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REPORTAGEM NUMA ALDEIA CERCADA PELO FOGO




 Nº 387 • 10 A 16 DE AGOSTO DE 2000 • 450$00   • €2,25




   EXCLUSIVO




                      Em Portugal, um movimento alternativo reúne
                     milhares de jovens em festas musicais ao ar livre.
                            Histórias de LSD, ecstasy e êxtase

                                                                             Nesta edição, o n.º24
                                                                          WERTHER de Goethe
TROCA DE CASAIS NA INTERNET                                               Por apenas + 450$
ACAMPAMENTO
                                          Tudo a postos



                                                            TRIBO
                                          para a grande festa
                                          transe portuguesa




                                        SOCIEDADE
   Viagem pela cultura de um movimento musical alternativo – que se reúne a partir
       de amanhã em Pinheiro, Palmela, num festival com gente de todo o globo
    – o qual reaviva os cultos hippie, crê em ovnis, adopta a simbologia hindu e tem
              os cogumelos, os ácidos e o ecstasy como drogas de eleição
JOÃO DIAS MIGUEL (TEXTO) • ANTÓNIO PEDRO VALENTE (FOTOS)




O
            incêndio de terça-feira, 1 de
            Agosto, caiu mal. Já se esperava
            que acontecesse algo assim. Não
            se tinha, afinal, descontrolado
            um Concorde a 25 de Julho, dia
            da Ponte dos Arco-Íris no calen-
dário Maia? Pois este era, como bem no-
tou António Monteiro, um trancer de ca-
belo preto rapado, rabo de cavalo louro e
uma infinidade de brincos na orelha direi-
ta, «o dia do fogo, da morte e das altera-
ções electromagnéticas». Ia acontecer des-
graça, estava-se mesmo a ver. E aconteceu.
«Bad vibes», no fundo.
   Assim, o festival Boom — um dos maiores
festivais europeus do movimento musical
  Transe (do inglês Trance) que todos os
    anos reúne milhares de pessoas perto da
      localidade de Pinheiro, na Marateca —
        podia não ter acontecido. A casa típi-
          ca alentejana que lhe serve de quar-
            tel-general, com as suas paredes
MÚSICA
O contacto com
a natureza e os
«sons orgânicos»
são apreciados
pelos participantes




brancas e janelas debruadas a azul, ia arden-       de vídeo: a trilogia da Guerra das Estrelas,   que montaram ao lado de um sobreiro, ou-
do toda. Foi necessário criar um longo cor-         o Matrix e o Dark City. Com as revistas        vidos concentrados nas gravações de rit-
dão humano entre 40 pessoas para trans-             dos X-men da Marvel foi o mesmo, nem as        mos cardíacos que subliminarmente inun-
portar os baldes de água. Por fim, já noite         garras titânicas de Wolverine, nem os po-      dam as músicas Transe. E saudaram a vin-
dentro, evitaram o pior, sem nunca recorre-         derosos óculos laser de Cyclops as protege-    da do festival que se aproxima.
rem aos bombeiros de Águas de Moura.                ram do fogo e da água.
  O saldo foi pesado: o telhado partido,              Mas salvou-se o essencial. O enorme pa-      Festas da Lua Cheia
uma das cinco divisões daquele pequeno              no com uma representação dos chakras              São arquitectos, jornalistas, jovens, altos
monte da enorme herdade do Zambujal,                do tantrismo sobreviveu intocado e a re-       quadros da administração pública, técni-
propriedade da família Vinhas, destruída.           presentação do deus hindu Ganesh esca-         cos de imagem, especialistas em gestão de
Perderam-se, alagadas, algumas cassetes             pou quase milagrosamente às labaredas.         sistemas informáticos. Gente de dinheiro
                                                         As revistas alternativas, como a Mus-     que se mistura com hippies, neo-hippies e
                                    PEDRO
                                    CARVALHO             hroom, a Dream Creation e a PLUR          travellers, como chamam aos andarilhos
                                    E SILVIA             (Peace, Unity, Love and Respect), ale-    aventureiros.
                                    Ele é um dos         mãs, inglesas e tibetanas safaram-se,        Guardaram influências do rock psicadé-
                                    organizadores da ficando apenas ligeiramente amarfa-           lico dos anos 70, da música electrónica dos
                                    festa na Herdade nhadas. Mas, mais importante, as no-          anos 80 e desiludiram-se com a música
                                    do Zambujal; ela vas tecnologias como o computador,            techno, por ser «demasiado comercial».
                                    participa e foi
                                    num destes           o DAT (Digital Audio Tape), o Mini-       Adoptaram uma filosofia que vai buscar
                                    encontros que o disc, a impressora e o próprio vídeo fi-       muitas das suas raízes ao movimento hip-
                                    actual namorado caram incólumes.                               pie, herdaram-lhes por exemplo toda a ico-
                                    a conquistou...         Numa das noites seguintes, a quase-    nografia hindu. Representações de Shiva,
                                    oferecendo-lhe       tragédia foi exorcizada da maneira ha-    deus que, conta Susana Oliveira, uma
                                    uma maçã             bitual: os mesmos que apagaram o fo-      adepta do movimento, «é azul porque ab-
                                                         go dançaram, eléctricos, num ritual na    sorve todas as drogas do mundo», do seu
                                                         «floresta», como chamam simbolica-        filho, Ganesh, «deus bebé, meio homem
                                                         mente ao local da planície alentejana     meio elefante» e da sua mulher Parvati
                                                        onde, a partir de amanhã, sexta-feira,     não faltam num ambiente transe.
                                                          11, estarão montadas cerca de 40 tas-       Vestem de forma própria, peculiar: sim-
                                                                quinhas com comida de todo o       ples T-shirts brancas com fractais (imagens
                                                                  mundo. Dançaram noite den-       que variam consoante o ângulo de inci-
                                                                   tro, olhos pregados no extra-   dência da luz) alternam com largas saias
                                                                  terrestre verde-fluorescente     tribais de algodão, camisas largas sem
                                                                                                                                            v
SOCIEDADE




