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JOÃO HENRIQUE DA SILVA

A CONCEPÇÃO DE HOMEM NO PENSAMENTO
EXISTENCIAL DE SOREN KIERKEGAARD

FACULDADE CATÓLICA DE POUSO ALEGRE
POUSO ALEGRE
2008
1

JOÃO HENRIQUE DA SILVA

A CONCEPÇÃO DE HOMEM NO PENSAMENTO
EXISTENCIAL DE SOREN KIERKEGAARD

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
como requisito parcial para obtenção grau de
Bacharel em Filosofia, Curso de Filosofia,
Faculdade Católica de Pouso Alegre.
Orientador: Professor Mestre Padre Wilson
Mário de Morais.

POUSO ALEGRE
2008
2

Dedico este trabalho a minha mãe Conceição Aparecida
Silva, mulher de fé, de paradoxo e discípula de Jesus
Cristo. Ela é exemplo paradoxal dos ensinamentos de
Cristo e o sentido do meu existir.
3

ELOGIO DE ABRAÃO
“Se o homem não possuísse consciência eterna, se um poder
selvagem e efervescente produtor de tudo, grandioso ou fútil, no
torvelinho das paixões obscuras, existisse só no fundo de todas as
coisas; se sob elas se escondesse infinito vazio que nada pudesse
encher, que seria da vida senão o desespero? Se assim fosse, se um
vínculo sagrado não cingisse a humanidade; se as gerações se não
renovassem como se renovam as folhas das florestas; se umas atrás das outras
fossem extinguindo como o canto dos pássaros nos bosques, atravessando o
mundo como a nave o oceano, ou o vento o deserto estéril e cego; se o
esquecimento eterno, sempre esfomeado, tivesse força suficiente para lhe
arrebatar a presa espiada, quão vã e desoladora seria a vida! Mas tal não é o
caso. Do mesmo modo que formou o homem e a mulher também Deus formou o
herói, o poeta ou orador (...). Nada será perdido dos que foram
grandes; cada um a seu modo e segundo a grandeza do objeto
que amou. Porque aquele que se amou a si próprio foi grande
pela sua pessoa; quem amou a outrem foi grande dando-se; mas
o que amou a Deus foi o maior de todos. A história celebrará os
grandes homens, mas cada um foi grande pelo objeto de sua
esperança: um engrandeceu na esperança de atingir o possível;
um outro na esperança das coisas eternas – mas aquele que
quis alcançar o impossível foi, de todos, o maior. Os grandes
homens hão-de sobreviver na memória dos vindouros, mas
cada um deles foi grande pela importância do que combateu. Porque aquele que
lutou contra o mundo, foi grande triunfando do mundo, o que combateu consigo
próprio foi grande pela vitória que alcançou sobre si – mas aquele que lutou
contra Deus foi o maior de todos. Tal é a suma dos combates travados na Terra:
homem contra homem, um contra mil; mas aquele que luta contra Deus é o
maior de todos. Tais são os combates deste mundo: um chega ao termo usando da
força, o outro desarma Deus pela sua fraqueza. Viu-se os que se apoiaram em si
próprios de tudo triunfarem e os outros, fortes da sua força,
tudo sacrificarem – mas o maior de todos foi o que
acreditou em Deus. E houve grandes homens pela sua
energia, sabedoria, esperança ou amor – mas Abraão foi o
maior de todos: grande pela energia cuja força é a
fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é a loucura, pela
esperança cuja forma é demência, pelo amor que é ódio a si
próprio”.
Temor e Tremor

Soren A. Kierkegaard
4

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em especial, à pessoa do Padre Adriano São João que me instigou e me apoiou
na confecção deste trabalho monográfico. Por meio dele, conheci o pensamento kierkegaardiano, o
que me possibilitou amadurecer na fé cristã e crescer como pessoa. Com o seu apoio e sabedoria,
ajudou-me a escrever esse trabalho.
Também rendo graças à minha família: minha amada mãe Conceição, meu querido pai
João, minhas irmãs e amigas Flávia e Diana, meu irmão Gilberto. E meus cunhados Juliano, Regina
e Hodielis. E também as minhas sobrinhas carinhosas: Larissa e Maria Eduarda. Vocês são presente
de Deus em minha vida, por isso, recebam o meu carinho e amor.
Agradeço igualmente aos meus amigos seminaristas que conviveram um bom tempo
comigo no colegial: Adriano, Edpo, Fernando, Gerson, Marcos, Lessandro, Lucas, Samuel,
Wellington, entre outros.
Expresso meu reconhecimento e estima aos amigos: Ubiracy de Souza Braga, Meire, Luís
Henrique, Vívian, Bárbara, Letícia, Poliana, Márcia, Bruna, Patrícia, Marli, Andressa, Patrícia,
Gilson e os demais amigos da loja Papel e Cia. Eles fazem parte da história da minha vida, nunca
me esquecerei dos momentos que passei com vocês.
Não posso deixar de ser grato para com a pessoa maravilhosa que é o Padre Wilson, que
me ajudou muito durante o curso de filosofia e agora me ajudou a fazer esse trabalho.
Expresso a minha estima também pelos padres, funcionários da faculdade, amigos bom
repousenses, professores da faculdade, colegas do colégio e conhecidos no decorrer da minha vida.
Também expresso carinho aos meus amigos e colegas da minha turma de faculdade, que
durante esses três anos foram pacientes para com a minha pessoa. Cada um de vocês me
proporcionou crescer em todas as dimensões humanas.
Por fim, rendo graças e louvor ao Espírito do Amor, o Paradoxo Absoluto, Deus, que me
fortaleceu e fortalece em todos os momentos da minha vida. Ele é o paradigma e o caminho da
minha vida.
5

RESUMO
Este trabalho analisa a concepção de homem no pensamento de Kierkegaard sob a perspectiva do
homem religioso. O primeiro capítulo retrata o contexto da época e a vida de Kierkegaard. O
segundo capítulo é o principal, trata do que é o homem e os estádios existenciais: o estádio estético,
ético e religioso. Este último acontece por uma relação absoluta do indivíduo com o Absoluto
através da fé e do paradoxo. E, por fim, o último capítulo que fala sobre o legado de Kierkegaard
para o século XIX e XX, e o que é a pós-modernidade, o que é torna-se cristão e a contribuição do
seu pensamento para a atualidade. Portanto, esse trabalho apresenta o pensamento sobre o Homem
em Kierkegaard, o que é fundamental para refletir sobre o homem na pós-modernidade.
Palavras-chave: Kierkegaard; Homem; Estádios existenciais; Fé; Legado Kierkegaardiano; O que
é Pós-modernidade.
6

ABSTRACT
This work analyses the conception of the man under the thought of Kierkegaard from the
perspective of the religious man. The first chapter talks about the context of the time and
Kierkegaard’s life. The second chapter is the most important, it deals with the man and the stages of
existence: the aesthetic stage, ethical and religious stages. The last one happens through an absolute
relationship between the individual and the Absolute through faith and paradox. Finally, the last
chapter, talks about Kierkegaard’s legacy for the XIX, and XX centuries, it talks about what postmodernity is, what it is to become a Christian and the contribution of his thoughts for the present.
Therefore, this work shows the thought of the Man in Kierkegaard, which is fundamental to reflect
about the man in post-modernity.
Key words: Kierkegaard; Man; Stages of existance; Faith; Kierkegaard’s Legacy; What is Postmodernity.
7

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

9

1 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO TEMPO

12

1.1 SÉCULO XIX, TEMPO DE TRANSFORMAÇÕES

13

1.1.1 Aspecto Histórico-Social

14

1.1.2 O Desenvolvimento das Ciências

16

1.1.1.3 A Filosofia

17

1.2 KIERKEGAARD: “UM HOMEM-PROBLEMA PARA SI MESMO

22

1.2.1 A Vida de Kierkegaard

23

1.2.2 As Influências Filosóficas e Religiosas

28

2 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO SER HUMANO

31

2.1 O MÉTODO

31

2.1.1 A Comunicação Indireta e Direta

32

2.2 A EXISTÊNCIA E O INDIVÍDUO

35

2.2.1 A Existência como possibilidade

35

2.3 OS ESTÁDIOS NO CAMINHO DA VIDA

37

2.3.1 O Estádio Estético

41

2.3.2 A Eleição e a Ironia

45

2.3.3 O Estádio Ético

47

2.3.4 O Humor

49

2.3.5 O Estádio Religioso

50

2.4 O PARADOXO DA VIDA CRISTÃ

52

2.4.1 A Fé e a Subjetividade

53

2.4.2 A Fé como Paradoxo

55

2.4.3 Abraão: O Cavalheiro da Fé

58

3 KIERKEGAARD: UM PENSADOR PARA A ESCUTA DO TEMPO E DO
HOMEM

63

3.1 O LEGADO KIERKEGAARDIANO

63

3.1.1 Kierkegaard: O Sentido dos seus Escritos

64
8

3.1.2 Kierkegaard e seu Legado

65

3.1.2.1 A Recepção às Obras de Kierkegaard

66

3.1.2.2 A Filosofia da Existência

67

3.1.2.2.1 O existencialismo de Kierkegaard

67

3.1.2.2.2 O que é a Filosofia da Existência?

68

3.2 A PÓS-MODERNIDADE

72

3.2.1 O Que é a Pós-modernidade?

72

3.2.2 A Religião na Pós-modernidade

76

3.3 TORNAR-SE CRISTÃO

78

3.3.1 Migalhas Filosóficas

78

3.3.2 Como tornar-se cristão?

81

3.3.3 O Amor Cristão

84

3.3.4 Crítica à Cristandade

86

3.4 MOMENTO CRÍTICO

88

CONCLUSÃO

92

REFERÊNCIAS

95

OBRAS CONSULTADAS

98
9

INTRODUÇÃO

Ao longo da história, a reflexão antropológica sempre se fez presente. O homem
sempre foi um problema para si mesmo. Desde os primórdios, em especial com Sócrates, o
homem constitui tema central de muitas investigações. Hoje não é diferente. A pósmodernidade instiga a repensá-lo e compreendê-lo. Esse estímulo origina-se por causa da
própria situação do século XXI. O homem e o mundo estão em crise. A ciência e a razão não
mais o satisfazem. Vive-se atualmente uma crise de valores. Dos tantos “ismos” que atingem
o mundo contemporâneo, o consumisno, o niilismo, o individualismo ocupam a primeira
fileira.
Levando-se em conta os diversos problemas pelos quais o mundo de hoje passa, só
mesmo um pensamento radical e determinante sobre a existência humana pode se constituir
numa alternativa viável a iluminar a vida do século XXI. Quem é que pode oferecer ao
mundo contemporâneo uma reflexão sólida e profunda sobre o ser humano senão ninguém
menos do que Soren A. Kierkegaard? Esse pensador dinamarquês experimentou, de forma
profunda, a existência. A sua vida é a sua filosofia! O seu pensamento fundamenta-se no
existir humano. Kierkegaard foi um crítico veraz. A sociedade, o homem, a razão e a religião
foram alvos da sua crítica. Ele percebeu as contradições e as incoerências existenciais.
Também foi um profeta, percebeu o esquecimento do significado homem e de transcendência,
desembocando numa crise de sentido no século posterior. Dada a força, o vigor e a atualidade
do seu pensamento, este Trabalho de Conclusão de Curso procura discorrer sobre a
Concepção de Homem no pensamento existencial de Soren A. Kierkegaard.
O homem é o ponto chave e central para compreensão do pensamento de
Kierkegaard. A reflexão sobre o homem em Kierkegaard permite responder diversos
questionamentos que acompanham a história da humanidade: O que é o homem? Qual é o
sentido da sua vida? Como tornar-se humano e não objeto homem? Como viver bem a vida?
O presente estudo sobre a visão antropológica de Kierkegaard procura conhecer, de
um modo mais profundo, a vida e o pensamento de Kierkegaard, bem como descobrir o
10

quanto ainda ele pode falar ao homem pós-moderno. Para tanto, o trabalho divide-se em três
capítulos.
O primeiro capítulo aborda o contexto histórico-social-filosófico em que se
desenvolveu a filosofia de Kierkegaard. Também trata da sua biografia e das influências
culturais e filosóficas recebidas. Na verdade, apresenta a formação do pensamento de
Kierkegaard.
O segundo capítulo é o cerne do trabalho. Trabalha a questão do significado de
homem para Kierkegaard, refletindo sobre os estádios existenciais pelos quais o homem
caminha: o estético, o ético e o religioso. E em especial, discorre sobre o estádio religioso,
que é essencial para o pensador dinamarquês. A vida religiosa é primordial para entender a
concepção antropológica kierkegaardiana. O homem religioso é a luz para viver uma vida
digna. É uma vida de paradoxo, de tensão entre o juízo e graça, mas que possibilita viver a
verdade. O estádio religioso é inclusive marcado por uma relação estreita do indivíduo com o
Absoluto. Deus é o ponto de convergência e de desenvolvimento da personalidade.
E, por último, o terceiro capítulo procura discorrer sobre o legado kierkegaardiano
nos séculos XIX, XX e XXI, como seu deu a recepção de suas obras. Esta última parte do
presente trabalho também apresenta uma reflexão sobre o que é pós-modernidade e o que
significa tornar-se cristão no mundo contemporâneo. Tornar-se cristão é uma tarefa
alternativa para que o homem pós-moderno possa viver bem consigo mesmo, com Deus e
com os outros. Ser cristão é seguir os ensinamentos de Cristo. Os seus ensinamentos
possibilitam uma melhor relação entre Deus, o homem e outros homens. Na verdade, este
capítulo quer refletir sobre a atualidade da filosofia e da teologia, em sentido acadêmico, de
Kierkegaard.
A produção literária de Kierkegaard é muito vasta, compreendendo uma série de
discursos, ensaios, cartas, anotações, diários, artigos, periódicos, livros etc. O presente
trabalho valeu-se da coletânea de textos de Kierkegaard organizada por Ernani Reichmann,
tendo como referência para a compreensão da filosofia kierkegaardiana obras de autores
como: Ricardo Q. Gouvêa, France Farago, Marcio G. Paula, Álvaro L. M. Valls, Régis
Jolivet.
Enfim, esse Trabalho de Conclusão de Curso retrata a compreensão de homem no
pensamento de Kierkegaard. Homem não é uma idéia, uma abstração, mas um indivíduo
concreto, dotado de razão e fé. A fé é o caminho para o encontro com transcendência e a
verdade, capaz de livrá-lo das angústias e do desespero. Se o ser humano se fechar em si
11

mesmo, não conseguirá ter um relacionamento autêntico consigo próprio, com Deus e com
outros. Para Kierkegaard, Deus é a perspectiva e o fundamento da vida humana.
12

1 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO TEMPO
A raça humana deixou de temer a Deus. Depois disso, veio o
castigo: passou a temer a si mesma, a ânsia pelo
fantasmagórico, e agora treme diante dessa criatura de sua
própria imaginação.
Soren Kierkegaard

A reflexão que se procura desenvolver neste primeiro capítulo tem o objetivo de destacar o
contexto histórico, social e filosófico em que viveu Kierkegaard, caracterizado sobretudo pelo
ambiente revolucionário e pela perda de alguns referenciais importantes para a existência humana.
Tal objetivo é necessário, tendo em vista a questão central deste trabalho: analisar a concepção que
Kierkegaard tem de homem, descrito através dos estádios estético, ético e religioso que, na sua
visão, são característicos do desenvolvimento do ser humano. Esses três estádios não se referem
tanto a um desenvolvimento pessoal, mas a três posturas distintas face à vida.
Diante das profundas transformações por que passa o mundo contemporâneo, regido
principalmente pela lógica do indivíduo, da sensação, da autonomia, do consumo, e até mesmo do
desencanto em relação à vida, o pensamento de Kierkegaard ganha força e atualidade, sendo capaz
de provocar no ser humano o desejo de voltar-se para dentro de si mesmo e desenvolver uma
reflexão que lhe ofereça respostas para as perguntas mais cruciais da vida: Quem sou eu? De onde
venho e para onde vou? O que significa viver?
Através de um poder literário brilhante e criador, Kierkegaard colocou a sua vida a serviço
da crítica das idéias que eram expressões que não tocavam a verdadeira seriedade da vida nem a
decisão existencial necessária para o homem “encontrar a si mesmo em seu valor eterno”. Na
verdade, o principal interesse do pensador dinamarquês foi o de descrever o que é o cristianismo
verdadeiro: “Deste modo, toda (a minha) atividade como escritor trata disto: dentro do cristianismo
ser um cristão”. Kierkegaard “não escreveu sobre o mundo, mas sobre a vida – sobre como vivemos
e como escolhemos viver” (Strathern, 1999, p. 7). Percebendo a distorção do sentido da vida na sua
época, procurou combater dois adversários fundamentais: a dissolução do indivíduo singular no
gênero humano, na história e na cultura, e a “cristandade estabelecida”, o cristianismo reduzido a
sistema de vida, a mero componente da civilização1. Kierkegaard, além de ter sido consciente da
impossibilidade do ser humano “ser edificado em massa, assistiu à ascensão da ideologia igualitária,
niveladora, que reduz cada um à medida comum do rebanho. Assistiu à irrupção das massas e
1

Estes dois problemas constituem o alvo das críticas do pensamento de Kierkegaard. A redução do ser humano a
uma mera abstração, um ente perdido nas massas, levou o pensador dinamarquês a se posicionar criticamente em
relação a Hegel; e o cristianismo tímido e acomodado da época o fez enfrentar a Igreja Luterana da Dinamarca.
13

percebeu o veneno que seria a imprensa cotidiana” (Farago, 2006, p. 247). Tudo o que
experimentou e viveu, levou-o a uma auto-reflexão sobre si mesmo, uma busca apaixonada por
aquilo que ele acredita ser o homem: alguém que não se deixa dissolver na massa, mas que no devir
concreto, no instante em que vive, decide a sua existência. As obras de Kierkegaard correspondem,
portanto, “à tentativa de traduzir nas palavras rebeldes a experiência indizível que ele teve, e dá
testemunho do fato de que a ordem do sentido sempre ultrapassa a ordem do discurso” (Farago,
2006, p. 17).
Kierkegaard não foi um homem do seu tempo, mas não deixou de escutar o tempo e a
história. Foi um cristão com “exageros”, sem tibieza no coração. Não foi a toa que conseguiu chegar
apenas aos quarenta e dois anos. Infelizmente, a sua influência não foi grande durante sua vida. Suas
idéias eram por demais diferentes das principais de sua época para serem acolhidas e utilizadas pela
sociedade. Mas no século XX, os escritos kierkegaardianos tiveram uma aceitação incomum. De
acordo com Gouvêa (2006, p. 19-20), Kierkegaard constitui “uma das figuras mais importantes e
fascinantes na história das idéias e um pensador-chave no desenvolvimento da teologia e da filosofia
do século XX”. O mesmo se pode dizer em relação ao século XXI.

1.1 SÉCULO XIX, TEMPO DE TRANSFORMAÇÕES

Conforme se afirmou acima, a Europa do início do século XIX é caracterizada pelo
ambiente revolucionário. Segundo Reale e Antiseri (2005, p. 3-4), o século XIX é marcado por
muitas mudanças radicais e claras nos aspectos histórico, social e filosófico. No aspecto histórico, o
evento mais significativo é a Revolução Francesa (1789)2, que influenciou o mundo inteiro com o
seu ideal de Liberté, Égalité et Fraternité. No social, o governo napoleônico influenciou a mudança
do parâmetro institucional, social e filosófico vigente. No que diz respeito ao aspecto filosófico,
destaca-se o Romantismo como uma resposta ao Iluminismo, propondo uma descrença na razão.
Inclusive o Idealismo de Hegel propiciou uma nova maneira de ver a história do ser humano.

2

Enquanto a revolução na França garantiu a liberdade, a da Alemanha se ocupou somente com a idéia de
liberdade. Na Alemanha, as classes intelectuais viviam totalmente indiferentes à questão da práxis. “O mundo da
ciência, da arte, da filosofia e da religião não só lhes oferecia satisfação, como também tornara-se, para elas, a
‘verdadeira realidade’, transcendentes às miseráveis condições da sociedade. A cultura era, então,
essencialmente idealística, ocupada com a idéia [grifo do autor] das coisas, mais do que com as próprias coisas”
(Arantes, 1996, p. 6). Isso favoreceu que os filósofos desenvolvessem uma filosofia idealista, sendo Hegel o
último a expressar o idealismo cultural, o último a fazer do pensamento “um refúgio da razão e da liberdade”
(Arantes, 1996, p. 6).
14

1.1.1 O Aspecto Histórico-Social

Antes de se falar do século XIX, é preciso lembrar que os seus ideais de revolução e
mudança são um legado do século XVIII, o século da Revolução Francesa3, considerada como uma
nova era na etapa histórica, influenciando o mundo e espalhando-se pela Europa, América do Norte
e a Latina. A Revolução Francesa contribuiu para que a burguesia ocupasse o poder político e
organizasse o Estado à maneira que lhe convinha. Como arma em seu favor, a burguesia utilizou a
insatisfação das camadas populares, procurando assim concretizar suas propostas liberais. (Tota;
Assis Bastos, 1994, p. 91). Como afirma Tota, a “Revolução Francesa significou o fim do
absolutismo na França e a ascensão da burguesia ao poder político, consolidando, no plano
econômico, as relações de produção capitalista” (1994, p. 91).
Na verdade, a Revolução Francesa provocou a destruição
em grande parte das estruturas políticas, sociais e econômicas do ancien régime [grifo do autor] e
lançou as bases de uma nova sociedade, que procurou pôr em prática, concretamente, os princípios
e os ideais que lentamente foram sendo elaborados no século XVIII. Ao privilégio sucede a
igualdade, e ao arbítrio ou à autoridade absoluta do soberano seguem-se a soberania popular e a
liberdade. (Martina, 1996, p. 32).

Na fase final da Revolução Francesa, conhecida como o período do Diretório, nos finais
do século XVIII, a França viveu uma grande crise, gerando insatisfação na sociedade e medo na
burguesia diante da possibilidade da mesma perder os seus privilégios. Até mesmo os países
vizinhos, regidos pelo sistema monárquico e absolutista, passaram a pressionar a França defensora
dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 98-99).
Diante dessa crise, a burguesia necessitou de um líder eficiente para estabelecer um
governo forte e estável que possibilitasse a sua consolidação como classe dominante. A melhor
alternativa foi Napoleão Bonaparte4, jovem general francês que se destacou pela sua atuação desde a
época da “Convenção”. Com ele, foi instituído, primeiramente, o Consulado, e depois o início do

3

Não é o propósito desse Trabalho de Conclusão de Curso refletir, de forma profunda, a Revolução Francesa,
mas apenas apresentar noções gerais sobre a mesma. Desse modo, ficam algumas sugestões para uma leitura
complementar: PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. História Moderna e Contemporânea. 14 ed.
São Paulo: Ática, 2006. p. 123-129. TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. A grande Revolução
Francesa. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 91-96. Também:
MARTINA, Giacomo. A Revolução Francesa. In: _____. História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do
Liberalismo. São Paulo: Loyola, 1996. v. 3. p. 11- 49.
4
Também não é objetivo desse Trabalho desenvolver um estudo minucioso sobre Napoleão. Então, é necessário
conferir os seguintes livros: PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. História Moderna e
Contemporânea. 14 ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 133-137. TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de.
Napoleão, a Europa e a América Latina. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural,
1994. p. 97-101.
15

período Napoleônico da Revolução (o seu governo), pelo qual consolidou o poder da burguesia.
(Tota; Assis Bastos, 1994, p. 98-99).
As guerras comandadas por ele procuraram conquistar bens, riquezas, através de
pilhagens. A sua atuação possibilitou a formação de um grande império, chegando a derrotar a
Rússia, a Prússia, a Áustria, a Itália, com exceção da Inglaterra, a sua maior e mais forte inimiga.
Para derrotá-la, elaborou uma estratégia econômica, conhecida como “Bloqueio Continental”
(1806). No início, o bloqueio suscitou alguns efeitos, porém, fracassou posteriormente, levando ao
declínio (1812) de um império que conheceu grandes momentos de glória (Tota; Assis Bastos,
1994, p. 99-100). A partir daí, Napoleão passou a experimentar derrotas e mais derrotas5, sendo
deposto e exilado na Ilha de Elba. O seu ímpeto de conquistador não conseguiu aprisioná-lo nessa
ilha: fugiu de Elba para a França, tomando o governo por apenas 100 dias, sendo derrotado pelos
ingleses e prussianos na Batalha de Warteloo, em junho de 1815.
Com a destituição de Napoleão do governo, Luís XVIII voltou ao trono e, em novembro
de 1815, foi selada a “Paz de Paris”, reparando, desse modo, os erros da expansão do território
francês e alterando o mapa político da Europa e das colônias.
Em 18306, os ideais da Revolução Francesa foram retomados pelas forças de oposição,
articulando-os aos princípios do liberalismo7 e do nacionalismo8 numa série de revoluções que se
arrastaram pelos continentes. Resultado de todo esse movimento revolucionário foi o surgimento do
socialismo no século XIX9.

