessoas, além de mim, claro, no meu apartamento de um quarto: um
casal de escoceses, que foi crucial na minha decisão de melhorar meu
inglês; dois argentinos muito buena onda; um belga e um francês.
Sensacional. Viciei. Desde então, passei a hospedar um atrás do ou-
tro, e assim é até hoje. A diferença é que atualmente eu cobro pra tal
e “vivo” disso. Mesmo assim, vira e mexe, ainda hospedo gente de
graça. Sabe, não é por dinheiro. E não é preciso muito esforço para
conseguir enxergar isso quando você me conhece. Eu alugo tanto o
meu quarto quanto o sofá-cama de casal na sala. Nessa loucura eu já
hospedei mais de 200 pessoas no — relativamente curto — período
de dois anos e meio, de 42 nacionalidades diferentes.
Acontece que o único banheiro da minha casa fica dentro do
quarto. E, por haver sempre mais de uma pessoa no apartamento,
é esperado que o hóspede que esteja no quarto mantenha a porta
aberta. Hoje, graças a um simples bilhetinho do lado de dentro, que
diz “favor manter aberta”, eles respeitam isso cem por cento. Só que
nem sempre foi assim.
A configuração do quarto, com uma cortina que envolve a cama,
veio depois. Eu mudei em função da galera que sempre fazia questão de
fechar a porta na hora de dormir. Será que é tão constrangedor assim
deixar que outras pessoas o vejam dormindo? Eu não gosto de portas
fechadas e ponto final. Mas, tirando a porta do banheiro e a de entrada,
no meu apartamento praticamente não há portas. Digo, tem uma de
correr que separa o quarto da sala — que raramente é fechada — e uma
de vidro que dá pra varanda — que eu arranquei a fechadura pra evitar
que ficasse trancada. No quarto, apesar de eu repetir incansavelmente
que a porta deveria ser mantida aberta, em função do banheiro, foi só
lá pelo meu octogésimo hóspede que eu me dei conta do duplo sentido
da expressão. Aconteceu durante a estadia de uma alemã, que estava
passando por um momento difícil em sua vida pessoal e mostrava for-
tes sinais de depressão, mudando de humor constantemente, do riso ao
choro. Ela se isolava certas vezes, tendo a necessidade de ficar sozinha,
com as portas fechadas.Numa conversa,eu disse a ela, de forma descon-
traída: “Come on, open doors!” (Ah, vai, portas abertas!), apontando
21
com os olhos de relance para “a” porta. Ela entendeu o recado.
A partir de então eu encarei o “portas abertas” de outra maneira.
Como uma metáfora pros nossos bloqueios e medos internos. Man-
temos portas fechadas por medo do desconhecido, por receio. Pois
eu digo: uma porta fechada não o protegerá de nada. Muito pelo
contrário: vai o impedir de enxergar além. Certo dia, mais de um
ano depois que hospedei essa menina, esbarrei com ela durante um
passeio por Santa Teresa. Ela estava ótima! Foi bacana reencontrá-la
e saber que está feliz e morando no Rio. Boa pessoa.
22
Cadê suas malas?
Sabe essas pessoas que parecem um personagem de desenho ani-
mado? Então, certo dia apareceu aqui em casa um hóspede desse
tipo, norte-americano. Com pouco mais de 25 anos, Jesse era um
cara magro (bem magro), alto (bem alto), ruivo e com um bigode
grande, com pontinhas que davam pra enrolar com os dedos, fazen-
do com que fique meio pra cima e tudo. Que figura! Além dessas
características marcantes, Jesse usava um tênis de dedinhos, que não
são nada comuns no Brasil. Era um tanto quanto engraçado, na
verdade.
Contudo, apesar de todos esses aspectos bem característicos, o
que mais me chamou atenção no primeiro momento, assim que abri
as portas, foi que ele não estava carregando nenhuma mala, nem
sequer uma mochilinha! O gringo estava numa viagem de não sei
quantos meses pelo Brasil, levando consigo nada mais do que uma
pochete, onde carregava a carteira, documentos e uma escova de den-
tes. Fora isso, somente a roupa do corpo! Dá pra acreditar?
Jesse é um cara inteligente, com uns ideais bem bacanas e in-
teressantes. Foi durante uma de nossas conversas que eu cheguei à
conclusão de que o mais importante, seja numa viagem ou em nossas
vidas, não são coisas materiais. O mais importante é o que carre-
gamos dentro de nós e os momentos que compartilhamos. Ele me
confessou que seu próximo passo, após concluir a atual viagem sem
malas, seria viajar sem dinheiro. Eu fiquei encantada com a ideia e,
quando nós nos despedimos, ficou no ar uma promessa de fazermos
a tal viagem juntos, pela Índia. Porém, depois do tchau, nunca mais
tocamos no assunto. Eu, por outro lado, fiquei com aquilo na cabe-
ça, e ao longo de um ano e meio fui digerindo a ideia de fazer uma
viagem sem levar comigo dinheiro e nem cartões de crédito. Com as
passagens compradas, escrevi novamente pro Jesse, contando sobre o
que eu estava prestes a fazer. Ele ficou surpreso e com apenas quatro
palavras, me transmitiu uma imensidão de sentimentos, num misto
de orgulho, perplexidade e satisfação:
“Aline, I love you.”
23
Embarcando
Tive um dia bem corrido, acertando os últimos detalhes pra
grande viagem. Meus pais, que moram em Cabo Frio, a 150km do
Rio, pegaram a estrada pra almoçarmos juntos e me ajudar nos pre-
parativos finais. Evan, meu namorado, também passou o dia comi-
go. Por volta das cinco da tarde me despedi dos meus pais. Evan veio
no táxi.
Ali mesmo já comecei a chorar. Por ele. Por nós. Evan é dos
Estados Unidos e estava no Brasil fazendo mestrado. Terminou os es-
tudos. Foram dois anos de namoro e estávamos ali diante de uma lon-
ga despedida (ele estava prestes a voltar pra sua terra natal, por causa
do visto). Quando chegamos ao aeroporto, mesmo estando cedo pro
embarque, eu quis encarar logo os fatos. Fiz o check-in e entrei.
Não sei que horas são. Não tenho relógio. Acabei de gastar os
últimos 20 reais que me restavam num lanche horrível.
19h20.
Estou triste.
Estou só.
Queria escrever algo bonito sobre a pessoa maravilhosa que Evan é,
mas não consigo ainda.
Não estou pronta.
Tenho que focar no meu projeto, nos ideais, no futuro próximo.
Portão 39.
Wireless não funciona.
Embarque 20h30.
É antes das 20h.
Voo depois das 21h.
Como ocupar a mente?
Despachei uma mala pequena. Na verdade, é uma bolsa de mão.
Bolsa mesmo, dessas que a gente leva pra todo lado. Nela, material
artístico, um pequeno nécessaire com alicate, tesourinha de unha,
pinça de sobrancelha, espelhinho, escova de dente, uma gilete e dois
pacotes de absorvente.
24
Material artístico: cinco metros de bagum preto (é um plástico
grosso, que eu uso pra forrar a madeira base dos meus quadros),
duas tesouras, martelo, alicate, 20 metros de arame (pra fazer o su-
porte dos quadros), cinco quilos de pregos(!!!), grampeador pra ma-
deira, 13 novelos de linhas, com 500 metros cada um, um compasso
e um lápis 6B. Tudo isso pesou uns 12kg.
Minha bagagem de mão — e mala da viagem —, com todas as
minhas roupas e objetos pessoais, é como uma mochila de faculdade.
Espaço de sobra pra tudo o que preciso nos próximos três meses, que
se resume a:
1 short branco, jeans
5 camisetas de verão
3 calcinhas
1 par de meias
1 biquíni
1 boina
1 par de chinelos
Também, pra emergência, capas de chuva e uma capa impermeá-
vel pra mochila. Tudo isso não ocupou nem metade da mochila que,
acredite, era bem pequena. Comigo, meu laptop e pasta com docu-
mentos. A minha roupa do corpo consistia em: top, duas camisas
de manga comprida, uma camisa preta de botão, tipo polo, casaco
de moletom de zíper, meia calça grossa, calça de lycra, meias, short
jeans, tênis e obviamente, uma calcinha. Na cintura: cartucheira com
a máquina fotográfica e três cartões de crédito bloqueados (depois
explico essa parte).
E são esses todos os meus pertences pros próximos três meses.
Sim, estou orgulhosa de poder detalhar tudo em pequenos pará-
grafos. Carrego bem pouco. Bem pouco mesmo. Faz parte dos ideais
do projeto. Desapego. Estou me livrando de excessos e aprendendo
a viver somente com o essencial. E, convenhamos, viajando no verão
e ficando hospedada em casas, onde haverá oportunidade para la-
var uma camisa, por exemplo, não é um bicho de sete cabeças levar
pouco. Ainda mais que, pra mim, repetir roupas não é uma questão.
Tenho outros valores.
Avião.
Acredito que decolaremos dentro de instantes.
25
A chegada
Após o longo voo do Rio até Frankfurt, chegando na imigração,
que eu tanto temia, o cara se limitou a três perguntas enquanto che-
cava meu passaporte: Para onde você está indo? Quanto tempo vai
ficar? Casa de amigos?
Respondi com o mínimo de palavras possível e ele nem sequer
questionou. Carimbou. Levei mil comprovantes de renda e tudo, pra
nada (entenda-se por “tudo” os já mencionados cartões de crédito,
que adquiri pouco antes de sair do Rio, ligando pro meu banco e
pedindo novos. Só que eu não realizei a ativação necessária, deixan-
do, portanto, os cartões sem valor algum). Mas que bom que foi
tranquilo, na verdade. Era este meu único medo: nem conseguir sair
do aeroporto, ser barrada na imigração. Afinal, eu estava indo sem
dinheiro algum, e “ninguém” quer turista duro no seu país!
O segundo voo, até Amsterdã, foi bem tranquilo e rápido. Saindo
do desembarque, em menos de 10 minutos, avistei os meninos. Robin
e Lennaert, que haviam se hospedado na minha casa em fevereiro, se
ofereceram pra me buscar no aeroporto e me dar uma carona até a
casa em que eu ia ficar (também de um antigo hóspede). No caminho
rimos um pouco e lembramos dos momentos no Rio, como a vez que
fomos até Angra dos Reis à noite, chovendo, num Chevete 75 sem
faróis!
Chegamos. Que apartamento! Tudo muito chique, tudo muito
“business”. Tem uma mesa de estudos que poderia facilmente ser
uma mesa de jantar pra oito pessoas. Uma TV gigante passeia pela
casa através de um trilho no teto. Não entendi, porém, como fazê-la
funcionar. Também não faço ideia de como a privada percebe que a
gente sentou, ligando automaticamente um exaustor interno. Enfim,
aqui tem dessas coisas.
Meus amigos me deram carona, ajudaram com as malas e se fo-
ram. Combinamos de eu ligar pro Robin e ficar em sua casa no dia
seguinte. Foi bom eu ter conseguido essa acomodação só pra mim
nessa primeira noite, pois assim poderia descansar e colocar as ideias
mais ou menos no lugar. Só que, no meu caso, este apartamento não
é muito funcional, já que não tem absolutamente nada de higiene
pessoal — e eu não trouxe uma pasta de dentes sequer!
26
Dei uma volta pelos dois quarteirões no entorno da casa com
a missão de achar madeira pras artes e também conseguir uma co-
nexão wireless, já que, por alguma razão, a do apartamento havia
parado de funcionar. Robin me disse que não ia ser fácil encontrar
pedaços de madeira dando sopa pelas ruas, uma vez que a cidade era
bem limpa. Bom, isso eu descobriria por conta própria.
Não demorei muito pra achar um café. Entrei. Ninguém me aten-
deu. Vi um gato sentado na cadeira do bar e fui brincar com ele.
Então, uma moça apareceu e falou qualquer coisa pra mim em ho-
landês. Perguntei se ela falava inglês. Sim. Perguntei se podia usar
a internet, mas ela disse que eu precisaria consumir algo. Suspirei e
falei que não tinha dinheiro. Ela me olhou com uma cara de “e eu
com isso?”. Então, falei por alto que precisava mandar um e-mail im-
portante, que a conexão do meu “hotel” não funcionava. Me deixou
usar cinco minutos. Perfeito.
Continuando a volta pelo quarteirão, vi de relance um cara com
umas sacolas de mercado que fez uns barulhos tipo assobio. Não
dei trela. De novo. Nada. Mais uma vez, mais perto. Olhei. Ele me
veio com um papo torto, perguntando o que eu estava fazendo ali
e tudo o mais. Eu disse que estava procurando madeira. Ele deve
ter pensado que eu era louca, no mínimo. Resolvi dar um pouco de
corda, só pra ver aonde chegaríamos. O cara era um gordinho bai-
xinho, com umas compras nas mãos que ele quase estava deixando
cair de tão desajeitado. Veio me cantando na cara dura, chamando
para beber um vinho, pedindo meu telefone. Eu devia ter aceitado e
pedido algo pra comer, só pra me aproveitar um pouco e ele largar
de ser trouxa, estereotipando mulheres sozinhas pela rua! Veio se
aproximando tentando pegar no meu ombro, e aí eu dei um corte
e caí fora.
Foi então que observei que ali ninguém andava pelas ruas sozi-
nho, a pé. Ou era de bicicleta, ou em pequenos grupos. Ao menos
neste bairro residencial da cidade velha, em plena quarta-feira. Con-
tinuei andando sem rumo, atrás do meu tesouro, quando avistei uma
caçamba dessas de entulho, cheia de madeira! Meus olhos brilharam.
De repente, uma buzina estridente no meu ouvido! Me passa uma
moto, a um centímetro de mim. Ah sim, a “ciclovia” é passagem de
moto também. Um grupo de idosos que vinha na direção contrária
riu e um deles disse pra eu tomar cuidado. Quer dizer, eu suponho
que ele tenha dito isso, já que não falou em inglês. Esperei uns minu-
tos até esse grupo sumir de vista (estava um pouco envergonhada) e
27
fui em direção à caçamba. Peguei dois pedaços de madeira ótimos.
Só não peguei mais, na verdade, porque ficou pesado. Fiz o caminho
de volta pra casa feliz e realizada, rindo sozinha do meu amigo ho-
landês por ter me dito uma hora antes que eu não conseguiria achar
madeira fácil.
Bom começo, bom começo.
28
Amsterdã
Sem grandes problemas pra me adaptar com o novo fuso horário,
acordei às 6h da manhã, após sete horas de sono. Nada mal. Dentes
escovados com escova de dente e banho tomado com água. Pasta de
dente e sabonete pra quê?Achei um livro dos hóspedes, escrevi uma
mensagem pro Huub, o dono do apartamento, e pra Patricia, a moça
que me recebeu, agradecendo a estadia. Organizei as bolsas e desci
pro lobby.
Quando deu 8h30, os funcionários começaram a chegar. Percebi
que o problema com a internet não era tão simples, e que todo o lo-
cal estava sem conexão. Patricia chegou, me cumprimentou e subiu
pra arrumar o apartamento. Eu aproveitei o tempo livre pra adian-
tar os quadros. Fui pro lado de fora grampear a lona na madeira
e depois voltei pra começar as marcações dos pregos. Foi quando
percebi que não havia trazido minha régua — ferramenta essencial
pra elaboração dos meus trabalhos! Como chorar o leite derramado
não me levaria a lugar nenhum, fui buscar uma solução. Perguntei a
uma funcionária se ela tinha uma régua que eu pudesse usar. De cara
ela não entendeu o que eu queria, por não reconhecer a palavra em
inglês, mas acabou por perguntar ao amigo na mesa ao lado, e ele
me ajudou. Revirou seus pertences e uns armários da sala, sem achar
nenhuma régua. Insistindo na busca, achou um pedaço de plástico
duro e reto e me perguntou se servia. Eu fiz que não, pois ali não
havia marcações dos centímetros. Ele então se lembrou de uma ferra-
menta milimetrada, esquecida numa gaveta. Não era uma régua, mas
em função da marcação dos centímetros, seria perfeita! Eu usaria pra
fazer as marcações na peça de plástico, criando assim a minha régua.
Agradeci e fui trabalhar. Quando terminei a marcação em uma das
telas, voltei ao rapaz pra devolver a tal ferramenta e perguntei se
podia ficar com minha régua improvisada. “Claro”, ele respondeu.
Patricia voltou e, ainda sem internet, vi como solução pedir em-
prestado seu telefone. Liguei pro Robin e combinamos que eu chega-
ria lá dentro de 30 minutos. Patricia foi superbacana, e ainda me deu
um saco de cerejas, uma garrafa de suco de laranja e uma latinha de
Heineken(!) que havia recolhido de um dos apartamentos.
Saí logo em seguida. Seguindo as instruções que Robin havia me
dado por telefone, sua rua era bem perto de onde eu estava. Mas che-
29
gando num ponto em que tive que decidir entre esquerda e direita,
obviamente eu peguei a direção errada. Quando fui me informar sobre
onde ficava a tal rua — que eu não me recordava do nome —, lembrei
que eu havia escrito o endereço na mão, e minhas mãos estavam com-
pletamente ocupadas. Parei uma menina pra perguntar e me atrapalhei
toda pra ler o endereço. Ela riu e me mostrou a direção apontando pra
um prédio. OK, obrigada. Caminhei na direção contrária a que estava
indo e achei a tal rua. Logo vi que os prédios eram um tanto quanto
grandes e os números iam descendo de um em um. Não como no
Brasil, que se você tem que andar do 100 ao 20, às vezes é no mesmo
quarteirão. Então, 1km de rua pela frente! Ia parando de quando em
quando pra ajeitar as bolsas e descansar. Em meu braço esquerdo car-
regava a pasta com o laptop e as duas placas de madeira. No ombro
direito, a bolsa recheada de pregos. Nas costas, minha mochila.
Chegando, levei uns 11 minutos pra entender qual era o aparta-
mento certo, mas finalmente acertei e a porta se abriu. Subi os seis
lances de escada quase morrendo. Tudo muito bonito e moderno.
A casa tem dois andares e uma espécie de terceiro, no telhado, com
uma parte externa. Os andares são inteiriços, sem paredes, e muito
bem decorados. Diferente das tradicionais casas brasileiras com as
quais eu estava acostumada. O que eu mais gostei foi o fato de não
ter paredes dividindo os cômodos.
Fiquei em casa a tarde inteira, aproveitando a internet pra atu-
alizar a página do projeto. No final da tarde, por volta das 18h,
saímos pra um bike tour. Eu na garupa do Robin, e sua noiva em
outra bicicleta. Teria algo mais autêntico do que um passeio turístico
por Amsterdã de bicicleta, com duas pessoas locais? Eles iam me
mostrando os prédios pelo caminho e explicando tudinho... simples-
mente demais!
Paramos num bar que me disseram ser o mais antigo da cidade.
Tudo de madeira e bem tradicional. Eles pediram duas bebidas sem
álcool e eu não quis nada. Ficamos pouco e saímos pra pedalar de
novo. A próxima parada foi num bar de esquina, onde as mesas e
cadeiras ficavam na ruazinha transversal, que era uma ladeira suave.
Era engraçado, porque as mesas ficavam bem inclinadas. Achei o má-
ximo quando o garçom chegou com nossas cervejas (resolvi experi-
mentar uma preta) e as colocou na mesa sem a menor cerimônia, não
derramando nenhuma gota, apesar da inclinação e tudo.
Dividimos um prato vegetariano de nachos e conversamos bas-
tante sobre vários assuntos. Falamos sobre a arquitetura de Amster-
30
dã, que os prédios são tão velhos que é notável a inclinação deles pra
frente ou pra trás, observando-os a partir da fachada. Me disseram
também que, por questões de segurança, o governo controla essas
construções, e os prédios têm classificação de 1 a 4. Se chegar na
4, você deve deixar o local, pra eles então fazerem uma reforma e
reforço das estruturas. O prédio que eles moram tem classificação 3.
Um amigo chegou e ficou com a gente pelo resto da noite. Fo-
mos a uma destilaria famosa por seus licores e pedimos quatro shots
diferentes, que bebemos juntos, trocando os copinhos e experimen-
tando de todos. Dali fomos pro restaurante que tínhamos reserva, e
encontramos com Lennaert (o outro holandês, que também foi me
buscar no aeroporto). Todos beberam cerveja, exceto eu, que preferi
ficar na água. Não sei se por causa da diferença climática, mas eu
sentia minha garganta seca o tempo todo.
A conta deu uns 120 euros. Pensando em reais, achei bem caro.
Mas essa é uma conversão “errada”, já que eles recebem em euro,
e o salário mínimo é muito maior do que o brasileiro. E, se pensar
em 120 reais pra toda a comida e cervejas, cinco pessoas, é um valor
relativamente baixo, levando em consideração o preço da comida no
Rio.
Dali, pedalamos até o Red Light District, que até então eu nem
sabia o que era. Quando dei de cara com a primeira mulher no vidro
levei o maior susto, achei que fosse um manequim! Paramos pra uma
última cerveja e depois voltamos pra casa.
Me virei como pude pra tomar banho e escovar os dentes (não
tinha como saber se o xampu era xampu ou se a pasta de dente era
pasta de dente, em vez de creme pros pés(!), por exemplo. Sei lá, né).
Fui pro meu quarto. Eles têm um quartinho extra que utilizam como
escritório. Antes de dormir, liguei pro Evan. Me enrolei nas cobertas
como pude e adormeci. Estava morrendo de frio, em pleno verão
europeu.
31
A sobremesa da Disney
Quando acordei, os anfitriões já estavam terminando de pre-
parar o café da manhã. Ofereci ajuda, mas já estava tudo pronto.
Havia muita comida. Pães variados, suco de laranja feito na hora,
croissant, geleias, pastinhas, queijos... Várias coisas. Terminando, eu
fui lavar a louça e Robin me olhou com cara de espanto. O que você
está fazendo?! Foi quando ele me mostrou a máquina lava-louças.
Ah, sim.
Fiquei em casa escrevendo durante o dia e depois fui trabalhar
nos meus quadros. Terminei aquele que havia começado no dia ante-
rior e aproveitei que estava com tempo livre pra martelar os pregos
na segunda madeira. Um quadro pronto e outro quase. Que beleza!
Nada mal pra três dias de viagem.
Pela tardinha, começamos a preparar o prato que levaríamos pra
um jantar na casa de amigos. O combinado era que cada um levasse
alguma coisa. Eles organizam esses jantares de quando em quando
aqui. Laura, noiva de Robin, fez uma sopa de beterraba com choco-
late amargo (não pergunta), e eu ajudei no preparo do “bolo espa-
cial”. Está claro que ainda estou em Amsterdã, certo? Ok.
Encontrei com Lennaert pra ir junto com ele, porque só cabiam
dois no carro. Amsterdã tem um sistema de aluguel de carros que é
bem bacana. São carros elétricos (Smart Cars), que você paga por mi-
nuto de uso. Através de um aplicativo no celular, é possível localizar
onde estão os carros disponíveis mais próximos. O usuário, através
de cadastro prévio, consegue abrir o carro com uma espécie de cartão
magnético.
Não demorou e chegamos na casa desse casal de amigos, que
é incrível! A cozinha é dessas que a gente só vê em exposição tipo
Casa Cor, com móveis planejados e tudo. Comemos de entrada a
sopa de beterraba e de prato principal, salmão com legumes. Mas eu
fiquei só nos legumes mesmo, pois sou vegetariana. Sabe, um peixe é
tão animal quanto uma vaca — e uma vaca é tão animal quanto um
cachorro.
Hora da sobremesa — o tão desejado bolo que fizemos mais
cedo! Seguinte... Eu nunca me meti com drogas, não. Nem mesmo
um baseadinho sequer, juro. Nunca tive vontade nem curiosidade.