            l   BOOM 2000
            O dia na Herdade do
            Zambujal é passado
            em trabalho árduo, na
            montagem dos palcos,
            na pintura das bancas
            dos restaurantes. Já
            à noite, o tempo é de
            festa e de dança, num
            espectáculo visual que
            parece montado para
            favorecer alucinações




                                         TRIBO TRANSE
                                     v




                                     colarinho, calças radicais de costuras fluo-
                                     rescentes. O símbolo Om — que, acredi-
                                     tam, simboliza o som que deu início a tu-
                                     do — está presente nos colares e o moder-
                                     no titânio nos piercings.
                                        Muitos são adeptos do vegetarianismo,
                                     do nudismo, da agrobiologia; outros dedi-
                                     cam-se ao yoga, ao tantrismo. Se não acre-
                                     ditam em tudo, aceitam quase tudo como
                                     parte do movimento. Têm ídolos culturais
                                     próprios: «Terence McKenna, pai do LSD,
                                     Timothy Leary e, de certa forma, William
                                     Burroughs», aponta Artur Silva, 23 anos,
                                     crítico de música transe numa pequena re-
                                     vista portuguesa.
                                        Se se juntam no campo, é porque os an-
                                     tigos druídas o faziam; se amam a nature-
                                     za, também é porque a sociedade ociden-
                                     tal — a Igreja — fechou os olhos aos conhe-
                                     cimentos ancestrais sobre plantas e cogu-
                                     melos alucinogéneos, retirando assim a
                                     possibilidade de entrar em transe, de esta-
62                                                      VISÃO 10 de Agosto de 2000
SOCIEDADE




                                                                                               Os gurus
                                                                                                            Foram vidas cheias, passadas a