5

As derrotas que Napoleão passou a sofrer foram sucessivas e drásticas: perdeu para a Rússia, no inverno de
1812; perdeu a Batalha de Leipzig, em 1813; foi derrotado, em 1814, por um grande exército formado pela
Inglaterra, Rússia, Áustria e Prússia.
6
Cf. TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. As Revoluções Européias: 1830 a 1848. In: NOVO
MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 105 – 111. PAZZINATO, Alceu L.;
SENISE, Maria H. V. As Revoltas Liberais de 1830 e 1848. In: _____. História Moderna e Contemporânea.
14 ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 166 – 172.
7
O liberalismo foi uma ideologia essencialmente burguesa do século XIX. O principal fundamento do
liberalismo é a liberdade individual no campo político e econômico. As suas idéias inspiraram as revoluções das
décadas de 20, 30 e 40, do século XIX, transformando profundamente a sociedade européia. Todavia, os
princípios que regem a sociedade liberal são: o dinheiro, a cultura e os interesses. (MOCELLIN, Renato. Século
XIX: Liberalismo, Nacionalismo e Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Médio. Curitiba:
Posigraf, 2004. v. 2. série 2. p. 6.).
8
O nacionalismo contribuiu para que os países expressassem o seu amor pela pátria, um retorno ao passado
(tradição) e o culto de seus particularismos. (MOCELLIN, Renato. Século XIX: Liberalismo, Nacionalismo e
Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Médio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. série 2. p 7.).
9
O Socialismo oferece uma sustentação teórica para interpretar a situação dos operários e para orientar os
embates por eles travados no século XIX. Em contraposição à economia capitalista, surgem duas correntes
socialistas: 1) o socialismo utópico, que tem como pensadores Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen; 2) o
socialismo científico, que tem como representante Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) que
publicaram o Manifesto Comunista em 1848. (MOCELLIN, Renato. Século XIX: Liberalismo, Nacionalismo e
Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Médio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. série 2. p 7-8.).
Para maior esclarecimento leia-se: TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. Socialismo. In: NOVO
MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 114 - 117.
16

1.1.2 O Desenvolvimento das Ciências

Do ponto de vista científico e cultural, o século XIX é conhecido como o século do
progresso das ciências, como a física10 e a química. Por meio de cálculos precisos, exatos, a ciência
se lançou na aventura de querer explicar a vida e desvendar os mistérios que a encerram. Era assim
inaugurada “uma nova era para a humanidade. A Era da Civilização Científica” (Arruda, 2005, p.
49).
Essa era estimulou novos inventos que contribuíram, por sua vez, com as pesquisas e
descobertas, sendo que, em muitos casos, os próprios cientistas tornaram-se inventores. Nomes
como os de Joseph-Louis de Lagrange, Monge, Pierre Simon Laplace ocupam, de forma eminente,
as fileiras dos grandes matemáticos da humanidade.
O progresso científico também se estendeu ao campo da biologia. Esta ciência levantou
problemas profundos e sérios para a antropologia filosófica e para a religião. Um exemplo dessa
situação11, segundo Reale e Antiseri (2005, p. 333), é o Charles Robert Darwin que, com sua teoria
evolutiva das espécies biológicas, contribuiu para a crise da idéia de homem que predominava há
séculos.
Há também desenvolvimentos em outros campos científicos12, tais como: a embriologia, a
fisiologia, a bacteriologia, a imunologia, a anatomia patológica, a farmacologia, a geologia, a
cristalografia, a astronomia e as ciências históricas.
Portanto, de acordo com Reale e Antiseri (2005, p.333), os avanços da ciência provocaram
um confronto com a sociedade estabelecida. As pesquisas causaram uma mudança na idéia de ser
humano e nas questões filosóficas, éticas, políticas e religiosas. Como observador atento das
transformações da sociedade européia, Kierkegaard não poupou esforços para criticar as
incoerências de um mundo que passou a ser regido pela ciência, relegando a segundo plano outros
caminhos que podem ajudar o ser humano a encontrar respostas para a sua existência.

10

Os estudiosos da física são: Augustin-Jean Fresnel, Carnot, Alessandro Giuseppe Antonio Anastásio Volta,
André-Marie Ampère e Michael Faraday.
11
Também há outros biólogos, como: Rudolph Virchow (1821-1902), Gregor Johann Mendel (1822-1884), H.
De Vries, C. Correns, E. Tschermak, Needham, Spallanzani, Louis Pasteur e Félix Archimède Pouchet.
12
Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O desenvolvimento das Ciências no século XIX. In: _____.
História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 333-357.
17

1.1.3 A Filosofia

Durante o século XIX, surgiu um novo modo de ver a realidade, de compreendê-la e
explicá-la: o Romantismo. Essa nova compreensão provocou e instigou Kierkegaard a perceber o
fracasso em explicar a realidade de uma maneira abstrata e não concreta. Ele foi um crítico veraz de
Hegel, denunciando a sua pretensão de procurar explicar a realidade de maneira dialética, fechada e
totalitária. Uma melhor exposição sobre a crítica de Kierkegaard a Hegel será retomada mais
adiante. Por enquanto, trata-se de explicar como surgiu o Romantismo, a sua definição, as suas
conseqüências e os seus representantes máximos.
O Romantismo nasceu de um movimento literário na Alemanha, entre os anos 1770 e
1780, chamado de Sturm und Drang que, segundo Reale e Antiseri,
foi comparado por alguns estudiosos a uma espécie de revolução que antecipou verbalmente em
terras germânicas aquilo que, pouco depois, seria a Revolução Francesa no campo político. Por
outros estudiosos (...) foi considerado com uma espécie de reação antecipada à própria Revolução,
enquanto se apresentou como reação contra o Iluminismo [grifo do autor], do qual a Revolução
Francesa foi a coroação (...). Trata-se da reação do espírito alemão depois de séculos de torpor, e
do ressurgimento de algumas atitudes peculiares à alma germânica. (2005, p. 6).

Essa reação ao Iluminismo13, considerado como “espírito racionalista e frio” (Marías,
1987, p. 322), propiciou o surgimento de uma nova literatura, Sturm und Drang (“Tempestade e
ímpeto”) (Reale; Antiseri, 2005, p. 4). Tal denominação originou-se do drama escrito em 1776, por
um dos representantes do movimento, Friedrich Maximilian Klinger. As características centrais
desse movimento14 são:
a) a redescoberta da natureza, que é exaltada como força onipotente e vital;
b) um estreito relacionamento com a natureza e o “gênio”, entendido como força
originária;
c) o panteísmo;
d) um sentimento pátrio que se expressa no ódio ao tirano, na exaltação da liberdade e no
desejo de violar convenções e leis externas;
e) a apreciação de sentimentos fortes e as paixões calorosas e impetuosas.
Esse movimento recebeu influências15 de James Macpherson (1736-1796), de Willian
Shakespeare, de Jean-Jacques Rousseau, de Gotthold Ephraim Lessing, de Friedrich Gottlieb
13

Cf. MARTINA, Giacomo. O Iluminismo e as Reformas. In: _____. História da Igreja de Lutero a nossos
dias: A era do Absolutismo.2 ed. São Paulo: Loyola, 2003. v. 2. p. 261-268.
14
Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Gênese e características essenciais do Romantismo. In: _____.
História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 3-6.
15
Esses autores são importantes para a compreensão do fenômeno literato, mas não é possível adentrar-se muito
no pensamento deles. Então, leia-se: Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O Movimento Romântico e a
18

Klopstock (1724-1803) e de Heinrich Lenz. Contudo, os que deram sentido e importância ao
movimento foram: Goethe, Schiller, Jacobi, Herder, entre outros. Em reação ao Sturm und Drang,
surgiu na época o Classicismo16 que, de acordo com Reale e Antiseri (2005, p. 7), teve grande
crédito na formação do espírito naquela época, impondo-se como antecedente, componente ou ainda
como um dos pólos dialéticos do Romantismo.
Mas, afinal, o que é o Romantismo?
Definir Romantismo não é tarefa fácil, pois a própria palavra tem uma longa e complexa
história. De acordo com Baugh, o termo aparece na Inglaterra, em meados do século XVII,
significando o fabuloso, o extravagante, o fantástico e o irreal. Ele foi resgatado no século
precedente para indicar cenas e situações agradáveis, típicas da narrativa e poesia romântica. Aos
poucos, o termo passou a significar o renascimento do instinto e da emoção. (Reale; Antiseri,
2005, p. 10).
Mais do que linha de pensamento, doutrina ou idéia filosófica, o Romantismo é, “um
movimento, um fenômeno” (Hargreaves, 1986, p. 29-30) que envolve não só a filosofia e a poesia,
mas também a música, as artes figurativas, a religião, a política, a economia. Existem tantos
“romantismos” quantos “românticos”. Em todos esses desdobramentos é possível encontrar o
esforço desesperador da visão concreta – diríamos quase de uma visão sensorial das razões últimas
de tudo o que “existe” e mesmo de tudo o que “é” (...). Movimento em cujo âmbito as idéias em
seu conjunto, agitam-se soltas e muitas vezes em conflito uma com as outras (...). O objetivo
visado pelo Romantismo é prolongar o sensível no supra-sensível, à guisa de novo método de
especular “metafisicamente” (...). O Romantismo prestou apreciável serviço a todas as atividades
do espírito, pela atitude de reação legítima contra a hipertrofia do esquema, a rigidez lógica e o
imperialismo das elaborações especiosas dos sistemas. (1986, p. 31-33).

O denominador comum, o elemento capaz de integrar a complexidade do fenômeno
chamado Romantismo diz respeito ao “estado de espírito” do homem romântico que sente um
conflito interior, uma insatisfação, uma inquietação, isto é, encontra-se no estado de Sehnsucht
(ansiedade, anseio, desejo irrealizável) (Reale; Antiseri, 2005, p. 11). Apesar de o Romantismo não
se definir como um conjunto de conceitos ou doutrinas, é possível apresentar as idéias fundamentais
que regem o movimento17:

Formação do Idealismo. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo:
Paulus, 2005. v. 5. p. 15 – 45. PUPI, Angelo. De Kant a Fichte. In: ROVIGHI, Sofia V. História da Filosofia
Moderna. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2000. p. 597-632.
16
O Classicismo “aspirava a transformar a natureza em forma e a vida em arte, não repetindo, mas renovando o
que os gregos haviam feito” (Reale; Antiseri, 2005, p. 7). Para melhor compreender a relação entre Classicismo e
Romantismo, leia-se: SALDANHA, Nelson. Classicismo e Romantismo. Revista Brasileira de Filosofia. São
Paulo, v. 53, n. 217, p. 489 – 504, out./dez. 2004.
17
Essas características baseiam–se em: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. A complexidade do fenômeno
romântico e suas características essenciais. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao
Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 9-14.
19

a) a sede do infinito, um anseio insaciável pelo inefável. Aqui a filosofia e a poesia se
encontram: a filosofia capta e mostra a relação do infinito com o finito, enquanto a arte
realiza a obra, manifestando o infinito no finito;
b) o novo sentido de natureza, como vida que se origina eternamente, um grande
organismo humano, um jogo móvel de forças que, operando intrinsecamente, gera todos
os fenômenos e também o homem: a força da natureza é a própria força do divino;
c) o sentido de “pânico” por causa da pertença ao uno-todo, um sentimento de ser um
momento orgânico da totalidade. No ser humano, reflete-se de algum modo o todo, assim
como o homem se reflete no todo;
d) “a função do “gênio” e a criação artística elevadas à suprema expressão do verdadeiro e
do absoluto”;
e) o anseio pela liberdade como um sentimento muito forte que expressa para muitos dos
românticos o próprio fundamento da realidade e apreciam-na em todas as suas
manifestações;
f) a reavaliação da religião, resgatando o sentimento de relação do ser humano com o
infinito e com o eterno. Desse modo, ela é elevada, colocada bem acima do plano ao qual
o Iluminismo a reduzira. Ela é o momento mais elevado do próprio espírito, superado
somente pela filosofia. Aliás, a religião aqui considerada é a cristã, compreendida, porém,
de vários modos;
g) a influência do elemento clássico e de outros temas específicos. A grecidade é
“revisitada com nova sensibilidade e amplamente idealizada”;
h) o destaque à intuição e a fantasia pela qual a filosofia é marcada, indo além da fria razão
pura finita.
O Romantismo influenciou sobremaneira os séculos XIX e XX, sendo até mesmo
denominado de “mal do século”. Denominar o movimento romântico de tal forma não deixa de ser
legítimo e adequado:
legítimo, porque a filosofia, concepção de vida, é que decide o que vai ser o estilo – o discurso da
literatura, da música, da pintura, da dança e até da política e da economia. E, mais profundamente,
da própria religiosidade, consequentemente, da moral de uma cultura e de uma civilização.
Adequado, porque a herança romântica atesta as características claras de um mal tanto
“metafísico” como moral. Do ponto de vista metafísico, porque contaminou o ar, a atmosfera, o
clima exigido pela respiração normal, serena, limpa, do pensamento, do ponto de vista moral,
porque a conduziu ao paradoxo do suicídio sentimental, precisamente pelo paraxismo da exaltação
do sentimento, que deveria passar a ser, conforme pretendia, fonte de conhecimento, em lugar da
inteligência e da razão. Mal do século, enfim porque a geração, que leu o romantismo a receita da
vida plena, padece – e como padece! – as conseqüências de ter lido um livro mal compreendido e
mal escrito, sem ter adquirido até hoje a noção de que é subproduto de uma máquina fértil em
promessas e fecunda em fiascos. (Hargreaves, 1986, p. 42).
20

Dada a complexidade extrema do Romantismo, não é possível contemplar aqui todas as
figuras que participaram desse “movimento espiritual”. Porém, não se pode deixar de mencionar os
seus principais representantes, no caso: Fichte18, Schelling19, Schlegel20, Hegel e Schleiermacher21.
Esses filósofos são muito importantes para a compreensão filosófica do mundo (Hargreaves, 1986,
p. 33). Dentre eles, merece destaque Hegel22, o filósofo que melhor apresenta um modelo de
compreensão de mundo. Para ele, a filosofia apresenta como função principal “evidenciar o
princípio que restauraria a perdida unidade e totalidade (...). Assim, a forma verdadeira da realidade
(...) é a razão, onde todas as contradições sujeito-objeto se integram, constituindo, desse modo, uma
unidade e uma universalidade genuínas” (Arantes, 1996, p. 9) 23. Portanto, a idéia é
como mero pensamento subjetivo ou como um mero ser por si (um ser que não é idéia), não se
constitui como verdade (...). Isso significa que Hegel construiu uma filosofia que pretende se
apresentar como a própria expressão da realidade, eliminando a distinção tradicional entre a idéia e
o real. Ambos seriam facetas de uma mesma coisa: o que é real é racional e o que é racional é real
(...). (Arantes, 1996, p. 14).

18

Johann Gottlieb Fichte nasceu em Rammenau, na Sacrônia, em 1762. Ele se matriculou no curso de teologia
na Faculdade de Jena, em 1780. Entre 1788 a 1790, foi preceptor em Zurique, considerado como um dos
períodos mais fecundos da sua vida. A sua obra mais significativa é a Doutrina da Ciência, cuja preocupação
central é a difusão do criticismo kantiano e a descoberta do princípio base que unifica as três Críticas de Kant em
vista da sistematização do saber. Ele também deduz a realidade por três princípios que vão influenciar a sua
reflexão sobre a lei, o Estado, o Direito e a ética. Aliás, de acordo Rovighi, Fichte constrói uma metafísica que
abrirá caminho aos sistemas de Schelling e Hegel. (2000, p. 633-656).
19
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling nasceu em Leonberg, em Württemberg, aos 27 de janeiro de 1775.
Estudou teologia, matemática e ciências naturais. As suas obras fundamentais são: Sistema do Idealismo
Transcendental (1800), Idéias para uma filosofia da natureza (1797), Filosofia e Religião (1804), Pesquisas
filosóficas sobre a essência da liberdade (1809), Filosofia da mitologia e Filosofia da Revelação (obras
póstumas). Kierkegaard foi um ouvinte das suas palestras, uma vez que a filosofia positiva de Schelling tinha um
aspecto “existencialista” limitado, provocando assim uma atenção em Soren para a existência não-dedutível da
essência. (Bausola, 2000, p. 657-690).
20
Friedrich Schlegel (1772-1829) tem como idéia filosófica principal a concepção de infinito que se chega por
meio da arte e pela filosofia. Outro conceito importante é a ironia. (Reale; Antiseri, 2005, p. 16-17).
21
Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher nasceu em Breslávia, em 1768, falecendo-se em 1834. Estudou
Teologia e Filosofia da Religião e lecionou na Universidade em Berlim, a partir de 1810. As suas obras mais
importantes são: Discursos sobre a Religião (1799), Monólogos (1800), Doutrina da Fé (1822). Também foram
publicadas postumamente as obras relacionadas às aulas dadas sobre a Dialética, a Ética, a Estética e a
Hermenêutica (Pupi, 2000, p. 626-632).
22
Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, no dia 27 de Agosto de 1770. Por ser de família
protestante teve a oportunidade de estudar filosofia e teologia no seminário protestante de Tübingem, na qual
ficou amigo de Schelling e de Hölderlin. Trabalhou como preceptor na cidade de Berna, Frankfurt, Jena,
Nuremberg (aonde atuou como Reitor do Liceu). Em 1818 lecionou na Universidade de Berlim, onde foi reitor
em 1829. Após dois anos, vem a falecer no dia 14 de Novembro. As suas obras mais importantes são: Diferença
entre o sistema filosófico de Fichte e o de Schelling (1801), Fenomenologia do Espírito (1807), Ciência da
Lógica (1812-1816), Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1818). Também são muito importantes os cursos
dados por ele sobre: Filosofia do Direito, Filosofia da História, da estética, Filosofia da Religião e História da
Filosofia.
23
Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Vida e Obra. In: HEGEL, Georg W. F. Pensadores. São Paulo: Nova
Cultural, 1996. v. 13. p. 5-19.
21

Na verdade, a realidade é a própria razão que, por sua vez, é a própria realidade. Há uma
identidade necessária e total entre elas. Tudo o que existe é um instante do absoluto, uma etapa da
evolução dialética que possibilita compreender o fenômeno do espírito que se desenvolve por
diversas fases ou etapas ao longo da história e da vida do ser humano. Toda essa reflexão hegeliana
encontra-se presente na obra Fenomenologia do Espírito24 (Reale; Antiseri, 2005, p. 110-129).
Segundo Marías, Hegel foi “o primeiro a fazer uma História da Filosofia” (1987, p. 320). Com ele
termina uma etapa da história do pensamento ocidental que procurou explicar a realidade de forma
sistemática e complexa.
A vitalidade do sistema hegeliano não deixou de influenciar a cultura e a sociedade da
época. Com relação à filosofia, surgiram duas correntes que procuraram explorar o pensamento de
Hegel, conhecidas como direita e esquerda hegelianas. Os da direita adotaram “o conteúdo
doutrinário do hegelianismo, sobretudo a tese política de que o Estado é a mais alta realização do
espírito absoluto. Os velhos hegelianos (...) desenvolveram-se em sentidos diversos, mas sempre
partindo dos conceitos básicos formulados por Hegel”. (Arantes, 1996, p. 18). Os representantes
principais dessa posição são: Karl Friedrich Göschel (1781-1861), Kasimir Conradi (1784-1849) e
Georg Andréas Gabler (1786-1853). Já os da esquerda hegeliana assumiram o método dialético e o
aplicaram “à analise dos problemas políticos, invertendo o conteúdo das doutrinas de Hegel e
opondo-se ao regime dominante da Alemanha, regime esse que era apoiado pelos adeptos da
orientação direitista”. (Arantes, 1996, p. 18). Os seus representados: David Friedrich Strauss (18081874), Bruno Bauer (1809-1882), Max Stirner (1806-1856), Arnold Ruge (1802-1880), Ludwig
Feuerbach (1804-1872), Karl Marx (1818-1883), Engels (1820-1895), Soren A. Kierkegaard, entre
outros.
Nesta altura da História da Filosofia, esgota-se uma fase e sobrevém a ela uma profunda,
na qual quase desaparece.
Isto não é estranho, porque a História da Filosofia é descontínua (...), mas no século XIX a
Filosofia aparece, além do mais formalmente negada, o que supõe um peculiar fastio de filosofar,
provocado, pelo menos parcialmente, pelo abuso dialéctico em que cai o genial idealismo alemão.
Surge então a necessidade premente de se ater às coisas, à própria realidade, de afastar das
construções mentais para se ajustar ao real tal como este é. E a mente europeia [sic] de 1830
encontra nas ciências particulares o modelo que há-de transportar para a Filosofia. A Física, a
Biologia, a História vão aparecer como os modos exemplares do conhecimento. Desta atitude
nasce o positivismo [grifo do autor]. (Marías, 1987, p. 332).

24

Segundo Hegel, a “Fenomenologia do espírito [grifo do autor] descreve ‘o caminho do conhecimento natural
que se dirige para o verdadeiro saber, ou o caminho da alma que percorre a série de suas figuras (Gestalten),
quase etapas (Stationem) que sua natureza lhe prescreve, para purificar-se e tornar-se espírito, enquanto, por
meio da experiência completa de si mesma, chega ao conhecimento do que ela é em si’ ”. (1933, apud Rovighi,
2000, p. 716).
22

Mesmo com o advento do Positivismo25, o ser humano não deixou de se ater às questões
existenciais, não só no que diz respeito à compreensão da realidade, mas também às formas e
maneiras de transformá-la em benefício da existência humana. É num contexto como esse que se
pode compreender o papel de um Karl Marx, Engels, Nietzsche26 (1844-1900), Schopenhauer27
(1788-1860) e principalmente Soren Kierkegaard (1813-1855).
1.2 KIERKEGAARD: “UM HOMEM-PROBLEMA PARA SI MESMO”

Soren Kierkegaard é um homem que pensa a vida e a própria vida, questiona-a e sente os
desejos e os sofrimentos no recôndito da sua alma. Falar dele não foi e nunca será fácil. O seu
pensamento tem sido interpretado de diversas formas28, por causa do seu estilo de escrever: escreve
refletindo e reflete escrevendo. Porém, é possível perceber o tema que rege todo o seu pensamento:
25

Segundo Reale e Antiseri, “o positivismo é o movimento de pensamento que dominou parte da cultura
européia em suas expressões não só filosóficas, mas também políticas, pedagógicas e literárias (é este o período
do verismo e do naturalismo [grifo do autor]) desde cerca de 1840 até os inícios da primeira guerra mundial. Os
traços de fundo do ambiente sociocultural que o positivismo interpreta, exalta e favorece são: uma substancial
estabilidade política, o processo da industrialização e desenvolvimentos por vezes portentosos da ciência e da
tecnologia (...); (...) confiança na força da ciência e do espírito cientifico, a seu ver mais que adequados a repor
em seu lugar todo o corpo social” (2005, p. 287). O representante mais importante é Augusto Comte (17981857), que nasceu em Montpellier (França), formando-se em matemática e ciência. A sua contribuição mais
importante diz respeito à Lei dos Três Estados, na qual Comte afirma que o conhecimento passa por três
estágios: teológico, metafísico e positivo. Cf. GIANNOTTI, José Arthur. Vida e Obra. In: COMTE, Augusto.
Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. v. 15. p. 5-14. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O
positivismo sociológico e utilitarista. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo.
São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 287 – 310.
26
Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi um influente filósofo alemão do século XIX e XX. Sua família
era luterana. Estudou na Universidade de Leipzig. Para Marías, “Nietzsche é uma mentalidade muito complexa;
tinha grandes dotes artísticos e é um dos melhores escritores alemães modernos (...). O tema central de seu
pensamento é o homem, a vida humana, e todo ele está carregado de preocupação histórica e ética (...). O mais
importante da filosofia nietzschiana é a sua ideia da vida e a sua consciencia de que existem valores
especificamente vitais [grifo do autor] (...)” (1987, p. 352 – 354). As suas obras mais significativas são: Humano,
muito humano (1879), A Gaia Ciência (1882), Assim falou Zaratustra (1883), Além do bem e do mal (1886), A
Genealogia da Moral (1887) e Ecce homo (1888), Anticristo (1888), entre outras obras. Cf. REALE, Giovanni;
ANTISERI, Dario. Friedrich Nietzsche. In: _____. História da Filosofia: De Nietzsche à Escola de Frankfurt.
São Paulo: Paulus, 2006. v. 6. p. 3 – 19.
27
Arthur Schopenhauer nasceu em Dantzig (Prússia), aos 22 de fevereiro de 1788. Filho do Henrich Floris
Schopenhauer e de Johanna Henriette Trosenier. Após o falecimento de seu pai, iniciou seus estudos
humanísticos. Em 1807, matriculou-se no Liceu Weimar. Doutrinou-se pela Universidade de Berlim com a tese
intitulada Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio da Razão Suficiente (1816). Em 1820, passou a ministrar aulas
na Universidade de Berlim. A sua obra mais importante é O Mundo como Vontade e Representação (1819). Em
1831, mudou-se para Frankfurt, permanecendo nesta cidade até seu falecimento, que se deu aos 21 de setembro
de 1860. Mesmo com os seus “exageros, Schopenhauer tornou a nos ensinar a necessidade do gênio e o valor da
arte. Ele viu que o bem supremo é a beleza, e que o prazer supremo está na criação ou no caminho para com o
belo” (Durant, 1996, p. 327). Cf. DURANT, Will. Schopenhauer. In: _____. A História da Filosofia. Trad. Luiz
Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Nova Cultura, 1996. p. 285 – 328.
28
Segundo os estudos elaborados por Jolivet, Farago, Gouvêa e Charles Le Blanc sobre Kierkegaard, existe, na
verdade, uma única leitura do pensamento de Soren. Ninguém consegue esgotar o seu pensamento. Infelizmente,
no Brasil, há poucas traduções de sua obra e poucos estudiosos, com exceção de: Ricardo Quadros Gouvêa,
Márcio G. de Paula, Álvaro L. M. Valls, Juvenal S. Filho, Alexandre Carrasco, Franklin Leopoldo e Silva e
Jonas Roos.
23

a sua existência, “a sua personalidade concreta” (Jolivet, 1957, p. 3). Ele falou de si mesmo como de
“um espião que, a serviço de Deus, descobre o crime da cristandade: o crime de chamar-se cristão
sem sê-lo”. Por isso, antes de estudar o tema central da sua filosofia, a sua concepção antropológica,
é necessário conhecer a sua vida.