Porém, contudo, entretanto, todavia... uma vez em Amsterdã, saben-
32
do que poderia enfim sentir os efeitos da maconha, através de um
delicioso brownie caseiro, era tentador demais. Fui em frente e, pro
meu desespero futuro, comi dois pedaços.
Acho que demorou cerca de uma hora pra fazer efeito. A Laura,
que também comeu dois pedaços, foi a primeira a demonstrar os
primeiros sintomas. Logo, comecei a me sentir estranha também. Fui
ficando meio zonza, mas bem de leve mesmo. Era tipo a sensação de
quando bebemos um pouquinho a mais.
Subimos pro segundo andar da casa, onde era a sala de estar, e
nos espalhamos pelos sofás. Havia à minha frente uma parede bran-
ca enorme, com quatro quadros retangulares de tamanhos variados,
com moldura branca e tela branca! Esses quadros eram iluminados
por um spot de luz no teto, o que fazia um efeito bem interessante.
Agora, você imagina a cena... a pessoa chapada, olhando pra uma
parede branca com telas brancas em molduras brancas. É claro que
não demorou muito pros quadros começarem a ganhar outras cores.
Na verdade até o Mickey Mouse eu vi ali, sorrindo pra mim! Como
se estivesse tirando sarro da minha cara, eu diria.
Eu estava nesse sofá de três lugares, com a Laura ao meu lado e
o Robin ao seu lado. Somente nós três havíamos comido o brownie e
devia ser a cena mais engraçada do mundo nos ver ali muito loucos
tendo alucinações nos quadros brancos e rindo horrores sozinhos.
Aliás, quem puxou a parte do riso foi a Laura, que ria de qualquer
coisa. Eu, sempre que olhava pra ela, tinha ataque de riso também. A
sensação era muito boa e a cena, divertidíssima. Estava me acaban-
do! Aos poucos fui meio que aprendendo a controlar minha onda. O
que eu imaginava acontecia. O que eu queria ver, eu via.
Teve uma hora, porém, que eu perdi totalmente o controle desses
desejos e, pra piorar a situação, eu não distinguia mais o que era
realidade de imaginação. Senti vontade de fazer xixi e me imaginei
fazendo xixi nas calças, bem ali no sofá. O duro foi que a sensação
era tão real, mas tão real, que eu realmente acreditei que tinha me
mijado toda. Senti o xixi saindo, a calça molhada, o sofá sujo, até o
cheiro eu senti! Foi quando me veio uma sensação de medo e ver-
gonha extrema. Discretamente, passei a mão pela minha perna e no
sofá, tentando buscar o molhado. Dei uma sacudida na cabeça e me
dei conta de que era tudo alucinação.
Fiquei sentada em silêncio, ouvindo os outros conversarem. Essa
foi a hora que comecei a entender holandês. E, bizarramente, eu re-
almente estava entendendo tudo! Não sei explicar, mas as falas das
33
pessoas faziam todo sentido pra mim. Eu sacudia a cabeça e pensava
comigo: “Não, peraí. Isso não é possível. Eu estou alucinando de
novo.” Virei pra Laura e perguntei: “Você falou isso, isso e aquilo?”
Ela me olhou espantadíssima e confirmou a fala. Nós duas ficamos
sem entender. E isso aconteceu em vários momentos.
Já eram umas 2h da manhã e eu sugeri de irmos embora, porque
a anfitriã da noite já havia ido dormir há muito tempo e me dei conta
de que talvez estivéssemos sendo inconvenientes. Eu havia entendido
(em holandês) que iam chamar um serviço de táxi especial, que eram
supercarros tipo limusine, com direito a consumo durante o trajeto e
tudo. Aí era demais... o carro chegou e um cara que falava espanhol
colocou a gente pra dentro. Ao entrarmos, Robin se despediu dizen-
do, com forte sotaque: “Gracias, amigo!” Eu estava bem tonta e meio
sem noção de nada naquele momento. Notei bebidas dentro do car-
ro, como água e sucos. Pensei que nada daquilo era real, que estáva-
mos num táxi comum e eu estava viajando na batatinha. Robin então
pegou algo pra beber e me ofereceu uma água. Aceitei, bebi tudo, e
segurei a garrafa com todo cuidado pra mantê-la comigo até chegar
em casa, como prova de que aquilo tudo era realidade — ou não.
34
Mudanças
Acordei assustada, sem entender muito como tinha ido dormir,
e ainda estava completamente sob o efeito do brownie. Me levantei
pra ir ao banheiro e tudo girava. Vi a garrafinha de água sobre a
mesa, sorri sozinha e voltei pra cama. Acordei umas 11h30. Ainda
tonta, fui tentar escrever. Liguei o laptop, mas eu estava tão lenta que
levei uns 27 minutos pra escrever uma única frase. Fiquei sentada na
mesa, sem fazer absolutamente nada. A sensação não ia embora!
Logo, Robin e Laura acordaram e conversamos sobre o assunto.
Eles também continuavam sob o efeito e não demorou muito pra
termos um ataque de risos os três juntos. Qualquer coisa era motivo
de muitas gargalhadas! Essa era a parte boa da onda. A gente ten-
tava falar e parecia que tinha dois metros de língua dentro da boca.
Tudo saía lento e embolado. Mas era engraçado, porque internamen-
te a gente — geralmente — tem consciência de tudo, e percebemos o
quão besta estamos sendo.
Fiz uma arte na parede, me despedi e fui rumo à minha terceira
casa. Dessa vez a de um anfitrião que eu não conhecia, totalmente
aleatório, que se ofereceu pra me hospedar através do Couch Surfing,
após ler sobre o projeto. Sua casa era bem perto de onde eu estava,
mas essa distância se duplicou com o meu maravilhoso senso de dire-
ção. Pra piorar ainda mais a coisa, eu tinha de ir parando a cada 100
metros por causa do peso que estava levando. Perguntei a direção
duas vezes pra desconhecidos no caminho, até finalmente conseguir
achar a casa. Na frente do prédio, como de praxe, chamei todos os
vizinhos até tocar a campainha certa.
Já eram umas 18h quando resolvi ir ao Westerpark, a fim de fazer
uma arte ao ar livre. Sentei numa dessas mesas de piquenique e me pus
a fazer um quadro que já havia começado na casa de Robin e Laura.
Num determinado momento, uma senhora e duas crianças muito loi-
ras pararam atrás de mim. O menino mais velho, que devia ter uns 10
anos, estava encantado com a técnica que eu fazia, a string art. A mu-
lher falou que eles tinham passado e o menino pediu pra voltar, porque
tinha visto algo muito bonito. Fofo. Conversamos por um tempo.
Peter, o anfitrião da vez, foi encontrar comigo no parque e vol-
tamos juntos pra sua casa. Já era pouco depois das 20h quando co-
meçamos a preparar a janta. Mais tarde, fomos a um encontro do
35
Couch Surfing no centro. Novamente rodando Amsterdã na garupa
de um holandês. O bar estava bem cheio e conheci algumas pessoas.
De volta, Peter me ajudou a arrumar minha cama, que era um
colchão inflável no chão. Maravilha!
3
Acordei tarde e arrumei a mochila com material artístico pra ir
a uma praça movimentada terminar o quadro que havia começado.
Pegar um pouco de inspiração da rua.
No caminho, vi uma agência de turismo com vários passeios
legais. Fiquei uns 10 minutos na porta olhando os preços, criando
coragem pra entrar e perguntar se eu podia fazer algum de graça.
Entrei. O cara do outro lado do balcão era um loiro bonito. Falei
que estava interessada nos passeios turísticos, mas que não tinha di-
nheiro. Ele fez uma cara engraçada, acompanhada de uma expressão
negativa. Tentei explicar sobre meu projeto, mas ele não demonstrou
interesse algum. Falei assim mesmo. Falei que era artista e ele respon-
deu, friamente: “É, eu vi seus quadros” (eu estava carregando dois
quadros, que havia deixado em cima de um banco na loja). Quanto
mais frio ele era comigo, mais eu sorria, tentando quebrar o gelo.
Peguei meu portfólio e coloquei no balcão, virado para ele. Ele olhou
de banda, sem sequer se dar o trabalho de virar as páginas! Pois en-
tão viro eu. Ele olhou. Tentei puxar assunto, perguntei se ele gostava
de arte. Ele disse “não desse tipo”. OK, não que ele tivesse sido o pri-
meiro a não gostar do que eu faço, mas foi o primeiro a falar assim
na minha cara. Entrou um casal na loja e foi minha deixa pra sair.
Foi quando ele esboçou um sorriso, me desejando boa sorte. Sorri de
volta e agradeci.
Apesar do não, eu saí da loja muito satisfeita. Sabe, quando en-
frento esses bloqueios bobos e vergonhas desnecessárias, a fim de
fazer algo que tenho vontade, mesmo que momentaneamente, pela
simples atitude de tentar eu me sinto renovada, mais forte e confian-
te. Perguntar, além de não machucar ninguém, ainda pode abrir as
portas do outro, que talvez possa estar lidando com uma situação
inédita. Vai saber se esse cara, por exemplo, mais tarde, refletiu sobre
o assunto: “Ora, viajando pela Europa sem dinheiro... e eu aqui nesse
empreguinho que não gosto, somente cumprindo horário, quando na
verdade meu sonho era estar numa praia do Rio de Janeiro...” Sim,
meu amigo, você pode. Se o que você quer é ir curtir uma praia, então
36
vá. Não deixe que o convençam do contrário e te digam o que fazer,
ou o que você precisa pra ser feliz, quando a decisão deve ser tomada
a partir de suas — de nossas — vocações próprias.
Cheguei na praça. Sentada com os quadros no colo já chama-
va certa atenção. Algumas pessoas passavam bem devagar, só pra
olhar. Bem calmamente, fui tirando os novelos de linha da mochila
e os colocando à minha volta. Curiosos se posicionavam. Como já
tinha um quadro finalizado, chamava atenção. Comecei a trabalhar,
com a madeira no colo mesmo. Eu estava de boina e com a cabeça
abaixada, o que fazia com que eu não conseguisse ver as pessoas da
cintura pra cima. Mas podia ver que várias pernas olhavam o que eu
estava fazendo. Não ficavam muito tempo, pois esse não é o tipo de
arte rápida, que se finaliza em cinco ou dez minutos. Então, as pes-
soas olhavam o quadro pronto, me viam trabalhar a técnica não tão
comum, às vezes tiravam fotos, e saíam. Muita gente passou ali e me
viu, mesmo sem saber quem eu sou ou qual era a minha proposta.
Naquele momento, minha intenção era justamente essa: despertar
curiosidade no anonimato. E ver até que ponto um curioso chegaria.
De quando em quando virava a cabeça pra olhar as pessoas nos
olhos e sorrir, pois acho importante manter esse contato. O engraça-
do é que alguns ficavam meio sem graça com meu gesto e viravam pro
outro lado, saindo de fininho. Talvez pensassem que eu, na primeira
oportunidade, fosse cobrar alguma coisa. Acho meio triste quando
vejo pessoas evitando artistas simplesmente porque não querem ou
não podem comprar sua arte. Bom, ao menos pra mim, é muito mais
valioso um elogio sincero do que centenas de euros. Aliás, teve gente
se interessando em comprar meus quadros. Eu, pra resumir a história
toda, apenas falava que não estavam à venda.
Certa hora vi dois pares de pernas de crianças. Levantei o rosto.
Duas meninas lindas, pelos seus 10-12 anos. Elas sorriram. Sorri de
volta. A menina da esquerda perguntou como eu fazia isso (ela estava
realmente impressionada). Eu mostrei e entreguei meu portfólio pra
ela folhear. Ficou encantada. Perguntei de onde eram. Inglaterra, e a
amiga da Rússia. Virei para a da direita e falei com tom de admira-
ção: “Puxa, que legal que você fala inglês!” Ela então assumiu que
na verdade se comunicavam em russo! Me virei novamente para a da
esquerda, mais surpresa ainda: “Nossa, você fala russo!” Elas riram.
Poderíamos ter ficado ali um tempão, mas logo veio uma perna adul-
ta levando-as embora. Ah, os adultos... sempre achando que sabem
mais do que as crianças.
37
Então apareceu uma moça com uma máquina fotográfica profis-
sional, perguntando se podia tirar uma foto. Claro! Mas entramos
num papo e a foto só foi tirada muitos minutos depois. Ela estava
começando um projeto de fotografar estranhos nas ruas, em que três
fotos são tiradas: um close do rosto, uma da parte central do corpo
e a última dos pés. Depois, coloca tudo junto numa foto só. Achei
bacana a ideia e fiquei megacuriosa de ver o resultado da minha.
Acabamos conversando por um tempão e ela adorou meu projeto, se
prontificando a ajudar e participar. Falou que estava ali pra consertar
a bicicleta, e prometeu voltar em uma hora, me convidando pra jan-
tar. Agradeci e falei que continuaria no mesmo lugar.
De volta às linhas, um rapaz que estava sentado ao meu lado —
que até então eu não havia notado — puxou assunto. Diego. Nesse
momento o sol havia se escondido e o vento gelado começou a me
incomodar. Reclamei do frio. Ele riu. Quis me emprestar seu casaco.
Agradeci, mas falei que já tinha um. Ele disse que o dele era bem
leve, de verão, mas próprio pra proteger do vento. Me convenceu.
Conversávamos enquanto eu ia fazendo o quadro. A essa altura,
muita gente já havia parado pra olhar, por conta do progresso da
arte. Eu fiquei toda boba por estar virando o centro das atenções
daquele cantinho da praça.
Continuava no papo com Diego. Falou que tinha um jantar com
parentes às 18h. Já eram 18h. Nisso, a Ive (a menina das fotos) che-
gou. Eu os apresentei. Havia acabado de terminar o quadro. Fiz
umas fotos. Diego resolveu deixar seu jantar de lado e ficou com a
gente. Decidimos então passar num mercado, comprar umas coisas e
ir comer num parque. Compras em mãos, Ive teve a brilhante ideia de
entrarmos num dos mil barcos que ficam ancorados ao longo dos ca-
nais de Amsterdã. Genial. Perguntei: “Ué, mas o dono não pode apa-
recer e expulsar a gente?!” Se aparecer, não vai ligar. Se ligar, a gente
sai. OK. Estava empolgada. Escolhemos um lugar pra fazer nosso
lanche. Um barco perfeito, com mesinha e tudo! Pra ficar ainda me-
lhor, batia sol nele, enquanto a maioria estava na sombra. Entramos
sem muita dificuldade, enchemos a mesa com nossas coisas e ficamos
ali, comendo e conversando até o sol se pôr. Eu estava bem feliz com
tudo aquilo, com o rumo que as coisas haviam tomado. Ora, estava
em Amsterdã, com dois novos amigos, fazendo um piquenique num
barco no canal! Era até meio inacreditável.
Depois da comilança, nos despedimos. Eu terminei por ganhar
o casaco de presente. Caminhei um tanto até chegar num parque —
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minha única referência da casa que estava hospedada. Perguntei pra
um cara se ele conhecia a rua “X”. Falou que não. Perguntei pra ou-
tro. Também não. Ora bolas. Fui até a cabine na entrada do parque e
perguntei aos guardinhas. Nenhum dos dois era holandês e, por isso,
não eram bons com as ruas. Um deles sugeriu de olhar no Google
maps. Mostraram o caminho e, pra minha felicidade, estava a apenas
um quarteirão de casa.
3
Acordei, juntei minhas coisas e, antes de sair, deixei de presente o
primeiro quadro que fiz na viagem. Caminhei cerca de um quilôme-
tro e meio até a estação central, onde encontraria meu novo anfitrião
e, pra minha surpresa, ela era bem maior do que eu esperava. Não
fazia ideia de como encontraria alguém ali! Pontual, cheguei antes
da hora marcada e resolvi dar uma volta pra conhecer o lugar. Sem
rumo, segui uma galera e, quando vi, estava em uma plataforma de
embarque, sem nem sequer ter passado por qualquer roleta ou pa-
gado alguma coisa. Foi então que, ali de cima, eu pude de fato ver
o tamanho da estação. Como achar o meu anfitrião?! Partindo da
lógica de que duas pessoas perdidas dificultam o encontro se em mo-
vimento, resolvi ir pra entrada principal e ficar sentada ali, esperando
por um cara tatuado vir me resgatar (eu o conhecia por fotos).
Quando passou das 14h comecei a ficar preocupada, pois haví-
amos marcado de nos encontrar às 13h30. Walter, o anfitrião por
quem eu esperava, morava em outra cidade, que fica a 20 minutos de
trem de Amsterdã. Resolvi ligar o laptop e tentar a sorte com alguma
conexão disponível. Achei. Liguei pra ele através da minha conta do
Skype, mas, como não tinha fones de ouvido e estava um barulho
danado na estação, não consegui entender muito bem o que ele falou.
Pelo menos consegui dizer onde eu estava e, dentro de 20 minutos,
ele apareceu. Pagou meu bilhete de trem e, quando saímos da esta-
ção, caminhamos até seu carro e seguimos pra sua casa.
Estávamos em Aalsmeer, que é bem diferente de Amsterdã. Mais
verde. Mais interior. Casas, em vez dos típicos prédios marrons de
três ou quatro andares. Na casa dele, algo que chamou minha aten-
ção: havia uma plantação inteira de maconha! Ri sozinha lembrando
da aparição do Mickey no quadro branco.
Eu e Walter conversamos um pouco e depois fomos ao mercado
comprar comida pra janta. Voltamos e ele cozinhou. Eu ofereci aju-
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da, mas não foi necessário. Janta pronta, seu filho chegou com a na-
morada, uma menina muito bonita, loira de olhos azuis. Comíamos
e conversávamos.
Depois, eu me ofereci pra lavar a louça (enfim uma casa sem lava-
louças!), e eis que minha gentil ação se tornou um evento pra todos
na casa. Me observavam por trás e quando eu comecei a ensaboar os
talheres, o filho deu a primeira risada. Ora, o que há?! Então, Walter
me mostrou o jeito holandês de lavar louça: ligou a água quente, que
esquentou até sair fumacinha, e colocou toda a louça dentro da pia.
Com uma esponjinha com cabo longo — já que com aquela quentura
toda não se podia tocar na água —, esfregou rapidamente a louça,
tirando os restos de comida. Depois, tampou o ralo e encheu a pia
de água quente até cobrir tudo. Aí sim ia ensaboando a louça uma
a uma e colocando ao lado. Detalhe: sem enxaguar depois! Pra tirar
o sabão, bastava secar com um pano limpo. Tchãram! E, pra minha
surpresa, a pilha de louça desapareceu em tempo recorde. Eu nunca
na vida vi uma louça ser lavada tão rapidamente, e com tamanha
economia de água.
Depois da janta ainda estava claro (o sol aqui durante o verão
só se põe às 22h) e Walter se ofereceu pra me levar à praia. Ele é um
cara muito bacana e sabe falar bem sobre sua cidade. Faz o passeio
ser ainda mais interessante. Foi ótimo ir até a costa e ver o mar. A
praia ficava a meia hora de carro de onde ele morava. Paramos duas
vezes no caminho pra olhar a paisagem e pra ele tirar sarro de mim
por conta do frio. Quando a noite caiu, voltamos pra casa.
Ficamos um tempo batendo papo na sala e Walter me mos-
trou um milhão de fotos de viagens e hóspedes no seu computador.
Pude perceber o quanto ele valoriza os momentos que passa com
quem hospeda, e o tamanho do carinho que a eles oferece. Me senti
especial.
40
Aalsmeer
Walter bateu na porta do meu quarto — que eu faço questão de
deixar sempre aberta — no horário prometido. Fomos caminhando
até um prédio, que parecia uma fábrica, mas na verdade era o maior
centro comercial de flores e plantas DO MUNDO. Um complexo
enorme, com um sistema eletrônico inacreditável. Representantes de
grandes e pequenas empresas de toda a Europa vão lá pra comprar
flores pra revender. A negociação começa às 6h da manhã e se esten-
de até a venda de todas as flores do dia, que dura só até umas 11h.
São três grandes salas onde essas vendas são feitas. É como se fosse
uma bolsa de valores, mas sem gritaria nem nada. A sala tem formato
de arena, onde na parte frontal e inferior uma espécie de mini vagão
com as flores passa através de trilhos e umas mulheres ficam pegando
um vaso por vez e mostram ao público. Acima da cabeça delas há te-
lões que exibem uma foto da planta a ser vendida, junto com outras
informações.
Depois que o comprador termina, ele vai com seu carrinho elé-
trico até um local específico pra recolher suas flores. É um sistema
muito doido e muito interessante de se assistir. Quando visto da par-
te superior, o grande galpão parece um formigueiro multicolorido.
Nunca havia visto nada nem sequer parecido. O bacana foi que,
como Walter trabalhou lá por mais de 10 anos, além de conhecer
cada canto do lugar, ele também tem livre acesso a todas as áreas.
Assim, eu pude ver tudo acontecer bem de perto, o que uma “pessoa
normal” jamais poderia fazer.
Voltamos pra casa. O dia estava bonito, com sol e tudo. Comi
uma maçã, atualizei algumas coisas na internet e quando foi meio-
-dia saímos de novo, dessa vez de carro. Walter me levou a um lugar
chamado Zaanse Schans, que é uma região que guarda muito da
história local, os moinhos de vento do século XVIII. Havia umas
lojas e uns museus. Vi aqueles sapatos de madeira supergrandes e
esquisitos serem feitos ao vivo, bacanérrimo. Também fomos numa
loja que vendia queijos e devia ter umas 15 variedades pra prova. É
claro que passei experimentando um a um, e fiz questão de voltar
pelo mesmo caminho! Continuando o banquete, comi meu primei-
ro sorvete da viagem. Foi em uma barraquinha muito bacana, toda
41
colorida e cheia de apetrechos, de um italiano simpático. Umas duas
horas depois, pegamos o carro e fomos a uma mini fazenda dentro
de uma floresta. Estacionamos e fomos caminhando por uma trilha,
que era dividida em três: pra pessoas, pra bicicletas e pra cavalos!
Estava vazio, mas eu podia imaginar aquilo ali num fim de sema-
na, cheio de gente. Chegamos e os portões estavam fechados. Walter
achou estranho, mas, como não havia nenhum cadeado, entramos
assim mesmo. Não tinha absolutamente ninguém lá dentro, mas não
demos muita bola. Havia galos enormes e galinhas passeando pelo
local, livremente. Dentro de um cercado, várias cabras. Fomos na di-
reção delas e eu comecei a brincar com uma, fazendo carinho e tudo.
O barulho bem característico que elas faziam era o máximo! Fiquei
encantada e não conseguia parar de brincar com os filhotes. Depois
de muitos carinhos, lambidas e fotos, continuamos caminhando. Só
que aí demos de cara com os voluntários trabalhando, e eles disseram
que o local estava fechado. Tivemos que sair. Havia alguns visitantes
brincando com as cabrinhas que estavam do lado de dentro da cerca.
Gostei de ver as crianças arrancando grama do chão e dando pras ca-
bras comerem, na boca, sem medo nem nada. Na minha cidade, vejo
crianças apavoradas com cachorros de estimação nas ruas, presos
à coleiras. Vá entender. No caminho de volta pra casa, paramos no
mercado e compramos umas pizzas congeladas, que seriam o jantar.
Havíamos feito coisa à beça e ainda era fim de tarde. Nem acreditei.
Tiramos um cochilo de uma hora, comemos pizza e quando era umas
21h, fomos dar uma volta com a Rottweiler de Walter. Caminhamos
até um parque bem bonito, com um lago, que fica pertinho de casa.