                                                                                                         AP/WALT WEIS
                                                                                                            correr, antes que o tempo se esgo-
                                                                                                            tasse. E que tornaram William Bur-
                                                                                                            roughs, Timothy Leary e Terence
                                                                                                            McKenna em figuras de culto.
                                                                                                            Quando uma crise cardíaca derru-
                                                                                                            bou William Burroughs (1914-
                                                                                                            1997), muitos se interrogaram so-
                                                                                                            bre a capacidade de resistência de
                                                                                                            um homem que, tendo experi-
                                                                                                            mentado todo o tipo de drogas, vi-
                                                                                                            veu até aos 83 anos. Fundador,
                                                                                                            com Jack Kerouac e Allen Gins-
                                                                                               berg, do movimento beatnick, desde cedo se
                                                                                               revelou incapaz de se adaptar às regras da so-
                                                                                               ciedade americana dos anos 50. Pintor, cantor
                                                                                               e escritor (autor do Festim Nu) refugiou-se no
                                                                                               Texas, cultivando algodão, laranjas e marijua-
                                                                                               na. Burroughs mudou depois para o México,
                                                                                               fugido à Justiça.Aí, enquanto imitava Guilher-
                                                                                               me Tell, matou, de um só tiro, a sua mulher.
                                                                                               Para Timothy Leary (1920-1996), o «pai» do
                                                                                               LSD, a morte merecia atenção idêntica à vida.
                                                                                               Só isso pode explicar a «extravagância» que se
                                                                                               permitiu – tornar mediática a sua lenta agonia,
                                                                                               difundindo-a em directo no seu site. Professor
                                                                                               de Psicologia em Harvard, foi dos primeiros a
                                                                                               defender o psicadelismo como terapia, mas as
                                                                                               suas experiências foram interrompidas quando
                                                                                               os efeitos secundários do LSD começaram a ser
               l   CRENÇA
              Quartel-General do festival: representação dos Chakras do Tantrismo
                                                                                               divulgados e o ácido tornado ilegal. Depois de
                                                                                               cumprir pena por consumo e tráfico de drogas,
                                                                                               mudou-se para a Califórnia e tornou-se num
                                                                                               entusiasta da Internet e da cibercultura.
belecer contacto com o mundo espiritual,         se está ali a passar é uma batida rítmica     Após se ter dedicado ao estudo do shamanis-
com as várias dimensões que o hinduísmo          distante. Mas numa fool moon party pas-       mo e da etnofarmacologia, também Terence
ensina coexistirem na Terra. Mas não fe-         sa-se muita coisa. Boa e má.                  McKenna (1946-2000) se rendeu, no final da
cham os olhos ao mundo moderno. Ser-                                                           vida, aos encantos das novas tecnologias. Gra-
vem-se das mais recentes tecnologias para        O DNA de Deus                                 duado pela Universidade de Berkeley (Califór-
criarem melodias de construção matemáti-            Desde há vários meses que na Herdade       nia), foi o autor da Teoria da Novidade (uma
ca. Usam, por exemplo, os mesmos pro-            do Zambujal se prepara o Boom. Pedro          teoria cíclica da História) e escreveu sobre o
gramas de computador utilizados por cen-         Carvalho, um dos donos da Good Mood,          impacto de certas plantas no humano, nomea-
tros de investigação de vida extraterrestre,     não vai a casa há oito semanas. «Eu sou o     damente True Hallucinations (Alucinações ver-
para tentar descobrir uma linguagem alie-        criativo, o Diogo é o produtivo», conta Pe-   dadeiras), uma narrativa sobre a sua «viagem
nígena nos ciclos das nebulosas do espaço,       dro, enquanto orienta as pinturas das ban-    espiritual» no meio da selva colombiana.
um pouco como acontece no filme Con-             cas da zona de restaurantes, uma das                                         SARA BELO LUÍS
tacto, com Jodie Foster. «Estes ciclos são       várias zonas em que se vai dividir
transformados em sons e introduzidos na          o evento.
música. É isso que lhe dá uma atmosfera             Diogo Rui, o «produtivo»,
‘galáctica’», explica ainda Artur, que está a    é o homem que resolve as
terminar o último ano de Psicologia. Da          coisas — a quem toda a
mesma forma utilizam gravações reais das         gente pergunta o que fa-
batidas do coração para obter um ritmo           zer antes de o fazer. Ain-
«orgânico».                                      da faltava quase uma se-
   Só dançam no campo, naquilo a que             mana para o festival co-
chamam fool moon parties (festas da lua          meçar e havia já um
cheia), longe de tudo e de todos. O máxi-        acampamento de dez a
mo que a aldeia mais próxima ouve do que         15 tendas de gente que
                                                                              v




VISÃO 10 de Agosto de 2000
SOCIEDADE




                TRIBO TRANSE                              go», desespera Mark, com um ar cansado.
            v