1.2.1 A Vida de Kierkegaard

Soren Aabye Kierkegaard nasceu aos 5 de maio de 1813, em Copenhague (Dinamarca).
Sua família é de origem humilde. Seus pais, Michael Pedersen Kierkegaard (1756-1838) e Anne
Soerensdatter Lund (1768-1834), são naturais da Jutlândia Ocidental (Norte da Dinamarca).
O pai de Kierkegaard era pastor de ovelhas. Casou-se duas vezes: primeiro, com a Kirstine
Royen, que faleceu em março de 1796, e depois, em abril de 1797, com Anne S. Lund, empregada
da família. Juntos tiveram sete filhos29, dentre os quais S. Kierkegaard.
Kierkegaard recebeu uma educação rigorosa, marcada pela ortodoxia e pela moral
luteranas. Ele mesmo relembra os momentos de tristeza e melancolia que viveu na infância:
Não conhecia jamais a alegria de ser criança. Os suplícios horríveis que suportei perturbaram esta
paz em que deve consistir a infância, quando se pode pela aplicação, etc. dar alegria a seu pai.
Minha inquietação interior fazia com que sempre, sempre me sentisse fora de mim (...).
(Kierkegaard, 1971, p. 19).

O rigor da sua formação se expressava inclusive no modo formal de se vestir, causando
nele profundo desconforto:
Que melancolia! Até a fazenda de minhas calças, das quais tanto se zombou, tem uma triste (quase
simbólica) conexão com a melancolia de minha vida (...). A infelicidade fundamental de minha
vida, isto é, que embora criança fosse tido por velho, podia-se ver inclusive por minhas roupas.
Recordo-me muito bem de quanto me entristecia, quando criança, ao ter de usar também eu
aquelas calças curtas (...). Depois, tornei-me estudante, mas não fui jamais um jovem (...). Em
minha tristeza melancólica e em minha ironia exuberante, comprimi minha natureza nos
sofrimentos de ter me tornado velho quando tinha apenas oito anos de idade e de não ter sido
jamais um jovem (...). (Kierkegaard, 1971, p.19 – 20).

À angustia de uma infância mal vivida somou-se também a fragilidade física, compensada,
porém, pela inteligência brilhante.
Franzino, raquítico e fraco para poder valer como um homem completo, quando comparado com
outros, no ponto de vista das condições físicas que me foram negadas, melancólico, submetido ao
29

Os filhos do casal chamavam-se: Maren Kirstine (1797-1822), Nicoline Kristine (1799-1832), Petrea Severine
(1801-1834), Peter Christian (1805-1888), Soren Michael (1807-1819), Niels Andreas (1809-1833), e S.
Kierkegaard (1813-1955). Com exceção de Peter, todos os irmãos de Kierkegaard morreram muito cedo.
Enquanto Peter vai se dedicar à vida eclesiástica, Kierkegaard abraça a literária.
24

sofrimento interior, profundamente ferido de muitas maneiras no íntimo da alma, a mim só uma
coisa me foi concedida: uma inteligência eminente, com certeza para que eu não ficasse
inteiramente desarmado. (Kierkegaard, 1971, p. 20).

Os seus estudos humanísticos se deram na Escola Borgerdyd (1821-1830), que significa
“A Escola da Virtude Cívica”. Nessa instituição, Kierkegaard desenvolveu a sua perspicácia e
natureza provocativas. (Gouvêa, 2006, p. 35-36). Após a conclusão dos estudos, inscreveu-se, em
1830, no curso de teologia da Universidade de Copenhague, interessando-se mais pela literatura e
filosofia, especialmente a de Hegel, do que pela própria teologia.
Em 1833, inicia o seu Diário de um Sedutor que, futuramente, vai se tornar um livro muito
importante para a compreensão do seu pensamento (Gouvêa, 2006, p. 38). Um ano depois, morreu a
sua mãe, provocando nele “um inexorável desmoronamento de sua fé” (Gouvêa, 2006, p. 39) e
passando a viver de forma contrária à educação recebida, entregando-se até aos prazeres da
literatura, da música, da ópera, do teatro (Gouvêa, 2006, p. 40). Com o passar dos anos, o
sofrimento, a angústia e a inquietação em sua alma tornaram-se mais dilacerantes: “Isto de ser um
homem são e forte que pudesse participar de tudo, que tivesse força corporal e um espírito
despreocupado: oh! quantas [sic] vezes não desejei tal coisa noutro tempo mais recuado! Na época
de minha adolescência, meus tormentos eram horríveis” (Kierkegaard, 1971, p. 19).
Esse estilo boêmio de vida terminou aos 19 de maio de 1838, quando Kierkegaard teve
uma forte experiência espiritual, reconhecida por ele como um “grande terremoto” que contribuiu
para se reconciliar com Deus e com seu pai, que nunca aceitou o estilo de vida que Kierkegaard
abraçou. Em 1838, depois de três meses da conversão de Kierkegaard, o seu pai faleceu.
Meu pai morreu na quarta-feira (8), às duas da madrugada. Eu queria profundamente que ele
vivesse ainda dois anos e vejo em sua morte o último sacrifício que seu amor fez por mim, porque
não morreu para mim, mas por mim, para que eu possa, se ainda for possível, fazer qualquer coisa.
De tudo o que me deixou, sua lembrança, sua imagem transfigurada, não pela minha fantasia (esta
não é necessária para isso), mas por tantos traços particulares, das quais tenho conhecimento – é,
para mim, a coisa mais preciosa, a que devo esconder do mundo com o maior cuidado: porque
sinto claramente que neste momento só existe um (Emil Boesen) a que posso falar sinceramente de
meu pai, como de um “amigo fiel” que ele foi (Kierkegaard, 1971, p. 17).

Das lembranças que permaneceram na alma do jovem Kierkegaard, a mais marcante diz
respeito à “maldição” que o seu pai recebeu de Deus por causa de um pecado cometido e que Soren
relembra da seguinte forma: “O horrível que sucedeu àquele homem que um dia, quando criança, ao
guardar os carneiros nas planícies da Jutlândia, sofrendo com fome e frio, subiu a uma elevação e
amaldiçoou a Deus a esse homem [sic] não podia esquecer este fato, embora tivesse oitenta e dois
anos!” (1971, p. 18). Por meio desse relato, o pensador dinamarquês percebeu que por trás da figura
paterna há um homem pecador, frágil e, principalmente, temente a Deus, mas que não depositava
25

confiança no perdão divino. Assim, a experiência paterna contribuiu para que Kierkegaard
questionasse as verdades do “cristianismo” (Gouvêa, 2006, p. 42):
Desde o começo, eu devo tudo a meu pai. Era ele quem, melancólico como era, ao me ver
melancólico, suplicava: “Trata de amar verdadeiramente a Jesus Cristo!” (...). E por amor a meu
pai, empenhei-me em expor o cristianismo da maneira a mais verdadeira, contrastando assim como
todo esse palavrório que (na cristandade) se faz passar por cristianismo (...). (Kierkegaard, 1971, p.
19).

Na verdade, a melancolia e a angústia experimentadas por Kierkegaard se devem à própria
figura paterna:
É verdadeiramente terrível quando, em certos momentos, penso em todo esse fundo sombrio de
minha vida, desde os primeiros anos. A angústia, com a qual meu pai me enchia a alma, sua
terrível melancolia, a multidão de coisas que não posso sequer apontar. Essa mesma angústia me
dominava diante do cristianismo e, no entanto, eu me sentia atraído por ele tão intensamente.
(Kierkegaard, 1971, p. 19).

Tal angústia e melancolia irão possibilitar a Soren uma reflexão profunda sobre si mesmo
e sobre a existência humana. Para ele, a melancolia tanto pode ser boa como má:
Boa melancolia é aquela que precede um parto do eterno que se vê forçado a realizar-se, que
convida a escolher em sua vida pessoal o infinito que pode encerrar. Má é a melancolia que traduz
o sentimento de estar perdido por não haver realizado a tarefa que nos fora designada no tempo,
cuja irreversibilidade não perdoa as ocasiões malbaratadas. (Farago, 2006, p. 48).

Em outras palavras, a melancolia boa é a que permite ao ser humano se auto-conhecer e
entrar em contato com o divino, ao passo que a má melancolia não contribui para que o homem não
tenha um eu e não ser um eu. (Farago, 2006, p. 48).
A melancolia e a angústia, com a qual o seu pai enchia-lhe a alma, dilaceravam a
existência de Kierkegaard, mas também lhe possibilitavam uma nova reorientação da vida. Daí a
razão da reverência e do respeito para com o seu progenitor, apesar de todos os pesares: “Amo este
homem porque nele sinto o amor, mas o fato de ter-me tornado infeliz por alguma coisa, que não
acreditava fazer senão pelo meu bem, desperta minha simpatia – e eu o amo ainda uma vez e mais
profundamente” (Kierkegaard, 1971, p. 19). Em consideração ao pai, Kierkegaard concluiu o curso
de teologia em 1840 (Kierkegaard, 1971, p. 18), apesar de nunca ter optado pela carreira
eclesiástica, como era desejo do seu pai.
Em 1837, Kierkegaard conheceu Regina Olsen, filha de um conselheiro de Estado, por
quem vai se apaixonar anos mais tarde: “Tu, que és a rainha do meu coração (Regina), escondida no
mais profundo recesso de minha alma, dos meus mais ricos pensamentos, eqüidistante do céu e do
inferno – divindade desconhecida!” (Kierkegaard, 1971, p. 20). Regina também se apaixonou pelo
seu “rico pretendente, cujo brilhantismo e graças sociais eram temperados por um toque de sedutora
26

melancolia”. (Strathern, 1999, o 27). Ficaram noivos aos 10 de setembro de 1840. Todavia, o estilo
de vida de Kierkegaard o impediu de levar a frente tal noivado: ele tinha consciência da
incapacidade de levar uma vida como os outros, sentia-se inseguro e dificuldades para se entregar a
um relacionamento sério: “Quanto mais ela se mostrava envolvida e confiante, tanto mais sentia-se
ele desamparado, despreparado. Longe de lhe serenar o tormento, o amor só fizera perturbar a sua
consciência angustiada. Impôs-se o rompimento” (Farago, 2006, p. 52). Quanto aos motivos da
separação, é possível conjecturar que “um Kierkegaard que tivesse conservado a lembrança do
‘terremoto’ e do ‘sacrifício’30 de seu pai se sentisse incomodado diante de seu próprio desejo e da
angústia de fazer Regina entrar em seu mundo espiritual cheio de angústia” (Blanc, 2003, p. 36). Por
mais doloroso que possa ter representado a separação, esse fato não deixou de ser
a oportunidade para Kierkegaard aprofundar suas reflexões sobre a existência e sobre seu destino,
que se desdenhava como exceção [grifo do autor]. Na abertura indeterminada [grifo do autor] que
a existência é diante de muitos possíveis [grifo do autor], ele exerceu sua liberdade [grifo do autor]
fazendo uma opção [grifo do autor] difícil, desconfortável e penosa em termos de sentimentos, de
juízo de si e de juízo dos outros. (2003, p 37).

A decisão de Kierkegaard ocorreu também para evitar que a senhorita Olsen entrasse no
seu mundo de sofrimento:
E quando me sinto tão infeliz, meu único consolo é que ela não sofra comigo. É duro saber, por
experiência, que aquela que se ama não foi fiel, mas este sofrimento de todos os dias (...) se
permanecesse junto dela seria preciso que me mostrasse contente e se ainda assim ela me visse
sofrer (...) quando estou alegre, meu sofrimento constante é que ela não posso participar de minha
alegria (...). (Kierkegaard, 1971, p. 22).

Após o cancelamento do noivado, Kierkegaard defendeu sua dissertação de mestrado
sobre O Conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates, obtendo o grau de “Magister
Artium”, aos 29 de outubro de 1841. Tal obra é um ataque irônico ao Hegelianismo e ao
Romantismo através de um estudo comparativo da prática da ironia em Sócrates e nos filósofos
românticos. (Gouvêa, 2006, p. 47).
Como adversário da filosofia romântica e de um cristianismo estatal, Kierkegaard “estava
descobrindo sua espetacular vocação, ou seja, ser um missionário para a cristandade, ajudar as
pessoas que se achavam cristãs a chegar a alguma compreensão do que significava o genuíno
cristianismo”. (Gouvêa, 2006, p. 48).

30

Por “terremoto” entende-se uma reviravolta que se impôs na vida de Kierkegaard, quando ele percebeu que a
idade avançada do seu pai não era uma bênção divina, mas uma maldição; que os dons intelectuais da sua família
só existiam para sua extirpação mútua. Já por “sacrifício” compreende-se uma concupiscência e expiação por
antecipação da concupiscência – pois Kierkegaard sofreu antes de ter pecado --, legado do pai, impedindo-o de
viver um compromisso com os outros. Da mesma forma que o seu pai se sacrificou por ele, cabia-lhe também
“fechar o ciclo” e sacrificar-se pelo cristianismo. (Blanc, 2003, p. 37).
27

Depois de um curso em Berlim (1840), com Schelling, o pensador dinamarquês se
decepcionou com a filosofia romântica, regressando para Copenhague e fechando-se “numa solidão
estudiosa” (Blanc, 2003, 39). Nesse período, escreveu muitas obras com pseudônimos, tais como:
Ou (1843), Temor e Tremor (1843), A Repetição (1843), Migalhas Filosóficas (1844), Estádios no
Caminho da Vida (1845). Já com a obra Post-Scriptum Não-Científico Concludente (1846),
Kierkegaard deu início a uma nova forma de escrever, não mais fazendo recurso de pseudônimos. O
seu desejo de ser um escritor religioso tornou-se mais claro e também a idéia de que ser cristão
implica em colocar-se numa atitude de oposição à sociedade, a seus valores e à sua concupiscência.
(Gouvêa, 2006, p. 49-50).
O primeiro confronto público de Kierkegaard se deu em 1846 contra um jornal satírico
muito popular e vulgar chamado de O Corsário, jornal este que tinha o costume de criticar a alta
burguesia de Copenhague em defesa de políticas mais liberais. (Blanc, 2003, p. 40). Só Kierkegaard
foi poupado dessas críticas. Contudo, o autor dinamarquês sentiu que era uma afronta participar
“desse empreendimento de irrisão, desse esforço de ‘massificação’ do pensamento” (Blanc, 2003, p.
40). Preferia ser atacado e ridicularizado pelo jornal. Foi o que aconteceu após escrever um artigo
sobre o Corsário. Com essa atitude, o jornal deu início a um “ataque incansável e devastador a
Kierkegaard” (Gouvêa, 2006, p. 50), não poupando nem mesmo o seu modo de vestir:
Trataram-me de um modo infame, abominável, um crime nacional foi cometido contra mim, a
traição de toda uma geração. Mas, para mim, foi de um proveito indescritível. Eu era melancólico,
de uma melancolia sem fim: foi isso que me ajudou. Pois em minha melancolia eu ainda amava o
mundo: eis-me, agora, desmamado. Com a ajuda de Deus, isso acabará por sair bem. (Kierkegaard,
1971, p. 33).

Apesar dessa perseguição dolorosa e prolongada, ela “parece ter confirmado a Kierkegaard
em seu papel de mártir e reforçado sua convicção de que ele deveria sofrer a fim de expiar os
pecados de seu pai e os seus” (Blanc, 2003, p. 41). Soma-se a este fato o casamento de Regina com
Fritz Schlegel em 1847.
Durante essas tribulações existenciais não deixou de exercer a sua carreira de escritor,
produzindo as seguintes obras: Duas Eras- Uma resenha Literária (1846), Livro sobre Adler
(1846), Discursos Construtivos em Variados Estados de Espírito (1847), Obras do Amor (1847), e
Discursos Cristãos (1848), A Doença Mortal (1849), A Prática do Cristianismo (1850) e demais
discursos de caráter cristão. Segundo Gouvêa, “os últimos anos da vida de Kierkegaard foram
repletos de veementes escritos polêmicos contra os excessos da Igreja do Estado e o fracasso da
cristandade em admitir suas grandes falhas como autoproclamada representante do cristianismo”
(2006, p. 52). Um dos representantes dessa Igreja foi o bispo Mynster, que não vivia seriamente o
cristianismo: era mais um funcionário do Estado do que cristão.
28

Certamente o bispo Mynster foi grande! – Sim, mas não de uma grandeza cristã. Não, na ordem
estética foi sua grandeza foi a de um falsário. Nesse sentido, esteticamente, teve toda a minha
admiração (...). Pois Mynster foi este mestre. Foi o banco de toda uma geração. Quanto não
gozaram desta vida estes homens que um dia, na eternidade, quando tiverem de ouvir com horror
que isso não é cristianismo, mostrarão, se ouso dizer, um bilhete assinado por Mynster. Pois
Mynster foi o banco. Igualmente, no mais profundo do silêncio e da solidão em que me entretenho
comigo mesmo e minha ciência policial, eu tinha o hábito de chamar Mynster de: banco do estado
(...). (Kierkegaard, 1971, p. 37).

Quando esse bispo morreu, Martensen assumiu o seu cargo, tecendo inclusive elogios ao
seu antecessor, considerado como testemunha da verdade. Tal afirmação abalou sobremaneira a
Kierkegaard, que tinha o costume de aplicar essa expressão aos verdadeiros cristãos. Como protesto,
Kierkegaard publicou um artigo sobre a aplicação feito pelo Martensen ao Mynster, no qual afirma
que chamar Mynster daquela maneira é “um exagero, absurdo e uma falsificação” (Gouvêa, 2006,
p. 54). Os ataques à Igreja Estatal foram escritos em diversos artigos compilados numa revista
chamada O Momento.
Porém, a batalha contra a Igreja levou Kierkegaard a se afastar ainda mais da sociedade.
Devido a sua frágil saúde, teve um colapso aos 2 de outubro de 1855. Em seu leito de morte, negouse a receber seu irmão, porque era membro da Igreja oficial que ele combateu. Nem sequer
concordou em receber a comunhão das mãos de um membro daquela igreja. Faleceu aos 11 de
novembro do mesmo ano. Ao longo da sua vida lutou “pela verdade e pelo cristianismo paradoxal:
que não constitui comunidade, que se afasta dos homens para se aproximar da Transcendência”
(Blanc, 2003, p. 46). Como expressão de tudo o que viveu e escreveu, vale lembrar as palavras do
Apocalipse que o seu sobrinho leu no momento em que seu ataúde era descido à cova: “Porque és
tíbio e não és quente nem frio, estou para vomitar-te da minha boca (3, 14-16)” (Blanc, 2003, p. 46).

1.2.2 As Influências Filosóficas e Religiosas

No contexto do século XIX, o pensador S. Kierkegaard representa um marco singular,
tanto nos rumos gerais do pensamento quanto na quebra da confiança na razão ilustrada. Mais do
que ruminar sobre idéias e trabalhos de outros pensadores, Kierkegaard trouxe algo realmente novo
para a humanidade. A origem das suas reflexões se deve às suas experiências pessoais, espirituais e
filosóficas. De acordo com Gouvêa, “Kierkegaard pertence à tradição agostiniana, temperada por
sua criação luterana e pietista31, e por sua clara compreensão das questões em jogo no seu próprio
31

Segundo Blanc, o pietismo é uma “corrente religiosa proveniente do luteranismo que a princípio se arraigou na
Alemanha do século XVII para irradiar-se em seguida para vários países, entre outros lugares a Dinamarca,
colocava em primeiro plano a experiência religiosa pessoal e a reforma interior. Protestava contra uma espécie
29

tempo” (2006, p. 11). Isso não significa afirmar, de forma alguma, que Kierkegaard reproduziu sem
mais as idéias de Agostinho, do pietismo, da tradição luterana. O que ocorreu, na verdade, foi uma
apropriação feita por ele de noções de diferentes escolas de pensamento, até mesmo de pensadores
“pagãos”, a fim de fazer emergir algo novo. Segundo Gouvêa32,
Agostinho e Kierkegaard foram homens muito diferentes, vivendo em circunstancias muito
diversas, mas lidaram com as mesmas angústias e enigmas filosóficos. Ambos procuram trabalhar
filosoficamente com os conceitos fundamentais da fé cristã, conceitos como fé, verdade, amor e o
conhecimento de Deus. Tanto Kierkegaard quanto Agostinho tiveram que lidar arduamente coma
relação entre a fé cristã e a tradição filosófica ocidental. Agostinho, o bispo, tinha preocupações
práticas com a vida da igreja que queria manter unificada. Kierkegaard, por outro lado, foi o
“indivíduo” por excelência, apologista da individualidade humana, eremita na multidão, voz
clamando no deserto meio a uma cristandade desvanecente e uma intelectualidade crista em franca
crise desde o Iluminismo. (2007, p. 1).

Outro filósofo importante na formação filosófica de Kierkegaard foi Sócrates33: “figura
marcante no decorrer de toda a obra kierkegaardiana, sendo seu acompanhante e interlocutor do
primeiro ao último momento” (Paula, 2007, p. 62). De Sócrates, Kierkegaard vai apropriar o
método da ironia, tornando-se assim um instrumento usado para combater um dos seus grandes
adversários: a dissolução do indivíduo na cultura e na história34.
Tanto ele como Sócrates enfatizam o homem, enquanto indivíduo, as questões éticas e criticam um
sistema especulativo que oculta o ser humano e o divorcia da vida (...). Sócrates é no pensamento
de kierkegaardiano o tema a estratégia crítica diante da cristandade e da especulação e o exemplo
principal para uma melhor explicação da diferença entre a concepção grega e a concepção cristã
(...). Ambos almejam ser um corretivo [grifo do autor] para seu tempo, repleto de sofistas de toda a
sorte (...). (Paula, 2007, p. 64).

Nem mesmo Hegel foi poupado das críticas do pensador dinamarquês. Recai sobre Hegel
a acusação da perda do sentido de existência. Kierkegaard acusou sobremaneira o sistema hegeliano
‘burocratização’ da Igreja e uma secularização da prática religiosa. Esse protesto encontra-se também em
Kierkegaard. A principal reivindicação pietista é de um cristianismo mais fervoroso (pietas) [grifo do autor],
fundamentado em uma prática religiosa e em uma moral pessoal mais austeras. O pietismo esperava,
essencialmente, proporcionar uma vida nova e mais profunda ao luteranismo, e permitir ao crente adquirir uma
fé vivida e sentida pelo contato direto com Deus (idéia da relação nua com o Absoluto, presente em
Kierkegaard)” (2003, p. 20). Sobre o pietismo, leia-se: TILLICH, Paul. Pietismo. In: _____. História do
Pensamento Cristão. 2 ed. São Paulo: Aste, 2000. p 279 – 282.
32
Cf. Gouvêa, Ricardo Quadros. Kierkegaard lendo Agostinho: Introdução a um Diálogo Filosófico –
Teológico. Disponível em: < http://www.esnips.com/doc/2672a195-f267-4d65-b332-5702658da96b/RicardoGouvêa---Kierkegaard-lendo-Agostinho---introdução-a-um-diálogo-filosófico-teológico-(pdf-artigo)>
Acesso
em: 08 de Agos. de 2007.
33
Sócrates nasceu no ano de 470 ou 469 a. C., em Atenas. Era filho de um talhador de pedras e de uma parteira.
Nunca fundou uma escola, pois realizava os seus ensinamentos em locais públicos. Ele não escreveu nada: a sua
mensagem era transmitida pelo dialogo e pela oralidade dialética. O pensador ateniense veio a falecer em 399 a.
C., acusado de corromper os jovens e contrariar as leis da cidade. O grande legado de Sócrates é a sua
inauguração da Ética: os problemas da filosofia até seu período eram de ordem cosmológica e sofistica, mas
Sócrates chamou atenção para a alma do homem e para o seu agir ético. Cf. BENOIT, Hector. Sócrates: o
nascimento da Razão Negativa. São Paulo: Moderna, 1996.
34
Vale lembrar que além de combater os sistemas filosóficos que reduziam o ser humano a uma mera abstração,
uma figura perdida nas massas, Kierkegaard também combateu a tibieza do “cristianismo” da sua época.
30

de querer explicar tudo e demonstrar todos os acontecimentos da história e do mundo por meio da
dialética. Para Soren, nenhum sistema é capaz de engaiolar a existência (Reale; Antiseri, 2005,
p.241): o ser humano possui um modo contingente e mutável de viver a existência, não podendo ser
redutível a nenhuma lógica. Segundo Blanc, há quatro elementos que indicam a oposição de
Kierkegaard a Hegel:
a transcendência absoluta de Deus (versus imanência da idéia), transcendência da fé (versus
imanência da razão), abandono da mediação especulativa (versus sua manutenção), a necessidade
da justificação pela graça (versus alcance da verdade unicamente pelas forças da razão). Sendo
assim, a filosofia de Soren Kierkegaard não se construiu em oposição à de Hegel: ela foi levada
por posições próprias e autônomas a tomar um sentido oposto (...). Sua filosofia não é uma
filosofia de oposição, mas de posição: a do caráter radical da mensagem cristã [todos os grifos são
do autor] (2003, p. 123).