Fizemos a volta no quarteirão e, em pouco menos de uma hora, es-
távamos de volta.
Walter me ofereceu uma cerveja, acendeu a lareira e ficamos ali
no quintal atrás da casa um tempão, curtindo o calor das labaredas
e jogando papo pro ar.
3
Hoje o tempo estava feio e chuvoso, mas saímos assim mesmo.
Fomos dar uma volta pela parte velha da cidade, que é também onde
Walter cresceu. No caminho, comprou um salgado pra gente que,
segundo ele, era bem típico. Sabe bolinha de queijo?! Então, agora
imagina no formato de rissole. É isso. A (grande) diferença é que o
queijo era holandês!
42
Passamos por sua antiga rua e paramos na casa da mãe dele. Uma
velhinha de 80 e poucos anos megasimpática, que mora sozinha e
é superindependente. Falava um pouco de inglês, mas não muito.
Walter contou do meu projeto e ela ficou preocupada. Sabe, coisa de
mãe.
Em algum momento do dia a gente foi ao cemitério da cidade,
onde o pai de Walter está enterrado. Bem bonito o lugar. Muito ver-
de, muita árvore e tudo muito organizado e limpo. Mesmo eu não
gostando da ideia de ser enterrada, apreciei o local.
De volta à casa, fiz uns desenhos estilizados em uma escultura em
gesso de corpo de mulher que Walter tem. Ficou bem bonito. Tam-
bém deixei na casa dele o quadro que fiz na Dam Square. Sou muito
agradecida por Walter ter “me descoberto” e me convidado pra ficar
em sua casa. Também por tudo que fez por mim e o apoio que me
deu nesses três dias que passei com ele.
Quando já era depois da meia-noite, pegamos o carro e fomos até
um lago onde seu filho pescava. Estava lá acampado, com suas varas
presas a um suporte no chão. Na barraca havia uma cama, uma ca-
deira e um fogareiro, que também servia de aquecedor. Eu me sentei
na cadeira e ele e o pai sentaram na cama. Ficamos um tempo lá. Ele
me mostrou como fazia as iscas e contou que às vezes ficava acampa-
do por três dias, sem pescar nada. Mostrou fotos de umas carpas que
ele já havia pescado, enormes. Disse que sempre devolve os peixes
pra água, com o mínimo de ferimentos. Não que eu seja adepta do
esporte, mas foi interessante ver e aprender um pouquinho.
Voltamos pra casa de madrugada.
43
1
Após oito dias e cinco casas diferentes na Holanda — contando a
do amigo do Robin, que eu visitei —, observei alguns padrões:
* Todo mundo fuma. E fuma dentro de casa, dentro do carro, em
qualquer lugar. Mas nem é maconha, não, é tabaco mesmo. Fumam
maconha também, mas por incrível que pareça é um tanto quanto
raro;
* As casas são grandes. Da mais chique até a mais simples, são sem-
pre grandes e espaçosas, por mais que seja só de um cômodo;
* Todas as casas têm varanda, quintal ou alguma parte externa;
* Lava-louças e secador de roupa elétrico são bem comuns;
* Banheiros com sensores de luz nas casas mais chiques, sempre;
* As privadas têm tipo um degrau na parte interna da cerâmica, que
faz com que o cocô não caia direto na água, mas fique depositado ali
até você apertar a descarga. Sim, é meganojento e fede em dobro. Isso
foi um padrão que notei em TODOS os banheiros que usei;
* Todo mundo tem olho azul;
* Todo mundo tem bicicleta;
* Os canais/córregos estão por todo o lado;
* As casas não têm embolso de cimento por fora;
* Todos têm um animal de estimação.
44
Antuérpia
Me deu a maior vontade de chorar, mas eu me fiz de durona. Wal-
ter é o mesmo tipo de anfitrião que eu. Dá o máximo pelo hóspedes,
sobretudo quando gosta da pessoa. E quando recebemos alguém a
quem nos apegamos muito, depois da despedida fica um vazio enor-
me. Eu já passei por isso e sei bem como é.
De carro, fomos até uma grande parada de estrada, com posto de
gasolina e vários restaurantes. Ali nos despedimos. Era um local bem
movimentado, e por isso a carona apareceu rápido — a primeira da
viagem! Em meio aos vários sinais não identificados e sorrisos que
recebia dos motoristas, uma Fiorino parou. Peguei minhas coisas e
entrei. Notei que o rapaz estava uniformizado e, depois de me apre-
sentar, perguntei em que ele trabalhava. Força Aérea. Estava a tra-
balho, inclusive. Disse que podia me deixar num ponto que ficava a
menos de 50km de Antuérpia, que era meu próximo destino. Ótimo.
Ele parecia meio tímido e não falava muito. Eu tentava puxar assun-
to, mas ele se limitava a responder com palavras curtas.
Certa hora, me dei conta de que eu estava muito apertada pra
fazer xixi, e se ele me largasse no meio da estrada, eu estaria las-
cada. Pedi então pra que me deixasse no posto de gasolina mais
próximo de onde ele teria que seguir pro seu caminho. Não sei se
me expressei corretamente ou se foi ele que não entendeu, pois não
falava inglês muito bem, mas logo no posto seguinte ele parou e
falou que me esperava no carro. Esperar, como assim? Confesso
que senti, de leve, um frio na barriga por deixar todas as minhas
coisas no carro e sair. Mas, no final das contas, deu tudo certo e
ele acabou desviando um tanto da sua rota, só pra me levar mais
adiante. Disse: “Estou com tempo, e não sou eu que pago a gasolina
mesmo...” Sorriu.
Caminhei até a saída do posto, coloquei minhas coisas no chão e
levantei a placa pra meia dúzia de carros. De repente, vi um homem,
a pé, vindo em minha direção. Fui na direção dele, ver o que queria.
Fiquei surpresa quando ele falou comigo em português! Se ofereceu
pra me dar carona e me contou que sabia que eu era brasileira por-
que havia reparado na bandeirinha presa à minha mochila, quando
eu passei por ele momento antes. Pegamos a Estrada e ele me deixou
num posto já dentro da cidade, mesmo não precisando entrar ali.
45
Perguntei a três pessoas diferentes como se chegava no centro.
No caminho, avistei a mais bela arte de rua que havia visto até então.
Uns grafites muito bons, espalhados por toda parte, embaixo de um
viaduto onde havia um skate park. Caminhei até um grupo e per-
guntei a direção, em inglês. Me apontaram. Segui. Não muito longe
dali, me deparei com mil opções de caminhos. Decidi perguntar de
novo. Vi dois caras vindo e, ao se aproximarem, ouvi uma palavra
em português. Mas será possível?! Sim, portugueses de novo. Super-
simpáticos. Mas eu ainda estava longe.
Cheguei numa praça e fiquei surpresa com a variedade de etnias.
E não era uma praça turística, não. Parei um instante pra dar uma
respirada e beber água. Escolhi um banco que tinha um cara sentado
com um Bulldog francês. Ao me sentar ao seu lado, o cão carente
veio logo na minha direção. O dono fez como quem ia puxá-lo pela
coleira em gesto de repressão, mas eu rapidamente fui na direção do
bicho e comecei a brincar com ele. O cara então falou alguma coisa
que eu não entendi, e eu disse que não falava holandês (na Bélgica há
dois idiomas mais falados: o holandês, que eles chamam de flamengo,
e o francês. A Antuérpia faz parte da região “holandesa”). Ele então
disse que também não falava holandês, que era britânico. Ah, os bri-
tânicos... Com muito empenho, eu conseguia entender 50% do que
ele falava, quando isso. Pra piorar, ele só tinha alguns dentes na boca.
Mas logo percebi que não fazia muita diferença eu entender ou não,
ele só precisava de alguém pra desabafar mesmo. Então fiquei ali uns
30 minutos o ouvindo e acariciando seu cachorro, que a essa altura
já estava todo folgado no meu colo. Perguntei a hora. Cinco e meia.
Nossa, tenho que ir!
Quando finalmente cheguei ao meu destino, olhei pra porta e
havia quatro campainhas, nenhuma delas com o nome que eu tinha.
Tentei a primeira. Nada. Pensei na possibilidade de que talvez Wan-
nes, o anfitrião, ainda não tivesse chegado. Coloquei minhas bolsas
no chão e encostei na parede, observando o movimento. Os caras
da esquina tentaram puxar assunto, mas não falavam inglês e logo
desistiram. Então alguém na janela atrás de mim me chamou pra
entrar. Pensei que fosse Wannes, e que aquela janela fosse dentro
da casa dele. Dei um sorriso e tentei entrar. A porta ainda estava
trancada. Olhei pra ele. Ele fez novamente sinal pra entrar. A porta
trancada. Fiz que não sabia como ir lá. Ele então me apontou pra
direção oposta. Ah, sim. Peguei minhas coisas e fui pra esquina (ha-
via outra entrada). Foi aí que me dei conta de que o cara que estava
46
me chamando não era quem eu esperava, e que ali não era uma casa,
mas sim um bar. Um bar árabe ainda por cima, onde os caras mal
falavam inglês. Expliquei que fora um mal-entendido e que tinha
que sair pra esperar meu amigo. Ele insistiu pra eu entrar e beber al-
guma coisa. Falei que não tinha dinheiro. Ele insistiu mesmo assim.
Agradeci, mas saí. Quando deu 19h comecei a ficar preocupada e
resolvi passar uma mensagem pro Wannes. Recorri, então, ao árabe.
Entrei lá e vi dois caras esparramados no sofá, vendo TV. Pedi licen-
ça e tentei falar com eles. Puxaram a cadeira da mesa pra eu sentar.
Sentei. Quando tentava explicar que queria um telefone pra mandar
mensagem, um deles disse que falava espanhol! Consegui dizer o
que queria e ele me emprestou seu celular. Sucesso! Em cinco minu-
tos Wannes apareceu. Ele estava em casa o tempo todo, o problema
é que eu não sabia qual era o andar e nem seu sobrenome (pro caso
do interfone).
Quatro lances de escada. Um gato macho. Apartamento gran-
de, com móveis de madeira e uma boa vista. Conversamos. Ajudei a
preparar o jantar. Ele folheou um jornal e viu que estava tendo um
show de blues numa praça próxima, e de graça. Pegamos as bicicletas
e fomos. Sim, “as bicicletas”. Pela primeira vez pedalando sozinha.
Wannes tem a sua própria e também um cartão pra essas bicicletas
públicas, que você pode usar por 30 minutos e devolver em outro
ponto. Chegamos. Era em uma praça não muito grande, rodeada por
barraquinhas de comidas e bebidas. Tinha um cara que parecia estar
bêbado dançando muito animado na frente do palco. Vi duas velhi-
nhas dançando com taças de vinho na mão, felizes da vida. Crianças
corriam pra lá e pra cá, brincando. E o blues rolando. Vi uma negona
cheia de soul fazendo uns passinhos. Belo começo em uma cidade
que até bem pouco tempo atrás eu nem sabia que existia (fui parar
ali por recomendação de Walter).
Wannes sugeriu de atravessarmos o rio pelo túnel que passa por
baixo da água. Topei. Pegamos as bicicletas e fomos até o elevador.
De tão grande, nem dava pra sentir que ele estava se movendo. No
visor aparecia a quantidade de metros percorridos pra baixo. Che-
gava até -33. Conforme íamos mais pro centro, mais frio ficava. Bem
no meio era um frio absurdo, parecia que estávamos entrando num
refrigerador, sendo que nem ar-condicionado havia ali. Não entendi
muito bem. Pra sair do túnel, o elevador estava com defeito, então ti-
vemos que pegar a escada rolante. Escada rolante de madeira, nunca
havia visto um troço desses.
47
Pedalamos até bem próximo ao rio, onde se tinha uma vista mui-
to bonita da cidade, e ficamos ali curtindo o visual.
3
Fiquei em casa até o meio-dia, escrevendo e ajeitando minhas
coisas. Como estava com o cartão da bicicleta, pedalei até o cen-
tro com o laptop na mochila. Consegui descolar um wireless grátis
no McDonald’s e fiquei um tempão atualizando fotos e textos na
internet. Quando a bateria acabou, fui passear pela cidade. Pedalei
bastante. Me perdi. Me achei. Caminhei. Ter acesso a esse sistema de
bicicletas foi uma mão na roda!
Tive de voltar pra casa um pouco antes das 17h, pois Wannes
iria sair do trabalho nesse horário e só eu estava com a chave. Ele
chegou apressado e falou que os amigos viriam nos buscar pra irmos
à Ghent, que é uma cidade vizinha. Fomos a uma exposição num
prédio velho, onde vários artistas montaram suas instalações.
Certa hora o grupo estava todo numa parte externa do casarão,
fumando e falando um monte. Fiquei entediada e saí. Estava faminta
e tive vontade de explorar a cidade e procurar o que comer. Wannes
então me surpreendeu, chegando pelo lado oposto, e sentou ao meu
lado. Perguntei se ainda iriam demorar, se dava tempo de eu dar
uma volta. Fomos até o grupo pra saber o que iriam fazer. Um dos
artistas sugeriu de irmos a um bar próximo, onde havia quadros seus
expostos.
Depois, fomos comer. Wannes pagou pelo meu prato. Quando sa-
ímos do restaurante, já estava escuro. Caminhamos até o carro e em
uma hora estávamos de volta à Antuérpia. Fomos todos a um pub e
eu bebi uma cerveja escura. Ficamos um tempo lá, era sexta à noite e
havia bastante gente. Ao final, éramos um grupo de quase 10.
48
O baile da Cinderela
Depois de uma visita ao ateliê do Wannes e de eu fazer uma arte
na parede da cozinha, saímos pra ir a um festival num parque. Sol.
Muita gente bonita. Verão europeu. Todo mundo sentado ou deitado
na grama em grupos, bebendo cerveja e sorrindo. Eu fiquei um bom
tempo só observando a galera. Uns amigos do Wannes chegaram e
aos poucos nossa roda foi crescendo. Duas loiras holandesas, as pró-
ximas hóspedes do meu anfitrião, haviam acabado de chegar. Duas
doidas! Superanimadas e divertidas, só conhecendo. Havia também
um cara negro, bem magro e bem bonito. Americano. Tinha outro
conversando com ele, loiro com um penteado irado, olhos azuis,
todo tatuado e com piercing no lábio. Muito bonito também. Depois
chegou um terceiro, putz, que gato! Essa galera dos olhos azuis me
conquista mole, não vou mentir não. Belga. Ficamos conversando
um tempão. Wannes, as holandesas e o resto do grupo foram pra
pista de dança. Quando começou uma música brasileira, eu fui, toda
orgulhosa e tirando onda por ser a única que sabia a letra. Na ver-
dade, praticamente não havia turistas ali. De quando em quando co-
meçava a falar com um estranho e, ao ser perguntada de onde eu era,
respondia toda metida “Rio de Janeiro”, falando com sotaque grin-
go, caso contrário não entenderiam o nome da cidade. Conseguia me
enturmar fácil por conta disso, e sem esforço algum, cervejas surgiam
nas minhas mãos. O DJ era muito bom! Ele fazia uma farofa musical
que dava muito certo. Tocava Iron Maiden e, de repente, Macarena!
Todo mundo dançando, todo mundo se divertindo. Clima bem dife-
rente das festas que eu estava acostumada a frequentar, onde as pes-
soas muitas vezes se privam de dançar por certa vergonha ou então
tá todo mundo paquerando todo mundo e se esquece da festa em si.
Enfim. Eu estava muito feliz e me divertindo horrores. Do nada, uma
mulher meio coroa surgiu e começamos a dançar juntas. Eu ri pro
grupo, com uma cara de “mas que raios?” e continuei dançando com
a louca. De repente, me puxou pro meio da multidão, em direção
ao palco. Olhei pra trás e sorri, como dizendo que estava tudo bem.
Dançamos freneticamente na frente do palco, e ela de quando em
quando me abraçava. Nossa, ela estava realmente feliz por alguém
49
estar dando atenção. Ficamos um tempo juntas rindo sozinhas, até
uma amiga do Wannes vir “me resgatar”.
Saí em direção ao banheiro e, chegando lá, vi que cobravam 50
centavos pra usar. Havia dois meninos sentados, recebendo o dinhei-
ro da mulherada. Sorri pra eles e, num tom irônico, disse: “É sério
que eu preciso pagar pra fazer xixi?” Eles sorriram de volta, e fizeram
que sim com a cabeça. Eu então falei que não tinha dinheiro. Sem dar
muita bola, um deles, o que estava tomando conta do “caixa” (que
era literalmente uma caixa sem tampa e cheia de moedas), olhou pra
mim e disse, num tom exclamativo: “Você não tem dinheiro!”, e fez
uma coisa demais da conta: pegou uma moeda da caixa, levantou
uns 30cm, e a deixou cair por cima das outras. Pronto. Pago.
Voltei pro grupo e continuei a dançar loucamente com os outros.
Agora era outro DJ e estava tocando mais pop. Música boa também,
apesar de não muito meu estilo. Tive sede e fui ao bar tentar conse-
guir água. Estava lotado. Fui pra lateral, não na intenção de furar
fila, mas como na verdade só queria um copo de água da torneira,
não achei que fosse necessário esperar tanto. Só que eles estavam
atendendo apenas o pessoal da frente, e eu fiquei no maior vácuo ali.
Pedi o copo d’água a um segurança, que me disse que custava € 2,50!
Eu ainda dei uma sacaneada falando que era a água da pia mesmo
que eu queria, e que essa água era de graça. Ele sorriu, mas disse que
eu precisava pedir aos funcionários. Nessa hora já estava amiga do
cara ao meu lado, que disse que conhecia o Brasil e tudo. Por fim,
acabou me pagando a tal água. Fiz mais uns amigos aleatórios na
pista e quando deu meia-noite em ponto(!) a música parou. Fim de
festa. Acenderam as luzes do palco na direção da galera e aos poucos
o povo foi indo embora. Achei meio bizarro acabar a festa assim do
nada, mas foi o que aconteceu.
Que noite!
50
Bruxelas
Por conta das outras meninas que chegaram ontem, eu acabei
perdendo o sofá. Assim, dividi a cama com o anfitrião. O que, para
ambos, não foi problema algum. Independente de eu ser mulher e ele
homem, o combinado foi dividirmos a cama pra dormir, e foi o que
fizemos. Respeito.
Dia de seguir viagem. Dessa vez eu estava meio nervosa, porque
como não havia internet na casa, eu não pude procurar por aco-
modação em Bruxelas — o próximo destino. Mas fui assim mesmo,
acreditando nos meus ideais: menos medo do mundo e mais confian-
ça nas pessoas. O Universo se encarregará do resto.
Fomos Wannes e eu de bicicleta até um ponto perto da saída da
cidade. Como eu estava com a bicicleta dos 30 minutos, simples-
mente a deixei na estação próxima e Wannes voltou sozinho, na sua.
Nos despedimos e ele ainda falou que ia até a outra esquina ver se
havia um ponto melhor pra pedir carona. Foi ele virar as costas que
um carro parou. Nele, um careca super gente boa foi conversando
comigo o caminho todo. Mas não me levou até o meu destino, não.
Quando desci, o próximo carro também parou muito rápido, só que
o cara não falava inglês. Ele era turco e, por morar em Bruxelas,
além de seu idioma materno, falava francês. A gente até tentou se
comunicar, mas não rolou. O bacana foi que ele acabou me levando
até o centro da cidade! Achei uma praça, me sentei e peguei o laptop.
Pra minha surpresa, consegui uma conexão gratuita e bem rápida.
Postei uma mensagem aberta na comunidade Couch Surfing, falando
rapidamente do projeto e dizendo que já estava na cidade, sentada
em frente a um museu. Dentro de meia hora eu estava com meu novo
anfitrião. Sim, o cara foi lá me buscar, Jochem! Quando chegamos
em sua casa, havia uma menina na porta esperando por ele com um
cachorro. Colombiana. Fomos os quatro pra um parque e tomamos
um sorvete. Depois que ela foi embora, Jochem me levou ao centro
turístico. Vimos o cartão postal da cidade, que é uma estátua de um
menininho fazendo xixi (pois é), entramos nas lojas de chocolate pra
provar as amostras grátis e, por fim, ele me levou num estacionamen-
to com um terraço sem cobertura onde havia uma boa vista da cida-
de. Bebemos uma cerveja preta e ficamos um tempo ali, conversando
e curtindo o sol.
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Antes de voltarmos pra casa, resolvemos passar no Jardim Bo-
tânico da cidade. Só que, como já era depois das 19h, o local estava
fechado. O que nós fizemos? Pulamos o muro. Me esparramei no
gramado e curti o momento, lembrando que eu havia chegado na ci-
dade sem conhecer uma única alma e sem sequer um local pra passar
a noite.
“Confiar no mundo.”
3
Anfitrião trabalhando, saí sozinha. Caminhei até um centro de
informações turísticas que existe em várias das grandes cidades eu-
ropeias, e é bem conhecido entre jovens e mochileiros: o Use-it. Eles
elaboram guias através de dicas dos locais e também organizam pas-
seios gratuitos. Hoje havia um às 14h. Cheguei cedo e parei numa
praça. Sentei num banco ao sol e um casal sentou ao meu lado. Puxei
assunto e descobri que eram hóspede e anfitrião, também pelo es-
quema Couch Surfing. O cara ia trabalhar e eu convidei a moça pro
passeio turístico. Ela topou! O dia estava ensolarado e havia bastante
gente no tour. O grupo foi dividido em dois, com cerca de 10 pessoas
em cada um. Não sei por que razão, mas acabei ficando num gru-
po diferente do da menina que havia conhecido ainda há pouco. O
chato foi que o grupo que caí acabou fazendo basicamente o mesmo
trajeto que eu havia feito no dia anterior, com Jochem — só que com
o Jardim Botânico aberto e cheio de gente. Sem graça.
Caminhamos por duas horas e depois de passarmos rapidamente
no ponto de onde partimos, sentamos num bar. O grupo naquela hora
era de apenas seis pessoas. Eu estava com muita fome. Já eram quase
19h e eu estava só no café da manhã. Quando passamos pelo centro,
por todas aquelas lojas de chocolates belga e waffles, eu fiquei aluci-
nada, com água na boca. Um cara do grupo, americano, comprou um
waffle enorme e comeu sozinho. Pouco depois, a menina que estava
com ele, comprou um suculento cone de batata frita, cheio de molho
de tomate, e fazia questão de ficar se deliciando, dizendo que esta-
va muito bom, sem oferecer a ninguém! Achei aquilo meio arrogante.
Mas acho que eles nem se deram conta do que estavam fazendo, e que,
se alguém tivesse pedido, não teriam problemas em compartilhar. Eu
que fui a tola de não pedir uns pedaços. Mas é que gosto de observar...
Quando sentamos no bar, todos compraram um desses cones de
batata frita, que já notei serem megapopulares por aqui. Fiquei bem
52
chocada porque ninguém me ofereceu. Sabe, quando você compra
alguma coisa, é comum oferecer às outras pessoas da mesa. Eu acho.
Naquele momento minha energia emocional caiu e eu senti que a
galera meio que estava me evitando, como se eu fosse uma dessas
viajantes aproveitadoras, que só queria a companhia deles pra con-
seguir comida ou coisa que o valha. Fiquei bem chateada com esse
pensamento, mesmo que talvez nem fosse verdade, mesmo que eles
talvez só tivessem “se esquecido” de mim. De todo modo, não estava
me sentindo bem no grupo e o que eu fiz foi simplesmente sair.
Encontrei meu anfitrião em casa e fomos juntos a um mercado.