                                                          «Andei o dia todo para cá chegar.»
            viera porque queria ajudar. «Hi, o meu no-       Diogo cede, o holandês ficará, primeiro
            me é Mark, venho de Amesterdão e queria       com a promessa de que será só por 24 ho-
            saber se posso acampar aqui e se precisam     ras, depois logo se vê. À noite, Mark janta
            de mim para alguma coisa», diz um holan-      no típi (tenda índia) da Manu (Manuela),
            dês de 30 anos, largas entradas no cabelo     senhora dos seus quarentas e tais, mãe de
            e pontas de espuma branca nos cantos da       um dos primeiros adeptos transe portu-
            boca. «A melhor ajuda que podes dar de        gueses. Dias antes chegara do Nepal um is-
            momento é não estares aqui», responde         raelita com haxixe, um condensado de
            Diogo, no seu inglês perfeito — ele que ti-   uma erva local que se diria druídica. E as-
            rou Engenharia de Sistemas de Som em          sim o número de tendas tem crescido.
            Inglaterra. «Mandaram-me vir ter conti-          Passam os dias em trabalho árduo, a
                                                          montar um festival que tem uma dimensão
                                                          tal que admira que seja praticamente des-




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SOCIEDADE



                                                                                                           ALUCINAÇÕES
                                                                                                           Os cogumelos ilegais, a
                                                                                                           cultura maia, hindu e druídica
                                                                                                           são algumas das influências
                                                                                                           do colorido movimento
                                                                                                           transe. As fluorescências
                                                                                                           e os fractais estão presentes
                                                                                                           nas roupas e nos adereços




conhecido. A área do Flea Market ( à letra,     te horas na tenda do chill out — uma área     vida na Bahia (Brasil). «Às vezes sente-se
mercado das pulgas — e não é uma metá-          para descansar, ouvir música mais calma,      mesmo que se consegue levar as pessoas a
fora...) vai reunir cerca de 40 bancas de to-   tocar Didgeridoo (instrumento aborígena),     uma união de espíritos, a esse momento M
do o mundo, das massagens asiáticas às lo-      ter uma boa «aterragem» das drogas que        que é o transe, em que as pessoas se abs-
jas de discos, roupa e artesanato. A zona       se consomem — com a garantia de que,          traem delas próprias para se fundirem
dos restaurantes alberga desde comida is-       mesmo não havendo sítio para os comprar       num colectivo, num estado colectivo de
raelita a japonesa, de casas de chás preten-    em quilómetros, não desaparece nem um.        consciência modificado pela... muitas ve-
samente alucinogéneos a cibercafés.             Não há violência, não há encontrões na        zes pela acção da dança», vacila.
   Para decorar o Boom, vieram artistas de      pista de dança e também não há engates,          É que, noutras vezes, o momento M é
todo o mundo. Feijão, um português do           ‘bocas’. «Nós, raparigas, sentimo-nos bem,    conseguido de outras formas. transe e alu-
Barreiro — louro, de barba, olhos azuis, ca-    ninguém olha para nós, cada um está co-       cinogéneos são quase indissociáveis. Mas
belo atado atrás — faz pinturas de «livre       mo quer», explica Paula Ferreira, uma es-     talvez seja melhor começar pelo que não
inspiração maia» e sobrevive quase só dis-      tudante da Guarda. «Por isso é que se         há: heroína e álcool, de certa forma os es-
so. No caso, pintou a estrutura do Banco        vêem tantas mulheres nestas festas.»          tupefacientes da base e do topo. De resto,
Boom, onde toda a gente irá trocar escu-           Não há engates, não há ‘esquemas’. Ou      quase tudo é permitido.
dos pela nota oficial do festival. (Nas ante-   se os há, são feitos de forma diferente. P.      As drogas de eleição do movimento são
riores edições, os organizadores concluí-       Mac, um jovem paramédico de 27 anos           os cogumelos alucinogéneos, os ácidos
ram que os donos das tasquinhas não «de-        que se tornou num dos bons DJ’s portu-        (compostos de LSD, como reza a canção
claravam» a maior parte dos seus lucros,        gueses do movimento, conquistou a com-        dos Beatles, Lucy in the Sky with Dia-
fugindo à entrega da percentagem acorda-        panheira oferecendo-lhe uma maçã, pri-        monds) ou o mais moderno ecstasy.