Além desses pensadores, outros tantos contribuíram com a formação do pensamento
kierkegaardiano, tais como: Tertuliano e outros Padres da Igreja, Santo Anselmo35, Gottfried
Leibniz, Lessing36, Immanuel Kant37, Emil Boesen, Poul Martin Moeller e Ludwig Feuerbach38. A
todos eles, sem dúvida, Kierkegaard é devedor, mas não se pode esquecer de que o pensador
dinamarquês foi um homem, um escritor, um cristão que fez a diferença, tanto por sua coragem de
enfrentar os poderes instituídos da época, quanto por ter resgatado o verdadeiro sentido da
existência.
Minha missão: “limpar o terreno” – Não sou um apóstolo que anuncia algo em nome de Deus e
com autoridade. Não, estou a serviço de Deus, mas sem autoridade. Minha missão é de limpar o
terreno, para que Deus possa avançar (À margem: minha missão não é a de limpar o terreno com
os meios comuns, mas por meio do sofrimento). Deduz-se então facilmente porque devo ser
literalmente um homem sozinho e mantido em grande fraqueza e debilidade. Porque, se aquele que
há de limpar o terreno avançasse à frente de alguns batalhões – claro que, no plano humano, este
parece um método magnífico e o mais seguro para consegui-lo. Mas existiria o perigo de que, em
lugar de limpar, esse homem tomasse conta do lugar e de tal maneira que Deus acabaria por não
poder agir verdadeiramente. Minha missão é a de limpar o terreno. Sou um policial, se quiserem.
Mas a polícia deste mundo procede com a força e prende os outros – ao contrário, a polícia do alto
procede por meio do sofrimento e exige antes de ser presa. (1971, p. 45 – 46).

O modo como desenvolveu essa missão, o método usado nas suas reflexões e os temas que
constituíram objeto de sua reflexão serão temas do próximo capítulo. Por ora basta dizer que o ponto
de partida das reflexões de Kierkegaard foi sempre o homem singular, vivo, existencial, com a
totalidade de seus afãs e de seus problemas.
35

Cf. VALLS, Alvaro L. M. Santo Anselmo de Copenhague. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre
a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 197 – 213.
36
Cf. VALLS, Alvaro L. M. O Problema das Migalhas. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a
ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 158 – 160.
37
Cf. VALLS, Alvaro L. M. Algumas comparações com Kant. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios
sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 123 – 124.
38
Cf. VALLS, Alvaro L. M. As Migalhas Filosóficas. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a
ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 155 – 158.
31

2 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO SER HUMANO
A superioridade do homem sobre o animal está pois em ser
suscetível de desesperar, a do cristão sobre o homem natural,
em sê-lo com consciência, assim como a sua beatitude está
em poder curar-se.
Soren Kierkegaard

O século XIX foi um período da história da humanidade marcado por grandes revoluções
tanto na ciência como na sociedade. Todas essas mudanças afetaram significativamente o ser
humano, forçando-o a repensar a sua situação no mundo. Todas as seguranças que o Iluminismo
oferecia desapareceram. A rainha razão, que se vangloriava de ser a suprema forma de
conhecimento e única luz para a compreensão da vida, já não é capaz de oferecer segurança e
consistência para a existência humana. Mal-estar, desencanto com a vida, desânimo, incertezas,
tibieza... são alguns sentimentos que se apoderaram do homem do século XIX.
Depois de se analisar o contexto histórico, social e filosófico em que viveu Kierkegaard, é
necessário continuar a investigação sobre o pensador dinamarquês, concentrando agora a atenção
sobre a visão que ele tem de homem, especialmente do homem religioso. Como Nietzsche39,
Kierkegaard percebeu os males da sua sociedade e procurou ajudar o ser humano a encontrar a si
mesmo no devir concreto, no aí, no instante concreto em que vive e decide a sua existência. Tanto a
desvalorização da subjetividade como a forma do cristianismo reduzido a mero componente da
sociedade incomodaram profundamente a inteligência do pensador dinamarquês. O objetivo
principal de Kierkegaard foi o de descrever o que é o cristianismo verdadeiro. Para isso, é necessário
deixar-se interpelar por Deus, já que todo ser humano está situado diante de Deus na concreção de
seu próprio viver.

2.1 O MÉTODO

As obras que Kierkegaard escreveu entre 1843 a 1846 são classificadas como
heteronímicas, ou seja, obras escritas por meio de pseudônimos, cuja comunicação se dá de forma
39

Nietzsche exerceu também o papel de um profeta, pois previu que a raiz de todos os males que atingem o
homem contemporâneo encontra-se no niilismo: “Descrevo aquilo que virá: o advento do niilismo. Posso
descrevê-lo agora porque agora se produz algo necessário – e os sinais disso estão por toda a parte, para vê-los
faltam apenas os olhos (...). O homem moderno crê experimentalmente ora neste, ora naquele valor, para depois
abandoná-lo; o círculo de valores superados e abandonados está sempre se ampliando; cada vez mais é possível
perceber o vazio e a pobreza de valores; (...). No fim, o homem ousa uma crítica dos valores em geral; reconhece
sua origem; conhece o bastante para não acreditar mais em valor nenhum; eis o pathos [todos os grifos são do
autor], o novo tremor... A história que estou relatando é a dos dois próximos séculos”. (Nietzsche, 1971, p. 110,
apud Reale, 1999, p. 18-19).
32

indireta. Quase todas as obras mais famosas de Soren pertencem a esse período. Na verdade, os
pseudônimos foram usados pelo autor para instigar o leitor, para extrair do sujeito a verdade,
semelhante ao método maiêutico socrático. Além desse método, Kierkegaard fez uso da
comunicação direta, presente nas obras escrita de 1843 a 1855. Esta comunicação direta constitui as
obras veronímicas, feitas de “discursos edificantes”.

2.1.1 A Comunicação Indireta e Direta
Para escrever as obras pseudonímicas – comunicação indireta -, Kierkegaard se inspira nas
Cartas confidenciais sobre a Lucinda, de Scheleiermacher, e no romance filosófico Wilhelm
Meister, de Goethe (Farago, 2006, p. 58). Essas obras do pensador dinamarquês são apresentadas
por meio das máscaras de pseudônimos que permitem que os autores se expressem na primeira
pessoa, com as suas próprias opções existenciais. Conseqüentemente, os pseudônimos possibilitam
mudanças interiores no leitor através de movimentos existenciais que só ele pode executar. Por isso,
Kierkegaard iniciou a sua carreira literária escrevendo obras com pseudônimos. Essas obras são
maiêuticas. O método maiêutico é o método usado por Sócrates. Tem o objetivo de descobrir a
verdade40, descobrir as respostas para os dilemas existenciais da vida humana. A verdade que o ser
humano deve descobrir possui um elemento subjetivo, de apropriação, ou seja, a verdade tem que
ser verdadeira “para mim” (a verdade tem que se tornar viva em mim). (Gouvêa, 2006, p. 238-239).
Os pseudônimos mais importantes que Kierkegaard usou nas suas obras heteronímicas ou
estéticas são os seguintes41: Alguém que Ainda Vive, Victor Eremita, “A”, Johannes o Sedutor, Juiz
Vilhelm (“B”), O Pastor de Jylland, Johannes de Silentio, Constantin Constantius, O Jovem,
Johannes Climacus, Vigilius Haufniensis, Nicolaus Notabene, A.B.C.D.E.F.Godthaab, Hilarius
Bogbinder, Willian Afham, O Modista, Frater Taciturnus, Quidam, Inter et Inter, Procul, Petrus
Minor, H.H., Anti-Climacus.
De fato, a comunicação indireta presente especialmente nas primeiras obras de
Kierkegaard quer, na verdade, transmitir uma mensagem excepcional para os dinamarqueses
oficialmente cristãos, a fim de que percebam que eles não são de modo algum cristãos. O objetivo
do pensador dinamarquês é instigá-los, confundi-los e libertá-los de um cristianismo falsário,

40

Kierkegaard e Sócrates dizem que a verdade é verdade para o sujeito. Somente o sujeito apropria-se a si
mesmo a verdade. Todavia, contrapõem-se no momento de explicar a relação do sujeito para com a verdade.
Para Soren, o indivíduo é a não-verdade, ao passo que para Sócrates basta o individuo recordar-se da verdade
que já estava no seu interior.
41
Para aprofundar mais sobre eles: Cf. GOUVÊA, Ricardo Q. Os Heterônimos de Kierkegaard. In: _____.
Paixão pelo Paradoxo: Uma Introdução a Kierkegaard. São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 309 – 315.
33

acomodado, tíbio. As suas obras estéticas funcionam como espelhos, onde a sociedade
dinamarquesa é chamada a se olhar e a se ver42. (Gouvêa, 2006, p. 241).
Os “autores” das obras estéticas foram criados por Soren como autores-personagens que
inclusive compartilhavam com Kierkegaard muitas das suas convicções. Há, porém, exceção, pois é
possível encontrar em muitas das obras estéticas idéias que não condizem com algumas das
convicções de fé professadas por Kierkegaard. Em outras palavras: os heterônimos43, “outros
nomes” de Kierkegaard, formulam e expressam idéias diferentes em conteúdo (filosofia), em estilo,
em compreensão e nas práticas de vida do pensador dinamarquês. (Gouvêa, 2006, p. 242):
O que foi escrito é, pois meu, mas somente na medida em que me coloco na boca da personalidade
poética real, que produz sua concepção de vida tal como se percebe pelas réplicas, pois minha
relação com a obra é ainda mais exterior que aquela do poeta que cria personagens e, no entanto, é
ele mesmo o autor do prefácio. Sou, com efeito, impessoal ou pessoalmente um assoprador da
terceira pessoa, que poeticamente criou autores, os quais são os autores de seus prefácios e mesmo
de seus nomes. Não há, pois, nos livros de pseudônimos uma só palavra que seja minha. Não tenho
nenhuma opinião a seu respeito a não ser a de um terceiro, nem conhecimento de sua importância
senão enquanto leitor, nem a menor relação privada com eles, pois seria impossível ter uma relação
com uma mensagem duplamente refletida44. (Kierkegaard, 1971, p. 47).

Neste caso, os heterônimos funcionam como um grupo excêntrico e curioso. São alteregos, personae de Kierkegaard. Apresentam pontos de vista, estilos, tons, vocabulários diferentes de
Kierkegaard, existindo até mesmo, entre eles, discordância e contradição. (Gouvêa, 2006, p. 245).
Porém, não se pode esquecer de que a heteronomia constitui um método socrático, cujo principal
objetivo, como já se acenou, é chamar as pessoas para um verdadeiro compromisso com o
cristianismo e com a interioridade45.
Não obstante, como já disse, eu não tenho nada a fazer com o conteúdo da obra. Minha tese era
que a subjetividade, a interioridade é a verdade. Era ela a meus olhos o decisivo problema do
cristianismo e foi nesse sentido que procurei seguir um esforço semelhante, encontrado nos livros
pseudonímicos que, até o ultimo, abstiveram-se honestamente de ensinar e em particular devo
tomar em consideração o último [Post-Scriptum] porque ele apareceu após minhas “Migalhas”,

42

A alusão ao espelho encontra-se no epigrama de G. C. Litchtenberg, usado por Kierkegaard em: In Vino
Veritas: “Tais obras são espelhos: se é um macaco a olhar, não pode ver-se um apóstolo”. (2005, p. 10).
43
De acordo com Gouvêa, é melhor usar o termo heterônimo porque essa palavra implica numa síntese de
personae de elementos ficcionais e autobiográficos. Ou seja, as palavras dos heterônimos não são as palavras de
Kierkegaard, mas são faladas por genuínos alter-egos. Os heterônimos são inclusive usados propositalmente para
deixar os livros falarem por si mesmos, interpretados por seu próprio valor e não pelo autor. (Gouvêa, 2006, p.
243-245).
44
No final desse trecho, Gouvêa diz que Kierkegaard não teria problema em assumir as suas idéias de modo
indiretamente, mas as obras heteronímicas precisam ser interpretadas juntamente com as obras veronímicas,
visto que a autoria de Kierkegaard não era um segredo, mas um modo de os leitores se identificarem com os
autores dos livros, possibilitando assim uma reflexão interior. (Gouvêa, 2006, p. 249-250).
45
Além dessa intenção, Blanc diz que “a pseudonímia remete claramente a uma questão dolorosa, a da
paternidade: segundo a carne (Michael Pedersen, o culpado), segundo o espírito (o bispo Mynster, o
comprometido), segundo a condição particular (Soren, o eterno noivo de Regina), segundo a condição pública
(Kierkegaard, o autor), etc.”. (2003, p. 112).
34

lembra os precedentes recriando-os livremente e, através do humor, como zona-limite, define o
estágio religioso. (Kierkegaard, 1971, p. 56).

Vale lembrar que Kierkegaard tinha o costume de chamar o método da comunicação
indireta de um processo de “comunicação duplamente refletida”: a primeira reflexão levaria a idéia
a ganhar sua expressão adequada na palavra; a segunda reflexão enfatizaria a relação intrínseca da
comunicação com o comunicador. Isso significa que a comunicação é qualificada pela reflexão,
sendo, portanto, uma comunicação indireta. A insistência de Kierkegaard na “comunicação
duplamente refletida” o levou a abraçar a heteronomia. (Gouvêa, 2006, p. 251). Portanto,
comunicação indireta
implica, não que há muitos significados possíveis e legítimos para um texto, mas sim que o texto
pode ser interpretado de muitas formas apesar de seu significado genuíno que sempre está oculto, e
o interprete revelará seu próprio coração e será julgado pelo texto conforme torne evidente seu
próprio modo de lê-lo. (Gouvêa, 2006, p. 251-252).

No entanto, como o objetivo do método de Kierkegaard é provocar movimentos
existenciais, alcançar a simplicidade, a comunicação deve tornar-se comunicação direta. Foi isso
que Kierkegaard procurou provar: “a verdadeira comunicação indireta é acompanhada da
comunicação direta” (Gouvêa, 2006, p. 252). Mas quando foi que Kierkegaard colocou isso em
prática? O pensador colocou em prática esse pensamento ao escrever a sua chamada “obra
veronímica paralela”, composta de comunicação direta46.
Kierkegaard insistiu que “a comunicação direta estava presente desde o início, pois o livro Dois
Discursos Construtivos, de 1843, foram de fato simultâneos com Ou. E para que se estabelecesse
definidamente essa comunicação religiosa como contemporânea, cada novo livro heteronímico
era acompanhado quase simultaneamente por uma pequena coleção de Discursos Construtivos –
até o surgimento do Post-Scriptum Concludente, que fechou a questão sobre o problema da obra
toda, ou seja, como tornar-se um cristão. A partir deste momento os discretos indícios de
comunicação religiosa direta cessam e aí começa a produção puramente religiosa: Discursos
Construtivos em Variados Estados-de-Espírito, Obras do Amor, Discursos Cristãos”. (Gouvêa,
2006, p. 252).

Toda a genialidade literária de Kierkegaard teve apenas um objetivo: descrever o que é o
cristianismo. Por isso, antes de ser um poeta (o seu estilo de escrever e a estrutura das suas obras
comprovam a sua veia poética), Soren foi um escritor religioso crítico:
Esta pequena obra [Post-Scriptum] se propõe, pois, dizer o que sou verdadeiramente como autor,
que fui e sou um autor religioso, que toda minha atividade literária relaciona-se com o cristianismo,
com o problema do tornar-se cristão, com objetivos polêmicos diretos e indiretos contra esta

46

Tal comunicação não é totalmente direta, pois, se fosse, seria um conhecimento teórico, ordinário, cientifico e
especulativo. Mas é direta na medida em que Kierkegaard se responsabiliza por seus discursos, que são como
testemunhos que caem sob a rubrica de comunicação indireta, uma vez que esses escritos têm uma função prática
cristã. (Gouvêa, 2006, p. 235-236).
35

formidável ilusão que é a cristandade ou a pretensão que todos os habitantes de um país são,
enquanto tais, cristãos. (Kierkegaard, 1971, p. 57).

Acima de tudo, Kierkegaard foi um crítico veraz do século XIX. Seu poder literário
brilhante e criador foi colocado a serviço da afirmação da singularidade do ser humano. Seu
pensamento procura demonstrar o verdadeiro sentido da vida. Cada homem é responsável por
buscar a si não na massa e nas instituições, mas no seu próprio interior, no contato com o
transcendente.

2.2 A EXISTÊNCIA E O INDIVÍDUO

O homem é um ser-no-mundo, encontra-se diante de muitas possibilidades. Para ele tudo é
possível. Ele goza do poder de escolher, de determinar a sua vida, sendo, porém, responsável pelas
escolhas que faz. O ser humano não é um pensamento especulativo ou uma entidade abstrata: é um
individuo concreto, dotado de razão e emoção. Ele é a síntese do corpo, da alma e de espírito. A sua
existência o coloca sempre na situação de angústia e desespero, que só podem ser superados pelo
auxilio divino.

2.2.1 A Existência como possibilidade

Segundo Blanc, a pedra angular da construção filosófica de Kierkegaard é o conceito de
possibilidade (2003, p. 47). O pensador dinamarquês procurou reconduzir a compreensão de toda a
existência humana a essa categoria e demonstrar o caráter negativo e paralisante da possibilidade
como tal47 (Abbagnano, 1978, p. 10).
A palavra possibilidade deriva da palavra possível que, por sua vez, vem do latim posse potis esse que significa “ter em seu poder” , “ser patrão de”. O possível significa que o “eu” pode
fazer e realizar algo na experiência concreta e vivida.
Para Kierkegaard, é o possível caracterizar o existir do homem, uma existência pela qual o
homem entra em contato como o mundo e com os outros. Também é “preocupação com sua
sobrevivência, e antecipação e projeto, desenvolvimento de um programa que está se escrevendo,
saída fora de si da vida” (Blanc, 2003, p. 48). Neste caso, a existência se torna uma contingência
absoluta: o homem tem diante de si uma multiplicidade de possibilidades pelas quais escolhe. O
47

O aspecto do negativo da possibilidade significa que todas as possibilidades são possibilidades-de-sim e
possibilidades-de-não, pois no seu projetar-se o homem se vê diante do nada, angustia-se com o mundo.
(Abbagnano, 1978, p. 12-14).
36

mundo exige uma resposta, uma escolha de cada ser humano. A existência não é um objeto, mas
aquilo a partir do qual cada um experimenta, pensa e age.
Existir, para o homem, não é o equivalente de ser (Vaeren) ou de ter a existência, empírica,
imediata, a existência de fato (Tilvaerelse). O homem é o único existente, distinto dos outros entres
que só tem uma existência de fato e não sabem que são. Muito mais, para o homem, sua existência
é uma tarefa, uma exigência: a de ter que devir, edificar-se. (Farago, 2006, p. 75).

A existência coloca o ser humano na tarefa de si mesmo, interessado por si mesmo e
voltado para os possíveis: ele só pode ser diante de suas opções. Quando o homem age, ele ec-siste,
mantém-se fora de si mesmo, projeta-se na realidade através de suas ações. Consequentemente, a
existência se torna autêntica, porque faz sentido por ela mesma. (Farago, 2006, p. 75-76). Em outras
palavras: quando o ser humano enfrenta os possíveis da realidade, dá forma à sua singularidade,
mostra-se como o Individuo, e não uma entidade abstrata. (Blanc, 2003, p. 50).
Contudo, o homem, na sua forma biológica de corpo, lançado no mundo com sua
reverberação psíquica (alma), necessita de chegar ao espírito, à faculdade da síntese reflexiva, para
arrancar da sua animalidade e se realizar como pessoa concreta. (Farago, 2006, p. 76). Tal processo
exige uma nova compreensão do ser humano como síntese de corpo e alma, síntese que não pode
ser concebível sem se ligar a um terceiro: o espírito48. Tal síntese constitui a essência do homem, o
qual não precisa se livrar do corpo49 para entrar em contato com Deus, pois a síntese na visão cristã
se realiza por meio de uma
complexidade de três termos: a da alma e a do corpo passando pelo espírito [grifos do autor]. Se a
essência do homem reside em ser bem-sucedido nesta relação referindo-se a Deus, de jeito algum
ele poderia furtar-se a ela, e, muito longe de preconizar a fuga do mundo (...). Trata-se, portanto,
para o homem, de ele se deixar elevar do próprio coração to tempo à vida eterna (...). (Farago,
2006, p. 79).

Para Kierkegaard, o fato de o Indivíduo estar dentro e diante da existência, a sua existência
é possibilidade, possibilidade que não deixa de causar angústia no homem, um sentimento de malestar. (Blanc, 2003, p. 50-51). De acordo com Farago, a angústia é
O lugar onde o si mesmo começa a advir, experiência cuja tonalidade afetiva é absolutamente
única, dado que, diferentemente do receio ou do medo, a angústia não tem objeto, não é de forma
alguma intencional, privada que é de toda referencia. Ela é o pathos [grifo do autor] em cujo seio o
indivíduo começa a chegar à consciência de si mesmo. (2006, p. 80).

Além da angústia, o desespero também faz parte da existência humana, pois o homem,
diante das diversas possibilidades, dos limites delas e da situação difícil de escolher, entra em
48

Sobre angústia e desespero, Kierkegaard escreveu de modo profundo nos livros: O Conceito de Angústia, A
Doença Mortal.
49
Contrapõe-se ao dualismo, pelo qual o corpo é visto como um túmulo, necessitando se desligar do corpo para
entrar em contato com o transcendente. Essa concepção gera uma profunda desvalorização do corpo.
37

desespero. Essa situação limite, só pode ser superada pela ajuda de Deus. É Deus quem o salva.
Segundo Kierkegaard, a relação que se estabelece entre Deus e o homem, quando este se encontra
numa situação de angústia, constitui, na verdade, uma relação possível e não necessária. Isso não
significa afirmar que a fé não alivia condição humana. “Ter fé é assumir os riscos [grifo do autor]
que derivam das possibilidades da existência” (Blanc, 2003, p. 51).
Enfim, a existência humana ou o Indivíduo encontra-se sempre diante das possibilidades,
colocando-o em relação consigo mesmo, com o mundo e com Deus. O desespero, a angústia e o
paradoxo são situações concretas que caracterizam essa relação do homem a partir das
possibilidades lhe apresentadas. (Blanc, 2003, p. 52).

2.3 OS ESTÁDIOS NO CAMINHO DA VIDA

Como foi dito anteriormente, o ser humano vive em relação consigo mesmo, com o
mundo e com Deus. Mas o homem é finito. Essa finitude é “complexa e estruturalmente fadada ao
conflito interior, à tensão ou ao desequilíbrio entre elementos que se tornaram heterogêneos pela
consciência e pela divisão que ela introduz entre a alma e o corpo, entre interioridade e a
exterioridade” (Farago, 2006, p. 86). O eu não é uma identidade abstrata, mas essencialmente
relação viva consigo mesmo, em primeiro momento. A síntese entre o infinito e o finito, o temporal
e o eterno, não se dá, porém, por causa da relação entre alma e corpo. É a reflexividade da relação,
que vai se desdobrando em sua dinâmica no tempo, que possibilita tal síntese (Farago, 2006, p. 86).
Neste caso, o eu é a relação entre a alma e o corpo que se relaciona reflexivamente consigo mesmo
por intermédio do espírito:
A reflexividade constitui o eu, a singularidade de cada um, arrancando-o à impessoalidade da
espécie e aos falsos selves [grifo do autor] que são forjados pelas convenções sociais. Mas o
homem não se reduz a esta relação simples. Sua estrutura é mais complexa. Esta complexidade
reflexiva que é a existência humana, “este filho gerado pelo infinito e o finito, pelo eterno e o
temporal”, acha-se na situação de se esforçar continuamente para equilibra a relação, a fim de
realizar o mais harmoniosamente possível a síntese entre seus elementos heterogêneos (...). “Essa
relação que se relaciona consigo mesma, um eu, deve ou se ter posto a si mesma ou então haver
sido posta por outra coisa”. Neste caso, o terceiro que é a relação, ou seja, o espírito, se relaciona
com aquilo que pôs toda a relação, isto é, Deus. Resgatar de maneira consciente a relação com
Deus, da qual procedemos inconscientemente e originalmente, significa nascer para si mesmo de
verdade. (Farago, 2006, p. 86-87).