Jochem preparou uma salada maravilhosa. Salada nutritiva, feita por
um vegetariano que sabe que salada não é só alface e tomate. Havia
frutas, nozes, pasta de grão de bico, uns grãos tipo quinoa, temperos
diversos, torradinhas. Várias coisas gostosas! E, pra completar, um
suco natural. Agora sim.
Saímos pra um encontro do Couch Surfing à noite, e eu conversei
com algumas pessoas na parte interna do bar. Até que comecei a sen-
tir calor e resolvi sentar do lado de fora. Na mesa, havia três pessoas,
e uma delas era um rapaz muito bonito, que chamou minha atenção.
Pele branca, olhos claros, alargadores nas orelhas e tatuagens. Lindo.
Estava sentada com Jochem e, como a mesa era grande, nós só
nos enturmamos com o outro grupo quando a menina pediu pra tirar
uma foto deles. Foi a deixa. Num piscar de olhos, estávamos todos
conversando. O menino bonito, porém, era mais calado. Os três via-
javam de carona. O casal viajava junto, e o tatuado sozinho. Eram
todos poloneses, mas se conheceram no caminho. A última carona
pegou os três juntos e haviam acabado de chegar em Bruxelas. Esta-
vam de mala e tudo. O casal voltaria pra Polônia no dia seguinte, e
o outro menino iria pra Paris. Paris? De carona?! Hey, vamos juntos!
E o bonitão acabou vindo pra casa com a gente. Decidimos pegar a
Estrada no dia seguinte.
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Mudança de planos
Enquanto trabalhava em uma arte na parede, recebi uma ligação
de um cara da TV local, interessado em gravar uma matéria comigo.
Digo, ele ligou pro telefone do meu anfitrião, já que eu estava sem.
Era de um canal famoso, cujo programa, segundo ele, é assistido por
mais de um milhão de pessoas! Ele havia visto o tópico no Couch
Surfing onde eu pedia hospedagem de última hora. Foi assim que
cancelei a ida à Paris naquela manhã. Combinei de me encontrar com
o produtor à tarde. Antes, aproveitei pra rever Maria, uma antiga
hóspede-amiga finlandesa, que estava na cidade. Linda pessoa, inteli-
gentíssima! Acabou me acompanhando no encontro com o produtor.
Falei do projeto, dos meus ideais, do que eu faço no Rio, na vida.
Falei bastante. Ele estava bem interessado e, pela sua expressão, pude
notar que estava um tanto quanto impressionado... tinha um brilho
diferente no olhar. Ele me explicou do programa e o que eles estavam
fazendo. Toda semana buscavam um viajante com uma história in-
teressante e o acompanhavam por um dia, desde a casa do anfitrião
até um passeio pela cidade. Queriam a visão de estrangeiros sobre a
Bélgica. Porém, disse que não teria como preparar toda a equipe pra
fazer a matéria no dia seguinte, e que já havia muitas reportagens
feitas em Bruxelas, queriam fazer em outra cidade. Ora, eu posso ir
a qualquer lugar! E fazer essa matéria era realmente importante pro
projeto, cujos ideais pretendo levar pro maior número de pessoas
possível. Estava realmente animada com a ideia, só que como esse
negócio de televisão não é tão simples assim, ele ficou de falar com o
diretor e me dar uma posição até a noite. Segura ansiedade!
Aproveitei a tarde passeando pela cidade com Kuba, o polonês,
que também havia adiado a ida pra Paris. Fomos a um parque, dei-
tamos num gramado próximo a um enorme chafariz e ficamos de
bobeira relaxando um tempão. Ele não falava muito e, assim, acabei
ficando em silêncio também.
Observei um grupo de meninas negras, todas belíssimas, come-
çarem uma guerra de água, fazendo o maior escarcéu no parque e
chamando a atenção dos que por ali passavam. Uns sorriam e para-
vam pra olhar, já outros, com medo de se molhar, franziam a testa e
54
se afastavam. Elas não estavam nem aí! Cada uma tinha uma garrafa
de um litro e meio e corriam pra lá e pra cá, umas atrás das outras,
molhando tudo. A cena era linda, no duro! Uma das mais bonitas e
sinceras de toda a viagem, eu diria...
Voltamos pra casa e Jochem já estava com o jantar semipronto,
nos esperando. Que boa pessoa! Conforme a noite foi caindo, acabei
cochilando no colchão com o laptop à minha frente, sem que tivesse
“me preparado”pra dormir. Em algum momento, um deles me cobriu
e colocou o travesseiro próximo à minha cabeça.
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Hasselt
Kuba partiu sozinho rumo à Paris. Antes, ao adicioná-lo no Face-
book, notamos um amigo em comum. Pra surpresa de ambos, era o
cara de Amsterdã, que eu havia conhecido na praça e me deu o casa-
co! Lembra, o menino do piquenique no barco?! Ê, mundo pequeno!
Diego havia hospedado Kuba por lá pouco depois de me conhecer,
e tinha inclusive comentado sobre mim. Disse que havia conhecido
uma menina viajando sem dinheiro e tudo o mais! Sei não, mas estou
deixando de acreditar nesse negócio de coincidência, viu...
Pouco antes das 11h, um telefonema do cara da TV. Disse que
ainda não haviam decidido onde seria a gravação. Pra colocar uma
pressão neles, falei que teria que sair antes do meio-dia. Sucesso! O
celular de Jochem tocou novamente e o local estava decidido: Has-
selt. Pois bem. Sem nunca nem ter ouvido sequer falar nessa cidade,
topei ir pra lá.
Caminhei uns 30 minutos até uma rotatória com saídas pra to-
das as direções possíveis, o que me deixou superconfusa. Cheguei a
levantar a placa por alguns minutos, mas resolvi me informar com
um cara que passava. Um outro, arrastando um malão de rodinhas,
se intrometeu na conversa. Parecendo ignorar minha presença, os
dois começaram a falar um monte de francês. Depois de muito oui
oui oui, me disseram que o melhor pra eu fazer era ficar ali mesmo.
Ah, sim.
Um tempo depois, eis que ressurge o cara da mala. Ele estava
realmente preocupado comigo e queria muito me ajudar. Num in-
glês tupi-guarani, disse que iria deixar a mala em casa e voltaria.
Me sentei numa sombra pra esperar. Comecei a escrever qualquer
coisa no caderno de anotações e, poucos minutos depois, volta ele,
sem mala, junto com um policial de bicicleta. Achei engraçadíssima
a cena! Todo orgulhoso, disse: “Eu trouxe um policial.” Bom, ao me-
nos alguém que falava inglês. Falou que, realmente, o meu destino
era meio longe e a possibilidade de passar alguém ali indo na direção
desejada era bem pequena. Sugeriu que eu fizesse uma placa com
outro nome. OK, obrigada.
Estava sem papelão, mas fiz uma placa com papel normal mes-
mo... O problema é que estava ventando bastante e a folha fina não
parava quieta. Resolvi caminhar mais à frente. Vi uma bifurcação, e
56
uma estrada descia num túnel, onde lia-se a placa “Ring” (a estrada
que circula a Bélgica). Achei que se eu conseguisse chegar lá, tal-
vez fosse mais fácil. Parei ali por um tempo. Os mesmos olhares, a
mesma dúvida. De repente, um homem que passava a pé me gritou
alguma coisa em francês. Fiz cara de quem não entendeu e ele, num
inglês ruim, disse que ali era muito perigoso pra uma pessoa ficar e
que se a polícia me visse iria me prender. Achei que ele exagerou um
pouco, mas ainda assim acreditei no fato de que eu ainda não estava
no “lugar certo”. Olhei em volta e numa rua transversal vi dois caras
próximos a um carro. Perguntei se eles sabiam onde era a estrada
pra Hasselt. Falaram pra eu virar à direita e depois à esquerda, que
assim chegaria a uma praça. Cheguei a uma estação de metrô. Pedi
informação num ponto de ônibus. Ninguém sabia de nada. Eu estava
começando a ficar meio preocupada. Caminhei na direção do círculo
e, uma rua antes, parei e coloquei as bolsas no chão.
Foi então que surgiu uma menina com uns 265 piercings na cara,
perguntando se eu realmente estava indo pra Hasselt (havia visto a
placa). Ela disse que ninguém ali nem sequer saberia da existência da
cidade e se ofereceu pra me levar à estação central, onde eu poderia
pegar um trem. Falei que não tinha dinheiro. Sem demonstrar qual-
quer expressão, ela simplesmente disse que comprava a passagem
pra mim. Aceitei. Fui com ela até a rua transversal, onde havia um
carro estacionado. Coloquei as bolsas no porta-malas e cumprimen-
tei a outra menina, ao volante. Ela era loira, cabelo curto, com duas
tranças divididas na nuca. Na parte de baixo de seu cabelo, um azul
desbotado. Usava piercing no lábio e no nariz. A outra menina tinha
o cabelo interessante... todo bagunçado e disforme, pro alto, com
uma lateral raspada. Superanimada e divertida! Perguntou se eu já
havia comido e terminou por me pagar um lanche. Compramos a
passagem e elas ficaram comigo até eu entrar no trem. Nem sequer
mencionei o Portas Abertas.
Havia olhado no mapa, antes de sair, que a casa onde eu iria me
hospedar ficava perto da estação, mas não me dei o trabalho de fazer
um desenho com as ruas nem nada. Não estava contando com a ida
de trem, e quando pego carona, basta perguntar aos motoristas, que
geralmente têm acesso a um mapa. Problema. Ao pedir informação,
ninguém sabia onde a tal rua era. Um taxista foi o que chegou mais
perto. Na verdade, o seu GPS. Mas, quando percebeu que eu não
entraria no táxi, só fez me apontar a direção com a mão, sem muitos
detalhes. Caminhei na direção que ele apontou, mas me deparei com
57
uma bifurcação e fiquei novamente na mesma. Perguntei pra um cara
que passava. Ele não sabia. Voltei e parei num bar pra tentar ver na
internet. Havia mil mesas vazias, todas na calçada. Sentei. Logo veio
o garçom e perguntou o que eu ia beber. Falei “nada, obrigada”. Na
maior estupidez do mundo, ele disse que eu tinha que comprar al-
guma coisa se quisesse ficar ali. Fechei o laptop e fui me sentar num
banco de rua. Não havia internet, mas “por sorte” o mapa que eu
tinha aberto antes de sair de casa ainda estava salvo. Consegui visu-
alizar a rua e pronto.
O combinado era de eu chegar depois das 21h. Cheguei às 19h.
Sem nem tocar a campainha, sentei no chão na frente da porta. Por
volta das 20h30, a vizinha do lado chegou. Uma velhinha boazinha,
que ficou me olhando e falou alguma coisa. Ela não entendia inglês,
mas consegui me fazer entender, através de mímica e sorrisos, até que
me emprestou o telefone (telefone mesmo, que ela foi dentro de casa
buscar). Achei importante eu ligar pra minha anfitriã e dizer que ha-
via chegado. O número estava ocupado. Agradeci à senhora e voltei
pro meu cantinho. Peguei o laptop e, pra minha surpresa, achei um
ponto de rede sem senha. Liguei pra Tinne, a anfitriã, que atendeu,
e no desenrolar da conversa ouvi a voz se duplicar e a porta se abrir
atrás de mim. Por um momento, me senti idiota por ter esperado
tanto do lado de fora quando ela estava em casa o tempo todo, mas
depois entendi que estava num jantar com um amigo e que eu fiz bem
em respeitar o momento deles.
58
Tevê
Acordando cedo pra um dia cheio. A equipe não se atrasou e às
9h da manhã já estava aqui. Colocaram um microfone escondido em
mim, por baixo da camisa, e começamos a gravar do meu quarto,
que era no terceiro andar da casa. Me filmaram deitada, escrevendo
ao laptop. Fizeram mil takes, um de cada ângulo diferente. Depois,
começamos a descer as escadas, o que deve ter levado uns 23 minu-
tos, até eu chegar ao último degrau no primeiro andar. Toda hora
eu tinha que voltar, subir e descer de novo. Me frustrou um pou-
quinho descobrir como as matérias televisivas são feitas, com tudo
milimetricamente programado e meio fake, mas foi divertido. Após
as cenas do quarto e da escada, chegamos na cozinha e gravaram a
gente (minha anfitriã e eu) tomando café da manhã. Íamos comendo
e conversando, como se não houvesse uma equipe de filmagem ali.
O cara da câmera mudava de posição de quando em quando. Se o
diretor notasse algo interessante, pedia pra repetirmos a cena e fazer
tudo de novo na maior naturalidade possível (repetir a cena, como se
tivesse algo ensaiado!).
Nas ruas, chamávamos bastante atenção, por causa da câmera e
tudo. Nos filmavam enquanto caminhávamos e conversávamos.
Hasselt é uma cidade bonita. Pequena, tranquila. É conhecida
como a capital dos sabores e por isso fomos a uma padaria, pra que
eu pudesse experimentar os tradicionais biscoitos locais, que levam o
nome de algo parecido com “espetaculoso”. Essa foi a melhor parte
do vai e vem da gravação, pois pude comer o troço mil vezes! E ainda
me compraram um saquinho no final, me dei bem.
Dali, demos mais uma volta pelo centro e passamos por uma pe-
quena fonte de um menino nas costas de um touro, de onde jorrava
uma aguinha que escorria até o chão. Tinne me contou que uma vez
por ano, geralmente em outubro, por uma hora, a fonte jorra bebida
alcoólica em vez de água. É uma bebida bem popular aqui, como se
fosse cachaça no Brasil. Fomos então a um bar pra experimentar a
dita cuja. Era forte pra caramba e, como eu mal bebo, passei ver-
gonha na hora da gravação, não conseguindo virar o shot. A única
vez que tentei de fato virar um shot de alguma coisa foi num bar no
Rio. Tequila. E eu não consegui. Minha garganta fechou e eu prati-
59
camente vomitei a bebida. Maior vexame! Não quis fazer o mesmo
na frente da câmera e, pra não correr o risco, a bartender fez uma
bebida de mentirinha pra mim. Sucesso! Suco de maçã com água
deixava o líquido no copinho exatamente igual ao alcoólico. Virei o
shot de uma só vez, com direito a careta e tudo, contribuindo para a
máscara, ops, mágica televisiva.
Câmera em off, fomos comer alguma coisa. Todo mundo na ba-
tata frita (ainda estávamos na Bélgica, né). Conversamos, comemos
e rimos um bocado. O diretor havia comentado que, pra ele, o mais
difícil de viajar sem dinheiro deveria ser na hora de querer comer
alguma coisa na rua, e não poder comprar. Pois é justamente nessa
situação, viajando sem dinheiro, que você pode ver com o quanto
de besteira se distrai, incluindo a comilança desnecessária, por gula.
Porque se você compra um sorvete no parque, ou um cone de batatas
fritas, geralmente não é porque está com fome, e sim porque é in-
fluenciado pelo marketing e pela ocasião. Nada disso é necessário, se
pararmos pra pensar no assunto. Sem dinheiro, eu consigo enxergar
todo o tempo o que de fato é necessário pra nós, psicologicamente e
fisicamente falando. E, pode acreditar, não é um waffle suculento no
centro histórico de Bruxelas.
Quando chegamos em casa, câmera ligada novamente e pregos
posicionados (eu havia martelado tudo antes de sairmos), comecei a
trabalhar e a parede foi ganhando cores.
Fizeram uma pequena entrevista com minha anfitriã, no idioma
local: flamengo. Depois, minha vez. E, mesmo após ter falado pelos
cotovelos o dia todo, fiquei meganervosa. Tão nervosa que engasguei
na primeira fala, que era simplesmente dizer quem eu era e onde es-
tava. Não lembrava o nome da cidade, não lembrava o nome da an-
fitriã. Branco total! Respirei fundo e, na terceira tentativa, a fala saiu.
Foram sete horas de trabalho ao total, pra um vídeo de apenas
quatro minutos.
Estava na segunda semana de viagem e já havia alcançado algo
grandioso. Difícil de acreditar. Mais ainda quando volto atrás e lem-
bro de como fui parar ali. Lembra? Graças ao fato de ter ido à Bru-
xelas sem lenço e sem documento, e postado um único tópico na co-
munidade Couch Surfing pedindo ajuda. Além do “socorro” chegar
rapidamente, fui parar na televisão!
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  • 1.
  • 2.
  • 3.
  • 4.
  • 5.
  • 6.
  • 7. Decidi dedicar minha vida a refletir e causar reflexão, questionar valores e desenvolver meus próprios valores. Mochila murcha nas costas, sem dinheiro nem paradeiro, sem parentes além da humanidade inteira. Eduardo Marinho
  • 8. 8 Sumário Prólogo ------------------------------------------------------------ 11 Quanto... -------------------------------------------------------- 16 Prazer, Aline ----------------------------------------------------- 18 Portas Abertas --------------------------------------------------- 20 Cadê suas malas? ------------------------------------------------ 22 Embarcando ---------------------------------------------------- 23 A chegada ------------------------------------------------------- 25 Amsterdã -------------------------------------------------------- 28 A sobremesa da Disney ------------------------------------------ 31 Mudanças ------------------------------------------------------- 34 Aalsmeer -------------------------------------------------------- 40 Antuérpia ------------------------------------------------------- 44 O baile da Cinderela -------------------------------------------- 48 Bruxelas --------------------------------------------------------- 50 Mudança de planos --------------------------------------------- 53 Hasselt ---------------------------------------------------------- 55 Tevê ------------------------------------------------------------- 58 Pé direito sim, Berlim ------------------------------------------- 61 Vivendo e entendendo ------------------------------------------ 68 Nudismo em questão -------------------------------------------- 70 O caso do pão -------------------------------------------------- 71 Imersão --------------------------------------------------------- 72 Caso ou acaso? -------------------------------------------------- 76 Achados na natureza -------------------------------------------- 80 Adiando, a mando ---------------------------------------------- 82 POLIZEI e caipirinhas ------------------------------------------ 84 Pedalando por sentimentos -------------------------------------- 88 Ainda em Leipzig ----------------------------------------------- 91 Viver sem dinheiro e nadar pelado ------------------------------ 95 Gerstun...quem? ------------------------------------------------- 98
  • 9. 9 Alemanha lado B: Dresden e Cottbus --------------------------- 99 Um dia de Woodstock ----------------------------------------- 103 Saga Berlim ---------------------------------------------------- 106 Carências manifestam ------------------------------------------ 108 Bavária, Bavária! ---------------------------------------------- 111 Vamos pra França então! -------------------------------------- 113 O banheiro do pedágio ---------------------------------------- 117 Paris ----------------------------------------------------------- 119 Travessia ------------------------------------------------------- 126 London Calling ------------------------------------------------ 132 Estrada -------------------------------------------------------- 143 Quando não se tem planos ------------------------------------- 147 Sérvia ---------------------------------------------------------- 158 Segundas intenções -------------------------------------------- 165 Prijepolje ------------------------------------------------------ 174 Budapeste ------------------------------------------------------ 183 Quando não é pra ser ------------------------------------------ 194 Surpresas e emoções ------------------------------------------- 200 Cabeça de elefante --------------------------------------------- 205 Alegría --------------------------------------------------------- 207 Aline cigana --------------------------------------------------- 214 Praga, finalmente ---------------------------------------------- 220 Driblando dificuldades ----------------------------------------- 228 Viena ---------------------------------------------------------- 236 Milão ---------------------------------------------------------- 238 E então, o pervertido ------------------------------------------- 244 Suíça ----------------------------------------------------------- 245 Sol e neve ------------------------------------------------------ 248 Noventa e dois ------------------------------------------------- 251 O livro contado em fotos -------------------------------------- 255
  • 10.
  • 11. 11 Prólogo por Lua Muliterno 17 de junho de 2014, final de tarde, praia do Jabaquara – Paraty/RJ. Tentando ignorar que o Brasil está jogando nesse momento, trou- xe a passear comigo pela praia do Jabaquara a minha xará, a Lua. A Lua me traz o conforto de não saber absolutamente o que é Copa do Mundo. A Lua é uma cadela jovem que passa a maior parte do tempo presa no camping que nos serve de base. Sensível à sua angústia, grata à sua ignorância, compartilho com ela a vista desse horizonte, desse momento de deserto no fim da faixa de areia, onde é possível ouvir o som do mar acima do barulho daquela música vazia e promocional que não para de tocar ao longe. Quase que coincidentalmente, vim escrever bem onde dormi na minha primeira passagem por Paraty, há cerca de 11 meses. No meio da semana da FLIP — Festa Literária Internacional de Paraty. Paraty superlotada com todo tipo de gente. Era auge do inverno. Minha primeira cicloviagem. TPM à flor da pele.Crisenorelacionamentocommeucompanheiro.Completamente sem dinheiro há semanas. Há 10 dias pedalando pela BR, numa bicicleta velha de ferro e com o pneu em último grau de decomposição. Média de 80km por dia. Comendo apenas o que conseguia pedindo em restaurantes e postos de gasolina. Chovia muito em Paraty e não tínhamos barraca. Aqui ao lado há um barquinho emborcado sobre tocos de quase um metro. Esse foi o meu teto durante as duas noites que passei aqui. Prendemos a minha rede debaixo do barco, enquanto que ele prendeu a dele — uma rede com cobertura e zíper, tipo uma barraca suspensa — nas duas árvores ao lado do barquinho. Quando abri os olhos ao acordar, eu vi, sem que tivesse precisado sequer mover a cabeça,o nascer do sol mais incrível que já contemplei.