                                                                                                                                            v
da. A solução foi criarem uma nota pró-         meiro, e um charro, depois. Sem palavras,
pria para o festival.)                          apaixonaram-se. «Foi lindo», recorda a        MOICANO
   Avi Kal, nome que esconde um italiano,       namorada, Sílvia.                             Rapar o cabelo
reproduz elipses gigantes rendilhadas em           É suposto, portanto, falar-se pouco.       antes da festa
cores fortes, de luminosidade fluorescente.        O transe, dizem os seus adeptos, pode
Está numa tenda como toda a gente, é an-        ser, num mesmo momento, altamente in-
tipático, insiste em não dizer palavra. Mas     trospectivo e de grande união tribal. «Não
leva cerca de 300 contos por cada traba-        havia grandes diálogos nos primórdios»,
lho, viagens e estadia à parte. E no fim de     frisa um rapaz pedrado de mais pa-
cada festa, queima o que criou, para des-       ra se lhe perguntar o nome. «Ha-
gosto dos organizadores.                        via o riso, o choro e pouco
   K.C., um artista japonês, reproduziu fisi-   mais. E no entanto as pessoas
camente, um pouco por todo o perímetro,         entendiam-se, comungavam»,
instalações que, a partir de cálculos com-      explica, enquanto enrola mais
putadorizados, replicam as estruturas geo-      um charro de haxixe nepalês.
métricas em que a visão humana decom-              «O momento M, consegui-o em duas
poria as formas, se elas pudessem ser redu-     ou três ocasiões», reforça por sua
zidas a equações matemáticas. Numa pin-         vez Paulo Cego, um DJ invisual
tura, disse ele a um dos trancers portugue-      com residência em Paris e meia
ses, tentou mesmo «reproduzir o
DNA de Deus».
‘Uma maçã e um charro’
   Um verdadeiro ambiente
transe é algo de diferente.
Por exemplo, podem deixar-
se maços de cigarros duran-
VISÃO 10 de Agosto de 2000
SOCIEDADE


                                         REFEIÇÃO
                                         Ao pé do seu tipi,
                                         Manu, mãe
                                         de um dos trancers,
                                         prepara a refeição
                                         vegetariana

                                         DESCANSO
                                         Feijão, artista
                                         plástico que
                                         se «inspira
                                         livremente» na
                                         cultura maia, toca
                                         um instrumento
                                         oriental


    TRIBO TRANSE                                  estrada não saberia, com toda a certeza, a       do bastante negro. «Essa noite foi um bad
v




                                                  que se devia aquele inusitado movimento          flight», dirão depois.
Aliás, todo o espectáculo visual de uma           automóvel.                                          «Uma coisa que me impressionou bem,
festa transe parece montado de forma a               Foram quilómetros de cerejeiras antes         de princípio, foi a paz de espírito que se
facilitar alucinações.                            de lá chegar e nada garantia que a ponte         sentia, toda aquela boa onda», recorda
                                                  aguentasse o peso de um carro. Junto a um        uma jornalista de uma rádio de projecção
‘Sair da Beira vivo’                              pequeno casario começam a avistar-se os          nacional que esteve de baixa vários meses
   Um fim-de-semana de Julho, muito an-           BMW, os Volkswagens e os Land Rover.             por causa do ecstasy e dos ácidos. «Só de-
tes do festival. Para esta festa, ninguém fez     No bar, improvisado numa ruína abando-           pois vi o resto. As pastilhas não são como
publicidade, não havia quaisquer indica-          nada, cheira a haxixe — um cheiro forte,         a heroína, não são drogas que tenham um
ções. Foram pequenas mensagens escritas           bem mais forte do que o habitual. Está lá        momento alto em que se sobe e desce em
passadas por telemóvel — às vezes em tro-         tudo: as fluorescências, os fractais, as luzes   pouco tempo», explica.
ca de uma palavra-chave — que os fizeram          negras, os símbolos hindus. Mas qualquer            Uma «pedra» destas pode durar 24 ho-
lá chegar. Foram quase secretistas. No fim        coisa não corre bem. Há imensa droga a           ras e o problema não é a dependência físi-
de uma aldeia, na estrada que liga a Covi-        rodar, nomeadamente cocaína. Há muita            ca. «Aquilo absorve-te completamente, o
lhã à Guarda, há uma cancela branca de            gente também bêbeda e muita gente «pas-          ambiente fascina-te, só pensas na próxima
uma propriedade agrícola: «Está fechada e         tilhada». O clima é agressivo.                   festa, não consegues trabalhar. Aí, vês que
é para continuar fechada. Levanta-a, bai-            Um dos adeptos do movimento diz que           aquilo mexeu com a tua cabeça. Mas se es-
xa-a, anda uns quilómetros, passa uma             os flashes da máquina fotográfica interfe-       tás de mal contigo, nem tu lá vais fazer na-
ponte de madeira, anda um pouco mais e            rem com a «onda» de uma festa transe.            da, nem eles te querem lá.»
hás-de começar a ver os outros carros.»           Uma questão de ciclos, esclarece. Diferen-          É então que vem o pesadelo. «Ninguém
Foi a única pista, de voz que se quis anó-        ciam-se da música, interferem com os rit-        está no transe mais de um ano», reforça
nima, para chegar a esta festa.                   mos dela. Mas isso não explica tudo. Há          um colega desta mulher de trinta e poucos
   É meia-noite. A aldeia — que não pode          violência no ar, os estados de espírito va-      anos. «Só os ‘carolas’, os que vivem daqui-
ser identificada para não denunciar o pro-        riam da euforia, ao ódio, à tristeza. «Pira-     lo — os outros, ao fim desse tempo, ou se
prietário da enorme quinta onde decorreu          te que ainda não sais da Beira vivo», dizem      vêm embora ou precisam de tratamento
o encontro — está completamente deserta           a um dos elementos da equipa de reporta-         psiquiátrico.» Para lidar com os problemas
e mesmo que alguém passeasse à beira da           gem da VISÃO. O transe tem afinal um la-         da vida real. s