O homem não é um ser predeterminado, mas se auto-determina, fazendo escolhas. O seu
existir está marcado por escolhas, o que implica ser responsável por elas. Na medida em que se
desenvolve livremente, o ser humano pode se realizar como Indivíduo, como um Eu, com ajuda de
Deus, pois interioridade humana apela para o transcendente. Para não se perder na vida, homem
A concepção de homem em Kierkegaard e sua contribuição para a pós-modernidade
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A concepção de homem em Kierkegaard e sua contribuição para a pós-modernidade

  • 1. 0 JOÃO HENRIQUE DA SILVA A CONCEPÇÃO DE HOMEM NO PENSAMENTO EXISTENCIAL DE SOREN KIERKEGAARD FACULDADE CATÓLICA DE POUSO ALEGRE POUSO ALEGRE 2008
  • 2. 1 JOÃO HENRIQUE DA SILVA A CONCEPÇÃO DE HOMEM NO PENSAMENTO EXISTENCIAL DE SOREN KIERKEGAARD Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção grau de Bacharel em Filosofia, Curso de Filosofia, Faculdade Católica de Pouso Alegre. Orientador: Professor Mestre Padre Wilson Mário de Morais. POUSO ALEGRE 2008
  • 3. 2 Dedico este trabalho a minha mãe Conceição Aparecida Silva, mulher de fé, de paradoxo e discípula de Jesus Cristo. Ela é exemplo paradoxal dos ensinamentos de Cristo e o sentido do meu existir.
  • 4. 3 ELOGIO DE ABRAÃO “Se o homem não possuísse consciência eterna, se um poder selvagem e efervescente produtor de tudo, grandioso ou fútil, no torvelinho das paixões obscuras, existisse só no fundo de todas as coisas; se sob elas se escondesse infinito vazio que nada pudesse encher, que seria da vida senão o desespero? Se assim fosse, se um vínculo sagrado não cingisse a humanidade; se as gerações se não renovassem como se renovam as folhas das florestas; se umas atrás das outras fossem extinguindo como o canto dos pássaros nos bosques, atravessando o mundo como a nave o oceano, ou o vento o deserto estéril e cego; se o esquecimento eterno, sempre esfomeado, tivesse força suficiente para lhe arrebatar a presa espiada, quão vã e desoladora seria a vida! Mas tal não é o caso. Do mesmo modo que formou o homem e a mulher também Deus formou o herói, o poeta ou orador (...). Nada será perdido dos que foram grandes; cada um a seu modo e segundo a grandeza do objeto que amou. Porque aquele que se amou a si próprio foi grande pela sua pessoa; quem amou a outrem foi grande dando-se; mas o que amou a Deus foi o maior de todos. A história celebrará os grandes homens, mas cada um foi grande pelo objeto de sua esperança: um engrandeceu na esperança de atingir o possível; um outro na esperança das coisas eternas – mas aquele que quis alcançar o impossível foi, de todos, o maior. Os grandes homens hão-de sobreviver na memória dos vindouros, mas cada um deles foi grande pela importância do que combateu. Porque aquele que lutou contra o mundo, foi grande triunfando do mundo, o que combateu consigo próprio foi grande pela vitória que alcançou sobre si – mas aquele que lutou contra Deus foi o maior de todos. Tal é a suma dos combates travados na Terra: homem contra homem, um contra mil; mas aquele que luta contra Deus é o maior de todos. Tais são os combates deste mundo: um chega ao termo usando da força, o outro desarma Deus pela sua fraqueza. Viu-se os que se apoiaram em si próprios de tudo triunfarem e os outros, fortes da sua força, tudo sacrificarem – mas o maior de todos foi o que acreditou em Deus. E houve grandes homens pela sua energia, sabedoria, esperança ou amor – mas Abraão foi o maior de todos: grande pela energia cuja força é a fraqueza, grande pelo saber cujo segredo é a loucura, pela esperança cuja forma é demência, pelo amor que é ódio a si próprio”. Temor e Tremor Soren A. Kierkegaard
  • 5. 4 AGRADECIMENTOS Agradeço, em especial, à pessoa do Padre Adriano São João que me instigou e me apoiou na confecção deste trabalho monográfico. Por meio dele, conheci o pensamento kierkegaardiano, o que me possibilitou amadurecer na fé cristã e crescer como pessoa. Com o seu apoio e sabedoria, ajudou-me a escrever esse trabalho. Também rendo graças à minha família: minha amada mãe Conceição, meu querido pai João, minhas irmãs e amigas Flávia e Diana, meu irmão Gilberto. E meus cunhados Juliano, Regina e Hodielis. E também as minhas sobrinhas carinhosas: Larissa e Maria Eduarda. Vocês são presente de Deus em minha vida, por isso, recebam o meu carinho e amor. Agradeço igualmente aos meus amigos seminaristas que conviveram um bom tempo comigo no colegial: Adriano, Edpo, Fernando, Gerson, Marcos, Lessandro, Lucas, Samuel, Wellington, entre outros. Expresso meu reconhecimento e estima aos amigos: Ubiracy de Souza Braga, Meire, Luís Henrique, Vívian, Bárbara, Letícia, Poliana, Márcia, Bruna, Patrícia, Marli, Andressa, Patrícia, Gilson e os demais amigos da loja Papel e Cia. Eles fazem parte da história da minha vida, nunca me esquecerei dos momentos que passei com vocês. Não posso deixar de ser grato para com a pessoa maravilhosa que é o Padre Wilson, que me ajudou muito durante o curso de filosofia e agora me ajudou a fazer esse trabalho. Expresso a minha estima também pelos padres, funcionários da faculdade, amigos bom repousenses, professores da faculdade, colegas do colégio e conhecidos no decorrer da minha vida. Também expresso carinho aos meus amigos e colegas da minha turma de faculdade, que durante esses três anos foram pacientes para com a minha pessoa. Cada um de vocês me proporcionou crescer em todas as dimensões humanas. Por fim, rendo graças e louvor ao Espírito do Amor, o Paradoxo Absoluto, Deus, que me fortaleceu e fortalece em todos os momentos da minha vida. Ele é o paradigma e o caminho da minha vida.
  • 6. 5 RESUMO Este trabalho analisa a concepção de homem no pensamento de Kierkegaard sob a perspectiva do homem religioso. O primeiro capítulo retrata o contexto da época e a vida de Kierkegaard. O segundo capítulo é o principal, trata do que é o homem e os estádios existenciais: o estádio estético, ético e religioso. Este último acontece por uma relação absoluta do indivíduo com o Absoluto através da fé e do paradoxo. E, por fim, o último capítulo que fala sobre o legado de Kierkegaard para o século XIX e XX, e o que é a pós-modernidade, o que é torna-se cristão e a contribuição do seu pensamento para a atualidade. Portanto, esse trabalho apresenta o pensamento sobre o Homem em Kierkegaard, o que é fundamental para refletir sobre o homem na pós-modernidade. Palavras-chave: Kierkegaard; Homem; Estádios existenciais; Fé; Legado Kierkegaardiano; O que é Pós-modernidade.
  • 7. 6 ABSTRACT This work analyses the conception of the man under the thought of Kierkegaard from the perspective of the religious man. The first chapter talks about the context of the time and Kierkegaard’s life. The second chapter is the most important, it deals with the man and the stages of existence: the aesthetic stage, ethical and religious stages. The last one happens through an absolute relationship between the individual and the Absolute through faith and paradox. Finally, the last chapter, talks about Kierkegaard’s legacy for the XIX, and XX centuries, it talks about what postmodernity is, what it is to become a Christian and the contribution of his thoughts for the present. Therefore, this work shows the thought of the Man in Kierkegaard, which is fundamental to reflect about the man in post-modernity. Key words: Kierkegaard; Man; Stages of existance; Faith; Kierkegaard’s Legacy; What is Postmodernity.
  • 8. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 9 1 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO TEMPO 12 1.1 SÉCULO XIX, TEMPO DE TRANSFORMAÇÕES 13 1.1.1 Aspecto Histórico-Social 14 1.1.2 O Desenvolvimento das Ciências 16 1.1.1.3 A Filosofia 17 1.2 KIERKEGAARD: “UM HOMEM-PROBLEMA PARA SI MESMO 22 1.2.1 A Vida de Kierkegaard 23 1.2.2 As Influências Filosóficas e Religiosas 28 2 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO SER HUMANO 31 2.1 O MÉTODO 31 2.1.1 A Comunicação Indireta e Direta 32 2.2 A EXISTÊNCIA E O INDIVÍDUO 35 2.2.1 A Existência como possibilidade 35 2.3 OS ESTÁDIOS NO CAMINHO DA VIDA 37 2.3.1 O Estádio Estético 41 2.3.2 A Eleição e a Ironia 45 2.3.3 O Estádio Ético 47 2.3.4 O Humor 49 2.3.5 O Estádio Religioso 50 2.4 O PARADOXO DA VIDA CRISTÃ 52 2.4.1 A Fé e a Subjetividade 53 2.4.2 A Fé como Paradoxo 55 2.4.3 Abraão: O Cavalheiro da Fé 58 3 KIERKEGAARD: UM PENSADOR PARA A ESCUTA DO TEMPO E DO HOMEM 63 3.1 O LEGADO KIERKEGAARDIANO 63 3.1.1 Kierkegaard: O Sentido dos seus Escritos 64
  • 9. 8 3.1.2 Kierkegaard e seu Legado 65 3.1.2.1 A Recepção às Obras de Kierkegaard 66 3.1.2.2 A Filosofia da Existência 67 3.1.2.2.1 O existencialismo de Kierkegaard 67 3.1.2.2.2 O que é a Filosofia da Existência? 68 3.2 A PÓS-MODERNIDADE 72 3.2.1 O Que é a Pós-modernidade? 72 3.2.2 A Religião na Pós-modernidade 76 3.3 TORNAR-SE CRISTÃO 78 3.3.1 Migalhas Filosóficas 78 3.3.2 Como tornar-se cristão? 81 3.3.3 O Amor Cristão 84 3.3.4 Crítica à Cristandade 86 3.4 MOMENTO CRÍTICO 88 CONCLUSÃO 92 REFERÊNCIAS 95 OBRAS CONSULTADAS 98
  • 10. 9 INTRODUÇÃO Ao longo da história, a reflexão antropológica sempre se fez presente. O homem sempre foi um problema para si mesmo. Desde os primórdios, em especial com Sócrates, o homem constitui tema central de muitas investigações. Hoje não é diferente. A pósmodernidade instiga a repensá-lo e compreendê-lo. Esse estímulo origina-se por causa da própria situação do século XXI. O homem e o mundo estão em crise. A ciência e a razão não mais o satisfazem. Vive-se atualmente uma crise de valores. Dos tantos “ismos” que atingem o mundo contemporâneo, o consumisno, o niilismo, o individualismo ocupam a primeira fileira. Levando-se em conta os diversos problemas pelos quais o mundo de hoje passa, só mesmo um pensamento radical e determinante sobre a existência humana pode se constituir numa alternativa viável a iluminar a vida do século XXI. Quem é que pode oferecer ao mundo contemporâneo uma reflexão sólida e profunda sobre o ser humano senão ninguém menos do que Soren A. Kierkegaard? Esse pensador dinamarquês experimentou, de forma profunda, a existência. A sua vida é a sua filosofia! O seu pensamento fundamenta-se no existir humano. Kierkegaard foi um crítico veraz. A sociedade, o homem, a razão e a religião foram alvos da sua crítica. Ele percebeu as contradições e as incoerências existenciais. Também foi um profeta, percebeu o esquecimento do significado homem e de transcendência, desembocando numa crise de sentido no século posterior. Dada a força, o vigor e a atualidade do seu pensamento, este Trabalho de Conclusão de Curso procura discorrer sobre a Concepção de Homem no pensamento existencial de Soren A. Kierkegaard. O homem é o ponto chave e central para compreensão do pensamento de Kierkegaard. A reflexão sobre o homem em Kierkegaard permite responder diversos questionamentos que acompanham a história da humanidade: O que é o homem? Qual é o sentido da sua vida? Como tornar-se humano e não objeto homem? Como viver bem a vida? O presente estudo sobre a visão antropológica de Kierkegaard procura conhecer, de um modo mais profundo, a vida e o pensamento de Kierkegaard, bem como descobrir o
  • 11. 10 quanto ainda ele pode falar ao homem pós-moderno. Para tanto, o trabalho divide-se em três capítulos. O primeiro capítulo aborda o contexto histórico-social-filosófico em que se desenvolveu a filosofia de Kierkegaard. Também trata da sua biografia e das influências culturais e filosóficas recebidas. Na verdade, apresenta a formação do pensamento de Kierkegaard. O segundo capítulo é o cerne do trabalho. Trabalha a questão do significado de homem para Kierkegaard, refletindo sobre os estádios existenciais pelos quais o homem caminha: o estético, o ético e o religioso. E em especial, discorre sobre o estádio religioso, que é essencial para o pensador dinamarquês. A vida religiosa é primordial para entender a concepção antropológica kierkegaardiana. O homem religioso é a luz para viver uma vida digna. É uma vida de paradoxo, de tensão entre o juízo e graça, mas que possibilita viver a verdade. O estádio religioso é inclusive marcado por uma relação estreita do indivíduo com o Absoluto. Deus é o ponto de convergência e de desenvolvimento da personalidade. E, por último, o terceiro capítulo procura discorrer sobre o legado kierkegaardiano nos séculos XIX, XX e XXI, como seu deu a recepção de suas obras. Esta última parte do presente trabalho também apresenta uma reflexão sobre o que é pós-modernidade e o que significa tornar-se cristão no mundo contemporâneo. Tornar-se cristão é uma tarefa alternativa para que o homem pós-moderno possa viver bem consigo mesmo, com Deus e com os outros. Ser cristão é seguir os ensinamentos de Cristo. Os seus ensinamentos possibilitam uma melhor relação entre Deus, o homem e outros homens. Na verdade, este capítulo quer refletir sobre a atualidade da filosofia e da teologia, em sentido acadêmico, de Kierkegaard. A produção literária de Kierkegaard é muito vasta, compreendendo uma série de discursos, ensaios, cartas, anotações, diários, artigos, periódicos, livros etc. O presente trabalho valeu-se da coletânea de textos de Kierkegaard organizada por Ernani Reichmann, tendo como referência para a compreensão da filosofia kierkegaardiana obras de autores como: Ricardo Q. Gouvêa, France Farago, Marcio G. Paula, Álvaro L. M. Valls, Régis Jolivet. Enfim, esse Trabalho de Conclusão de Curso retrata a compreensão de homem no pensamento de Kierkegaard. Homem não é uma idéia, uma abstração, mas um indivíduo concreto, dotado de razão e fé. A fé é o caminho para o encontro com transcendência e a verdade, capaz de livrá-lo das angústias e do desespero. Se o ser humano se fechar em si
  • 12. 11 mesmo, não conseguirá ter um relacionamento autêntico consigo próprio, com Deus e com outros. Para Kierkegaard, Deus é a perspectiva e o fundamento da vida humana.
  • 13. 12 1 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO TEMPO A raça humana deixou de temer a Deus. Depois disso, veio o castigo: passou a temer a si mesma, a ânsia pelo fantasmagórico, e agora treme diante dessa criatura de sua própria imaginação. Soren Kierkegaard A reflexão que se procura desenvolver neste primeiro capítulo tem o objetivo de destacar o contexto histórico, social e filosófico em que viveu Kierkegaard, caracterizado sobretudo pelo ambiente revolucionário e pela perda de alguns referenciais importantes para a existência humana. Tal objetivo é necessário, tendo em vista a questão central deste trabalho: analisar a concepção que Kierkegaard tem de homem, descrito através dos estádios estético, ético e religioso que, na sua visão, são característicos do desenvolvimento do ser humano. Esses três estádios não se referem tanto a um desenvolvimento pessoal, mas a três posturas distintas face à vida. Diante das profundas transformações por que passa o mundo contemporâneo, regido principalmente pela lógica do indivíduo, da sensação, da autonomia, do consumo, e até mesmo do desencanto em relação à vida, o pensamento de Kierkegaard ganha força e atualidade, sendo capaz de provocar no ser humano o desejo de voltar-se para dentro de si mesmo e desenvolver uma reflexão que lhe ofereça respostas para as perguntas mais cruciais da vida: Quem sou eu? De onde venho e para onde vou? O que significa viver? Através de um poder literário brilhante e criador, Kierkegaard colocou a sua vida a serviço da crítica das idéias que eram expressões que não tocavam a verdadeira seriedade da vida nem a decisão existencial necessária para o homem “encontrar a si mesmo em seu valor eterno”. Na verdade, o principal interesse do pensador dinamarquês foi o de descrever o que é o cristianismo verdadeiro: “Deste modo, toda (a minha) atividade como escritor trata disto: dentro do cristianismo ser um cristão”. Kierkegaard “não escreveu sobre o mundo, mas sobre a vida – sobre como vivemos e como escolhemos viver” (Strathern, 1999, p. 7). Percebendo a distorção do sentido da vida na sua época, procurou combater dois adversários fundamentais: a dissolução do indivíduo singular no gênero humano, na história e na cultura, e a “cristandade estabelecida”, o cristianismo reduzido a sistema de vida, a mero componente da civilização1. Kierkegaard, além de ter sido consciente da impossibilidade do ser humano “ser edificado em massa, assistiu à ascensão da ideologia igualitária, niveladora, que reduz cada um à medida comum do rebanho. Assistiu à irrupção das massas e 1 Estes dois problemas constituem o alvo das críticas do pensamento de Kierkegaard. A redução do ser humano a uma mera abstração, um ente perdido nas massas, levou o pensador dinamarquês a se posicionar criticamente em relação a Hegel; e o cristianismo tímido e acomodado da época o fez enfrentar a Igreja Luterana da Dinamarca.
  • 14. 13 percebeu o veneno que seria a imprensa cotidiana” (Farago, 2006, p. 247). Tudo o que experimentou e viveu, levou-o a uma auto-reflexão sobre si mesmo, uma busca apaixonada por aquilo que ele acredita ser o homem: alguém que não se deixa dissolver na massa, mas que no devir concreto, no instante em que vive, decide a sua existência. As obras de Kierkegaard correspondem, portanto, “à tentativa de traduzir nas palavras rebeldes a experiência indizível que ele teve, e dá testemunho do fato de que a ordem do sentido sempre ultrapassa a ordem do discurso” (Farago, 2006, p. 17). Kierkegaard não foi um homem do seu tempo, mas não deixou de escutar o tempo e a história. Foi um cristão com “exageros”, sem tibieza no coração. Não foi a toa que conseguiu chegar apenas aos quarenta e dois anos. Infelizmente, a sua influência não foi grande durante sua vida. Suas idéias eram por demais diferentes das principais de sua época para serem acolhidas e utilizadas pela sociedade. Mas no século XX, os escritos kierkegaardianos tiveram uma aceitação incomum. De acordo com Gouvêa (2006, p. 19-20), Kierkegaard constitui “uma das figuras mais importantes e fascinantes na história das idéias e um pensador-chave no desenvolvimento da teologia e da filosofia do século XX”. O mesmo se pode dizer em relação ao século XXI. 1.1 SÉCULO XIX, TEMPO DE TRANSFORMAÇÕES Conforme se afirmou acima, a Europa do início do século XIX é caracterizada pelo ambiente revolucionário. Segundo Reale e Antiseri (2005, p. 3-4), o século XIX é marcado por muitas mudanças radicais e claras nos aspectos histórico, social e filosófico. No aspecto histórico, o evento mais significativo é a Revolução Francesa (1789)2, que influenciou o mundo inteiro com o seu ideal de Liberté, Égalité et Fraternité. No social, o governo napoleônico influenciou a mudança do parâmetro institucional, social e filosófico vigente. No que diz respeito ao aspecto filosófico, destaca-se o Romantismo como uma resposta ao Iluminismo, propondo uma descrença na razão. Inclusive o Idealismo de Hegel propiciou uma nova maneira de ver a história do ser humano. 2 Enquanto a revolução na França garantiu a liberdade, a da Alemanha se ocupou somente com a idéia de liberdade. Na Alemanha, as classes intelectuais viviam totalmente indiferentes à questão da práxis. “O mundo da ciência, da arte, da filosofia e da religião não só lhes oferecia satisfação, como também tornara-se, para elas, a ‘verdadeira realidade’, transcendentes às miseráveis condições da sociedade. A cultura era, então, essencialmente idealística, ocupada com a idéia [grifo do autor] das coisas, mais do que com as próprias coisas” (Arantes, 1996, p. 6). Isso favoreceu que os filósofos desenvolvessem uma filosofia idealista, sendo Hegel o último a expressar o idealismo cultural, o último a fazer do pensamento “um refúgio da razão e da liberdade” (Arantes, 1996, p. 6).
  • 15. 14 1.1.1 O Aspecto Histórico-Social Antes de se falar do século XIX, é preciso lembrar que os seus ideais de revolução e mudança são um legado do século XVIII, o século da Revolução Francesa3, considerada como uma nova era na etapa histórica, influenciando o mundo e espalhando-se pela Europa, América do Norte e a Latina. A Revolução Francesa contribuiu para que a burguesia ocupasse o poder político e organizasse o Estado à maneira que lhe convinha. Como arma em seu favor, a burguesia utilizou a insatisfação das camadas populares, procurando assim concretizar suas propostas liberais. (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 91). Como afirma Tota, a “Revolução Francesa significou o fim do absolutismo na França e a ascensão da burguesia ao poder político, consolidando, no plano econômico, as relações de produção capitalista” (1994, p. 91). Na verdade, a Revolução Francesa provocou a destruição em grande parte das estruturas políticas, sociais e econômicas do ancien régime [grifo do autor] e lançou as bases de uma nova sociedade, que procurou pôr em prática, concretamente, os princípios e os ideais que lentamente foram sendo elaborados no século XVIII. Ao privilégio sucede a igualdade, e ao arbítrio ou à autoridade absoluta do soberano seguem-se a soberania popular e a liberdade. (Martina, 1996, p. 32). Na fase final da Revolução Francesa, conhecida como o período do Diretório, nos finais do século XVIII, a França viveu uma grande crise, gerando insatisfação na sociedade e medo na burguesia diante da possibilidade da mesma perder os seus privilégios. Até mesmo os países vizinhos, regidos pelo sistema monárquico e absolutista, passaram a pressionar a França defensora dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 98-99). Diante dessa crise, a burguesia necessitou de um líder eficiente para estabelecer um governo forte e estável que possibilitasse a sua consolidação como classe dominante. A melhor alternativa foi Napoleão Bonaparte4, jovem general francês que se destacou pela sua atuação desde a época da “Convenção”. Com ele, foi instituído, primeiramente, o Consulado, e depois o início do 3 Não é o propósito desse Trabalho de Conclusão de Curso refletir, de forma profunda, a Revolução Francesa, mas apenas apresentar noções gerais sobre a mesma. Desse modo, ficam algumas sugestões para uma leitura complementar: PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. História Moderna e Contemporânea. 14 ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 123-129. TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. A grande Revolução Francesa. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 91-96. Também: MARTINA, Giacomo. A Revolução Francesa. In: _____. História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do Liberalismo. São Paulo: Loyola, 1996. v. 3. p. 11- 49. 4 Também não é objetivo desse Trabalho desenvolver um estudo minucioso sobre Napoleão. Então, é necessário conferir os seguintes livros: PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. História Moderna e Contemporânea. 14 ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 133-137. TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. Napoleão, a Europa e a América Latina. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 97-101.