  • 12. 12 Apesar de todo o perrengue pelo qual passava na época, eu sentia que algumas coisas mágicas e raras, como aquele momento, eram mensagens: “Nunca se arrependa de ter se permitido viver situações limite, você é jovem e um dia vai ver que valeu a pena.” Estava muito confusa e assustada naquela época. Sentia-me perdida e carente. Sentia-me suja com minhas roupas que já eram quase molambos. E morria de medo do que poderia vir a acontecer no futuro. Aquela viagem foi marcada pela inércia. Não havia um propósito claro. De repente, me encontrava seguindo os passos da primeira pessoa que quis levar-me consigo desde Minas Gerais até qualquer lugar que fosse. Segundo dia em Paraty. Saí a pedir por um trampo qualquer nos quiosques da praia. Logo no primeiro, a senhora com quem falei educadamente nem sequer olhou pra mim: “Já tem gente demais aqui!” Antes que eu terminasse de dar as costas, um homem gordo, careca e suado gritou de dentro da cozinha: “Eu tô precisando, dá a volta!” Entrei pela porta dos fundos. Tentei iniciar uma conversa para saber o que eu faria e quanto eu receberia ao fim do dia. O homem me interrompeu bruscamente: “Depois a gente conversa, vai lavando logo isso.” E me empurrou até a pilha de pratos sujos. Esse era o primeiro quiosque da praia. O mais próximo da movimentação do evento literário. Talvez fosse um dos mais lucrativos também. Porém, ali dentro, foi um dos piores ambientes onde já estive. A começar pela hostilidade no tratamento interpessoal. Os só- cios e funcionários do quiosque se xingavam todo tempo. Não era uma maneira informal escrota de se tratarem. Eles realmente se odiavam. Desconfiavam, se acusavam. Brigavam entre um pedido e outro. Uma ajudante de cozinha — a pessoa que me parecia menos odiosa ali dentro — comentou: “Ontem tava pior.” Pior, pra mim, só poderia ser a miragem do bujão de gás entrando também na briga e explodindo. A maior parte das pessoas me ignorava completamente. O “cozinheiro” (entre aspas porque ali não se cozinhava nada de
  • 13. 13 verdade, fritava-se comida congelada e arroz se fazia no micro- ondas) era o único que parecia notar a minha presença. E notava até demais! Poderia tê-lo denunciado por assédio sexual e moral. Mas me mantive sem voz. Passei o dia inteiro lavando pratos e panelas, limpando balcão e fazendo compras. Sem descanso. Nem sequer pude comer o que sobrava dos clientes, porque eles reaproveitavam a comida. Sim! Até o resto de alface ou tomate que vinha num prato sujo era separado, lavado e colocado em um novo prato de salada lindamente decorado. Uma mesma tigela de arroz ou feijão passava várias vezes pelo micro-ondas. E voltava com o mesmo preço caro às mesas dos fregueses classe alta. Um enorme cachorro tipo vira-lata dormia sobre o grande saco de laranjas, que nunca eram lavadas antes de virarem suco. Um gato passeava livremente pelas prateleiras. O pano de chão era lavado na pia de pratos, ao lado da comida. Fumava-se constantemente. Se a vigilância sanitária visitasse aquilo lá... Eles venderam dezenas de águas de coco a R$ 5,00 cada. Ao final de um dia exaustivo, recebi R$ 20,00. Sei que fui ingênua. Sei que deveria ter acordado antes e imposto mínimas condições. Mas só sei disso agora. Foi uma rica experiência. Aprendi definitivamente a não aceitar qualquer tipo de humilhação, independentemente das circunstâncias. Só depois que a minha dignidade foi ferida, pude compreender a sua importância. Em menos de uma hora, gastei os 20 contos por completo, comendo os doces típicos das ruas de Paraty. Merecia um pouco de prazer e sensação de abundância, ao fim daquele dia tão hostil. “Negra, vamo comigo pra Ilhabela. Se você ficar aqui, você vai sofrer.” Naquele meu estado de espírito, eu iria sofrer em qualquer lugar mesmo. Então que ao menos sofresse nos braços de um corpo quente e protetor. Naquela noite, chegando ao barquinho emborcado, percebi a ausência da minha rede. Esquecera na casa da senhora que aceitou guardar nossas coisas. Estendi o cobertor na areia, deitei em uma extremidade e rolei com ele até virar recheio de rolinho de cobertor. Senti frio do mesmo jeito, mas essa “panqueca” era suficiente para que eu conseguisse
  • 14. 14 dormir. Partimos ao nascer do outro dia. Certos níveis de experiência negativa não são destino certo de quem viaja. E não tem nada a ver com ter ou não ter dinheiro. “Naquele meu estado de espírito, eu iria sofrer em qualquer lugar mesmo.” Eu atraí muitas dificuldades ao me deixar levar pela sensação de abandono, privação e medo. Foi uma fase difícil, mas necessária. Hoje sei que são menores as chances de eu passar por isso novamente. Porque sou uma pessoa mais forte, sensitiva e positiva: * Tenho mais voz para me impor; *Tenho mais capacidade de sentir qual o melhor caminho a escolher; * Tenho mais confiança de que tudo ocorrerá da melhor maneira, basta que me mantenha aberta aos sinais. Sei que posso passar por outros tipos de situações ruins, mas tenho plena confiança na sincronicidade do Universo. Poucos aprendizados se comparam em importância com esse: você não precisa e nem deve tentar controlar a sua vida por completo. O controle te desconecta de uma rede mágica e invisível que te leva aonde você realmente precisa ir, pelo caminho mais surpreendente. Sempre. Essa rede permeia todos os seres, por isso costumamos chamar de “sincronicidade do Universo”. Mas você pode dar o nome que mais lhe convém. Certa vez, contei um pouco da minha história a duas senhoras, com saias na altura dos joelhos e cabelos presos em coque. Elas me ofereceram ajuda e, ao nos despedirmos, uma delas afirmou: “Realmente, minha filha, Deus tem um propósito na sua vida.” Não há diferença entre “sincronicidade do Universo” e “Deus tem um propósito na sua vida”. Essa sincronicidade afeta a todos nós. Ela tem a ver com o que atraímos por ser quem somos; e com alguma lei misteriosa que rege a tendência da natureza em evoluir holisticamente. Não adianta querer controlar essa evolução, seu controle atende apenas aos seus interesses egoístas e à sua perspectiva parcial das coisas. Viajar é importante, principalmente porque nos evidencia essa magia. Porque quando viajamos de verdade, perdemos o controle. Podemos até saber onde queremos chegar, mas não temos poder sobre o processo que nos levará até lá. Quanto menos mapas, quanto
  • 15. 15 menos relógios, quanto menos moedas, quanto menos medo e proteção, mais entregues estamos à magia do cosmos. O desconhecido é a energia de criatividade que nos permeia, quando nos entregamos. Criatividade é a palavra. A sincronicidade do Universo é mais criativa que a sua mente limitada, o seu ego. Se entregue e verá... Não quero dizer com isso que devemos ser inertes. Pelo contrário. Para cumprir “o propósito de Deus na sua vida” é preciso estar livre, leve e atento às demandas que a vida te apresenta. Perder a necessidade de controlar para poder sintonizar-se com o que tudo move. Não precisa tentar mudar o mundo. Permitindo ao mundo mudar a ti mesmo, você será chamado a fazer o que deve ser feito, quando tiver que ser feito e como deverá ser feito. Sintonizar-se com o Infinito não é relaxar, é trabalhar, e muito! E ser feliz por trabalhar.
  • 16. 16 Quanto... ...é necessário para que uma viagem de três meses à Europa seja bem-sucedida? Resolvi abrir essa pergunta a amigos, e as respostas que obtive foram um tanto quanto previsíveis. A maioria delas basicamente dis- se: “Muito.” Pois antes de qualquer coisa eu gostaria de dizer que acho com- pletamente equivocado relacionar o “quanto” diretamente a dinhei- ro. É claro que eu contava com as respostas que me foram dadas, mas eu quis ser ambígua, esperando que alguém me desse uma resposta para além do quantitativo monetário. Pois bem. Eis que um antigo hóspede, o argentino Aníbal Mandatori, captou a mensagem e res- pondeu lindamente: “Quanto maior o seu coração, menos dinheiro você vai precisar.” Quanto é necessário? É claro que, assim como muitos me res- ponderam, vai depender bastante das expectativas do viajante. Mas pense comigo: para uma viagem ser bem-sucedida, o esperado é que você volte feliz, realizado e cheio de histórias para contar. Certo? Pois eu quero mostrar que muito é possível sem dinheiro — às vezes mais até do que quando se tem sobrando. Quero mostrar a imensidão do mundo que fica escondida por trás desse consumismo desenfreado. A ideia é inspirar outras pes- soas a repensar valores pessoais e a perder essa dependência desne- cessária de coisas materiais. Como diz a protagonista do documen- tário Living Without Money (Vivendo Sem Dinheiro), Heidemarie Schwermer, o dinheiro desvia nossa atenção do que é importante, das coisas mais puras e do que de fato tem valor. Coisas materiais serão sempre materiais, sem vida. O que nos traz felicidade de espí- rito, confiança e vontade de viver são aqueles que passam por nossas vidas. São as pessoas que conhecemos que fazem toda a diferença, seja pra tornar uma viagem inesquecível ou nos dar forças pra seguir em frente.
  • 17. 17 Ou seja: quanto é necessário pra uma viagem de três meses à Europa ser bem-sucedida? Muita coragem e confiança, sobretudo em você mesmo. Após divulgada a aventura na qual eu estava prestes a embarcar, muitas pessoas me questionaram, com certa reprovação e incredulidade: “Mas você irá depender cem por cento dos outros?!” Não. Eu vou depender cem por cento de mim.
  • 18. 18 Prazer, Aline Sou brasileira, sim. Meu sobrenome, Campbell, veio lá de 1800, da época da colonização, quando algum português com o pezinho na Escócia desembarcou em terras mineiras. Meus pais são de Minas Gerais, mas eu sou carioca da gema: nascida e criada no Rio. Desde sempre meu lado artístico se fez presente e, por volta dos 12 anos, fui matriculada no meu primeiro curso de desenho. Nessa época eu já havia demonstrado certo interesse também por música. Aos 16 anos ganhei um piano e comecei os estudos mais sérios, fre- quentando o Conservatório Brasileiro e a Escola de Música Villa- Lobos, até os 22 anos. Fui, porém, deixando a música meio de lado conforme crescia meu interesse pelas artes plásticas, e o marco desse crescimento artís- tico foi uma viagem de três meses que fiz ao Canadá. Minha primeira vez fora do país. Já familiarizada com a comunidade Couch Surfing, por hospedar estrangeiros no meu apartamento, resolvi que não ia ficar hospedada numa casa de família, como os intercambistas nor- malmente fazem, mas me mudaria a cada três ou quatro dias e, as- sim, conheceria mais gente, falaria mais e aprenderia mais. Foi então que, em apenas três meses, meu inglês mudou da água pro vinho, e meu intercâmbio saiu baratinho, baratinho. Mas voltemos às artes: em apenas dois anos, desde a minha volta do Canadá, produzi mais do que nos outros 22 anos da minha vida. E o que me proporcionou tal feito foi toda a inspiração que surgiu quando eu comecei a abrir as minhas portas, literalmente, recebendo em casa pessoas do mundo inteiro, sem nunca sequer tê-las visto antes. Basicamente é isso: hoje eu pago minhas contas e tiro meu susten- to do dinheiro proveniente da hospedagem. Sou artista plástica por amor e vocação. Meu apartamento é próprio. Tive a oportunidade de ter pais que puderam me proporcionar essa facilidade. Não me envergonho disso e nem penso em me matar de trabalhar somente para comprar um com “o meu” dinheiro. Honestamente, não consigo entender pessoas que também foram beneficiadas com imóveis, mas que desejam a todo custo comprar mais um, somente para provar que conseguem. Eu prefiro aceitar os fatos e gastar energias produzindo algo para ir além disso, já que tal
  • 19. 19 conquista me foi concedida por circunstâncias da vida. De todo o caso, é importante lembrar que há outros modelos de vida, e que a sua “casa própria” pode caber em apenas uma mochila. E não pense que essa realidade de viagens é distante de se alcançar. Porque não é. Provar isso é um dos objetivos deste livro.
  • 20. 20 Portas Abertas Na minha primeira experiência de hospedagem, eu coloquei seis pessoas, além de mim, claro, no meu apartamento de um quarto: um casal de escoceses, que foi crucial na minha decisão de melhorar meu inglês; dois argentinos muito buena onda; um belga e um francês. Sensacional. Viciei. Desde então, passei a hospedar um atrás do ou- tro, e assim é até hoje. A diferença é que atualmente eu cobro pra tal e “vivo” disso. Mesmo assim, vira e mexe, ainda hospedo gente de graça. Sabe, não é por dinheiro. E não é preciso muito esforço para conseguir enxergar isso quando você me conhece. Eu alugo tanto o meu quarto quanto o sofá-cama de casal na sala. Nessa loucura eu já hospedei mais de 200 pessoas no — relativamente curto — período de dois anos e meio, de 42 nacionalidades diferentes. Acontece que o único banheiro da minha casa fica dentro do quarto. E, por haver sempre mais de uma pessoa no apartamento, é esperado que o hóspede que esteja no quarto mantenha a porta aberta. Hoje, graças a um simples bilhetinho do lado de dentro, que diz “favor manter aberta”, eles respeitam isso cem por cento. Só que nem sempre foi assim. A configuração do quarto, com uma cortina que envolve a cama, veio depois. Eu mudei em função da galera que sempre fazia questão de fechar a porta na hora de dormir. Será que é tão constrangedor assim deixar que outras pessoas o vejam dormindo? Eu não gosto de portas fechadas e ponto final. Mas, tirando a porta do banheiro e a de entrada, no meu apartamento praticamente não há portas. Digo, tem uma de correr que separa o quarto da sala — que raramente é fechada — e uma de vidro que dá pra varanda — que eu arranquei a fechadura pra evitar que ficasse trancada. No quarto, apesar de eu repetir incansavelmente que a porta deveria ser mantida aberta, em função do banheiro, foi só lá pelo meu octogésimo hóspede que eu me dei conta do duplo sentido da expressão. Aconteceu durante a estadia de uma alemã, que estava passando por um momento difícil em sua vida pessoal e mostrava for- tes sinais de depressão, mudando de humor constantemente, do riso ao choro. Ela se isolava certas vezes, tendo a necessidade de ficar sozinha, com as portas fechadas.Numa conversa,eu disse a ela, de forma descon- traída: “Come on, open doors!” (Ah, vai, portas abertas!), apontando
  • 21. 21 com os olhos de relance para “a” porta. Ela entendeu o recado. A partir de então eu encarei o “portas abertas” de outra maneira. Como uma metáfora pros nossos bloqueios e medos internos. Man- temos portas fechadas por medo do desconhecido, por receio. Pois eu digo: uma porta fechada não o protegerá de nada. Muito pelo contrário: vai o impedir de enxergar além. Certo dia, mais de um ano depois que hospedei essa menina, esbarrei com ela durante um passeio por Santa Teresa. Ela estava ótima! Foi bacana reencontrá-la e saber que está feliz e morando no Rio. Boa pessoa.
  • 22. 22 Cadê suas malas? Sabe essas pessoas que parecem um personagem de desenho ani- mado? Então, certo dia apareceu aqui em casa um hóspede desse tipo, norte-americano. Com pouco mais de 25 anos, Jesse era um cara magro (bem magro), alto (bem alto), ruivo e com um bigode grande, com pontinhas que davam pra enrolar com os dedos, fazen- do com que fique meio pra cima e tudo. Que figura! Além dessas características marcantes, Jesse usava um tênis de dedinhos, que não são nada comuns no Brasil. Era um tanto quanto engraçado, na verdade. Contudo, apesar de todos esses aspectos bem característicos, o que mais me chamou atenção no primeiro momento, assim que abri as portas, foi que ele não estava carregando nenhuma mala, nem sequer uma mochilinha! O gringo estava numa viagem de não sei quantos meses pelo Brasil, levando consigo nada mais do que uma pochete, onde carregava a carteira, documentos e uma escova de den- tes. Fora isso, somente a roupa do corpo! Dá pra acreditar? Jesse é um cara inteligente, com uns ideais bem bacanas e in- teressantes. Foi durante uma de nossas conversas que eu cheguei à conclusão de que o mais importante, seja numa viagem ou em nossas vidas, não são coisas materiais. O mais importante é o que carre- gamos dentro de nós e os momentos que compartilhamos. Ele me confessou que seu próximo passo, após concluir a atual viagem sem malas, seria viajar sem dinheiro. Eu fiquei encantada com a ideia e, quando nós nos despedimos, ficou no ar uma promessa de fazermos a tal viagem juntos, pela Índia. Porém, depois do tchau, nunca mais tocamos no assunto. Eu, por outro lado, fiquei com aquilo na cabe- ça, e ao longo de um ano e meio fui digerindo a ideia de fazer uma viagem sem levar comigo dinheiro e nem cartões de crédito. Com as passagens compradas, escrevi novamente pro Jesse, contando sobre o que eu estava prestes a fazer. Ele ficou surpreso e com apenas quatro palavras, me transmitiu uma imensidão de sentimentos, num misto de orgulho, perplexidade e satisfação: “Aline, I love you.”
  • 23. 23 Embarcando Tive um dia bem corrido, acertando os últimos detalhes pra grande viagem. Meus pais, que moram em Cabo Frio, a 150km do Rio, pegaram a estrada pra almoçarmos juntos e me ajudar nos pre- parativos finais. Evan, meu namorado, também passou o dia comi- go. Por volta das cinco da tarde me despedi dos meus pais. Evan veio no táxi. Ali mesmo já comecei a chorar. Por ele. Por nós. Evan é dos Estados Unidos e estava no Brasil fazendo mestrado. Terminou os es- tudos. Foram dois anos de namoro e estávamos ali diante de uma lon- ga despedida (ele estava prestes a voltar pra sua terra natal, por causa do visto). Quando chegamos ao aeroporto, mesmo estando cedo pro embarque, eu quis encarar logo os fatos. Fiz o check-in e entrei. Não sei que horas são. Não tenho relógio. Acabei de gastar os últimos 20 reais que me restavam num lanche horrível. 19h20. Estou triste. Estou só. Queria escrever algo bonito sobre a pessoa maravilhosa que Evan é, mas não consigo ainda. Não estou pronta. Tenho que focar no meu projeto, nos ideais, no futuro próximo. Portão 39. Wireless não funciona. Embarque 20h30. É antes das 20h. Voo depois das 21h. Como ocupar a mente? Despachei uma mala pequena. Na verdade, é uma bolsa de mão. Bolsa mesmo, dessas que a gente leva pra todo lado. Nela, material artístico, um pequeno nécessaire com alicate, tesourinha de unha, pinça de sobrancelha, espelhinho, escova de dente, uma gilete e dois pacotes de absorvente.
  • 24. 24 Material artístico: cinco metros de bagum preto (é um plástico grosso, que eu uso pra forrar a madeira base dos meus quadros), duas tesouras, martelo, alicate, 20 metros de arame (pra fazer o su- porte dos quadros), cinco quilos de pregos(!!!), grampeador pra ma- deira, 13 novelos de linhas, com 500 metros cada um, um compasso e um lápis 6B. Tudo isso pesou uns 12kg. Minha bagagem de mão — e mala da viagem —, com todas as minhas roupas e objetos pessoais, é como uma mochila de faculdade. Espaço de sobra pra tudo o que preciso nos próximos três meses, que se resume a: 1 short branco, jeans 5 camisetas de verão 3 calcinhas 1 par de meias 1 biquíni 1 boina 1 par de chinelos Também, pra emergência, capas de chuva e uma capa impermeá- vel pra mochila. Tudo isso não ocupou nem metade da mochila que, acredite, era bem pequena. Comigo, meu laptop e pasta com docu- mentos. A minha roupa do corpo consistia em: top, duas camisas de manga comprida, uma camisa preta de botão, tipo polo, casaco de moletom de zíper, meia calça grossa, calça de lycra, meias, short jeans, tênis e obviamente, uma calcinha. Na cintura: cartucheira com a máquina fotográfica e três cartões de crédito bloqueados (depois explico essa parte). E são esses todos os meus pertences pros próximos três meses. Sim, estou orgulhosa de poder detalhar tudo em pequenos pará- grafos. Carrego bem pouco. Bem pouco mesmo. Faz parte dos ideais do projeto. Desapego. Estou me livrando de excessos e aprendendo a viver somente com o essencial. E, convenhamos, viajando no verão e ficando hospedada em casas, onde haverá oportunidade para la- var uma camisa, por exemplo, não é um bicho de sete cabeças levar pouco. Ainda mais que, pra mim, repetir roupas não é uma questão. Tenho outros valores. Avião. Acredito que decolaremos dentro de instantes.
  • 25. 25 A chegada Após o longo voo do Rio até Frankfurt, chegando na imigração, que eu tanto temia, o cara se limitou a três perguntas enquanto che- cava meu passaporte: Para onde você está indo? Quanto tempo vai ficar? Casa de amigos? Respondi com o mínimo de palavras possível e ele nem sequer questionou. Carimbou. Levei mil comprovantes de renda e tudo, pra nada (entenda-se por “tudo” os já mencionados cartões de crédito, que adquiri pouco antes de sair do Rio, ligando pro meu banco e pedindo novos. Só que eu não realizei a ativação necessária, deixan- do, portanto, os cartões sem valor algum). Mas que bom que foi tranquilo, na verdade. Era este meu único medo: nem conseguir sair do aeroporto, ser barrada na imigração. Afinal, eu estava indo sem dinheiro algum, e “ninguém” quer turista duro no seu país! O segundo voo, até Amsterdã, foi bem tranquilo e rápido. Saindo do desembarque, em menos de 10 minutos, avistei os meninos. Robin e Lennaert, que haviam se hospedado na minha casa em fevereiro, se ofereceram pra me buscar no aeroporto e me dar uma carona até a casa em que eu ia ficar (também de um antigo hóspede). No caminho rimos um pouco e lembramos dos momentos no Rio, como a vez que fomos até Angra dos Reis à noite, chovendo, num Chevete 75 sem faróis! Chegamos. Que apartamento! Tudo muito chique, tudo muito “business”. Tem uma mesa de estudos que poderia facilmente ser uma mesa de jantar pra oito pessoas. Uma TV gigante passeia pela casa através de um trilho no teto. Não entendi, porém, como fazê-la funcionar. Também não faço ideia de como a privada percebe que a gente sentou, ligando automaticamente um exaustor interno. Enfim, aqui tem dessas coisas. Meus amigos me deram carona, ajudaram com as malas e se fo- ram. Combinamos de eu ligar pro Robin e ficar em sua casa no dia seguinte. Foi bom eu ter conseguido essa acomodação só pra mim nessa primeira noite, pois assim poderia descansar e colocar as ideias mais ou menos no lugar. Só que, no meu caso, este apartamento não é muito funcional, já que não tem absolutamente nada de higiene pessoal — e eu não trouxe uma pasta de dentes sequer!
  • 26. 26 Dei uma volta pelos dois quarteirões no entorno da casa com a missão de achar madeira pras artes e também conseguir uma co- nexão wireless, já que, por alguma razão, a do apartamento havia parado de funcionar. Robin me disse que não ia ser fácil encontrar pedaços de madeira dando sopa pelas ruas, uma vez que a cidade era bem limpa. Bom, isso eu descobriria por conta própria. Não demorei muito pra achar um café. Entrei. Ninguém me aten- deu. Vi um gato sentado na cadeira do bar e fui brincar com ele. Então, uma moça apareceu e falou qualquer coisa pra mim em ho- landês. Perguntei se ela falava inglês. Sim. Perguntei se podia usar a internet, mas ela disse que eu precisaria consumir algo. Suspirei e falei que não tinha dinheiro. Ela me olhou com uma cara de “e eu com isso?”. Então, falei por alto que precisava mandar um e-mail im- portante, que a conexão do meu “hotel” não funcionava. Me deixou usar cinco minutos. Perfeito. Continuando a volta pelo quarteirão, vi de relance um cara com umas sacolas de mercado que fez uns barulhos tipo assobio. Não dei trela. De novo. Nada. Mais uma vez, mais perto. Olhei. Ele me veio com um papo torto, perguntando o que eu estava fazendo ali e tudo o mais. Eu disse que estava procurando madeira. Ele deve ter pensado que eu era louca, no mínimo. Resolvi dar um pouco de corda, só pra ver aonde chegaríamos. O cara era um gordinho bai- xinho, com umas compras nas mãos que ele quase estava deixando cair de tão desajeitado. Veio me cantando na cara dura, chamando para beber um vinho, pedindo meu telefone. Eu devia ter aceitado e pedido algo pra comer, só pra me aproveitar um pouco e ele largar de ser trouxa, estereotipando mulheres sozinhas pela rua! Veio se aproximando tentando pegar no meu ombro, e aí eu dei um corte e caí fora. Foi então que observei que ali ninguém andava pelas ruas sozi- nho, a pé. Ou era de bicicleta, ou em pequenos grupos. Ao menos neste bairro residencial da cidade velha, em plena quarta-feira. Con- tinuei andando sem rumo, atrás do meu tesouro, quando avistei uma caçamba dessas de entulho, cheia de madeira! Meus olhos brilharam. De repente, uma buzina estridente no meu ouvido! Me passa uma moto, a um centímetro de mim. Ah sim, a “ciclovia” é passagem de moto também. Um grupo de idosos que vinha na direção contrária riu e um deles disse pra eu tomar cuidado. Quer dizer, eu suponho que ele tenha dito isso, já que não falou em inglês. Esperei uns minu- tos até esse grupo sumir de vista (estava um pouco envergonhada) e
  • 27. 27 fui em direção à caçamba. Peguei dois pedaços de madeira ótimos. Só não peguei mais, na verdade, porque ficou pesado. Fiz o caminho de volta pra casa feliz e realizada, rindo sozinha do meu amigo ho- landês por ter me dito uma hora antes que eu não conseguiria achar madeira fácil. Bom começo, bom começo.
