1. Álvaro Magalhães:
quando eu for grande...
quero ser um brincador!
Ana Margarida Ramos
CIDTFF – Universidade de Aveiro
anamargarida@ua.pt
2. O Brincador
Quando for grande, não quero ser médico, engenheiro ou professor.
Não quero trabalhar de manhã à noite, seja no que for.
Quero brincar de manhã à noite, seja com o que for.
Quando for grande, quero ser um brincador.
Ficam, portanto, a saber: não vou para a escola aprender a ser um
médico, um engenheiro ou um professor.
Tenho mais em que pensar e muito mais que fazer.
Tenho tanto que brincar, como brinca um brincador, muito mais o que
sonhar, como sonha um sonhador, e também que imaginar, como imagina
um imaginador…
A mãe diz que não pode ser, que não é profissão de gente crescida. E
depois acrescenta, a suspirar: “é assim a vida”. Custa tanto a acreditar.
Pessoas que são capazes, que um dia também foram raparigas e rapazes,
mas já não podem brincar.
A vida é assim? Não para mim. Quando for grande, quero ser brincador.
Brincar e crescer, crescer e brincar, até a morte vir bater à minha porta.
Depois também, sardanisca verde que continua a rabiar mesmo depois
de morta. Na minha sepultura, vão escrever: “Aqui jaz um brincador. Era
um homem simples e dedicado, muito dado, que se levantava cedo
todas as manhãs para ir brincar com as palavras”.
3. Obra: géneros e registos (exemplos)
— Romance juvenil – A Ilha do Chifre de Ouro (1998), O Último
Grimm (2007) e O Rapaz dos Sapatos Prateados (2013)
— Narrativas seriadas e “hybrid novel” – coleções “Triângulo
Jota”; “Crónicas do Vampiro Valentim”; “Novas Crónicas do
Vampiro Valentim”; “Lucas Scarpone”; “Mata dos Medos”
— Narrativa breve e muito breve – coletâneas de contos - O
menino chamado Menino (1983), Isto É que Foi Ser! (1984),
Histórias Pequenas de Bichos Pequenos (1985), O Homem que
não queria sonhar e outras histórias (1987), Hipopóptimos
Uma História de Amor (2001), Três Histórias de Amor (2003),
O Rapaz da Bicicleta Azul (2004), O Segredo (2007), O Senhor
Pina (2013)
— Teatro - Enquanto a Cidade Dorme (2000), Todos os Rapazes
São Gatos (2004)
— Poesia
4. Tendências transversais à sua
produção literária
— Temáticas ligadas ao tratamento do tempo e da constatação da sua passagem e
inexorabilidade, à perda e à morte
— Condição reflexiva do sujeito poético, com aproximações ao pensamento
filosófico de cariz existencialista
— Temática animal como aproximação à génese e à primitividade humana
— Metapoesia e reflexão de cariz metalinguístico: centralidade da palavra como a
matéria-prima por excelência da criação literária
— Centralidade da infância como topos: origem; verdade; essência
— Sonho, onirismo e fantasia como forma de superação dos limites humanos
— Valorização das leituras, das aventuras e das brincadeiras infantis
— Exploração das potencialidades da língua e das suas implicações nonsensicais
— Humor
5. Três histórias de amor
— Tematização do amor,
originalmente cruzado com
o tema da morte – eixos
centrais da vida/existência
— Fruição intensa da vida
— Perenidade dos afetos
— Universo animal
— Recriação da tradição oral
6. O Rapaz dos Sapatos Prateados
— Temáticas ligadas ao
tempo, à existência, às
palavras e à poesia, a deus,
à morte e à vida, à
essência, eixos transversais
da poética do autor
— Viagem pelas suas
memórias pessoais e pelos
seus valores, tributo às suas
referências, sem deixar de
ser uma história de
aventuras, mistério e
humor.
7. Obra poética mais relevante
— O reino perdido (1986)
— O limpa-palavras e outros poemas (2000)
— O brincador (2005)
8. O Reino Perdido
Estamos
no
Inverno,
entristeceu
a
luz
e
eu
levo
as
pequenas
coisas
do
dia
para
dentro
da
casa
e
da
página
muito
branca
onde
brilha
agora
o
sol.
O
gato
adormeceu
junto
ao
fogão,
está
a
sonhar
com
a
primeira
serradura;
a
mãe
espreita
da
velha
fotografia
e
parece
ensaiar
um
passo
mas
conAnua
parada;
no
tecto,
sobre
a
cabeça,
a
lâmpada
vigia-‐me,
como
o
olho
de
um
insecto.
Enquanto
lá
fora
passa
o
vento
que
leva
para
longe
o
nosso
tempo
e
não
o
traz
de
volta,
tento
abrir,
com
uma
chave
de
palavras,
a
porta
fechada
do
meu
reino
perdido.
9. O Caçador de Borboletas
Sorridente, ao nascer do dia,
À noite, regressa à casa cansado
ele sai de casa com a sua rede.
e estranhamente feliz
Vai caçar borboletas, mas fica preso
porque a sua caixa está vazia,
à frescura do rio que lhe mata a sede
mas diz sempre, suspirando:
ou ao encanto das flores do prado.
Que grande caçada e que belo dia!
Vê tanta beleza à sua volta
que esquece a rede em qualquer lado
Antes de entrar, limpa as botas
e antes de caçar já foi caçado.
num tapete de compridos pêlos
e sacode, distraído,
as muitas borboletas de mil cores
que lhe pousaram nos ombros, nos cabelos.