  • 16. 15 período Napoleônico da Revolução (o seu governo), pelo qual consolidou o poder da burguesia. (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 98-99). As guerras comandadas por ele procuraram conquistar bens, riquezas, através de pilhagens. A sua atuação possibilitou a formação de um grande império, chegando a derrotar a Rússia, a Prússia, a Áustria, a Itália, com exceção da Inglaterra, a sua maior e mais forte inimiga. Para derrotá-la, elaborou uma estratégia econômica, conhecida como “Bloqueio Continental” (1806). No início, o bloqueio suscitou alguns efeitos, porém, fracassou posteriormente, levando ao declínio (1812) de um império que conheceu grandes momentos de glória (Tota; Assis Bastos, 1994, p. 99-100). A partir daí, Napoleão passou a experimentar derrotas e mais derrotas5, sendo deposto e exilado na Ilha de Elba. O seu ímpeto de conquistador não conseguiu aprisioná-lo nessa ilha: fugiu de Elba para a França, tomando o governo por apenas 100 dias, sendo derrotado pelos ingleses e prussianos na Batalha de Warteloo, em junho de 1815. Com a destituição de Napoleão do governo, Luís XVIII voltou ao trono e, em novembro de 1815, foi selada a “Paz de Paris”, reparando, desse modo, os erros da expansão do território francês e alterando o mapa político da Europa e das colônias. Em 18306, os ideais da Revolução Francesa foram retomados pelas forças de oposição, articulando-os aos princípios do liberalismo7 e do nacionalismo8 numa série de revoluções que se arrastaram pelos continentes. Resultado de todo esse movimento revolucionário foi o surgimento do socialismo no século XIX9. 5 As derrotas que Napoleão passou a sofrer foram sucessivas e drásticas: perdeu para a Rússia, no inverno de 1812; perdeu a Batalha de Leipzig, em 1813; foi derrotado, em 1814, por um grande exército formado pela Inglaterra, Rússia, Áustria e Prússia. 6 Cf. TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. As Revoluções Européias: 1830 a 1848. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 105 – 111. PAZZINATO, Alceu L.; SENISE, Maria H. V. As Revoltas Liberais de 1830 e 1848. In: _____. História Moderna e Contemporânea. 14 ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 166 – 172. 7 O liberalismo foi uma ideologia essencialmente burguesa do século XIX. O principal fundamento do liberalismo é a liberdade individual no campo político e econômico. As suas idéias inspiraram as revoluções das décadas de 20, 30 e 40, do século XIX, transformando profundamente a sociedade européia. Todavia, os princípios que regem a sociedade liberal são: o dinheiro, a cultura e os interesses. (MOCELLIN, Renato. Século XIX: Liberalismo, Nacionalismo e Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Médio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. série 2. p. 6.). 8 O nacionalismo contribuiu para que os países expressassem o seu amor pela pátria, um retorno ao passado (tradição) e o culto de seus particularismos. (MOCELLIN, Renato. Século XIX: Liberalismo, Nacionalismo e Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Médio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. série 2. p 7.). 9 O Socialismo oferece uma sustentação teórica para interpretar a situação dos operários e para orientar os embates por eles travados no século XIX. Em contraposição à economia capitalista, surgem duas correntes socialistas: 1) o socialismo utópico, que tem como pensadores Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen; 2) o socialismo científico, que tem como representante Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895) que publicaram o Manifesto Comunista em 1848. (MOCELLIN, Renato. Século XIX: Liberalismo, Nacionalismo e Socialismo. In: LONGEN, Adilson et al. Positivo: Ensino Médio. Curitiba: Posigraf, 2004. v. 2. série 2. p 7-8.). Para maior esclarecimento leia-se: TOTA, Antônio P.; ASSIS BASTOS, Pedro Ivo de. Socialismo. In: NOVO MANUAL NOVA CULTURA. São Paulo: Nova Cultural, 1994. p. 114 - 117.
  • 17. 16 1.1.2 O Desenvolvimento das Ciências Do ponto de vista científico e cultural, o século XIX é conhecido como o século do progresso das ciências, como a física10 e a química. Por meio de cálculos precisos, exatos, a ciência se lançou na aventura de querer explicar a vida e desvendar os mistérios que a encerram. Era assim inaugurada “uma nova era para a humanidade. A Era da Civilização Científica” (Arruda, 2005, p. 49). Essa era estimulou novos inventos que contribuíram, por sua vez, com as pesquisas e descobertas, sendo que, em muitos casos, os próprios cientistas tornaram-se inventores. Nomes como os de Joseph-Louis de Lagrange, Monge, Pierre Simon Laplace ocupam, de forma eminente, as fileiras dos grandes matemáticos da humanidade. O progresso científico também se estendeu ao campo da biologia. Esta ciência levantou problemas profundos e sérios para a antropologia filosófica e para a religião. Um exemplo dessa situação11, segundo Reale e Antiseri (2005, p. 333), é o Charles Robert Darwin que, com sua teoria evolutiva das espécies biológicas, contribuiu para a crise da idéia de homem que predominava há séculos. Há também desenvolvimentos em outros campos científicos12, tais como: a embriologia, a fisiologia, a bacteriologia, a imunologia, a anatomia patológica, a farmacologia, a geologia, a cristalografia, a astronomia e as ciências históricas. Portanto, de acordo com Reale e Antiseri (2005, p.333), os avanços da ciência provocaram um confronto com a sociedade estabelecida. As pesquisas causaram uma mudança na idéia de ser humano e nas questões filosóficas, éticas, políticas e religiosas. Como observador atento das transformações da sociedade européia, Kierkegaard não poupou esforços para criticar as incoerências de um mundo que passou a ser regido pela ciência, relegando a segundo plano outros caminhos que podem ajudar o ser humano a encontrar respostas para a sua existência. 10 Os estudiosos da física são: Augustin-Jean Fresnel, Carnot, Alessandro Giuseppe Antonio Anastásio Volta, André-Marie Ampère e Michael Faraday. 11 Também há outros biólogos, como: Rudolph Virchow (1821-1902), Gregor Johann Mendel (1822-1884), H. De Vries, C. Correns, E. Tschermak, Needham, Spallanzani, Louis Pasteur e Félix Archimède Pouchet. 12 Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O desenvolvimento das Ciências no século XIX. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 333-357.
  • 18. 17 1.1.3 A Filosofia Durante o século XIX, surgiu um novo modo de ver a realidade, de compreendê-la e explicá-la: o Romantismo. Essa nova compreensão provocou e instigou Kierkegaard a perceber o fracasso em explicar a realidade de uma maneira abstrata e não concreta. Ele foi um crítico veraz de Hegel, denunciando a sua pretensão de procurar explicar a realidade de maneira dialética, fechada e totalitária. Uma melhor exposição sobre a crítica de Kierkegaard a Hegel será retomada mais adiante. Por enquanto, trata-se de explicar como surgiu o Romantismo, a sua definição, as suas conseqüências e os seus representantes máximos. O Romantismo nasceu de um movimento literário na Alemanha, entre os anos 1770 e 1780, chamado de Sturm und Drang que, segundo Reale e Antiseri, foi comparado por alguns estudiosos a uma espécie de revolução que antecipou verbalmente em terras germânicas aquilo que, pouco depois, seria a Revolução Francesa no campo político. Por outros estudiosos (...) foi considerado com uma espécie de reação antecipada à própria Revolução, enquanto se apresentou como reação contra o Iluminismo [grifo do autor], do qual a Revolução Francesa foi a coroação (...). Trata-se da reação do espírito alemão depois de séculos de torpor, e do ressurgimento de algumas atitudes peculiares à alma germânica. (2005, p. 6). Essa reação ao Iluminismo13, considerado como “espírito racionalista e frio” (Marías, 1987, p. 322), propiciou o surgimento de uma nova literatura, Sturm und Drang (“Tempestade e ímpeto”) (Reale; Antiseri, 2005, p. 4). Tal denominação originou-se do drama escrito em 1776, por um dos representantes do movimento, Friedrich Maximilian Klinger. As características centrais desse movimento14 são: a) a redescoberta da natureza, que é exaltada como força onipotente e vital; b) um estreito relacionamento com a natureza e o “gênio”, entendido como força originária; c) o panteísmo; d) um sentimento pátrio que se expressa no ódio ao tirano, na exaltação da liberdade e no desejo de violar convenções e leis externas; e) a apreciação de sentimentos fortes e as paixões calorosas e impetuosas. Esse movimento recebeu influências15 de James Macpherson (1736-1796), de Willian Shakespeare, de Jean-Jacques Rousseau, de Gotthold Ephraim Lessing, de Friedrich Gottlieb 13 Cf. MARTINA, Giacomo. O Iluminismo e as Reformas. In: _____. História da Igreja de Lutero a nossos dias: A era do Absolutismo.2 ed. São Paulo: Loyola, 2003. v. 2. p. 261-268. 14 Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Gênese e características essenciais do Romantismo. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 3-6. 15 Esses autores são importantes para a compreensão do fenômeno literato, mas não é possível adentrar-se muito no pensamento deles. Então, leia-se: Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O Movimento Romântico e a
  • 19. 18 Klopstock (1724-1803) e de Heinrich Lenz. Contudo, os que deram sentido e importância ao movimento foram: Goethe, Schiller, Jacobi, Herder, entre outros. Em reação ao Sturm und Drang, surgiu na época o Classicismo16 que, de acordo com Reale e Antiseri (2005, p. 7), teve grande crédito na formação do espírito naquela época, impondo-se como antecedente, componente ou ainda como um dos pólos dialéticos do Romantismo. Mas, afinal, o que é o Romantismo? Definir Romantismo não é tarefa fácil, pois a própria palavra tem uma longa e complexa história. De acordo com Baugh, o termo aparece na Inglaterra, em meados do século XVII, significando o fabuloso, o extravagante, o fantástico e o irreal. Ele foi resgatado no século precedente para indicar cenas e situações agradáveis, típicas da narrativa e poesia romântica. Aos poucos, o termo passou a significar o renascimento do instinto e da emoção. (Reale; Antiseri, 2005, p. 10). Mais do que linha de pensamento, doutrina ou idéia filosófica, o Romantismo é, “um movimento, um fenômeno” (Hargreaves, 1986, p. 29-30) que envolve não só a filosofia e a poesia, mas também a música, as artes figurativas, a religião, a política, a economia. Existem tantos “romantismos” quantos “românticos”. Em todos esses desdobramentos é possível encontrar o esforço desesperador da visão concreta – diríamos quase de uma visão sensorial das razões últimas de tudo o que “existe” e mesmo de tudo o que “é” (...). Movimento em cujo âmbito as idéias em seu conjunto, agitam-se soltas e muitas vezes em conflito uma com as outras (...). O objetivo visado pelo Romantismo é prolongar o sensível no supra-sensível, à guisa de novo método de especular “metafisicamente” (...). O Romantismo prestou apreciável serviço a todas as atividades do espírito, pela atitude de reação legítima contra a hipertrofia do esquema, a rigidez lógica e o imperialismo das elaborações especiosas dos sistemas. (1986, p. 31-33). O denominador comum, o elemento capaz de integrar a complexidade do fenômeno chamado Romantismo diz respeito ao “estado de espírito” do homem romântico que sente um conflito interior, uma insatisfação, uma inquietação, isto é, encontra-se no estado de Sehnsucht (ansiedade, anseio, desejo irrealizável) (Reale; Antiseri, 2005, p. 11). Apesar de o Romantismo não se definir como um conjunto de conceitos ou doutrinas, é possível apresentar as idéias fundamentais que regem o movimento17: Formação do Idealismo. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 15 – 45. PUPI, Angelo. De Kant a Fichte. In: ROVIGHI, Sofia V. História da Filosofia Moderna. 2 ed. São Paulo: Loyola, 2000. p. 597-632. 16 O Classicismo “aspirava a transformar a natureza em forma e a vida em arte, não repetindo, mas renovando o que os gregos haviam feito” (Reale; Antiseri, 2005, p. 7). Para melhor compreender a relação entre Classicismo e Romantismo, leia-se: SALDANHA, Nelson. Classicismo e Romantismo. Revista Brasileira de Filosofia. São Paulo, v. 53, n. 217, p. 489 – 504, out./dez. 2004. 17 Essas características baseiam–se em: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. A complexidade do fenômeno romântico e suas características essenciais. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 9-14.
  • 20. 19 a) a sede do infinito, um anseio insaciável pelo inefável. Aqui a filosofia e a poesia se encontram: a filosofia capta e mostra a relação do infinito com o finito, enquanto a arte realiza a obra, manifestando o infinito no finito; b) o novo sentido de natureza, como vida que se origina eternamente, um grande organismo humano, um jogo móvel de forças que, operando intrinsecamente, gera todos os fenômenos e também o homem: a força da natureza é a própria força do divino; c) o sentido de “pânico” por causa da pertença ao uno-todo, um sentimento de ser um momento orgânico da totalidade. No ser humano, reflete-se de algum modo o todo, assim como o homem se reflete no todo; d) “a função do “gênio” e a criação artística elevadas à suprema expressão do verdadeiro e do absoluto”; e) o anseio pela liberdade como um sentimento muito forte que expressa para muitos dos românticos o próprio fundamento da realidade e apreciam-na em todas as suas manifestações; f) a reavaliação da religião, resgatando o sentimento de relação do ser humano com o infinito e com o eterno. Desse modo, ela é elevada, colocada bem acima do plano ao qual o Iluminismo a reduzira. Ela é o momento mais elevado do próprio espírito, superado somente pela filosofia. Aliás, a religião aqui considerada é a cristã, compreendida, porém, de vários modos; g) a influência do elemento clássico e de outros temas específicos. A grecidade é “revisitada com nova sensibilidade e amplamente idealizada”; h) o destaque à intuição e a fantasia pela qual a filosofia é marcada, indo além da fria razão pura finita. O Romantismo influenciou sobremaneira os séculos XIX e XX, sendo até mesmo denominado de “mal do século”. Denominar o movimento romântico de tal forma não deixa de ser legítimo e adequado: legítimo, porque a filosofia, concepção de vida, é que decide o que vai ser o estilo – o discurso da literatura, da música, da pintura, da dança e até da política e da economia. E, mais profundamente, da própria religiosidade, consequentemente, da moral de uma cultura e de uma civilização. Adequado, porque a herança romântica atesta as características claras de um mal tanto “metafísico” como moral. Do ponto de vista metafísico, porque contaminou o ar, a atmosfera, o clima exigido pela respiração normal, serena, limpa, do pensamento, do ponto de vista moral, porque a conduziu ao paradoxo do suicídio sentimental, precisamente pelo paraxismo da exaltação do sentimento, que deveria passar a ser, conforme pretendia, fonte de conhecimento, em lugar da inteligência e da razão. Mal do século, enfim porque a geração, que leu o romantismo a receita da vida plena, padece – e como padece! – as conseqüências de ter lido um livro mal compreendido e mal escrito, sem ter adquirido até hoje a noção de que é subproduto de uma máquina fértil em promessas e fecunda em fiascos. (Hargreaves, 1986, p. 42).
  • 21. 20 Dada a complexidade extrema do Romantismo, não é possível contemplar aqui todas as figuras que participaram desse “movimento espiritual”. Porém, não se pode deixar de mencionar os seus principais representantes, no caso: Fichte18, Schelling19, Schlegel20, Hegel e Schleiermacher21. Esses filósofos são muito importantes para a compreensão filosófica do mundo (Hargreaves, 1986, p. 33). Dentre eles, merece destaque Hegel22, o filósofo que melhor apresenta um modelo de compreensão de mundo. Para ele, a filosofia apresenta como função principal “evidenciar o princípio que restauraria a perdida unidade e totalidade (...). Assim, a forma verdadeira da realidade (...) é a razão, onde todas as contradições sujeito-objeto se integram, constituindo, desse modo, uma unidade e uma universalidade genuínas” (Arantes, 1996, p. 9) 23. Portanto, a idéia é como mero pensamento subjetivo ou como um mero ser por si (um ser que não é idéia), não se constitui como verdade (...). Isso significa que Hegel construiu uma filosofia que pretende se apresentar como a própria expressão da realidade, eliminando a distinção tradicional entre a idéia e o real. Ambos seriam facetas de uma mesma coisa: o que é real é racional e o que é racional é real (...). (Arantes, 1996, p. 14). 18 Johann Gottlieb Fichte nasceu em Rammenau, na Sacrônia, em 1762. Ele se matriculou no curso de teologia na Faculdade de Jena, em 1780. Entre 1788 a 1790, foi preceptor em Zurique, considerado como um dos períodos mais fecundos da sua vida. A sua obra mais significativa é a Doutrina da Ciência, cuja preocupação central é a difusão do criticismo kantiano e a descoberta do princípio base que unifica as três Críticas de Kant em vista da sistematização do saber. Ele também deduz a realidade por três princípios que vão influenciar a sua reflexão sobre a lei, o Estado, o Direito e a ética. Aliás, de acordo Rovighi, Fichte constrói uma metafísica que abrirá caminho aos sistemas de Schelling e Hegel. (2000, p. 633-656). 19 Friedrich Wilhelm Joseph Schelling nasceu em Leonberg, em Württemberg, aos 27 de janeiro de 1775. Estudou teologia, matemática e ciências naturais. As suas obras fundamentais são: Sistema do Idealismo Transcendental (1800), Idéias para uma filosofia da natureza (1797), Filosofia e Religião (1804), Pesquisas filosóficas sobre a essência da liberdade (1809), Filosofia da mitologia e Filosofia da Revelação (obras póstumas). Kierkegaard foi um ouvinte das suas palestras, uma vez que a filosofia positiva de Schelling tinha um aspecto “existencialista” limitado, provocando assim uma atenção em Soren para a existência não-dedutível da essência. (Bausola, 2000, p. 657-690). 20 Friedrich Schlegel (1772-1829) tem como idéia filosófica principal a concepção de infinito que se chega por meio da arte e pela filosofia. Outro conceito importante é a ironia. (Reale; Antiseri, 2005, p. 16-17). 21 Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher nasceu em Breslávia, em 1768, falecendo-se em 1834. Estudou Teologia e Filosofia da Religião e lecionou na Universidade em Berlim, a partir de 1810. As suas obras mais importantes são: Discursos sobre a Religião (1799), Monólogos (1800), Doutrina da Fé (1822). Também foram publicadas postumamente as obras relacionadas às aulas dadas sobre a Dialética, a Ética, a Estética e a Hermenêutica (Pupi, 2000, p. 626-632). 22 Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, no dia 27 de Agosto de 1770. Por ser de família protestante teve a oportunidade de estudar filosofia e teologia no seminário protestante de Tübingem, na qual ficou amigo de Schelling e de Hölderlin. Trabalhou como preceptor na cidade de Berna, Frankfurt, Jena, Nuremberg (aonde atuou como Reitor do Liceu). Em 1818 lecionou na Universidade de Berlim, onde foi reitor em 1829. Após dois anos, vem a falecer no dia 14 de Novembro. As suas obras mais importantes são: Diferença entre o sistema filosófico de Fichte e o de Schelling (1801), Fenomenologia do Espírito (1807), Ciência da Lógica (1812-1816), Enciclopédia das Ciências Filosóficas (1818). Também são muito importantes os cursos dados por ele sobre: Filosofia do Direito, Filosofia da História, da estética, Filosofia da Religião e História da Filosofia. 23 Cf. ARANTES, Paulo Eduardo. Vida e Obra. In: HEGEL, Georg W. F. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. v. 13. p. 5-19.
  • 22. 21 Na verdade, a realidade é a própria razão que, por sua vez, é a própria realidade. Há uma identidade necessária e total entre elas. Tudo o que existe é um instante do absoluto, uma etapa da evolução dialética que possibilita compreender o fenômeno do espírito que se desenvolve por diversas fases ou etapas ao longo da história e da vida do ser humano. Toda essa reflexão hegeliana encontra-se presente na obra Fenomenologia do Espírito24 (Reale; Antiseri, 2005, p. 110-129). Segundo Marías, Hegel foi “o primeiro a fazer uma História da Filosofia” (1987, p. 320). Com ele termina uma etapa da história do pensamento ocidental que procurou explicar a realidade de forma sistemática e complexa. A vitalidade do sistema hegeliano não deixou de influenciar a cultura e a sociedade da época. Com relação à filosofia, surgiram duas correntes que procuraram explorar o pensamento de Hegel, conhecidas como direita e esquerda hegelianas. Os da direita adotaram “o conteúdo doutrinário do hegelianismo, sobretudo a tese política de que o Estado é a mais alta realização do espírito absoluto. Os velhos hegelianos (...) desenvolveram-se em sentidos diversos, mas sempre partindo dos conceitos básicos formulados por Hegel”. (Arantes, 1996, p. 18). Os representantes principais dessa posição são: Karl Friedrich Göschel (1781-1861), Kasimir Conradi (1784-1849) e Georg Andréas Gabler (1786-1853). Já os da esquerda hegeliana assumiram o método dialético e o aplicaram “à analise dos problemas políticos, invertendo o conteúdo das doutrinas de Hegel e opondo-se ao regime dominante da Alemanha, regime esse que era apoiado pelos adeptos da orientação direitista”. (Arantes, 1996, p. 18). Os seus representados: David Friedrich Strauss (18081874), Bruno Bauer (1809-1882), Max Stirner (1806-1856), Arnold Ruge (1802-1880), Ludwig Feuerbach (1804-1872), Karl Marx (1818-1883), Engels (1820-1895), Soren A. Kierkegaard, entre outros. Nesta altura da História da Filosofia, esgota-se uma fase e sobrevém a ela uma profunda, na qual quase desaparece. Isto não é estranho, porque a História da Filosofia é descontínua (...), mas no século XIX a Filosofia aparece, além do mais formalmente negada, o que supõe um peculiar fastio de filosofar, provocado, pelo menos parcialmente, pelo abuso dialéctico em que cai o genial idealismo alemão. Surge então a necessidade premente de se ater às coisas, à própria realidade, de afastar das construções mentais para se ajustar ao real tal como este é. E a mente europeia [sic] de 1830 encontra nas ciências particulares o modelo que há-de transportar para a Filosofia. A Física, a Biologia, a História vão aparecer como os modos exemplares do conhecimento. Desta atitude nasce o positivismo [grifo do autor]. (Marías, 1987, p. 332). 24 Segundo Hegel, a “Fenomenologia do espírito [grifo do autor] descreve ‘o caminho do conhecimento natural que se dirige para o verdadeiro saber, ou o caminho da alma que percorre a série de suas figuras (Gestalten), quase etapas (Stationem) que sua natureza lhe prescreve, para purificar-se e tornar-se espírito, enquanto, por meio da experiência completa de si mesma, chega ao conhecimento do que ela é em si’ ”. (1933, apud Rovighi, 2000, p. 716).
  • 23. 22 Mesmo com o advento do Positivismo25, o ser humano não deixou de se ater às questões existenciais, não só no que diz respeito à compreensão da realidade, mas também às formas e maneiras de transformá-la em benefício da existência humana. É num contexto como esse que se pode compreender o papel de um Karl Marx, Engels, Nietzsche26 (1844-1900), Schopenhauer27 (1788-1860) e principalmente Soren Kierkegaard (1813-1855). 1.2 KIERKEGAARD: “UM HOMEM-PROBLEMA PARA SI MESMO” Soren Kierkegaard é um homem que pensa a vida e a própria vida, questiona-a e sente os desejos e os sofrimentos no recôndito da sua alma. Falar dele não foi e nunca será fácil. O seu pensamento tem sido interpretado de diversas formas28, por causa do seu estilo de escrever: escreve refletindo e reflete escrevendo. Porém, é possível perceber o tema que rege todo o seu pensamento: 25 Segundo Reale e Antiseri, “o positivismo é o movimento de pensamento que dominou parte da cultura européia em suas expressões não só filosóficas, mas também políticas, pedagógicas e literárias (é este o período do verismo e do naturalismo [grifo do autor]) desde cerca de 1840 até os inícios da primeira guerra mundial. Os traços de fundo do ambiente sociocultural que o positivismo interpreta, exalta e favorece são: uma substancial estabilidade política, o processo da industrialização e desenvolvimentos por vezes portentosos da ciência e da tecnologia (...); (...) confiança na força da ciência e do espírito cientifico, a seu ver mais que adequados a repor em seu lugar todo o corpo social” (2005, p. 287). O representante mais importante é Augusto Comte (17981857), que nasceu em Montpellier (França), formando-se em matemática e ciência. A sua contribuição mais importante diz respeito à Lei dos Três Estados, na qual Comte afirma que o conhecimento passa por três estágios: teológico, metafísico e positivo. Cf. GIANNOTTI, José Arthur. Vida e Obra. In: COMTE, Augusto. Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996. v. 15. p. 5-14. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. O positivismo sociológico e utilitarista. In: _____. História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. São Paulo: Paulus, 2005. v. 5. p. 287 – 310. 26 Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) foi um influente filósofo alemão do século XIX e XX. Sua família era luterana. Estudou na Universidade de Leipzig. Para Marías, “Nietzsche é uma mentalidade muito complexa; tinha grandes dotes artísticos e é um dos melhores escritores alemães modernos (...). O tema central de seu pensamento é o homem, a vida humana, e todo ele está carregado de preocupação histórica e ética (...). O mais importante da filosofia nietzschiana é a sua ideia da vida e a sua consciencia de que existem valores especificamente vitais [grifo do autor] (...)” (1987, p. 352 – 354). As suas obras mais significativas são: Humano, muito humano (1879), A Gaia Ciência (1882), Assim falou Zaratustra (1883), Além do bem e do mal (1886), A Genealogia da Moral (1887) e Ecce homo (1888), Anticristo (1888), entre outras obras. Cf. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Friedrich Nietzsche. In: _____. História da Filosofia: De Nietzsche à Escola de Frankfurt. São Paulo: Paulus, 2006. v. 6. p. 3 – 19. 27 Arthur Schopenhauer nasceu em Dantzig (Prússia), aos 22 de fevereiro de 1788. Filho do Henrich Floris Schopenhauer e de Johanna Henriette Trosenier. Após o falecimento de seu pai, iniciou seus estudos humanísticos. Em 1807, matriculou-se no Liceu Weimar. Doutrinou-se pela Universidade de Berlim com a tese intitulada Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio da Razão Suficiente (1816). Em 1820, passou a ministrar aulas na Universidade de Berlim. A sua obra mais importante é O Mundo como Vontade e Representação (1819). Em 1831, mudou-se para Frankfurt, permanecendo nesta cidade até seu falecimento, que se deu aos 21 de setembro de 1860. Mesmo com os seus “exageros, Schopenhauer tornou a nos ensinar a necessidade do gênio e o valor da arte. Ele viu que o bem supremo é a beleza, e que o prazer supremo está na criação ou no caminho para com o belo” (Durant, 1996, p. 327). Cf. DURANT, Will. Schopenhauer. In: _____. A História da Filosofia. Trad. Luiz Carlos do Nascimento Silva. Rio de Janeiro: Nova Cultura, 1996. p. 285 – 328. 28 Segundo os estudos elaborados por Jolivet, Farago, Gouvêa e Charles Le Blanc sobre Kierkegaard, existe, na verdade, uma única leitura do pensamento de Soren. Ninguém consegue esgotar o seu pensamento. Infelizmente, no Brasil, há poucas traduções de sua obra e poucos estudiosos, com exceção de: Ricardo Quadros Gouvêa, Márcio G. de Paula, Álvaro L. M. Valls, Juvenal S. Filho, Alexandre Carrasco, Franklin Leopoldo e Silva e Jonas Roos.