  • 28. 28 Amsterdã Sem grandes problemas pra me adaptar com o novo fuso horário, acordei às 6h da manhã, após sete horas de sono. Nada mal. Dentes escovados com escova de dente e banho tomado com água. Pasta de dente e sabonete pra quê?Achei um livro dos hóspedes, escrevi uma mensagem pro Huub, o dono do apartamento, e pra Patricia, a moça que me recebeu, agradecendo a estadia. Organizei as bolsas e desci pro lobby. Quando deu 8h30, os funcionários começaram a chegar. Percebi que o problema com a internet não era tão simples, e que todo o lo- cal estava sem conexão. Patricia chegou, me cumprimentou e subiu pra arrumar o apartamento. Eu aproveitei o tempo livre pra adian- tar os quadros. Fui pro lado de fora grampear a lona na madeira e depois voltei pra começar as marcações dos pregos. Foi quando percebi que não havia trazido minha régua — ferramenta essencial pra elaboração dos meus trabalhos! Como chorar o leite derramado não me levaria a lugar nenhum, fui buscar uma solução. Perguntei a uma funcionária se ela tinha uma régua que eu pudesse usar. De cara ela não entendeu o que eu queria, por não reconhecer a palavra em inglês, mas acabou por perguntar ao amigo na mesa ao lado, e ele me ajudou. Revirou seus pertences e uns armários da sala, sem achar nenhuma régua. Insistindo na busca, achou um pedaço de plástico duro e reto e me perguntou se servia. Eu fiz que não, pois ali não havia marcações dos centímetros. Ele então se lembrou de uma ferra- menta milimetrada, esquecida numa gaveta. Não era uma régua, mas em função da marcação dos centímetros, seria perfeita! Eu usaria pra fazer as marcações na peça de plástico, criando assim a minha régua. Agradeci e fui trabalhar. Quando terminei a marcação em uma das telas, voltei ao rapaz pra devolver a tal ferramenta e perguntei se podia ficar com minha régua improvisada. “Claro”, ele respondeu. Patricia voltou e, ainda sem internet, vi como solução pedir em- prestado seu telefone. Liguei pro Robin e combinamos que eu chega- ria lá dentro de 30 minutos. Patricia foi superbacana, e ainda me deu um saco de cerejas, uma garrafa de suco de laranja e uma latinha de Heineken(!) que havia recolhido de um dos apartamentos. Saí logo em seguida. Seguindo as instruções que Robin havia me dado por telefone, sua rua era bem perto de onde eu estava. Mas che-
  • 29. 29 gando num ponto em que tive que decidir entre esquerda e direita, obviamente eu peguei a direção errada. Quando fui me informar sobre onde ficava a tal rua — que eu não me recordava do nome —, lembrei que eu havia escrito o endereço na mão, e minhas mãos estavam com- pletamente ocupadas. Parei uma menina pra perguntar e me atrapalhei toda pra ler o endereço. Ela riu e me mostrou a direção apontando pra um prédio. OK, obrigada. Caminhei na direção contrária a que estava indo e achei a tal rua. Logo vi que os prédios eram um tanto quanto grandes e os números iam descendo de um em um. Não como no Brasil, que se você tem que andar do 100 ao 20, às vezes é no mesmo quarteirão. Então, 1km de rua pela frente! Ia parando de quando em quando pra ajeitar as bolsas e descansar. Em meu braço esquerdo car- regava a pasta com o laptop e as duas placas de madeira. No ombro direito, a bolsa recheada de pregos. Nas costas, minha mochila. Chegando, levei uns 11 minutos pra entender qual era o aparta- mento certo, mas finalmente acertei e a porta se abriu. Subi os seis lances de escada quase morrendo. Tudo muito bonito e moderno. A casa tem dois andares e uma espécie de terceiro, no telhado, com uma parte externa. Os andares são inteiriços, sem paredes, e muito bem decorados. Diferente das tradicionais casas brasileiras com as quais eu estava acostumada. O que eu mais gostei foi o fato de não ter paredes dividindo os cômodos. Fiquei em casa a tarde inteira, aproveitando a internet pra atu- alizar a página do projeto. No final da tarde, por volta das 18h, saímos pra um bike tour. Eu na garupa do Robin, e sua noiva em outra bicicleta. Teria algo mais autêntico do que um passeio turístico por Amsterdã de bicicleta, com duas pessoas locais? Eles iam me mostrando os prédios pelo caminho e explicando tudinho... simples- mente demais! Paramos num bar que me disseram ser o mais antigo da cidade. Tudo de madeira e bem tradicional. Eles pediram duas bebidas sem álcool e eu não quis nada. Ficamos pouco e saímos pra pedalar de novo. A próxima parada foi num bar de esquina, onde as mesas e cadeiras ficavam na ruazinha transversal, que era uma ladeira suave. Era engraçado, porque as mesas ficavam bem inclinadas. Achei o má- ximo quando o garçom chegou com nossas cervejas (resolvi experi- mentar uma preta) e as colocou na mesa sem a menor cerimônia, não derramando nenhuma gota, apesar da inclinação e tudo. Dividimos um prato vegetariano de nachos e conversamos bas- tante sobre vários assuntos. Falamos sobre a arquitetura de Amster-
  • 30. 30 dã, que os prédios são tão velhos que é notável a inclinação deles pra frente ou pra trás, observando-os a partir da fachada. Me disseram também que, por questões de segurança, o governo controla essas construções, e os prédios têm classificação de 1 a 4. Se chegar na 4, você deve deixar o local, pra eles então fazerem uma reforma e reforço das estruturas. O prédio que eles moram tem classificação 3. Um amigo chegou e ficou com a gente pelo resto da noite. Fo- mos a uma destilaria famosa por seus licores e pedimos quatro shots diferentes, que bebemos juntos, trocando os copinhos e experimen- tando de todos. Dali fomos pro restaurante que tínhamos reserva, e encontramos com Lennaert (o outro holandês, que também foi me buscar no aeroporto). Todos beberam cerveja, exceto eu, que preferi ficar na água. Não sei se por causa da diferença climática, mas eu sentia minha garganta seca o tempo todo. A conta deu uns 120 euros. Pensando em reais, achei bem caro. Mas essa é uma conversão “errada”, já que eles recebem em euro, e o salário mínimo é muito maior do que o brasileiro. E, se pensar em 120 reais pra toda a comida e cervejas, cinco pessoas, é um valor relativamente baixo, levando em consideração o preço da comida no Rio. Dali, pedalamos até o Red Light District, que até então eu nem sabia o que era. Quando dei de cara com a primeira mulher no vidro levei o maior susto, achei que fosse um manequim! Paramos pra uma última cerveja e depois voltamos pra casa. Me virei como pude pra tomar banho e escovar os dentes (não tinha como saber se o xampu era xampu ou se a pasta de dente era pasta de dente, em vez de creme pros pés(!), por exemplo. Sei lá, né). Fui pro meu quarto. Eles têm um quartinho extra que utilizam como escritório. Antes de dormir, liguei pro Evan. Me enrolei nas cobertas como pude e adormeci. Estava morrendo de frio, em pleno verão europeu.
  • 31. 31 A sobremesa da Disney Quando acordei, os anfitriões já estavam terminando de pre- parar o café da manhã. Ofereci ajuda, mas já estava tudo pronto. Havia muita comida. Pães variados, suco de laranja feito na hora, croissant, geleias, pastinhas, queijos... Várias coisas. Terminando, eu fui lavar a louça e Robin me olhou com cara de espanto. O que você está fazendo?! Foi quando ele me mostrou a máquina lava-louças. Ah, sim. Fiquei em casa escrevendo durante o dia e depois fui trabalhar nos meus quadros. Terminei aquele que havia começado no dia ante- rior e aproveitei que estava com tempo livre pra martelar os pregos na segunda madeira. Um quadro pronto e outro quase. Que beleza! Nada mal pra três dias de viagem. Pela tardinha, começamos a preparar o prato que levaríamos pra um jantar na casa de amigos. O combinado era que cada um levasse alguma coisa. Eles organizam esses jantares de quando em quando aqui. Laura, noiva de Robin, fez uma sopa de beterraba com choco- late amargo (não pergunta), e eu ajudei no preparo do “bolo espa- cial”. Está claro que ainda estou em Amsterdã, certo? Ok. Encontrei com Lennaert pra ir junto com ele, porque só cabiam dois no carro. Amsterdã tem um sistema de aluguel de carros que é bem bacana. São carros elétricos (Smart Cars), que você paga por mi- nuto de uso. Através de um aplicativo no celular, é possível localizar onde estão os carros disponíveis mais próximos. O usuário, através de cadastro prévio, consegue abrir o carro com uma espécie de cartão magnético. Não demorou e chegamos na casa desse casal de amigos, que é incrível! A cozinha é dessas que a gente só vê em exposição tipo Casa Cor, com móveis planejados e tudo. Comemos de entrada a sopa de beterraba e de prato principal, salmão com legumes. Mas eu fiquei só nos legumes mesmo, pois sou vegetariana. Sabe, um peixe é tão animal quanto uma vaca — e uma vaca é tão animal quanto um cachorro. Hora da sobremesa — o tão desejado bolo que fizemos mais cedo! Seguinte... Eu nunca me meti com drogas, não. Nem mesmo um baseadinho sequer, juro. Nunca tive vontade nem curiosidade. Porém, contudo, entretanto, todavia... uma vez em Amsterdã, saben-
  • 32. 32 do que poderia enfim sentir os efeitos da maconha, através de um delicioso brownie caseiro, era tentador demais. Fui em frente e, pro meu desespero futuro, comi dois pedaços. Acho que demorou cerca de uma hora pra fazer efeito. A Laura, que também comeu dois pedaços, foi a primeira a demonstrar os primeiros sintomas. Logo, comecei a me sentir estranha também. Fui ficando meio zonza, mas bem de leve mesmo. Era tipo a sensação de quando bebemos um pouquinho a mais. Subimos pro segundo andar da casa, onde era a sala de estar, e nos espalhamos pelos sofás. Havia à minha frente uma parede bran- ca enorme, com quatro quadros retangulares de tamanhos variados, com moldura branca e tela branca! Esses quadros eram iluminados por um spot de luz no teto, o que fazia um efeito bem interessante. Agora, você imagina a cena... a pessoa chapada, olhando pra uma parede branca com telas brancas em molduras brancas. É claro que não demorou muito pros quadros começarem a ganhar outras cores. Na verdade até o Mickey Mouse eu vi ali, sorrindo pra mim! Como se estivesse tirando sarro da minha cara, eu diria. Eu estava nesse sofá de três lugares, com a Laura ao meu lado e o Robin ao seu lado. Somente nós três havíamos comido o brownie e devia ser a cena mais engraçada do mundo nos ver ali muito loucos tendo alucinações nos quadros brancos e rindo horrores sozinhos. Aliás, quem puxou a parte do riso foi a Laura, que ria de qualquer coisa. Eu, sempre que olhava pra ela, tinha ataque de riso também. A sensação era muito boa e a cena, divertidíssima. Estava me acaban- do! Aos poucos fui meio que aprendendo a controlar minha onda. O que eu imaginava acontecia. O que eu queria ver, eu via. Teve uma hora, porém, que eu perdi totalmente o controle desses desejos e, pra piorar a situação, eu não distinguia mais o que era realidade de imaginação. Senti vontade de fazer xixi e me imaginei fazendo xixi nas calças, bem ali no sofá. O duro foi que a sensação era tão real, mas tão real, que eu realmente acreditei que tinha me mijado toda. Senti o xixi saindo, a calça molhada, o sofá sujo, até o cheiro eu senti! Foi quando me veio uma sensação de medo e ver- gonha extrema. Discretamente, passei a mão pela minha perna e no sofá, tentando buscar o molhado. Dei uma sacudida na cabeça e me dei conta de que era tudo alucinação. Fiquei sentada em silêncio, ouvindo os outros conversarem. Essa foi a hora que comecei a entender holandês. E, bizarramente, eu re- almente estava entendendo tudo! Não sei explicar, mas as falas das
  • 33. 33 pessoas faziam todo sentido pra mim. Eu sacudia a cabeça e pensava comigo: “Não, peraí. Isso não é possível. Eu estou alucinando de novo.” Virei pra Laura e perguntei: “Você falou isso, isso e aquilo?” Ela me olhou espantadíssima e confirmou a fala. Nós duas ficamos sem entender. E isso aconteceu em vários momentos. Já eram umas 2h da manhã e eu sugeri de irmos embora, porque a anfitriã da noite já havia ido dormir há muito tempo e me dei conta de que talvez estivéssemos sendo inconvenientes. Eu havia entendido (em holandês) que iam chamar um serviço de táxi especial, que eram supercarros tipo limusine, com direito a consumo durante o trajeto e tudo. Aí era demais... o carro chegou e um cara que falava espanhol colocou a gente pra dentro. Ao entrarmos, Robin se despediu dizen- do, com forte sotaque: “Gracias, amigo!” Eu estava bem tonta e meio sem noção de nada naquele momento. Notei bebidas dentro do car- ro, como água e sucos. Pensei que nada daquilo era real, que estáva- mos num táxi comum e eu estava viajando na batatinha. Robin então pegou algo pra beber e me ofereceu uma água. Aceitei, bebi tudo, e segurei a garrafa com todo cuidado pra mantê-la comigo até chegar em casa, como prova de que aquilo tudo era realidade — ou não.
  • 34. 34 Mudanças Acordei assustada, sem entender muito como tinha ido dormir, e ainda estava completamente sob o efeito do brownie. Me levantei pra ir ao banheiro e tudo girava. Vi a garrafinha de água sobre a mesa, sorri sozinha e voltei pra cama. Acordei umas 11h30. Ainda tonta, fui tentar escrever. Liguei o laptop, mas eu estava tão lenta que levei uns 27 minutos pra escrever uma única frase. Fiquei sentada na mesa, sem fazer absolutamente nada. A sensação não ia embora! Logo, Robin e Laura acordaram e conversamos sobre o assunto. Eles também continuavam sob o efeito e não demorou muito pra termos um ataque de risos os três juntos. Qualquer coisa era motivo de muitas gargalhadas! Essa era a parte boa da onda. A gente ten- tava falar e parecia que tinha dois metros de língua dentro da boca. Tudo saía lento e embolado. Mas era engraçado, porque internamen- te a gente — geralmente — tem consciência de tudo, e percebemos o quão besta estamos sendo. Fiz uma arte na parede, me despedi e fui rumo à minha terceira casa. Dessa vez a de um anfitrião que eu não conhecia, totalmente aleatório, que se ofereceu pra me hospedar através do Couch Surfing, após ler sobre o projeto. Sua casa era bem perto de onde eu estava, mas essa distância se duplicou com o meu maravilhoso senso de dire- ção. Pra piorar ainda mais a coisa, eu tinha de ir parando a cada 100 metros por causa do peso que estava levando. Perguntei a direção duas vezes pra desconhecidos no caminho, até finalmente conseguir achar a casa. Na frente do prédio, como de praxe, chamei todos os vizinhos até tocar a campainha certa. Já eram umas 18h quando resolvi ir ao Westerpark, a fim de fazer uma arte ao ar livre. Sentei numa dessas mesas de piquenique e me pus a fazer um quadro que já havia começado na casa de Robin e Laura. Num determinado momento, uma senhora e duas crianças muito loi- ras pararam atrás de mim. O menino mais velho, que devia ter uns 10 anos, estava encantado com a técnica que eu fazia, a string art. A mu- lher falou que eles tinham passado e o menino pediu pra voltar, porque tinha visto algo muito bonito. Fofo. Conversamos por um tempo. Peter, o anfitrião da vez, foi encontrar comigo no parque e vol- tamos juntos pra sua casa. Já era pouco depois das 20h quando co- meçamos a preparar a janta. Mais tarde, fomos a um encontro do
  • 35. 35 Couch Surfing no centro. Novamente rodando Amsterdã na garupa de um holandês. O bar estava bem cheio e conheci algumas pessoas. De volta, Peter me ajudou a arrumar minha cama, que era um colchão inflável no chão. Maravilha! 3 Acordei tarde e arrumei a mochila com material artístico pra ir a uma praça movimentada terminar o quadro que havia começado. Pegar um pouco de inspiração da rua. No caminho, vi uma agência de turismo com vários passeios legais. Fiquei uns 10 minutos na porta olhando os preços, criando coragem pra entrar e perguntar se eu podia fazer algum de graça. Entrei. O cara do outro lado do balcão era um loiro bonito. Falei que estava interessada nos passeios turísticos, mas que não tinha di- nheiro. Ele fez uma cara engraçada, acompanhada de uma expressão negativa. Tentei explicar sobre meu projeto, mas ele não demonstrou interesse algum. Falei assim mesmo. Falei que era artista e ele respon- deu, friamente: “É, eu vi seus quadros” (eu estava carregando dois quadros, que havia deixado em cima de um banco na loja). Quanto mais frio ele era comigo, mais eu sorria, tentando quebrar o gelo. Peguei meu portfólio e coloquei no balcão, virado para ele. Ele olhou de banda, sem sequer se dar o trabalho de virar as páginas! Pois en- tão viro eu. Ele olhou. Tentei puxar assunto, perguntei se ele gostava de arte. Ele disse “não desse tipo”. OK, não que ele tivesse sido o pri- meiro a não gostar do que eu faço, mas foi o primeiro a falar assim na minha cara. Entrou um casal na loja e foi minha deixa pra sair. Foi quando ele esboçou um sorriso, me desejando boa sorte. Sorri de volta e agradeci. Apesar do não, eu saí da loja muito satisfeita. Sabe, quando en- frento esses bloqueios bobos e vergonhas desnecessárias, a fim de fazer algo que tenho vontade, mesmo que momentaneamente, pela simples atitude de tentar eu me sinto renovada, mais forte e confian- te. Perguntar, além de não machucar ninguém, ainda pode abrir as portas do outro, que talvez possa estar lidando com uma situação inédita. Vai saber se esse cara, por exemplo, mais tarde, refletiu sobre o assunto: “Ora, viajando pela Europa sem dinheiro... e eu aqui nesse empreguinho que não gosto, somente cumprindo horário, quando na verdade meu sonho era estar numa praia do Rio de Janeiro...” Sim, meu amigo, você pode. Se o que você quer é ir curtir uma praia, então
  • 36. 36 vá. Não deixe que o convençam do contrário e te digam o que fazer, ou o que você precisa pra ser feliz, quando a decisão deve ser tomada a partir de suas — de nossas — vocações próprias. Cheguei na praça. Sentada com os quadros no colo já chama- va certa atenção. Algumas pessoas passavam bem devagar, só pra olhar. Bem calmamente, fui tirando os novelos de linha da mochila e os colocando à minha volta. Curiosos se posicionavam. Como já tinha um quadro finalizado, chamava atenção. Comecei a trabalhar, com a madeira no colo mesmo. Eu estava de boina e com a cabeça abaixada, o que fazia com que eu não conseguisse ver as pessoas da cintura pra cima. Mas podia ver que várias pernas olhavam o que eu estava fazendo. Não ficavam muito tempo, pois esse não é o tipo de arte rápida, que se finaliza em cinco ou dez minutos. Então, as pes- soas olhavam o quadro pronto, me viam trabalhar a técnica não tão comum, às vezes tiravam fotos, e saíam. Muita gente passou ali e me viu, mesmo sem saber quem eu sou ou qual era a minha proposta. Naquele momento, minha intenção era justamente essa: despertar curiosidade no anonimato. E ver até que ponto um curioso chegaria. De quando em quando virava a cabeça pra olhar as pessoas nos olhos e sorrir, pois acho importante manter esse contato. O engraça- do é que alguns ficavam meio sem graça com meu gesto e viravam pro outro lado, saindo de fininho. Talvez pensassem que eu, na primeira oportunidade, fosse cobrar alguma coisa. Acho meio triste quando vejo pessoas evitando artistas simplesmente porque não querem ou não podem comprar sua arte. Bom, ao menos pra mim, é muito mais valioso um elogio sincero do que centenas de euros. Aliás, teve gente se interessando em comprar meus quadros. Eu, pra resumir a história toda, apenas falava que não estavam à venda. Certa hora vi dois pares de pernas de crianças. Levantei o rosto. Duas meninas lindas, pelos seus 10-12 anos. Elas sorriram. Sorri de volta. A menina da esquerda perguntou como eu fazia isso (ela estava realmente impressionada). Eu mostrei e entreguei meu portfólio pra ela folhear. Ficou encantada. Perguntei de onde eram. Inglaterra, e a amiga da Rússia. Virei para a da direita e falei com tom de admira- ção: “Puxa, que legal que você fala inglês!” Ela então assumiu que na verdade se comunicavam em russo! Me virei novamente para a da esquerda, mais surpresa ainda: “Nossa, você fala russo!” Elas riram. Poderíamos ter ficado ali um tempão, mas logo veio uma perna adul- ta levando-as embora. Ah, os adultos... sempre achando que sabem mais do que as crianças.