11. «Aniversários», de Álvaro Magalhães
1
5
As abelhas não fazem anos.
Os anões são tão pequeninos
Nenhuma viveu um ano
que não fazem anos.
para o poder fazer.
Fazem aninhos.
Com um dia de vida
Os gigantes são tão grandalhões
qualquer abelha vai trabalhar.
que não fazem anos.
Com dois já pode namorar
Fazem anões.
e com cinco casa e tem filhos.
Com vinte dias de vida
uma abelha está acabada:
é uma avelha.
12. Mistérios da Escrita
Escrevi a palavra flor.
Um girassol nasceu
no deserto de papel.
Era um girassol
como é um girassol.
Endireitou o caule,
sacudiu as pétalas
e perfumou o ar.
Voltou a cabeça
à procura do sol
e deixou cair dois grãos de pólen
sobre a mesa.
Depois cresceu até ficar
com a ponta de uma pétala
fora da Natureza.
13. A Gata Branca
Ela andava por todo o lado,
enterrava as unhas duras no sofá
ou descia, vagarosa, do telhado.
Depois, desenrolou até ao fim
o novelo da lã
e agora está sob a terra, no quintal:
é uma semente adormecida.
Com ela foi essa parte de mim
e eu não sei o que fazer a esse amor
nem onde está o tempo branco que foi meu
- esse pedaço da minha vida.
18. O Limpa-Palavras
Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.
No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.
Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.
A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.
A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.
Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes um braço para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.
19. Análise do Poema
— Definição do trabalho do poeta e da escrita poética
— Arte poética aplicada ao universo da literatura para a infância
— Metáfora do limpa-palavras para definir o poeta
— Negação do conceito da arbitrariedade do signo
— Categorias de palavras, funcionalidade (ligação entre a palavra e o
conceito/objeto)
—
—
—
—
—
—
—
Pesadas – pedra
Perfumadas – rosa
Protetoras – árvore
Vivas – gato, coração
Voadoras – pássaro, vento
Sonoras – canção
…
20. Pré-leitura
— Exploração de elementos paratextuais, como o título
— Relação com as profissões:
— O que é um limpa-palavras?
— Onde trabalha?
— A que se dedica?
— Expectativas sobre o conteúdo do texto
21. Leitura
— Expressiva, em voz alta
— Com fundo musical apropriado
— Acompanhada de imagens e/ou objetos, nomeadamente
os que são referidos no poemas (palavras que precisam
de ler limpas)
22. Pós-leitura
— Perceber o que significa “limpar palavras” e o sentido que o poema
atribui ao poeta e à poesia;
— Identificar as emoções que o poema transmite e o tom que o domina;
— Escolher outras palavras que precisam/podem ser “limpas”;
— Identificar objetos, seres, conceitos para os quais elas remetem;
— Descobrir textos/livros que procedam a essa limpeza;
— Selecionar lugar para contar/ler/dizer poemas/textos de modo a limpar
as palavras dos maus usos;
— Preparar atividades de escrita (nomeadamente poética) a partir da
leitura do poema;
— Propor outras atividades para o poeta, para além de limpar as palavras.
23. Proposta de trabalho:
— Proposta de leitura com um grupo de crianças/jovens:
— Todos sabem o que é um poeta? O que fazem os poetas? Quais são as suas
ferramentas de trabalho? Que matérias usam para trabalhar?
— Estabelecer relações com outras profissões até se chegar à matéria prima usada
pelo poeta: “A Palavra”.
— E o que fazem os poetas com as palavras? Álvaro Magalhães explica tudo isto, num
poema a que se chamou o Limpa-Palavras. Mas que título! Porque necessitarão os
poetas de limpar as palavras? Que palavras se podem limpar? Onde podem
recolher-se as palavras? Em que lugares é que se encontram as palavras? Que
palavras nos podem fazer companhia?
— O poema que vamos ler tem a palavra “pedra”? É uma palavra leve ou pesada?
Que som pode fazer uma pedra? O autor usa também a palavra “rosa”. É uma
palavra cheirosa ou fedorenta?
— Ir apresentando palavras que estão no texto, solicitando a reflexão sobre as suas
características, os sons ou gestos que lhe podem estar associados: árvore, gato,
pássaro, coração, vento, obrigado, adeus, fogão, solidão. Este jogo em torno
destas palavras deve ser conduzido de forma a levar a algumas expressões do
autor.
— http://195.23.38.178/casadaleitura/portalbeta/bo/documentos/
prat_ser_poeta_a.pdf
24. bibliografia
— GOMES, José António, RAMOS, Ana Margarida e SILVA, Sara
Reis da (2009): «“Palavras que não servem para falar”: uma
leitura de O Limpa-Palavras e outros poemas, de Álvaro
Magalhães» in ROIG RECHOU, Blanca-Ana, SOTO LÓPEZ, Isabel
e NEIRA RODRÍGUEZ, Marta (coord.), A Poesía Infantil no
Século XXI (2000-2008), Vigo: Edicións Xerais de Galicia, pp.
359-372 (ISBN 978-84-9914-026-1)
— RAMOS, Ana Margarida (org.) (2013). Mistérios da Escrita –
Uma aproximação à obra de Álvaro Magalhães. Alfragide: ASA
(ISBN: 9789892325132) (e-book) {colaboração de José António
Gomes, Sara Reis da Silva e Carlos Nogueira}