  • 24. 23 a sua existência, “a sua personalidade concreta” (Jolivet, 1957, p. 3). Ele falou de si mesmo como de “um espião que, a serviço de Deus, descobre o crime da cristandade: o crime de chamar-se cristão sem sê-lo”. Por isso, antes de estudar o tema central da sua filosofia, a sua concepção antropológica, é necessário conhecer a sua vida. 1.2.1 A Vida de Kierkegaard Soren Aabye Kierkegaard nasceu aos 5 de maio de 1813, em Copenhague (Dinamarca). Sua família é de origem humilde. Seus pais, Michael Pedersen Kierkegaard (1756-1838) e Anne Soerensdatter Lund (1768-1834), são naturais da Jutlândia Ocidental (Norte da Dinamarca). O pai de Kierkegaard era pastor de ovelhas. Casou-se duas vezes: primeiro, com a Kirstine Royen, que faleceu em março de 1796, e depois, em abril de 1797, com Anne S. Lund, empregada da família. Juntos tiveram sete filhos29, dentre os quais S. Kierkegaard. Kierkegaard recebeu uma educação rigorosa, marcada pela ortodoxia e pela moral luteranas. Ele mesmo relembra os momentos de tristeza e melancolia que viveu na infância: Não conhecia jamais a alegria de ser criança. Os suplícios horríveis que suportei perturbaram esta paz em que deve consistir a infância, quando se pode pela aplicação, etc. dar alegria a seu pai. Minha inquietação interior fazia com que sempre, sempre me sentisse fora de mim (...). (Kierkegaard, 1971, p. 19). O rigor da sua formação se expressava inclusive no modo formal de se vestir, causando nele profundo desconforto: Que melancolia! Até a fazenda de minhas calças, das quais tanto se zombou, tem uma triste (quase simbólica) conexão com a melancolia de minha vida (...). A infelicidade fundamental de minha vida, isto é, que embora criança fosse tido por velho, podia-se ver inclusive por minhas roupas. Recordo-me muito bem de quanto me entristecia, quando criança, ao ter de usar também eu aquelas calças curtas (...). Depois, tornei-me estudante, mas não fui jamais um jovem (...). Em minha tristeza melancólica e em minha ironia exuberante, comprimi minha natureza nos sofrimentos de ter me tornado velho quando tinha apenas oito anos de idade e de não ter sido jamais um jovem (...). (Kierkegaard, 1971, p.19 – 20). À angustia de uma infância mal vivida somou-se também a fragilidade física, compensada, porém, pela inteligência brilhante. Franzino, raquítico e fraco para poder valer como um homem completo, quando comparado com outros, no ponto de vista das condições físicas que me foram negadas, melancólico, submetido ao 29 Os filhos do casal chamavam-se: Maren Kirstine (1797-1822), Nicoline Kristine (1799-1832), Petrea Severine (1801-1834), Peter Christian (1805-1888), Soren Michael (1807-1819), Niels Andreas (1809-1833), e S. Kierkegaard (1813-1955). Com exceção de Peter, todos os irmãos de Kierkegaard morreram muito cedo. Enquanto Peter vai se dedicar à vida eclesiástica, Kierkegaard abraça a literária.
  • 25. 24 sofrimento interior, profundamente ferido de muitas maneiras no íntimo da alma, a mim só uma coisa me foi concedida: uma inteligência eminente, com certeza para que eu não ficasse inteiramente desarmado. (Kierkegaard, 1971, p. 20). Os seus estudos humanísticos se deram na Escola Borgerdyd (1821-1830), que significa “A Escola da Virtude Cívica”. Nessa instituição, Kierkegaard desenvolveu a sua perspicácia e natureza provocativas. (Gouvêa, 2006, p. 35-36). Após a conclusão dos estudos, inscreveu-se, em 1830, no curso de teologia da Universidade de Copenhague, interessando-se mais pela literatura e filosofia, especialmente a de Hegel, do que pela própria teologia. Em 1833, inicia o seu Diário de um Sedutor que, futuramente, vai se tornar um livro muito importante para a compreensão do seu pensamento (Gouvêa, 2006, p. 38). Um ano depois, morreu a sua mãe, provocando nele “um inexorável desmoronamento de sua fé” (Gouvêa, 2006, p. 39) e passando a viver de forma contrária à educação recebida, entregando-se até aos prazeres da literatura, da música, da ópera, do teatro (Gouvêa, 2006, p. 40). Com o passar dos anos, o sofrimento, a angústia e a inquietação em sua alma tornaram-se mais dilacerantes: “Isto de ser um homem são e forte que pudesse participar de tudo, que tivesse força corporal e um espírito despreocupado: oh! quantas [sic] vezes não desejei tal coisa noutro tempo mais recuado! Na época de minha adolescência, meus tormentos eram horríveis” (Kierkegaard, 1971, p. 19). Esse estilo boêmio de vida terminou aos 19 de maio de 1838, quando Kierkegaard teve uma forte experiência espiritual, reconhecida por ele como um “grande terremoto” que contribuiu para se reconciliar com Deus e com seu pai, que nunca aceitou o estilo de vida que Kierkegaard abraçou. Em 1838, depois de três meses da conversão de Kierkegaard, o seu pai faleceu. Meu pai morreu na quarta-feira (8), às duas da madrugada. Eu queria profundamente que ele vivesse ainda dois anos e vejo em sua morte o último sacrifício que seu amor fez por mim, porque não morreu para mim, mas por mim, para que eu possa, se ainda for possível, fazer qualquer coisa. De tudo o que me deixou, sua lembrança, sua imagem transfigurada, não pela minha fantasia (esta não é necessária para isso), mas por tantos traços particulares, das quais tenho conhecimento – é, para mim, a coisa mais preciosa, a que devo esconder do mundo com o maior cuidado: porque sinto claramente que neste momento só existe um (Emil Boesen) a que posso falar sinceramente de meu pai, como de um “amigo fiel” que ele foi (Kierkegaard, 1971, p. 17). Das lembranças que permaneceram na alma do jovem Kierkegaard, a mais marcante diz respeito à “maldição” que o seu pai recebeu de Deus por causa de um pecado cometido e que Soren relembra da seguinte forma: “O horrível que sucedeu àquele homem que um dia, quando criança, ao guardar os carneiros nas planícies da Jutlândia, sofrendo com fome e frio, subiu a uma elevação e amaldiçoou a Deus a esse homem [sic] não podia esquecer este fato, embora tivesse oitenta e dois anos!” (1971, p. 18). Por meio desse relato, o pensador dinamarquês percebeu que por trás da figura paterna há um homem pecador, frágil e, principalmente, temente a Deus, mas que não depositava
  • 26. 25 confiança no perdão divino. Assim, a experiência paterna contribuiu para que Kierkegaard questionasse as verdades do “cristianismo” (Gouvêa, 2006, p. 42): Desde o começo, eu devo tudo a meu pai. Era ele quem, melancólico como era, ao me ver melancólico, suplicava: “Trata de amar verdadeiramente a Jesus Cristo!” (...). E por amor a meu pai, empenhei-me em expor o cristianismo da maneira a mais verdadeira, contrastando assim como todo esse palavrório que (na cristandade) se faz passar por cristianismo (...). (Kierkegaard, 1971, p. 19). Na verdade, a melancolia e a angústia experimentadas por Kierkegaard se devem à própria figura paterna: É verdadeiramente terrível quando, em certos momentos, penso em todo esse fundo sombrio de minha vida, desde os primeiros anos. A angústia, com a qual meu pai me enchia a alma, sua terrível melancolia, a multidão de coisas que não posso sequer apontar. Essa mesma angústia me dominava diante do cristianismo e, no entanto, eu me sentia atraído por ele tão intensamente. (Kierkegaard, 1971, p. 19). Tal angústia e melancolia irão possibilitar a Soren uma reflexão profunda sobre si mesmo e sobre a existência humana. Para ele, a melancolia tanto pode ser boa como má: Boa melancolia é aquela que precede um parto do eterno que se vê forçado a realizar-se, que convida a escolher em sua vida pessoal o infinito que pode encerrar. Má é a melancolia que traduz o sentimento de estar perdido por não haver realizado a tarefa que nos fora designada no tempo, cuja irreversibilidade não perdoa as ocasiões malbaratadas. (Farago, 2006, p. 48). Em outras palavras, a melancolia boa é a que permite ao ser humano se auto-conhecer e entrar em contato com o divino, ao passo que a má melancolia não contribui para que o homem não tenha um eu e não ser um eu. (Farago, 2006, p. 48). A melancolia e a angústia, com a qual o seu pai enchia-lhe a alma, dilaceravam a existência de Kierkegaard, mas também lhe possibilitavam uma nova reorientação da vida. Daí a razão da reverência e do respeito para com o seu progenitor, apesar de todos os pesares: “Amo este homem porque nele sinto o amor, mas o fato de ter-me tornado infeliz por alguma coisa, que não acreditava fazer senão pelo meu bem, desperta minha simpatia – e eu o amo ainda uma vez e mais profundamente” (Kierkegaard, 1971, p. 19). Em consideração ao pai, Kierkegaard concluiu o curso de teologia em 1840 (Kierkegaard, 1971, p. 18), apesar de nunca ter optado pela carreira eclesiástica, como era desejo do seu pai. Em 1837, Kierkegaard conheceu Regina Olsen, filha de um conselheiro de Estado, por quem vai se apaixonar anos mais tarde: “Tu, que és a rainha do meu coração (Regina), escondida no mais profundo recesso de minha alma, dos meus mais ricos pensamentos, eqüidistante do céu e do inferno – divindade desconhecida!” (Kierkegaard, 1971, p. 20). Regina também se apaixonou pelo seu “rico pretendente, cujo brilhantismo e graças sociais eram temperados por um toque de sedutora
  • 27. 26 melancolia”. (Strathern, 1999, o 27). Ficaram noivos aos 10 de setembro de 1840. Todavia, o estilo de vida de Kierkegaard o impediu de levar a frente tal noivado: ele tinha consciência da incapacidade de levar uma vida como os outros, sentia-se inseguro e dificuldades para se entregar a um relacionamento sério: “Quanto mais ela se mostrava envolvida e confiante, tanto mais sentia-se ele desamparado, despreparado. Longe de lhe serenar o tormento, o amor só fizera perturbar a sua consciência angustiada. Impôs-se o rompimento” (Farago, 2006, p. 52). Quanto aos motivos da separação, é possível conjecturar que “um Kierkegaard que tivesse conservado a lembrança do ‘terremoto’ e do ‘sacrifício’30 de seu pai se sentisse incomodado diante de seu próprio desejo e da angústia de fazer Regina entrar em seu mundo espiritual cheio de angústia” (Blanc, 2003, p. 36). Por mais doloroso que possa ter representado a separação, esse fato não deixou de ser a oportunidade para Kierkegaard aprofundar suas reflexões sobre a existência e sobre seu destino, que se desdenhava como exceção [grifo do autor]. Na abertura indeterminada [grifo do autor] que a existência é diante de muitos possíveis [grifo do autor], ele exerceu sua liberdade [grifo do autor] fazendo uma opção [grifo do autor] difícil, desconfortável e penosa em termos de sentimentos, de juízo de si e de juízo dos outros. (2003, p 37). A decisão de Kierkegaard ocorreu também para evitar que a senhorita Olsen entrasse no seu mundo de sofrimento: E quando me sinto tão infeliz, meu único consolo é que ela não sofra comigo. É duro saber, por experiência, que aquela que se ama não foi fiel, mas este sofrimento de todos os dias (...) se permanecesse junto dela seria preciso que me mostrasse contente e se ainda assim ela me visse sofrer (...) quando estou alegre, meu sofrimento constante é que ela não posso participar de minha alegria (...). (Kierkegaard, 1971, p. 22). Após o cancelamento do noivado, Kierkegaard defendeu sua dissertação de mestrado sobre O Conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates, obtendo o grau de “Magister Artium”, aos 29 de outubro de 1841. Tal obra é um ataque irônico ao Hegelianismo e ao Romantismo através de um estudo comparativo da prática da ironia em Sócrates e nos filósofos românticos. (Gouvêa, 2006, p. 47). Como adversário da filosofia romântica e de um cristianismo estatal, Kierkegaard “estava descobrindo sua espetacular vocação, ou seja, ser um missionário para a cristandade, ajudar as pessoas que se achavam cristãs a chegar a alguma compreensão do que significava o genuíno cristianismo”. (Gouvêa, 2006, p. 48). 30 Por “terremoto” entende-se uma reviravolta que se impôs na vida de Kierkegaard, quando ele percebeu que a idade avançada do seu pai não era uma bênção divina, mas uma maldição; que os dons intelectuais da sua família só existiam para sua extirpação mútua. Já por “sacrifício” compreende-se uma concupiscência e expiação por antecipação da concupiscência – pois Kierkegaard sofreu antes de ter pecado --, legado do pai, impedindo-o de viver um compromisso com os outros. Da mesma forma que o seu pai se sacrificou por ele, cabia-lhe também “fechar o ciclo” e sacrificar-se pelo cristianismo. (Blanc, 2003, p. 37).
  • 28. 27 Depois de um curso em Berlim (1840), com Schelling, o pensador dinamarquês se decepcionou com a filosofia romântica, regressando para Copenhague e fechando-se “numa solidão estudiosa” (Blanc, 2003, 39). Nesse período, escreveu muitas obras com pseudônimos, tais como: Ou (1843), Temor e Tremor (1843), A Repetição (1843), Migalhas Filosóficas (1844), Estádios no Caminho da Vida (1845). Já com a obra Post-Scriptum Não-Científico Concludente (1846), Kierkegaard deu início a uma nova forma de escrever, não mais fazendo recurso de pseudônimos. O seu desejo de ser um escritor religioso tornou-se mais claro e também a idéia de que ser cristão implica em colocar-se numa atitude de oposição à sociedade, a seus valores e à sua concupiscência. (Gouvêa, 2006, p. 49-50). O primeiro confronto público de Kierkegaard se deu em 1846 contra um jornal satírico muito popular e vulgar chamado de O Corsário, jornal este que tinha o costume de criticar a alta burguesia de Copenhague em defesa de políticas mais liberais. (Blanc, 2003, p. 40). Só Kierkegaard foi poupado dessas críticas. Contudo, o autor dinamarquês sentiu que era uma afronta participar “desse empreendimento de irrisão, desse esforço de ‘massificação’ do pensamento” (Blanc, 2003, p. 40). Preferia ser atacado e ridicularizado pelo jornal. Foi o que aconteceu após escrever um artigo sobre o Corsário. Com essa atitude, o jornal deu início a um “ataque incansável e devastador a Kierkegaard” (Gouvêa, 2006, p. 50), não poupando nem mesmo o seu modo de vestir: Trataram-me de um modo infame, abominável, um crime nacional foi cometido contra mim, a traição de toda uma geração. Mas, para mim, foi de um proveito indescritível. Eu era melancólico, de uma melancolia sem fim: foi isso que me ajudou. Pois em minha melancolia eu ainda amava o mundo: eis-me, agora, desmamado. Com a ajuda de Deus, isso acabará por sair bem. (Kierkegaard, 1971, p. 33). Apesar dessa perseguição dolorosa e prolongada, ela “parece ter confirmado a Kierkegaard em seu papel de mártir e reforçado sua convicção de que ele deveria sofrer a fim de expiar os pecados de seu pai e os seus” (Blanc, 2003, p. 41). Soma-se a este fato o casamento de Regina com Fritz Schlegel em 1847. Durante essas tribulações existenciais não deixou de exercer a sua carreira de escritor, produzindo as seguintes obras: Duas Eras- Uma resenha Literária (1846), Livro sobre Adler (1846), Discursos Construtivos em Variados Estados de Espírito (1847), Obras do Amor (1847), e Discursos Cristãos (1848), A Doença Mortal (1849), A Prática do Cristianismo (1850) e demais discursos de caráter cristão. Segundo Gouvêa, “os últimos anos da vida de Kierkegaard foram repletos de veementes escritos polêmicos contra os excessos da Igreja do Estado e o fracasso da cristandade em admitir suas grandes falhas como autoproclamada representante do cristianismo” (2006, p. 52). Um dos representantes dessa Igreja foi o bispo Mynster, que não vivia seriamente o cristianismo: era mais um funcionário do Estado do que cristão.
  • 29. 28 Certamente o bispo Mynster foi grande! – Sim, mas não de uma grandeza cristã. Não, na ordem estética foi sua grandeza foi a de um falsário. Nesse sentido, esteticamente, teve toda a minha admiração (...). Pois Mynster foi este mestre. Foi o banco de toda uma geração. Quanto não gozaram desta vida estes homens que um dia, na eternidade, quando tiverem de ouvir com horror que isso não é cristianismo, mostrarão, se ouso dizer, um bilhete assinado por Mynster. Pois Mynster foi o banco. Igualmente, no mais profundo do silêncio e da solidão em que me entretenho comigo mesmo e minha ciência policial, eu tinha o hábito de chamar Mynster de: banco do estado (...). (Kierkegaard, 1971, p. 37). Quando esse bispo morreu, Martensen assumiu o seu cargo, tecendo inclusive elogios ao seu antecessor, considerado como testemunha da verdade. Tal afirmação abalou sobremaneira a Kierkegaard, que tinha o costume de aplicar essa expressão aos verdadeiros cristãos. Como protesto, Kierkegaard publicou um artigo sobre a aplicação feito pelo Martensen ao Mynster, no qual afirma que chamar Mynster daquela maneira é “um exagero, absurdo e uma falsificação” (Gouvêa, 2006, p. 54). Os ataques à Igreja Estatal foram escritos em diversos artigos compilados numa revista chamada O Momento. Porém, a batalha contra a Igreja levou Kierkegaard a se afastar ainda mais da sociedade. Devido a sua frágil saúde, teve um colapso aos 2 de outubro de 1855. Em seu leito de morte, negouse a receber seu irmão, porque era membro da Igreja oficial que ele combateu. Nem sequer concordou em receber a comunhão das mãos de um membro daquela igreja. Faleceu aos 11 de novembro do mesmo ano. Ao longo da sua vida lutou “pela verdade e pelo cristianismo paradoxal: que não constitui comunidade, que se afasta dos homens para se aproximar da Transcendência” (Blanc, 2003, p. 46). Como expressão de tudo o que viveu e escreveu, vale lembrar as palavras do Apocalipse que o seu sobrinho leu no momento em que seu ataúde era descido à cova: “Porque és tíbio e não és quente nem frio, estou para vomitar-te da minha boca (3, 14-16)” (Blanc, 2003, p. 46). 1.2.2 As Influências Filosóficas e Religiosas No contexto do século XIX, o pensador S. Kierkegaard representa um marco singular, tanto nos rumos gerais do pensamento quanto na quebra da confiança na razão ilustrada. Mais do que ruminar sobre idéias e trabalhos de outros pensadores, Kierkegaard trouxe algo realmente novo para a humanidade. A origem das suas reflexões se deve às suas experiências pessoais, espirituais e filosóficas. De acordo com Gouvêa, “Kierkegaard pertence à tradição agostiniana, temperada por sua criação luterana e pietista31, e por sua clara compreensão das questões em jogo no seu próprio 31 Segundo Blanc, o pietismo é uma “corrente religiosa proveniente do luteranismo que a princípio se arraigou na Alemanha do século XVII para irradiar-se em seguida para vários países, entre outros lugares a Dinamarca, colocava em primeiro plano a experiência religiosa pessoal e a reforma interior. Protestava contra uma espécie
  • 30. 29 tempo” (2006, p. 11). Isso não significa afirmar, de forma alguma, que Kierkegaard reproduziu sem mais as idéias de Agostinho, do pietismo, da tradição luterana. O que ocorreu, na verdade, foi uma apropriação feita por ele de noções de diferentes escolas de pensamento, até mesmo de pensadores “pagãos”, a fim de fazer emergir algo novo. Segundo Gouvêa32, Agostinho e Kierkegaard foram homens muito diferentes, vivendo em circunstancias muito diversas, mas lidaram com as mesmas angústias e enigmas filosóficos. Ambos procuram trabalhar filosoficamente com os conceitos fundamentais da fé cristã, conceitos como fé, verdade, amor e o conhecimento de Deus. Tanto Kierkegaard quanto Agostinho tiveram que lidar arduamente coma relação entre a fé cristã e a tradição filosófica ocidental. Agostinho, o bispo, tinha preocupações práticas com a vida da igreja que queria manter unificada. Kierkegaard, por outro lado, foi o “indivíduo” por excelência, apologista da individualidade humana, eremita na multidão, voz clamando no deserto meio a uma cristandade desvanecente e uma intelectualidade crista em franca crise desde o Iluminismo. (2007, p. 1). Outro filósofo importante na formação filosófica de Kierkegaard foi Sócrates33: “figura marcante no decorrer de toda a obra kierkegaardiana, sendo seu acompanhante e interlocutor do primeiro ao último momento” (Paula, 2007, p. 62). De Sócrates, Kierkegaard vai apropriar o método da ironia, tornando-se assim um instrumento usado para combater um dos seus grandes adversários: a dissolução do indivíduo na cultura e na história34. Tanto ele como Sócrates enfatizam o homem, enquanto indivíduo, as questões éticas e criticam um sistema especulativo que oculta o ser humano e o divorcia da vida (...). Sócrates é no pensamento de kierkegaardiano o tema a estratégia crítica diante da cristandade e da especulação e o exemplo principal para uma melhor explicação da diferença entre a concepção grega e a concepção cristã (...). Ambos almejam ser um corretivo [grifo do autor] para seu tempo, repleto de sofistas de toda a sorte (...). (Paula, 2007, p. 64). Nem mesmo Hegel foi poupado das críticas do pensador dinamarquês. Recai sobre Hegel a acusação da perda do sentido de existência. Kierkegaard acusou sobremaneira o sistema hegeliano ‘burocratização’ da Igreja e uma secularização da prática religiosa. Esse protesto encontra-se também em Kierkegaard. A principal reivindicação pietista é de um cristianismo mais fervoroso (pietas) [grifo do autor], fundamentado em uma prática religiosa e em uma moral pessoal mais austeras. O pietismo esperava, essencialmente, proporcionar uma vida nova e mais profunda ao luteranismo, e permitir ao crente adquirir uma fé vivida e sentida pelo contato direto com Deus (idéia da relação nua com o Absoluto, presente em Kierkegaard)” (2003, p. 20). Sobre o pietismo, leia-se: TILLICH, Paul. Pietismo. In: _____. História do Pensamento Cristão. 2 ed. São Paulo: Aste, 2000. p 279 – 282. 32 Cf. Gouvêa, Ricardo Quadros. Kierkegaard lendo Agostinho: Introdução a um Diálogo Filosófico – Teológico. Disponível em: < http://www.esnips.com/doc/2672a195-f267-4d65-b332-5702658da96b/RicardoGouvêa---Kierkegaard-lendo-Agostinho---introdução-a-um-diálogo-filosófico-teológico-(pdf-artigo)> Acesso em: 08 de Agos. de 2007. 33 Sócrates nasceu no ano de 470 ou 469 a. C., em Atenas. Era filho de um talhador de pedras e de uma parteira. Nunca fundou uma escola, pois realizava os seus ensinamentos em locais públicos. Ele não escreveu nada: a sua mensagem era transmitida pelo dialogo e pela oralidade dialética. O pensador ateniense veio a falecer em 399 a. C., acusado de corromper os jovens e contrariar as leis da cidade. O grande legado de Sócrates é a sua inauguração da Ética: os problemas da filosofia até seu período eram de ordem cosmológica e sofistica, mas Sócrates chamou atenção para a alma do homem e para o seu agir ético. Cf. BENOIT, Hector. Sócrates: o nascimento da Razão Negativa. São Paulo: Moderna, 1996. 34 Vale lembrar que além de combater os sistemas filosóficos que reduziam o ser humano a uma mera abstração, uma figura perdida nas massas, Kierkegaard também combateu a tibieza do “cristianismo” da sua época.