  • 37. 37 Então apareceu uma moça com uma máquina fotográfica profis- sional, perguntando se podia tirar uma foto. Claro! Mas entramos num papo e a foto só foi tirada muitos minutos depois. Ela estava começando um projeto de fotografar estranhos nas ruas, em que três fotos são tiradas: um close do rosto, uma da parte central do corpo e a última dos pés. Depois, coloca tudo junto numa foto só. Achei bacana a ideia e fiquei megacuriosa de ver o resultado da minha. Acabamos conversando por um tempão e ela adorou meu projeto, se prontificando a ajudar e participar. Falou que estava ali pra consertar a bicicleta, e prometeu voltar em uma hora, me convidando pra jan- tar. Agradeci e falei que continuaria no mesmo lugar. De volta às linhas, um rapaz que estava sentado ao meu lado — que até então eu não havia notado — puxou assunto. Diego. Nesse momento o sol havia se escondido e o vento gelado começou a me incomodar. Reclamei do frio. Ele riu. Quis me emprestar seu casaco. Agradeci, mas falei que já tinha um. Ele disse que o dele era bem leve, de verão, mas próprio pra proteger do vento. Me convenceu. Conversávamos enquanto eu ia fazendo o quadro. A essa altura, muita gente já havia parado pra olhar, por conta do progresso da arte. Eu fiquei toda boba por estar virando o centro das atenções daquele cantinho da praça. Continuava no papo com Diego. Falou que tinha um jantar com parentes às 18h. Já eram 18h. Nisso, a Ive (a menina das fotos) che- gou. Eu os apresentei. Havia acabado de terminar o quadro. Fiz umas fotos. Diego resolveu deixar seu jantar de lado e ficou com a gente. Decidimos então passar num mercado, comprar umas coisas e ir comer num parque. Compras em mãos, Ive teve a brilhante ideia de entrarmos num dos mil barcos que ficam ancorados ao longo dos ca- nais de Amsterdã. Genial. Perguntei: “Ué, mas o dono não pode apa- recer e expulsar a gente?!” Se aparecer, não vai ligar. Se ligar, a gente sai. OK. Estava empolgada. Escolhemos um lugar pra fazer nosso lanche. Um barco perfeito, com mesinha e tudo! Pra ficar ainda me- lhor, batia sol nele, enquanto a maioria estava na sombra. Entramos sem muita dificuldade, enchemos a mesa com nossas coisas e ficamos ali, comendo e conversando até o sol se pôr. Eu estava bem feliz com tudo aquilo, com o rumo que as coisas haviam tomado. Ora, estava em Amsterdã, com dois novos amigos, fazendo um piquenique num barco no canal! Era até meio inacreditável. Depois da comilança, nos despedimos. Eu terminei por ganhar o casaco de presente. Caminhei um tanto até chegar num parque —
  • 38. 38 minha única referência da casa que estava hospedada. Perguntei pra um cara se ele conhecia a rua “X”. Falou que não. Perguntei pra ou- tro. Também não. Ora bolas. Fui até a cabine na entrada do parque e perguntei aos guardinhas. Nenhum dos dois era holandês e, por isso, não eram bons com as ruas. Um deles sugeriu de olhar no Google maps. Mostraram o caminho e, pra minha felicidade, estava a apenas um quarteirão de casa. 3 Acordei, juntei minhas coisas e, antes de sair, deixei de presente o primeiro quadro que fiz na viagem. Caminhei cerca de um quilôme- tro e meio até a estação central, onde encontraria meu novo anfitrião e, pra minha surpresa, ela era bem maior do que eu esperava. Não fazia ideia de como encontraria alguém ali! Pontual, cheguei antes da hora marcada e resolvi dar uma volta pra conhecer o lugar. Sem rumo, segui uma galera e, quando vi, estava em uma plataforma de embarque, sem nem sequer ter passado por qualquer roleta ou pa- gado alguma coisa. Foi então que, ali de cima, eu pude de fato ver o tamanho da estação. Como achar o meu anfitrião?! Partindo da lógica de que duas pessoas perdidas dificultam o encontro se em mo- vimento, resolvi ir pra entrada principal e ficar sentada ali, esperando por um cara tatuado vir me resgatar (eu o conhecia por fotos). Quando passou das 14h comecei a ficar preocupada, pois haví- amos marcado de nos encontrar às 13h30. Walter, o anfitrião por quem eu esperava, morava em outra cidade, que fica a 20 minutos de trem de Amsterdã. Resolvi ligar o laptop e tentar a sorte com alguma conexão disponível. Achei. Liguei pra ele através da minha conta do Skype, mas, como não tinha fones de ouvido e estava um barulho danado na estação, não consegui entender muito bem o que ele falou. Pelo menos consegui dizer onde eu estava e, dentro de 20 minutos, ele apareceu. Pagou meu bilhete de trem e, quando saímos da esta- ção, caminhamos até seu carro e seguimos pra sua casa. Estávamos em Aalsmeer, que é bem diferente de Amsterdã. Mais verde. Mais interior. Casas, em vez dos típicos prédios marrons de três ou quatro andares. Na casa dele, algo que chamou minha aten- ção: havia uma plantação inteira de maconha! Ri sozinha lembrando da aparição do Mickey no quadro branco. Eu e Walter conversamos um pouco e depois fomos ao mercado comprar comida pra janta. Voltamos e ele cozinhou. Eu ofereci aju-
  • 39. 39 da, mas não foi necessário. Janta pronta, seu filho chegou com a na- morada, uma menina muito bonita, loira de olhos azuis. Comíamos e conversávamos. Depois, eu me ofereci pra lavar a louça (enfim uma casa sem lava- louças!), e eis que minha gentil ação se tornou um evento pra todos na casa. Me observavam por trás e quando eu comecei a ensaboar os talheres, o filho deu a primeira risada. Ora, o que há?! Então, Walter me mostrou o jeito holandês de lavar louça: ligou a água quente, que esquentou até sair fumacinha, e colocou toda a louça dentro da pia. Com uma esponjinha com cabo longo — já que com aquela quentura toda não se podia tocar na água —, esfregou rapidamente a louça, tirando os restos de comida. Depois, tampou o ralo e encheu a pia de água quente até cobrir tudo. Aí sim ia ensaboando a louça uma a uma e colocando ao lado. Detalhe: sem enxaguar depois! Pra tirar o sabão, bastava secar com um pano limpo. Tchãram! E, pra minha surpresa, a pilha de louça desapareceu em tempo recorde. Eu nunca na vida vi uma louça ser lavada tão rapidamente, e com tamanha economia de água. Depois da janta ainda estava claro (o sol aqui durante o verão só se põe às 22h) e Walter se ofereceu pra me levar à praia. Ele é um cara muito bacana e sabe falar bem sobre sua cidade. Faz o passeio ser ainda mais interessante. Foi ótimo ir até a costa e ver o mar. A praia ficava a meia hora de carro de onde ele morava. Paramos duas vezes no caminho pra olhar a paisagem e pra ele tirar sarro de mim por conta do frio. Quando a noite caiu, voltamos pra casa. Ficamos um tempo batendo papo na sala e Walter me mos- trou um milhão de fotos de viagens e hóspedes no seu computador. Pude perceber o quanto ele valoriza os momentos que passa com quem hospeda, e o tamanho do carinho que a eles oferece. Me senti especial.
  • 40. 40 Aalsmeer Walter bateu na porta do meu quarto — que eu faço questão de deixar sempre aberta — no horário prometido. Fomos caminhando até um prédio, que parecia uma fábrica, mas na verdade era o maior centro comercial de flores e plantas DO MUNDO. Um complexo enorme, com um sistema eletrônico inacreditável. Representantes de grandes e pequenas empresas de toda a Europa vão lá pra comprar flores pra revender. A negociação começa às 6h da manhã e se esten- de até a venda de todas as flores do dia, que dura só até umas 11h. São três grandes salas onde essas vendas são feitas. É como se fosse uma bolsa de valores, mas sem gritaria nem nada. A sala tem formato de arena, onde na parte frontal e inferior uma espécie de mini vagão com as flores passa através de trilhos e umas mulheres ficam pegando um vaso por vez e mostram ao público. Acima da cabeça delas há te- lões que exibem uma foto da planta a ser vendida, junto com outras informações. Depois que o comprador termina, ele vai com seu carrinho elé- trico até um local específico pra recolher suas flores. É um sistema muito doido e muito interessante de se assistir. Quando visto da par- te superior, o grande galpão parece um formigueiro multicolorido. Nunca havia visto nada nem sequer parecido. O bacana foi que, como Walter trabalhou lá por mais de 10 anos, além de conhecer cada canto do lugar, ele também tem livre acesso a todas as áreas. Assim, eu pude ver tudo acontecer bem de perto, o que uma “pessoa normal” jamais poderia fazer. Voltamos pra casa. O dia estava bonito, com sol e tudo. Comi uma maçã, atualizei algumas coisas na internet e quando foi meio- -dia saímos de novo, dessa vez de carro. Walter me levou a um lugar chamado Zaanse Schans, que é uma região que guarda muito da história local, os moinhos de vento do século XVIII. Havia umas lojas e uns museus. Vi aqueles sapatos de madeira supergrandes e esquisitos serem feitos ao vivo, bacanérrimo. Também fomos numa loja que vendia queijos e devia ter umas 15 variedades pra prova. É claro que passei experimentando um a um, e fiz questão de voltar pelo mesmo caminho! Continuando o banquete, comi meu primei- ro sorvete da viagem. Foi em uma barraquinha muito bacana, toda
  • 41. 41 colorida e cheia de apetrechos, de um italiano simpático. Umas duas horas depois, pegamos o carro e fomos a uma mini fazenda dentro de uma floresta. Estacionamos e fomos caminhando por uma trilha, que era dividida em três: pra pessoas, pra bicicletas e pra cavalos! Estava vazio, mas eu podia imaginar aquilo ali num fim de sema- na, cheio de gente. Chegamos e os portões estavam fechados. Walter achou estranho, mas, como não havia nenhum cadeado, entramos assim mesmo. Não tinha absolutamente ninguém lá dentro, mas não demos muita bola. Havia galos enormes e galinhas passeando pelo local, livremente. Dentro de um cercado, várias cabras. Fomos na di- reção delas e eu comecei a brincar com uma, fazendo carinho e tudo. O barulho bem característico que elas faziam era o máximo! Fiquei encantada e não conseguia parar de brincar com os filhotes. Depois de muitos carinhos, lambidas e fotos, continuamos caminhando. Só que aí demos de cara com os voluntários trabalhando, e eles disseram que o local estava fechado. Tivemos que sair. Havia alguns visitantes brincando com as cabrinhas que estavam do lado de dentro da cerca. Gostei de ver as crianças arrancando grama do chão e dando pras ca- bras comerem, na boca, sem medo nem nada. Na minha cidade, vejo crianças apavoradas com cachorros de estimação nas ruas, presos à coleiras. Vá entender. No caminho de volta pra casa, paramos no mercado e compramos umas pizzas congeladas, que seriam o jantar. Havíamos feito coisa à beça e ainda era fim de tarde. Nem acreditei. Tiramos um cochilo de uma hora, comemos pizza e quando era umas 21h, fomos dar uma volta com a Rottweiler de Walter. Caminhamos até um parque bem bonito, com um lago, que fica pertinho de casa. Fizemos a volta no quarteirão e, em pouco menos de uma hora, es- távamos de volta. Walter me ofereceu uma cerveja, acendeu a lareira e ficamos ali no quintal atrás da casa um tempão, curtindo o calor das labaredas e jogando papo pro ar. 3 Hoje o tempo estava feio e chuvoso, mas saímos assim mesmo. Fomos dar uma volta pela parte velha da cidade, que é também onde Walter cresceu. No caminho, comprou um salgado pra gente que, segundo ele, era bem típico. Sabe bolinha de queijo?! Então, agora imagina no formato de rissole. É isso. A (grande) diferença é que o queijo era holandês!
  • 42. 42 Passamos por sua antiga rua e paramos na casa da mãe dele. Uma velhinha de 80 e poucos anos megasimpática, que mora sozinha e é superindependente. Falava um pouco de inglês, mas não muito. Walter contou do meu projeto e ela ficou preocupada. Sabe, coisa de mãe. Em algum momento do dia a gente foi ao cemitério da cidade, onde o pai de Walter está enterrado. Bem bonito o lugar. Muito ver- de, muita árvore e tudo muito organizado e limpo. Mesmo eu não gostando da ideia de ser enterrada, apreciei o local. De volta à casa, fiz uns desenhos estilizados em uma escultura em gesso de corpo de mulher que Walter tem. Ficou bem bonito. Tam- bém deixei na casa dele o quadro que fiz na Dam Square. Sou muito agradecida por Walter ter “me descoberto” e me convidado pra ficar em sua casa. Também por tudo que fez por mim e o apoio que me deu nesses três dias que passei com ele. Quando já era depois da meia-noite, pegamos o carro e fomos até um lago onde seu filho pescava. Estava lá acampado, com suas varas presas a um suporte no chão. Na barraca havia uma cama, uma ca- deira e um fogareiro, que também servia de aquecedor. Eu me sentei na cadeira e ele e o pai sentaram na cama. Ficamos um tempo lá. Ele me mostrou como fazia as iscas e contou que às vezes ficava acampa- do por três dias, sem pescar nada. Mostrou fotos de umas carpas que ele já havia pescado, enormes. Disse que sempre devolve os peixes pra água, com o mínimo de ferimentos. Não que eu seja adepta do esporte, mas foi interessante ver e aprender um pouquinho. Voltamos pra casa de madrugada.
  • 43. 43 1 Após oito dias e cinco casas diferentes na Holanda — contando a do amigo do Robin, que eu visitei —, observei alguns padrões: * Todo mundo fuma. E fuma dentro de casa, dentro do carro, em qualquer lugar. Mas nem é maconha, não, é tabaco mesmo. Fumam maconha também, mas por incrível que pareça é um tanto quanto raro; * As casas são grandes. Da mais chique até a mais simples, são sem- pre grandes e espaçosas, por mais que seja só de um cômodo; * Todas as casas têm varanda, quintal ou alguma parte externa; * Lava-louças e secador de roupa elétrico são bem comuns; * Banheiros com sensores de luz nas casas mais chiques, sempre; * As privadas têm tipo um degrau na parte interna da cerâmica, que faz com que o cocô não caia direto na água, mas fique depositado ali até você apertar a descarga. Sim, é meganojento e fede em dobro. Isso foi um padrão que notei em TODOS os banheiros que usei; * Todo mundo tem olho azul; * Todo mundo tem bicicleta; * Os canais/córregos estão por todo o lado; * As casas não têm embolso de cimento por fora; * Todos têm um animal de estimação.
  • 44. 44 Antuérpia Me deu a maior vontade de chorar, mas eu me fiz de durona. Wal- ter é o mesmo tipo de anfitrião que eu. Dá o máximo pelo hóspedes, sobretudo quando gosta da pessoa. E quando recebemos alguém a quem nos apegamos muito, depois da despedida fica um vazio enor- me. Eu já passei por isso e sei bem como é. De carro, fomos até uma grande parada de estrada, com posto de gasolina e vários restaurantes. Ali nos despedimos. Era um local bem movimentado, e por isso a carona apareceu rápido — a primeira da viagem! Em meio aos vários sinais não identificados e sorrisos que recebia dos motoristas, uma Fiorino parou. Peguei minhas coisas e entrei. Notei que o rapaz estava uniformizado e, depois de me apre- sentar, perguntei em que ele trabalhava. Força Aérea. Estava a tra- balho, inclusive. Disse que podia me deixar num ponto que ficava a menos de 50km de Antuérpia, que era meu próximo destino. Ótimo. Ele parecia meio tímido e não falava muito. Eu tentava puxar assun- to, mas ele se limitava a responder com palavras curtas. Certa hora, me dei conta de que eu estava muito apertada pra fazer xixi, e se ele me largasse no meio da estrada, eu estaria las- cada. Pedi então pra que me deixasse no posto de gasolina mais próximo de onde ele teria que seguir pro seu caminho. Não sei se me expressei corretamente ou se foi ele que não entendeu, pois não falava inglês muito bem, mas logo no posto seguinte ele parou e falou que me esperava no carro. Esperar, como assim? Confesso que senti, de leve, um frio na barriga por deixar todas as minhas coisas no carro e sair. Mas, no final das contas, deu tudo certo e ele acabou desviando um tanto da sua rota, só pra me levar mais adiante. Disse: “Estou com tempo, e não sou eu que pago a gasolina mesmo...” Sorriu. Caminhei até a saída do posto, coloquei minhas coisas no chão e levantei a placa pra meia dúzia de carros. De repente, vi um homem, a pé, vindo em minha direção. Fui na direção dele, ver o que queria. Fiquei surpresa quando ele falou comigo em português! Se ofereceu pra me dar carona e me contou que sabia que eu era brasileira por- que havia reparado na bandeirinha presa à minha mochila, quando eu passei por ele momento antes. Pegamos a Estrada e ele me deixou num posto já dentro da cidade, mesmo não precisando entrar ali.
  • 45. 45 Perguntei a três pessoas diferentes como se chegava no centro. No caminho, avistei a mais bela arte de rua que havia visto até então. Uns grafites muito bons, espalhados por toda parte, embaixo de um viaduto onde havia um skate park. Caminhei até um grupo e per- guntei a direção, em inglês. Me apontaram. Segui. Não muito longe dali, me deparei com mil opções de caminhos. Decidi perguntar de novo. Vi dois caras vindo e, ao se aproximarem, ouvi uma palavra em português. Mas será possível?! Sim, portugueses de novo. Super- simpáticos. Mas eu ainda estava longe. Cheguei numa praça e fiquei surpresa com a variedade de etnias. E não era uma praça turística, não. Parei um instante pra dar uma respirada e beber água. Escolhi um banco que tinha um cara sentado com um Bulldog francês. Ao me sentar ao seu lado, o cão carente veio logo na minha direção. O dono fez como quem ia puxá-lo pela coleira em gesto de repressão, mas eu rapidamente fui na direção do bicho e comecei a brincar com ele. O cara então falou alguma coisa que eu não entendi, e eu disse que não falava holandês (na Bélgica há dois idiomas mais falados: o holandês, que eles chamam de flamengo, e o francês. A Antuérpia faz parte da região “holandesa”). Ele então disse que também não falava holandês, que era britânico. Ah, os bri- tânicos... Com muito empenho, eu conseguia entender 50% do que ele falava, quando isso. Pra piorar, ele só tinha alguns dentes na boca. Mas logo percebi que não fazia muita diferença eu entender ou não, ele só precisava de alguém pra desabafar mesmo. Então fiquei ali uns 30 minutos o ouvindo e acariciando seu cachorro, que a essa altura já estava todo folgado no meu colo. Perguntei a hora. Cinco e meia. Nossa, tenho que ir! Quando finalmente cheguei ao meu destino, olhei pra porta e havia quatro campainhas, nenhuma delas com o nome que eu tinha. Tentei a primeira. Nada. Pensei na possibilidade de que talvez Wan- nes, o anfitrião, ainda não tivesse chegado. Coloquei minhas bolsas no chão e encostei na parede, observando o movimento. Os caras da esquina tentaram puxar assunto, mas não falavam inglês e logo desistiram. Então alguém na janela atrás de mim me chamou pra entrar. Pensei que fosse Wannes, e que aquela janela fosse dentro da casa dele. Dei um sorriso e tentei entrar. A porta ainda estava trancada. Olhei pra ele. Ele fez novamente sinal pra entrar. A porta trancada. Fiz que não sabia como ir lá. Ele então me apontou pra direção oposta. Ah, sim. Peguei minhas coisas e fui pra esquina (ha- via outra entrada). Foi aí que me dei conta de que o cara que estava
  • 46. 46 me chamando não era quem eu esperava, e que ali não era uma casa, mas sim um bar. Um bar árabe ainda por cima, onde os caras mal falavam inglês. Expliquei que fora um mal-entendido e que tinha que sair pra esperar meu amigo. Ele insistiu pra eu entrar e beber al- guma coisa. Falei que não tinha dinheiro. Ele insistiu mesmo assim. Agradeci, mas saí. Quando deu 19h comecei a ficar preocupada e resolvi passar uma mensagem pro Wannes. Recorri, então, ao árabe. Entrei lá e vi dois caras esparramados no sofá, vendo TV. Pedi licen- ça e tentei falar com eles. Puxaram a cadeira da mesa pra eu sentar. Sentei. Quando tentava explicar que queria um telefone pra mandar mensagem, um deles disse que falava espanhol! Consegui dizer o que queria e ele me emprestou seu celular. Sucesso! Em cinco minu- tos Wannes apareceu. Ele estava em casa o tempo todo, o problema é que eu não sabia qual era o andar e nem seu sobrenome (pro caso do interfone). Quatro lances de escada. Um gato macho. Apartamento gran- de, com móveis de madeira e uma boa vista. Conversamos. Ajudei a preparar o jantar. Ele folheou um jornal e viu que estava tendo um show de blues numa praça próxima, e de graça. Pegamos as bicicletas e fomos. Sim, “as bicicletas”. Pela primeira vez pedalando sozinha. Wannes tem a sua própria e também um cartão pra essas bicicletas públicas, que você pode usar por 30 minutos e devolver em outro ponto. Chegamos. Era em uma praça não muito grande, rodeada por barraquinhas de comidas e bebidas. Tinha um cara que parecia estar bêbado dançando muito animado na frente do palco. Vi duas velhi- nhas dançando com taças de vinho na mão, felizes da vida. Crianças corriam pra lá e pra cá, brincando. E o blues rolando. Vi uma negona cheia de soul fazendo uns passinhos. Belo começo em uma cidade que até bem pouco tempo atrás eu nem sabia que existia (fui parar ali por recomendação de Walter). Wannes sugeriu de atravessarmos o rio pelo túnel que passa por baixo da água. Topei. Pegamos as bicicletas e fomos até o elevador. De tão grande, nem dava pra sentir que ele estava se movendo. No visor aparecia a quantidade de metros percorridos pra baixo. Che- gava até -33. Conforme íamos mais pro centro, mais frio ficava. Bem no meio era um frio absurdo, parecia que estávamos entrando num refrigerador, sendo que nem ar-condicionado havia ali. Não entendi muito bem. Pra sair do túnel, o elevador estava com defeito, então ti- vemos que pegar a escada rolante. Escada rolante de madeira, nunca havia visto um troço desses.
  • 47. 47 Pedalamos até bem próximo ao rio, onde se tinha uma vista mui- to bonita da cidade, e ficamos ali curtindo o visual. 3 Fiquei em casa até o meio-dia, escrevendo e ajeitando minhas coisas. Como estava com o cartão da bicicleta, pedalei até o cen- tro com o laptop na mochila. Consegui descolar um wireless grátis no McDonald’s e fiquei um tempão atualizando fotos e textos na internet. Quando a bateria acabou, fui passear pela cidade. Pedalei bastante. Me perdi. Me achei. Caminhei. Ter acesso a esse sistema de bicicletas foi uma mão na roda! Tive de voltar pra casa um pouco antes das 17h, pois Wannes iria sair do trabalho nesse horário e só eu estava com a chave. Ele chegou apressado e falou que os amigos viriam nos buscar pra irmos à Ghent, que é uma cidade vizinha. Fomos a uma exposição num prédio velho, onde vários artistas montaram suas instalações. Certa hora o grupo estava todo numa parte externa do casarão, fumando e falando um monte. Fiquei entediada e saí. Estava faminta e tive vontade de explorar a cidade e procurar o que comer. Wannes então me surpreendeu, chegando pelo lado oposto, e sentou ao meu lado. Perguntei se ainda iriam demorar, se dava tempo de eu dar uma volta. Fomos até o grupo pra saber o que iriam fazer. Um dos artistas sugeriu de irmos a um bar próximo, onde havia quadros seus expostos. Depois, fomos comer. Wannes pagou pelo meu prato. Quando sa- ímos do restaurante, já estava escuro. Caminhamos até o carro e em uma hora estávamos de volta à Antuérpia. Fomos todos a um pub e eu bebi uma cerveja escura. Ficamos um tempo lá, era sexta à noite e havia bastante gente. Ao final, éramos um grupo de quase 10.