    MÚSICA
                                                                                                                         LUCÍLIA MONTIRO
                                                  LUÍS BARRA




    Paulo, DJ invisual:
    «O momento M,
    em que a multidão
    comunga em transe,
    consegui-o muito
    poucas vezes»                                                                                                                          DROGA
                                                                                                                                           Festa numa
                                                                                                                                           «floresta»,
                                                                                                                                           algures na Beira.
                                                                                                                                           Nem para todos o
                                                                                                                                           transe é inocente.
                                                                                                                                           Há drogas duras
                                                                                                                                           e também há
                                                                                                                                           quem arranje
                                                                                                                                           sérios problemas




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Festival de música transe reúne milhares em Portugal

  • 1. REPORTAGEM NUMA ALDEIA CERCADA PELO FOGO Nº 387 • 10 A 16 DE AGOSTO DE 2000 • 450$00 • €2,25 EXCLUSIVO Em Portugal, um movimento alternativo reúne milhares de jovens em festas musicais ao ar livre. Histórias de LSD, ecstasy e êxtase Nesta edição, o n.º24 WERTHER de Goethe TROCA DE CASAIS NA INTERNET Por apenas + 450$
  • 2. ACAMPAMENTO Tudo a postos TRIBO para a grande festa transe portuguesa SOCIEDADE Viagem pela cultura de um movimento musical alternativo – que se reúne a partir de amanhã em Pinheiro, Palmela, num festival com gente de todo o globo – o qual reaviva os cultos hippie, crê em ovnis, adopta a simbologia hindu e tem os cogumelos, os ácidos e o ecstasy como drogas de eleição JOÃO DIAS MIGUEL (TEXTO) • ANTÓNIO PEDRO VALENTE (FOTOS) O incêndio de terça-feira, 1 de Agosto, caiu mal. Já se esperava que acontecesse algo assim. Não se tinha, afinal, descontrolado um Concorde a 25 de Julho, dia da Ponte dos Arco-Íris no calen- dário Maia? Pois este era, como bem no- tou António Monteiro, um trancer de ca- belo preto rapado, rabo de cavalo louro e uma infinidade de brincos na orelha direi- ta, «o dia do fogo, da morte e das altera- ções electromagnéticas». Ia acontecer des- graça, estava-se mesmo a ver. E aconteceu. «Bad vibes», no fundo. Assim, o festival Boom — um dos maiores festivais europeus do movimento musical Transe (do inglês Trance) que todos os anos reúne milhares de pessoas perto da localidade de Pinheiro, na Marateca — podia não ter acontecido. A casa típi- ca alentejana que lhe serve de quar- tel-general, com as suas paredes