  • 31. 30 de querer explicar tudo e demonstrar todos os acontecimentos da história e do mundo por meio da dialética. Para Soren, nenhum sistema é capaz de engaiolar a existência (Reale; Antiseri, 2005, p.241): o ser humano possui um modo contingente e mutável de viver a existência, não podendo ser redutível a nenhuma lógica. Segundo Blanc, há quatro elementos que indicam a oposição de Kierkegaard a Hegel: a transcendência absoluta de Deus (versus imanência da idéia), transcendência da fé (versus imanência da razão), abandono da mediação especulativa (versus sua manutenção), a necessidade da justificação pela graça (versus alcance da verdade unicamente pelas forças da razão). Sendo assim, a filosofia de Soren Kierkegaard não se construiu em oposição à de Hegel: ela foi levada por posições próprias e autônomas a tomar um sentido oposto (...). Sua filosofia não é uma filosofia de oposição, mas de posição: a do caráter radical da mensagem cristã [todos os grifos são do autor] (2003, p. 123). Além desses pensadores, outros tantos contribuíram com a formação do pensamento kierkegaardiano, tais como: Tertuliano e outros Padres da Igreja, Santo Anselmo35, Gottfried Leibniz, Lessing36, Immanuel Kant37, Emil Boesen, Poul Martin Moeller e Ludwig Feuerbach38. A todos eles, sem dúvida, Kierkegaard é devedor, mas não se pode esquecer de que o pensador dinamarquês foi um homem, um escritor, um cristão que fez a diferença, tanto por sua coragem de enfrentar os poderes instituídos da época, quanto por ter resgatado o verdadeiro sentido da existência. Minha missão: “limpar o terreno” – Não sou um apóstolo que anuncia algo em nome de Deus e com autoridade. Não, estou a serviço de Deus, mas sem autoridade. Minha missão é de limpar o terreno, para que Deus possa avançar (À margem: minha missão não é a de limpar o terreno com os meios comuns, mas por meio do sofrimento). Deduz-se então facilmente porque devo ser literalmente um homem sozinho e mantido em grande fraqueza e debilidade. Porque, se aquele que há de limpar o terreno avançasse à frente de alguns batalhões – claro que, no plano humano, este parece um método magnífico e o mais seguro para consegui-lo. Mas existiria o perigo de que, em lugar de limpar, esse homem tomasse conta do lugar e de tal maneira que Deus acabaria por não poder agir verdadeiramente. Minha missão é a de limpar o terreno. Sou um policial, se quiserem. Mas a polícia deste mundo procede com a força e prende os outros – ao contrário, a polícia do alto procede por meio do sofrimento e exige antes de ser presa. (1971, p. 45 – 46). O modo como desenvolveu essa missão, o método usado nas suas reflexões e os temas que constituíram objeto de sua reflexão serão temas do próximo capítulo. Por ora basta dizer que o ponto de partida das reflexões de Kierkegaard foi sempre o homem singular, vivo, existencial, com a totalidade de seus afãs e de seus problemas. 35 Cf. VALLS, Alvaro L. M. Santo Anselmo de Copenhague. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 197 – 213. 36 Cf. VALLS, Alvaro L. M. O Problema das Migalhas. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 158 – 160. 37 Cf. VALLS, Alvaro L. M. Algumas comparações com Kant. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 123 – 124. 38 Cf. VALLS, Alvaro L. M. As Migalhas Filosóficas. In: _____. Entre Sócrates e Cristo: Ensaios sobre a ironia e o amor em Kierkegaard. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. p. 155 – 158.
  • 32. 31 2 KIERKEGAARD: UM PENSADOR À ESCUTA DO SER HUMANO A superioridade do homem sobre o animal está pois em ser suscetível de desesperar, a do cristão sobre o homem natural, em sê-lo com consciência, assim como a sua beatitude está em poder curar-se. Soren Kierkegaard O século XIX foi um período da história da humanidade marcado por grandes revoluções tanto na ciência como na sociedade. Todas essas mudanças afetaram significativamente o ser humano, forçando-o a repensar a sua situação no mundo. Todas as seguranças que o Iluminismo oferecia desapareceram. A rainha razão, que se vangloriava de ser a suprema forma de conhecimento e única luz para a compreensão da vida, já não é capaz de oferecer segurança e consistência para a existência humana. Mal-estar, desencanto com a vida, desânimo, incertezas, tibieza... são alguns sentimentos que se apoderaram do homem do século XIX. Depois de se analisar o contexto histórico, social e filosófico em que viveu Kierkegaard, é necessário continuar a investigação sobre o pensador dinamarquês, concentrando agora a atenção sobre a visão que ele tem de homem, especialmente do homem religioso. Como Nietzsche39, Kierkegaard percebeu os males da sua sociedade e procurou ajudar o ser humano a encontrar a si mesmo no devir concreto, no aí, no instante concreto em que vive e decide a sua existência. Tanto a desvalorização da subjetividade como a forma do cristianismo reduzido a mero componente da sociedade incomodaram profundamente a inteligência do pensador dinamarquês. O objetivo principal de Kierkegaard foi o de descrever o que é o cristianismo verdadeiro. Para isso, é necessário deixar-se interpelar por Deus, já que todo ser humano está situado diante de Deus na concreção de seu próprio viver. 2.1 O MÉTODO As obras que Kierkegaard escreveu entre 1843 a 1846 são classificadas como heteronímicas, ou seja, obras escritas por meio de pseudônimos, cuja comunicação se dá de forma 39 Nietzsche exerceu também o papel de um profeta, pois previu que a raiz de todos os males que atingem o homem contemporâneo encontra-se no niilismo: “Descrevo aquilo que virá: o advento do niilismo. Posso descrevê-lo agora porque agora se produz algo necessário – e os sinais disso estão por toda a parte, para vê-los faltam apenas os olhos (...). O homem moderno crê experimentalmente ora neste, ora naquele valor, para depois abandoná-lo; o círculo de valores superados e abandonados está sempre se ampliando; cada vez mais é possível perceber o vazio e a pobreza de valores; (...). No fim, o homem ousa uma crítica dos valores em geral; reconhece sua origem; conhece o bastante para não acreditar mais em valor nenhum; eis o pathos [todos os grifos são do autor], o novo tremor... A história que estou relatando é a dos dois próximos séculos”. (Nietzsche, 1971, p. 110, apud Reale, 1999, p. 18-19).
  • 33. 32 indireta. Quase todas as obras mais famosas de Soren pertencem a esse período. Na verdade, os pseudônimos foram usados pelo autor para instigar o leitor, para extrair do sujeito a verdade, semelhante ao método maiêutico socrático. Além desse método, Kierkegaard fez uso da comunicação direta, presente nas obras escrita de 1843 a 1855. Esta comunicação direta constitui as obras veronímicas, feitas de “discursos edificantes”. 2.1.1 A Comunicação Indireta e Direta Para escrever as obras pseudonímicas – comunicação indireta -, Kierkegaard se inspira nas Cartas confidenciais sobre a Lucinda, de Scheleiermacher, e no romance filosófico Wilhelm Meister, de Goethe (Farago, 2006, p. 58). Essas obras do pensador dinamarquês são apresentadas por meio das máscaras de pseudônimos que permitem que os autores se expressem na primeira pessoa, com as suas próprias opções existenciais. Conseqüentemente, os pseudônimos possibilitam mudanças interiores no leitor através de movimentos existenciais que só ele pode executar. Por isso, Kierkegaard iniciou a sua carreira literária escrevendo obras com pseudônimos. Essas obras são maiêuticas. O método maiêutico é o método usado por Sócrates. Tem o objetivo de descobrir a verdade40, descobrir as respostas para os dilemas existenciais da vida humana. A verdade que o ser humano deve descobrir possui um elemento subjetivo, de apropriação, ou seja, a verdade tem que ser verdadeira “para mim” (a verdade tem que se tornar viva em mim). (Gouvêa, 2006, p. 238-239). Os pseudônimos mais importantes que Kierkegaard usou nas suas obras heteronímicas ou estéticas são os seguintes41: Alguém que Ainda Vive, Victor Eremita, “A”, Johannes o Sedutor, Juiz Vilhelm (“B”), O Pastor de Jylland, Johannes de Silentio, Constantin Constantius, O Jovem, Johannes Climacus, Vigilius Haufniensis, Nicolaus Notabene, A.B.C.D.E.F.Godthaab, Hilarius Bogbinder, Willian Afham, O Modista, Frater Taciturnus, Quidam, Inter et Inter, Procul, Petrus Minor, H.H., Anti-Climacus. De fato, a comunicação indireta presente especialmente nas primeiras obras de Kierkegaard quer, na verdade, transmitir uma mensagem excepcional para os dinamarqueses oficialmente cristãos, a fim de que percebam que eles não são de modo algum cristãos. O objetivo do pensador dinamarquês é instigá-los, confundi-los e libertá-los de um cristianismo falsário, 40 Kierkegaard e Sócrates dizem que a verdade é verdade para o sujeito. Somente o sujeito apropria-se a si mesmo a verdade. Todavia, contrapõem-se no momento de explicar a relação do sujeito para com a verdade. Para Soren, o indivíduo é a não-verdade, ao passo que para Sócrates basta o individuo recordar-se da verdade que já estava no seu interior. 41 Para aprofundar mais sobre eles: Cf. GOUVÊA, Ricardo Q. Os Heterônimos de Kierkegaard. In: _____. Paixão pelo Paradoxo: Uma Introdução a Kierkegaard. São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 309 – 315.
  • 34. 33 acomodado, tíbio. As suas obras estéticas funcionam como espelhos, onde a sociedade dinamarquesa é chamada a se olhar e a se ver42. (Gouvêa, 2006, p. 241). Os “autores” das obras estéticas foram criados por Soren como autores-personagens que inclusive compartilhavam com Kierkegaard muitas das suas convicções. Há, porém, exceção, pois é possível encontrar em muitas das obras estéticas idéias que não condizem com algumas das convicções de fé professadas por Kierkegaard. Em outras palavras: os heterônimos43, “outros nomes” de Kierkegaard, formulam e expressam idéias diferentes em conteúdo (filosofia), em estilo, em compreensão e nas práticas de vida do pensador dinamarquês. (Gouvêa, 2006, p. 242): O que foi escrito é, pois meu, mas somente na medida em que me coloco na boca da personalidade poética real, que produz sua concepção de vida tal como se percebe pelas réplicas, pois minha relação com a obra é ainda mais exterior que aquela do poeta que cria personagens e, no entanto, é ele mesmo o autor do prefácio. Sou, com efeito, impessoal ou pessoalmente um assoprador da terceira pessoa, que poeticamente criou autores, os quais são os autores de seus prefácios e mesmo de seus nomes. Não há, pois, nos livros de pseudônimos uma só palavra que seja minha. Não tenho nenhuma opinião a seu respeito a não ser a de um terceiro, nem conhecimento de sua importância senão enquanto leitor, nem a menor relação privada com eles, pois seria impossível ter uma relação com uma mensagem duplamente refletida44. (Kierkegaard, 1971, p. 47). Neste caso, os heterônimos funcionam como um grupo excêntrico e curioso. São alteregos, personae de Kierkegaard. Apresentam pontos de vista, estilos, tons, vocabulários diferentes de Kierkegaard, existindo até mesmo, entre eles, discordância e contradição. (Gouvêa, 2006, p. 245). Porém, não se pode esquecer de que a heteronomia constitui um método socrático, cujo principal objetivo, como já se acenou, é chamar as pessoas para um verdadeiro compromisso com o cristianismo e com a interioridade45. Não obstante, como já disse, eu não tenho nada a fazer com o conteúdo da obra. Minha tese era que a subjetividade, a interioridade é a verdade. Era ela a meus olhos o decisivo problema do cristianismo e foi nesse sentido que procurei seguir um esforço semelhante, encontrado nos livros pseudonímicos que, até o ultimo, abstiveram-se honestamente de ensinar e em particular devo tomar em consideração o último [Post-Scriptum] porque ele apareceu após minhas “Migalhas”, 42 A alusão ao espelho encontra-se no epigrama de G. C. Litchtenberg, usado por Kierkegaard em: In Vino Veritas: “Tais obras são espelhos: se é um macaco a olhar, não pode ver-se um apóstolo”. (2005, p. 10). 43 De acordo com Gouvêa, é melhor usar o termo heterônimo porque essa palavra implica numa síntese de personae de elementos ficcionais e autobiográficos. Ou seja, as palavras dos heterônimos não são as palavras de Kierkegaard, mas são faladas por genuínos alter-egos. Os heterônimos são inclusive usados propositalmente para deixar os livros falarem por si mesmos, interpretados por seu próprio valor e não pelo autor. (Gouvêa, 2006, p. 243-245). 44 No final desse trecho, Gouvêa diz que Kierkegaard não teria problema em assumir as suas idéias de modo indiretamente, mas as obras heteronímicas precisam ser interpretadas juntamente com as obras veronímicas, visto que a autoria de Kierkegaard não era um segredo, mas um modo de os leitores se identificarem com os autores dos livros, possibilitando assim uma reflexão interior. (Gouvêa, 2006, p. 249-250). 45 Além dessa intenção, Blanc diz que “a pseudonímia remete claramente a uma questão dolorosa, a da paternidade: segundo a carne (Michael Pedersen, o culpado), segundo o espírito (o bispo Mynster, o comprometido), segundo a condição particular (Soren, o eterno noivo de Regina), segundo a condição pública (Kierkegaard, o autor), etc.”. (2003, p. 112).
  • 35. 34 lembra os precedentes recriando-os livremente e, através do humor, como zona-limite, define o estágio religioso. (Kierkegaard, 1971, p. 56). Vale lembrar que Kierkegaard tinha o costume de chamar o método da comunicação indireta de um processo de “comunicação duplamente refletida”: a primeira reflexão levaria a idéia a ganhar sua expressão adequada na palavra; a segunda reflexão enfatizaria a relação intrínseca da comunicação com o comunicador. Isso significa que a comunicação é qualificada pela reflexão, sendo, portanto, uma comunicação indireta. A insistência de Kierkegaard na “comunicação duplamente refletida” o levou a abraçar a heteronomia. (Gouvêa, 2006, p. 251). Portanto, comunicação indireta implica, não que há muitos significados possíveis e legítimos para um texto, mas sim que o texto pode ser interpretado de muitas formas apesar de seu significado genuíno que sempre está oculto, e o interprete revelará seu próprio coração e será julgado pelo texto conforme torne evidente seu próprio modo de lê-lo. (Gouvêa, 2006, p. 251-252). No entanto, como o objetivo do método de Kierkegaard é provocar movimentos existenciais, alcançar a simplicidade, a comunicação deve tornar-se comunicação direta. Foi isso que Kierkegaard procurou provar: “a verdadeira comunicação indireta é acompanhada da comunicação direta” (Gouvêa, 2006, p. 252). Mas quando foi que Kierkegaard colocou isso em prática? O pensador colocou em prática esse pensamento ao escrever a sua chamada “obra veronímica paralela”, composta de comunicação direta46. Kierkegaard insistiu que “a comunicação direta estava presente desde o início, pois o livro Dois Discursos Construtivos, de 1843, foram de fato simultâneos com Ou. E para que se estabelecesse definidamente essa comunicação religiosa como contemporânea, cada novo livro heteronímico era acompanhado quase simultaneamente por uma pequena coleção de Discursos Construtivos – até o surgimento do Post-Scriptum Concludente, que fechou a questão sobre o problema da obra toda, ou seja, como tornar-se um cristão. A partir deste momento os discretos indícios de comunicação religiosa direta cessam e aí começa a produção puramente religiosa: Discursos Construtivos em Variados Estados-de-Espírito, Obras do Amor, Discursos Cristãos”. (Gouvêa, 2006, p. 252). Toda a genialidade literária de Kierkegaard teve apenas um objetivo: descrever o que é o cristianismo. Por isso, antes de ser um poeta (o seu estilo de escrever e a estrutura das suas obras comprovam a sua veia poética), Soren foi um escritor religioso crítico: Esta pequena obra [Post-Scriptum] se propõe, pois, dizer o que sou verdadeiramente como autor, que fui e sou um autor religioso, que toda minha atividade literária relaciona-se com o cristianismo, com o problema do tornar-se cristão, com objetivos polêmicos diretos e indiretos contra esta 46 Tal comunicação não é totalmente direta, pois, se fosse, seria um conhecimento teórico, ordinário, cientifico e especulativo. Mas é direta na medida em que Kierkegaard se responsabiliza por seus discursos, que são como testemunhos que caem sob a rubrica de comunicação indireta, uma vez que esses escritos têm uma função prática cristã. (Gouvêa, 2006, p. 235-236).
  • 36. 35 formidável ilusão que é a cristandade ou a pretensão que todos os habitantes de um país são, enquanto tais, cristãos. (Kierkegaard, 1971, p. 57). Acima de tudo, Kierkegaard foi um crítico veraz do século XIX. Seu poder literário brilhante e criador foi colocado a serviço da afirmação da singularidade do ser humano. Seu pensamento procura demonstrar o verdadeiro sentido da vida. Cada homem é responsável por buscar a si não na massa e nas instituições, mas no seu próprio interior, no contato com o transcendente. 2.2 A EXISTÊNCIA E O INDIVÍDUO O homem é um ser-no-mundo, encontra-se diante de muitas possibilidades. Para ele tudo é possível. Ele goza do poder de escolher, de determinar a sua vida, sendo, porém, responsável pelas escolhas que faz. O ser humano não é um pensamento especulativo ou uma entidade abstrata: é um individuo concreto, dotado de razão e emoção. Ele é a síntese do corpo, da alma e de espírito. A sua existência o coloca sempre na situação de angústia e desespero, que só podem ser superados pelo auxilio divino. 2.2.1 A Existência como possibilidade Segundo Blanc, a pedra angular da construção filosófica de Kierkegaard é o conceito de possibilidade (2003, p. 47). O pensador dinamarquês procurou reconduzir a compreensão de toda a existência humana a essa categoria e demonstrar o caráter negativo e paralisante da possibilidade como tal47 (Abbagnano, 1978, p. 10). A palavra possibilidade deriva da palavra possível que, por sua vez, vem do latim posse potis esse que significa “ter em seu poder” , “ser patrão de”. O possível significa que o “eu” pode fazer e realizar algo na experiência concreta e vivida. Para Kierkegaard, é o possível caracterizar o existir do homem, uma existência pela qual o homem entra em contato como o mundo e com os outros. Também é “preocupação com sua sobrevivência, e antecipação e projeto, desenvolvimento de um programa que está se escrevendo, saída fora de si da vida” (Blanc, 2003, p. 48). Neste caso, a existência se torna uma contingência absoluta: o homem tem diante de si uma multiplicidade de possibilidades pelas quais escolhe. O 47 O aspecto do negativo da possibilidade significa que todas as possibilidades são possibilidades-de-sim e possibilidades-de-não, pois no seu projetar-se o homem se vê diante do nada, angustia-se com o mundo. (Abbagnano, 1978, p. 12-14).
  • 37. 36 mundo exige uma resposta, uma escolha de cada ser humano. A existência não é um objeto, mas aquilo a partir do qual cada um experimenta, pensa e age. Existir, para o homem, não é o equivalente de ser (Vaeren) ou de ter a existência, empírica, imediata, a existência de fato (Tilvaerelse). O homem é o único existente, distinto dos outros entres que só tem uma existência de fato e não sabem que são. Muito mais, para o homem, sua existência é uma tarefa, uma exigência: a de ter que devir, edificar-se. (Farago, 2006, p. 75). A existência coloca o ser humano na tarefa de si mesmo, interessado por si mesmo e voltado para os possíveis: ele só pode ser diante de suas opções. Quando o homem age, ele ec-siste, mantém-se fora de si mesmo, projeta-se na realidade através de suas ações. Consequentemente, a existência se torna autêntica, porque faz sentido por ela mesma. (Farago, 2006, p. 75-76). Em outras palavras: quando o ser humano enfrenta os possíveis da realidade, dá forma à sua singularidade, mostra-se como o Individuo, e não uma entidade abstrata. (Blanc, 2003, p. 50). Contudo, o homem, na sua forma biológica de corpo, lançado no mundo com sua reverberação psíquica (alma), necessita de chegar ao espírito, à faculdade da síntese reflexiva, para arrancar da sua animalidade e se realizar como pessoa concreta. (Farago, 2006, p. 76). Tal processo exige uma nova compreensão do ser humano como síntese de corpo e alma, síntese que não pode ser concebível sem se ligar a um terceiro: o espírito48. Tal síntese constitui a essência do homem, o qual não precisa se livrar do corpo49 para entrar em contato com Deus, pois a síntese na visão cristã se realiza por meio de uma complexidade de três termos: a da alma e a do corpo passando pelo espírito [grifos do autor]. Se a essência do homem reside em ser bem-sucedido nesta relação referindo-se a Deus, de jeito algum ele poderia furtar-se a ela, e, muito longe de preconizar a fuga do mundo (...). Trata-se, portanto, para o homem, de ele se deixar elevar do próprio coração to tempo à vida eterna (...). (Farago, 2006, p. 79). Para Kierkegaard, o fato de o Indivíduo estar dentro e diante da existência, a sua existência é possibilidade, possibilidade que não deixa de causar angústia no homem, um sentimento de malestar. (Blanc, 2003, p. 50-51). De acordo com Farago, a angústia é O lugar onde o si mesmo começa a advir, experiência cuja tonalidade afetiva é absolutamente única, dado que, diferentemente do receio ou do medo, a angústia não tem objeto, não é de forma alguma intencional, privada que é de toda referencia. Ela é o pathos [grifo do autor] em cujo seio o indivíduo começa a chegar à consciência de si mesmo. (2006, p. 80). Além da angústia, o desespero também faz parte da existência humana, pois o homem, diante das diversas possibilidades, dos limites delas e da situação difícil de escolher, entra em 48 Sobre angústia e desespero, Kierkegaard escreveu de modo profundo nos livros: O Conceito de Angústia, A Doença Mortal. 49 Contrapõe-se ao dualismo, pelo qual o corpo é visto como um túmulo, necessitando se desligar do corpo para entrar em contato com o transcendente. Essa concepção gera uma profunda desvalorização do corpo.
  • 38. 37 desespero. Essa situação limite, só pode ser superada pela ajuda de Deus. É Deus quem o salva. Segundo Kierkegaard, a relação que se estabelece entre Deus e o homem, quando este se encontra numa situação de angústia, constitui, na verdade, uma relação possível e não necessária. Isso não significa afirmar que a fé não alivia condição humana. “Ter fé é assumir os riscos [grifo do autor] que derivam das possibilidades da existência” (Blanc, 2003, p. 51). Enfim, a existência humana ou o Indivíduo encontra-se sempre diante das possibilidades, colocando-o em relação consigo mesmo, com o mundo e com Deus. O desespero, a angústia e o paradoxo são situações concretas que caracterizam essa relação do homem a partir das possibilidades lhe apresentadas. (Blanc, 2003, p. 52). 2.3 OS ESTÁDIOS NO CAMINHO DA VIDA Como foi dito anteriormente, o ser humano vive em relação consigo mesmo, com o mundo e com Deus. Mas o homem é finito. Essa finitude é “complexa e estruturalmente fadada ao conflito interior, à tensão ou ao desequilíbrio entre elementos que se tornaram heterogêneos pela consciência e pela divisão que ela introduz entre a alma e o corpo, entre interioridade e a exterioridade” (Farago, 2006, p. 86). O eu não é uma identidade abstrata, mas essencialmente relação viva consigo mesmo, em primeiro momento. A síntese entre o infinito e o finito, o temporal e o eterno, não se dá, porém, por causa da relação entre alma e corpo. É a reflexividade da relação, que vai se desdobrando em sua dinâmica no tempo, que possibilita tal síntese (Farago, 2006, p. 86). Neste caso, o eu é a relação entre a alma e o corpo que se relaciona reflexivamente consigo mesmo por intermédio do espírito: A reflexividade constitui o eu, a singularidade de cada um, arrancando-o à impessoalidade da espécie e aos falsos selves [grifo do autor] que são forjados pelas convenções sociais. Mas o homem não se reduz a esta relação simples. Sua estrutura é mais complexa. Esta complexidade reflexiva que é a existência humana, “este filho gerado pelo infinito e o finito, pelo eterno e o temporal”, acha-se na situação de se esforçar continuamente para equilibra a relação, a fim de realizar o mais harmoniosamente possível a síntese entre seus elementos heterogêneos (...). “Essa relação que se relaciona consigo mesma, um eu, deve ou se ter posto a si mesma ou então haver sido posta por outra coisa”. Neste caso, o terceiro que é a relação, ou seja, o espírito, se relaciona com aquilo que pôs toda a relação, isto é, Deus. Resgatar de maneira consciente a relação com Deus, da qual procedemos inconscientemente e originalmente, significa nascer para si mesmo de verdade. (Farago, 2006, p. 86-87). O homem não é um ser predeterminado, mas se auto-determina, fazendo escolhas. O seu existir está marcado por escolhas, o que implica ser responsável por elas. Na medida em que se desenvolve livremente, o ser humano pode se realizar como Indivíduo, como um Eu, com ajuda de Deus, pois interioridade humana apela para o transcendente. Para não se perder na vida, homem