  • 48. 48 O baile da Cinderela Depois de uma visita ao ateliê do Wannes e de eu fazer uma arte na parede da cozinha, saímos pra ir a um festival num parque. Sol. Muita gente bonita. Verão europeu. Todo mundo sentado ou deitado na grama em grupos, bebendo cerveja e sorrindo. Eu fiquei um bom tempo só observando a galera. Uns amigos do Wannes chegaram e aos poucos nossa roda foi crescendo. Duas loiras holandesas, as pró- ximas hóspedes do meu anfitrião, haviam acabado de chegar. Duas doidas! Superanimadas e divertidas, só conhecendo. Havia também um cara negro, bem magro e bem bonito. Americano. Tinha outro conversando com ele, loiro com um penteado irado, olhos azuis, todo tatuado e com piercing no lábio. Muito bonito também. Depois chegou um terceiro, putz, que gato! Essa galera dos olhos azuis me conquista mole, não vou mentir não. Belga. Ficamos conversando um tempão. Wannes, as holandesas e o resto do grupo foram pra pista de dança. Quando começou uma música brasileira, eu fui, toda orgulhosa e tirando onda por ser a única que sabia a letra. Na ver- dade, praticamente não havia turistas ali. De quando em quando co- meçava a falar com um estranho e, ao ser perguntada de onde eu era, respondia toda metida “Rio de Janeiro”, falando com sotaque grin- go, caso contrário não entenderiam o nome da cidade. Conseguia me enturmar fácil por conta disso, e sem esforço algum, cervejas surgiam nas minhas mãos. O DJ era muito bom! Ele fazia uma farofa musical que dava muito certo. Tocava Iron Maiden e, de repente, Macarena! Todo mundo dançando, todo mundo se divertindo. Clima bem dife- rente das festas que eu estava acostumada a frequentar, onde as pes- soas muitas vezes se privam de dançar por certa vergonha ou então tá todo mundo paquerando todo mundo e se esquece da festa em si. Enfim. Eu estava muito feliz e me divertindo horrores. Do nada, uma mulher meio coroa surgiu e começamos a dançar juntas. Eu ri pro grupo, com uma cara de “mas que raios?” e continuei dançando com a louca. De repente, me puxou pro meio da multidão, em direção ao palco. Olhei pra trás e sorri, como dizendo que estava tudo bem. Dançamos freneticamente na frente do palco, e ela de quando em quando me abraçava. Nossa, ela estava realmente feliz por alguém
  • 49. 49 estar dando atenção. Ficamos um tempo juntas rindo sozinhas, até uma amiga do Wannes vir “me resgatar”. Saí em direção ao banheiro e, chegando lá, vi que cobravam 50 centavos pra usar. Havia dois meninos sentados, recebendo o dinhei- ro da mulherada. Sorri pra eles e, num tom irônico, disse: “É sério que eu preciso pagar pra fazer xixi?” Eles sorriram de volta, e fizeram que sim com a cabeça. Eu então falei que não tinha dinheiro. Sem dar muita bola, um deles, o que estava tomando conta do “caixa” (que era literalmente uma caixa sem tampa e cheia de moedas), olhou pra mim e disse, num tom exclamativo: “Você não tem dinheiro!”, e fez uma coisa demais da conta: pegou uma moeda da caixa, levantou uns 30cm, e a deixou cair por cima das outras. Pronto. Pago. Voltei pro grupo e continuei a dançar loucamente com os outros. Agora era outro DJ e estava tocando mais pop. Música boa também, apesar de não muito meu estilo. Tive sede e fui ao bar tentar conse- guir água. Estava lotado. Fui pra lateral, não na intenção de furar fila, mas como na verdade só queria um copo de água da torneira, não achei que fosse necessário esperar tanto. Só que eles estavam atendendo apenas o pessoal da frente, e eu fiquei no maior vácuo ali. Pedi o copo d’água a um segurança, que me disse que custava € 2,50! Eu ainda dei uma sacaneada falando que era a água da pia mesmo que eu queria, e que essa água era de graça. Ele sorriu, mas disse que eu precisava pedir aos funcionários. Nessa hora já estava amiga do cara ao meu lado, que disse que conhecia o Brasil e tudo. Por fim, acabou me pagando a tal água. Fiz mais uns amigos aleatórios na pista e quando deu meia-noite em ponto(!) a música parou. Fim de festa. Acenderam as luzes do palco na direção da galera e aos poucos o povo foi indo embora. Achei meio bizarro acabar a festa assim do nada, mas foi o que aconteceu. Que noite!
  • 50. 50 Bruxelas Por conta das outras meninas que chegaram ontem, eu acabei perdendo o sofá. Assim, dividi a cama com o anfitrião. O que, para ambos, não foi problema algum. Independente de eu ser mulher e ele homem, o combinado foi dividirmos a cama pra dormir, e foi o que fizemos. Respeito. Dia de seguir viagem. Dessa vez eu estava meio nervosa, porque como não havia internet na casa, eu não pude procurar por aco- modação em Bruxelas — o próximo destino. Mas fui assim mesmo, acreditando nos meus ideais: menos medo do mundo e mais confian- ça nas pessoas. O Universo se encarregará do resto. Fomos Wannes e eu de bicicleta até um ponto perto da saída da cidade. Como eu estava com a bicicleta dos 30 minutos, simples- mente a deixei na estação próxima e Wannes voltou sozinho, na sua. Nos despedimos e ele ainda falou que ia até a outra esquina ver se havia um ponto melhor pra pedir carona. Foi ele virar as costas que um carro parou. Nele, um careca super gente boa foi conversando comigo o caminho todo. Mas não me levou até o meu destino, não. Quando desci, o próximo carro também parou muito rápido, só que o cara não falava inglês. Ele era turco e, por morar em Bruxelas, além de seu idioma materno, falava francês. A gente até tentou se comunicar, mas não rolou. O bacana foi que ele acabou me levando até o centro da cidade! Achei uma praça, me sentei e peguei o laptop. Pra minha surpresa, consegui uma conexão gratuita e bem rápida. Postei uma mensagem aberta na comunidade Couch Surfing, falando rapidamente do projeto e dizendo que já estava na cidade, sentada em frente a um museu. Dentro de meia hora eu estava com meu novo anfitrião. Sim, o cara foi lá me buscar, Jochem! Quando chegamos em sua casa, havia uma menina na porta esperando por ele com um cachorro. Colombiana. Fomos os quatro pra um parque e tomamos um sorvete. Depois que ela foi embora, Jochem me levou ao centro turístico. Vimos o cartão postal da cidade, que é uma estátua de um menininho fazendo xixi (pois é), entramos nas lojas de chocolate pra provar as amostras grátis e, por fim, ele me levou num estacionamen- to com um terraço sem cobertura onde havia uma boa vista da cida- de. Bebemos uma cerveja preta e ficamos um tempo ali, conversando e curtindo o sol.
  • 51. 51 Antes de voltarmos pra casa, resolvemos passar no Jardim Bo- tânico da cidade. Só que, como já era depois das 19h, o local estava fechado. O que nós fizemos? Pulamos o muro. Me esparramei no gramado e curti o momento, lembrando que eu havia chegado na ci- dade sem conhecer uma única alma e sem sequer um local pra passar a noite. “Confiar no mundo.” 3 Anfitrião trabalhando, saí sozinha. Caminhei até um centro de informações turísticas que existe em várias das grandes cidades eu- ropeias, e é bem conhecido entre jovens e mochileiros: o Use-it. Eles elaboram guias através de dicas dos locais e também organizam pas- seios gratuitos. Hoje havia um às 14h. Cheguei cedo e parei numa praça. Sentei num banco ao sol e um casal sentou ao meu lado. Puxei assunto e descobri que eram hóspede e anfitrião, também pelo es- quema Couch Surfing. O cara ia trabalhar e eu convidei a moça pro passeio turístico. Ela topou! O dia estava ensolarado e havia bastante gente no tour. O grupo foi dividido em dois, com cerca de 10 pessoas em cada um. Não sei por que razão, mas acabei ficando num gru- po diferente do da menina que havia conhecido ainda há pouco. O chato foi que o grupo que caí acabou fazendo basicamente o mesmo trajeto que eu havia feito no dia anterior, com Jochem — só que com o Jardim Botânico aberto e cheio de gente. Sem graça. Caminhamos por duas horas e depois de passarmos rapidamente no ponto de onde partimos, sentamos num bar. O grupo naquela hora era de apenas seis pessoas. Eu estava com muita fome. Já eram quase 19h e eu estava só no café da manhã. Quando passamos pelo centro, por todas aquelas lojas de chocolates belga e waffles, eu fiquei aluci- nada, com água na boca. Um cara do grupo, americano, comprou um waffle enorme e comeu sozinho. Pouco depois, a menina que estava com ele, comprou um suculento cone de batata frita, cheio de molho de tomate, e fazia questão de ficar se deliciando, dizendo que esta- va muito bom, sem oferecer a ninguém! Achei aquilo meio arrogante. Mas acho que eles nem se deram conta do que estavam fazendo, e que, se alguém tivesse pedido, não teriam problemas em compartilhar. Eu que fui a tola de não pedir uns pedaços. Mas é que gosto de observar... Quando sentamos no bar, todos compraram um desses cones de batata frita, que já notei serem megapopulares por aqui. Fiquei bem
  • 52. 52 chocada porque ninguém me ofereceu. Sabe, quando você compra alguma coisa, é comum oferecer às outras pessoas da mesa. Eu acho. Naquele momento minha energia emocional caiu e eu senti que a galera meio que estava me evitando, como se eu fosse uma dessas viajantes aproveitadoras, que só queria a companhia deles pra con- seguir comida ou coisa que o valha. Fiquei bem chateada com esse pensamento, mesmo que talvez nem fosse verdade, mesmo que eles talvez só tivessem “se esquecido” de mim. De todo modo, não estava me sentindo bem no grupo e o que eu fiz foi simplesmente sair. Encontrei meu anfitrião em casa e fomos juntos a um mercado. Jochem preparou uma salada maravilhosa. Salada nutritiva, feita por um vegetariano que sabe que salada não é só alface e tomate. Havia frutas, nozes, pasta de grão de bico, uns grãos tipo quinoa, temperos diversos, torradinhas. Várias coisas gostosas! E, pra completar, um suco natural. Agora sim. Saímos pra um encontro do Couch Surfing à noite, e eu conversei com algumas pessoas na parte interna do bar. Até que comecei a sen- tir calor e resolvi sentar do lado de fora. Na mesa, havia três pessoas, e uma delas era um rapaz muito bonito, que chamou minha atenção. Pele branca, olhos claros, alargadores nas orelhas e tatuagens. Lindo. Estava sentada com Jochem e, como a mesa era grande, nós só nos enturmamos com o outro grupo quando a menina pediu pra tirar uma foto deles. Foi a deixa. Num piscar de olhos, estávamos todos conversando. O menino bonito, porém, era mais calado. Os três via- javam de carona. O casal viajava junto, e o tatuado sozinho. Eram todos poloneses, mas se conheceram no caminho. A última carona pegou os três juntos e haviam acabado de chegar em Bruxelas. Esta- vam de mala e tudo. O casal voltaria pra Polônia no dia seguinte, e o outro menino iria pra Paris. Paris? De carona?! Hey, vamos juntos! E o bonitão acabou vindo pra casa com a gente. Decidimos pegar a Estrada no dia seguinte.
  • 53. 53 Mudança de planos Enquanto trabalhava em uma arte na parede, recebi uma ligação de um cara da TV local, interessado em gravar uma matéria comigo. Digo, ele ligou pro telefone do meu anfitrião, já que eu estava sem. Era de um canal famoso, cujo programa, segundo ele, é assistido por mais de um milhão de pessoas! Ele havia visto o tópico no Couch Surfing onde eu pedia hospedagem de última hora. Foi assim que cancelei a ida à Paris naquela manhã. Combinei de me encontrar com o produtor à tarde. Antes, aproveitei pra rever Maria, uma antiga hóspede-amiga finlandesa, que estava na cidade. Linda pessoa, inteli- gentíssima! Acabou me acompanhando no encontro com o produtor. Falei do projeto, dos meus ideais, do que eu faço no Rio, na vida. Falei bastante. Ele estava bem interessado e, pela sua expressão, pude notar que estava um tanto quanto impressionado... tinha um brilho diferente no olhar. Ele me explicou do programa e o que eles estavam fazendo. Toda semana buscavam um viajante com uma história in- teressante e o acompanhavam por um dia, desde a casa do anfitrião até um passeio pela cidade. Queriam a visão de estrangeiros sobre a Bélgica. Porém, disse que não teria como preparar toda a equipe pra fazer a matéria no dia seguinte, e que já havia muitas reportagens feitas em Bruxelas, queriam fazer em outra cidade. Ora, eu posso ir a qualquer lugar! E fazer essa matéria era realmente importante pro projeto, cujos ideais pretendo levar pro maior número de pessoas possível. Estava realmente animada com a ideia, só que como esse negócio de televisão não é tão simples assim, ele ficou de falar com o diretor e me dar uma posição até a noite. Segura ansiedade! Aproveitei a tarde passeando pela cidade com Kuba, o polonês, que também havia adiado a ida pra Paris. Fomos a um parque, dei- tamos num gramado próximo a um enorme chafariz e ficamos de bobeira relaxando um tempão. Ele não falava muito e, assim, acabei ficando em silêncio também. Observei um grupo de meninas negras, todas belíssimas, come- çarem uma guerra de água, fazendo o maior escarcéu no parque e chamando a atenção dos que por ali passavam. Uns sorriam e para- vam pra olhar, já outros, com medo de se molhar, franziam a testa e
  • 54. 54 se afastavam. Elas não estavam nem aí! Cada uma tinha uma garrafa de um litro e meio e corriam pra lá e pra cá, umas atrás das outras, molhando tudo. A cena era linda, no duro! Uma das mais bonitas e sinceras de toda a viagem, eu diria... Voltamos pra casa e Jochem já estava com o jantar semipronto, nos esperando. Que boa pessoa! Conforme a noite foi caindo, acabei cochilando no colchão com o laptop à minha frente, sem que tivesse “me preparado”pra dormir. Em algum momento, um deles me cobriu e colocou o travesseiro próximo à minha cabeça.
  • 55. 55 Hasselt Kuba partiu sozinho rumo à Paris. Antes, ao adicioná-lo no Face- book, notamos um amigo em comum. Pra surpresa de ambos, era o cara de Amsterdã, que eu havia conhecido na praça e me deu o casa- co! Lembra, o menino do piquenique no barco?! Ê, mundo pequeno! Diego havia hospedado Kuba por lá pouco depois de me conhecer, e tinha inclusive comentado sobre mim. Disse que havia conhecido uma menina viajando sem dinheiro e tudo o mais! Sei não, mas estou deixando de acreditar nesse negócio de coincidência, viu... Pouco antes das 11h, um telefonema do cara da TV. Disse que ainda não haviam decidido onde seria a gravação. Pra colocar uma pressão neles, falei que teria que sair antes do meio-dia. Sucesso! O celular de Jochem tocou novamente e o local estava decidido: Has- selt. Pois bem. Sem nunca nem ter ouvido sequer falar nessa cidade, topei ir pra lá. Caminhei uns 30 minutos até uma rotatória com saídas pra to- das as direções possíveis, o que me deixou superconfusa. Cheguei a levantar a placa por alguns minutos, mas resolvi me informar com um cara que passava. Um outro, arrastando um malão de rodinhas, se intrometeu na conversa. Parecendo ignorar minha presença, os dois começaram a falar um monte de francês. Depois de muito oui oui oui, me disseram que o melhor pra eu fazer era ficar ali mesmo. Ah, sim. Um tempo depois, eis que ressurge o cara da mala. Ele estava realmente preocupado comigo e queria muito me ajudar. Num in- glês tupi-guarani, disse que iria deixar a mala em casa e voltaria. Me sentei numa sombra pra esperar. Comecei a escrever qualquer coisa no caderno de anotações e, poucos minutos depois, volta ele, sem mala, junto com um policial de bicicleta. Achei engraçadíssima a cena! Todo orgulhoso, disse: “Eu trouxe um policial.” Bom, ao me- nos alguém que falava inglês. Falou que, realmente, o meu destino era meio longe e a possibilidade de passar alguém ali indo na direção desejada era bem pequena. Sugeriu que eu fizesse uma placa com outro nome. OK, obrigada. Estava sem papelão, mas fiz uma placa com papel normal mes- mo... O problema é que estava ventando bastante e a folha fina não parava quieta. Resolvi caminhar mais à frente. Vi uma bifurcação, e
  • 56. 56 uma estrada descia num túnel, onde lia-se a placa “Ring” (a estrada que circula a Bélgica). Achei que se eu conseguisse chegar lá, tal- vez fosse mais fácil. Parei ali por um tempo. Os mesmos olhares, a mesma dúvida. De repente, um homem que passava a pé me gritou alguma coisa em francês. Fiz cara de quem não entendeu e ele, num inglês ruim, disse que ali era muito perigoso pra uma pessoa ficar e que se a polícia me visse iria me prender. Achei que ele exagerou um pouco, mas ainda assim acreditei no fato de que eu ainda não estava no “lugar certo”. Olhei em volta e numa rua transversal vi dois caras próximos a um carro. Perguntei se eles sabiam onde era a estrada pra Hasselt. Falaram pra eu virar à direita e depois à esquerda, que assim chegaria a uma praça. Cheguei a uma estação de metrô. Pedi informação num ponto de ônibus. Ninguém sabia de nada. Eu estava começando a ficar meio preocupada. Caminhei na direção do círculo e, uma rua antes, parei e coloquei as bolsas no chão. Foi então que surgiu uma menina com uns 265 piercings na cara, perguntando se eu realmente estava indo pra Hasselt (havia visto a placa). Ela disse que ninguém ali nem sequer saberia da existência da cidade e se ofereceu pra me levar à estação central, onde eu poderia pegar um trem. Falei que não tinha dinheiro. Sem demonstrar qual- quer expressão, ela simplesmente disse que comprava a passagem pra mim. Aceitei. Fui com ela até a rua transversal, onde havia um carro estacionado. Coloquei as bolsas no porta-malas e cumprimen- tei a outra menina, ao volante. Ela era loira, cabelo curto, com duas tranças divididas na nuca. Na parte de baixo de seu cabelo, um azul desbotado. Usava piercing no lábio e no nariz. A outra menina tinha o cabelo interessante... todo bagunçado e disforme, pro alto, com uma lateral raspada. Superanimada e divertida! Perguntou se eu já havia comido e terminou por me pagar um lanche. Compramos a passagem e elas ficaram comigo até eu entrar no trem. Nem sequer mencionei o Portas Abertas. Havia olhado no mapa, antes de sair, que a casa onde eu iria me hospedar ficava perto da estação, mas não me dei o trabalho de fazer um desenho com as ruas nem nada. Não estava contando com a ida de trem, e quando pego carona, basta perguntar aos motoristas, que geralmente têm acesso a um mapa. Problema. Ao pedir informação, ninguém sabia onde a tal rua era. Um taxista foi o que chegou mais perto. Na verdade, o seu GPS. Mas, quando percebeu que eu não entraria no táxi, só fez me apontar a direção com a mão, sem muitos detalhes. Caminhei na direção que ele apontou, mas me deparei com
  • 57. 57 uma bifurcação e fiquei novamente na mesma. Perguntei pra um cara que passava. Ele não sabia. Voltei e parei num bar pra tentar ver na internet. Havia mil mesas vazias, todas na calçada. Sentei. Logo veio o garçom e perguntou o que eu ia beber. Falei “nada, obrigada”. Na maior estupidez do mundo, ele disse que eu tinha que comprar al- guma coisa se quisesse ficar ali. Fechei o laptop e fui me sentar num banco de rua. Não havia internet, mas “por sorte” o mapa que eu tinha aberto antes de sair de casa ainda estava salvo. Consegui visu- alizar a rua e pronto. O combinado era de eu chegar depois das 21h. Cheguei às 19h. Sem nem tocar a campainha, sentei no chão na frente da porta. Por volta das 20h30, a vizinha do lado chegou. Uma velhinha boazinha, que ficou me olhando e falou alguma coisa. Ela não entendia inglês, mas consegui me fazer entender, através de mímica e sorrisos, até que me emprestou o telefone (telefone mesmo, que ela foi dentro de casa buscar). Achei importante eu ligar pra minha anfitriã e dizer que ha- via chegado. O número estava ocupado. Agradeci à senhora e voltei pro meu cantinho. Peguei o laptop e, pra minha surpresa, achei um ponto de rede sem senha. Liguei pra Tinne, a anfitriã, que atendeu, e no desenrolar da conversa ouvi a voz se duplicar e a porta se abrir atrás de mim. Por um momento, me senti idiota por ter esperado tanto do lado de fora quando ela estava em casa o tempo todo, mas depois entendi que estava num jantar com um amigo e que eu fiz bem em respeitar o momento deles.
  • 58. 58 Tevê Acordando cedo pra um dia cheio. A equipe não se atrasou e às 9h da manhã já estava aqui. Colocaram um microfone escondido em mim, por baixo da camisa, e começamos a gravar do meu quarto, que era no terceiro andar da casa. Me filmaram deitada, escrevendo ao laptop. Fizeram mil takes, um de cada ângulo diferente. Depois, começamos a descer as escadas, o que deve ter levado uns 23 minu- tos, até eu chegar ao último degrau no primeiro andar. Toda hora eu tinha que voltar, subir e descer de novo. Me frustrou um pou- quinho descobrir como as matérias televisivas são feitas, com tudo milimetricamente programado e meio fake, mas foi divertido. Após as cenas do quarto e da escada, chegamos na cozinha e gravaram a gente (minha anfitriã e eu) tomando café da manhã. Íamos comendo e conversando, como se não houvesse uma equipe de filmagem ali. O cara da câmera mudava de posição de quando em quando. Se o diretor notasse algo interessante, pedia pra repetirmos a cena e fazer tudo de novo na maior naturalidade possível (repetir a cena, como se tivesse algo ensaiado!). Nas ruas, chamávamos bastante atenção, por causa da câmera e tudo. Nos filmavam enquanto caminhávamos e conversávamos. Hasselt é uma cidade bonita. Pequena, tranquila. É conhecida como a capital dos sabores e por isso fomos a uma padaria, pra que eu pudesse experimentar os tradicionais biscoitos locais, que levam o nome de algo parecido com “espetaculoso”. Essa foi a melhor parte do vai e vem da gravação, pois pude comer o troço mil vezes! E ainda me compraram um saquinho no final, me dei bem. Dali, demos mais uma volta pelo centro e passamos por uma pe- quena fonte de um menino nas costas de um touro, de onde jorrava uma aguinha que escorria até o chão. Tinne me contou que uma vez por ano, geralmente em outubro, por uma hora, a fonte jorra bebida alcoólica em vez de água. É uma bebida bem popular aqui, como se fosse cachaça no Brasil. Fomos então a um bar pra experimentar a dita cuja. Era forte pra caramba e, como eu mal bebo, passei ver- gonha na hora da gravação, não conseguindo virar o shot. A única vez que tentei de fato virar um shot de alguma coisa foi num bar no Rio. Tequila. E eu não consegui. Minha garganta fechou e eu prati-
  • 59. 59 camente vomitei a bebida. Maior vexame! Não quis fazer o mesmo na frente da câmera e, pra não correr o risco, a bartender fez uma bebida de mentirinha pra mim. Sucesso! Suco de maçã com água deixava o líquido no copinho exatamente igual ao alcoólico. Virei o shot de uma só vez, com direito a careta e tudo, contribuindo para a máscara, ops, mágica televisiva. Câmera em off, fomos comer alguma coisa. Todo mundo na ba- tata frita (ainda estávamos na Bélgica, né). Conversamos, comemos e rimos um bocado. O diretor havia comentado que, pra ele, o mais difícil de viajar sem dinheiro deveria ser na hora de querer comer alguma coisa na rua, e não poder comprar. Pois é justamente nessa situação, viajando sem dinheiro, que você pode ver com o quanto de besteira se distrai, incluindo a comilança desnecessária, por gula. Porque se você compra um sorvete no parque, ou um cone de batatas fritas, geralmente não é porque está com fome, e sim porque é in- fluenciado pelo marketing e pela ocasião. Nada disso é necessário, se pararmos pra pensar no assunto. Sem dinheiro, eu consigo enxergar todo o tempo o que de fato é necessário pra nós, psicologicamente e fisicamente falando. E, pode acreditar, não é um waffle suculento no centro histórico de Bruxelas. Quando chegamos em casa, câmera ligada novamente e pregos posicionados (eu havia martelado tudo antes de sairmos), comecei a trabalhar e a parede foi ganhando cores. Fizeram uma pequena entrevista com minha anfitriã, no idioma local: flamengo. Depois, minha vez. E, mesmo após ter falado pelos cotovelos o dia todo, fiquei meganervosa. Tão nervosa que engasguei na primeira fala, que era simplesmente dizer quem eu era e onde es- tava. Não lembrava o nome da cidade, não lembrava o nome da an- fitriã. Branco total! Respirei fundo e, na terceira tentativa, a fala saiu. Foram sete horas de trabalho ao total, pra um vídeo de apenas quatro minutos. Estava na segunda semana de viagem e já havia alcançado algo grandioso. Difícil de acreditar. Mais ainda quando volto atrás e lem- bro de como fui parar ali. Lembra? Graças ao fato de ter ido à Bru- xelas sem lenço e sem documento, e postado um único tópico na co- munidade Couch Surfing pedindo ajuda. Além do “socorro” chegar rapidamente, fui parar na televisão!