  • 3. MÚSICA O contacto com a natureza e os «sons orgânicos» são apreciados pelos participantes brancas e janelas debruadas a azul, ia arden- de vídeo: a trilogia da Guerra das Estrelas, que montaram ao lado de um sobreiro, ou- do toda. Foi necessário criar um longo cor- o Matrix e o Dark City. Com as revistas vidos concentrados nas gravações de rit- dão humano entre 40 pessoas para trans- dos X-men da Marvel foi o mesmo, nem as mos cardíacos que subliminarmente inun- portar os baldes de água. Por fim, já noite garras titânicas de Wolverine, nem os po- dam as músicas Transe. E saudaram a vin- dentro, evitaram o pior, sem nunca recorre- derosos óculos laser de Cyclops as protege- da do festival que se aproxima. rem aos bombeiros de Águas de Moura. ram do fogo e da água. O saldo foi pesado: o telhado partido, Mas salvou-se o essencial. O enorme pa- Festas da Lua Cheia uma das cinco divisões daquele pequeno no com uma representação dos chakras São arquitectos, jornalistas, jovens, altos monte da enorme herdade do Zambujal, do tantrismo sobreviveu intocado e a re- quadros da administração pública, técni- propriedade da família Vinhas, destruída. presentação do deus hindu Ganesh esca- cos de imagem, especialistas em gestão de Perderam-se, alagadas, algumas cassetes pou quase milagrosamente às labaredas. sistemas informáticos. Gente de dinheiro As revistas alternativas, como a Mus- que se mistura com hippies, neo-hippies e PEDRO CARVALHO hroom, a Dream Creation e a PLUR travellers, como chamam aos andarilhos E SILVIA (Peace, Unity, Love and Respect), ale- aventureiros. Ele é um dos mãs, inglesas e tibetanas safaram-se, Guardaram influências do rock psicadé- organizadores da ficando apenas ligeiramente amarfa- lico dos anos 70, da música electrónica dos festa na Herdade nhadas. Mas, mais importante, as no- anos 80 e desiludiram-se com a música do Zambujal; ela vas tecnologias como o computador, techno, por ser «demasiado comercial». participa e foi num destes o DAT (Digital Audio Tape), o Mini- Adoptaram uma filosofia que vai buscar encontros que o disc, a impressora e o próprio vídeo fi- muitas das suas raízes ao movimento hip- actual namorado caram incólumes. pie, herdaram-lhes por exemplo toda a ico- a conquistou... Numa das noites seguintes, a quase- nografia hindu. Representações de Shiva, oferecendo-lhe tragédia foi exorcizada da maneira ha- deus que, conta Susana Oliveira, uma uma maçã bitual: os mesmos que apagaram o fo- adepta do movimento, «é azul porque ab- go dançaram, eléctricos, num ritual na sorve todas as drogas do mundo», do seu «floresta», como chamam simbolica- filho, Ganesh, «deus bebé, meio homem mente ao local da planície alentejana meio elefante» e da sua mulher Parvati onde, a partir de amanhã, sexta-feira, não faltam num ambiente transe. 11, estarão montadas cerca de 40 tas- Vestem de forma própria, peculiar: sim- quinhas com comida de todo o ples T-shirts brancas com fractais (imagens mundo. Dançaram noite den- que variam consoante o ângulo de inci- tro, olhos pregados no extra- dência da luz) alternam com largas saias terrestre verde-fluorescente tribais de algodão, camisas largas sem v
  • 4. SOCIEDADE l BOOM 2000 O dia na Herdade do Zambujal é passado em trabalho árduo, na montagem dos palcos, na pintura das bancas dos restaurantes. Já à noite, o tempo é de festa e de dança, num espectáculo visual que parece montado para favorecer alucinações TRIBO TRANSE v colarinho, calças radicais de costuras fluo- rescentes. O símbolo Om — que, acredi- tam, simboliza o som que deu início a tu- do — está presente nos colares e o moder- no titânio nos piercings. Muitos são adeptos do vegetarianismo, do nudismo, da agrobiologia; outros dedi- cam-se ao yoga, ao tantrismo. Se não acre- ditam em tudo, aceitam quase tudo como parte do movimento. Têm ídolos culturais próprios: «Terence McKenna, pai do LSD, Timothy Leary e, de certa forma, William Burroughs», aponta Artur Silva, 23 anos, crítico de música transe numa pequena re- vista portuguesa. Se se juntam no campo, é porque os an- tigos druídas o faziam; se amam a nature- za, também é porque a sociedade ociden- tal — a Igreja — fechou os olhos aos conhe- cimentos ancestrais sobre plantas e cogu- melos alucinogéneos, retirando assim a possibilidade de entrar em transe, de esta- 62 VISÃO 10 de Agosto de 2000
  • 5. SOCIEDADE Os gurus Foram vidas cheias, passadas a AP/WALT WEIS correr, antes que o tempo se esgo- tasse. E que tornaram William Bur- roughs, Timothy Leary e Terence McKenna em figuras de culto. Quando uma crise cardíaca derru- bou William Burroughs (1914- 1997), muitos se interrogaram so- bre a capacidade de resistência de um homem que, tendo experi- mentado todo o tipo de drogas, vi- veu até aos 83 anos. Fundador, com Jack Kerouac e Allen Gins- berg, do movimento beatnick, desde cedo se revelou incapaz de se adaptar às regras da so- ciedade americana dos anos 50. Pintor, cantor e escritor (autor do Festim Nu) refugiou-se no Texas, cultivando algodão, laranjas e marijua- na. Burroughs mudou depois para o México, fugido à Justiça.Aí, enquanto imitava Guilher- me Tell, matou, de um só tiro, a sua mulher. Para Timothy Leary (1920-1996), o «pai» do LSD, a morte merecia atenção idêntica à vida. Só isso pode explicar a «extravagância» que se permitiu – tornar mediática a sua lenta agonia, difundindo-a em directo no seu site. Professor de Psicologia em Harvard, foi dos primeiros a defender o psicadelismo como terapia, mas as suas experiências foram interrompidas quando os efeitos secundários do LSD começaram a ser l CRENÇA Quartel-General do festival: representação dos Chakras do Tantrismo divulgados e o ácido tornado ilegal. Depois de cumprir pena por consumo e tráfico de drogas, mudou-se para a Califórnia e tornou-se num entusiasta da Internet e da cibercultura. belecer contacto com o mundo espiritual, se está ali a passar é uma batida rítmica Após se ter dedicado ao estudo do shamanis- com as várias dimensões que o hinduísmo distante. Mas numa fool moon party pas- mo e da etnofarmacologia, também Terence ensina coexistirem na Terra. Mas não fe- sa-se muita coisa. Boa e má. McKenna (1946-2000) se rendeu, no final da cham os olhos ao mundo moderno. Ser- vida, aos encantos das novas tecnologias. Gra- vem-se das mais recentes tecnologias para O DNA de Deus duado pela Universidade de Berkeley (Califór- criarem melodias de construção matemáti- Desde há vários meses que na Herdade nia), foi o autor da Teoria da Novidade (uma ca. Usam, por exemplo, os mesmos pro- do Zambujal se prepara o Boom. Pedro teoria cíclica da História) e escreveu sobre o gramas de computador utilizados por cen- Carvalho, um dos donos da Good Mood, impacto de certas plantas no humano, nomea- tros de investigação de vida extraterrestre, não vai a casa há oito semanas. «Eu sou o damente True Hallucinations (Alucinações ver- para tentar descobrir uma linguagem alie- criativo, o Diogo é o produtivo», conta Pe- dadeiras), uma narrativa sobre a sua «viagem nígena nos ciclos das nebulosas do espaço, dro, enquanto orienta as pinturas das ban- espiritual» no meio da selva colombiana. um pouco como acontece no filme Con- cas da zona de restaurantes, uma das SARA BELO LUÍS tacto, com Jodie Foster. «Estes ciclos são várias zonas em que se vai dividir transformados em sons e introduzidos na o evento. música. É isso que lhe dá uma atmosfera Diogo Rui, o «produtivo», ‘galáctica’», explica ainda Artur, que está a é o homem que resolve as terminar o último ano de Psicologia. Da coisas — a quem toda a mesma forma utilizam gravações reais das gente pergunta o que fa- batidas do coração para obter um ritmo zer antes de o fazer. Ain- «orgânico». da faltava quase uma se- Só dançam no campo, naquilo a que mana para o festival co- chamam fool moon parties (festas da lua meçar e havia já um cheia), longe de tudo e de todos. O máxi- acampamento de dez a mo que a aldeia mais próxima ouve do que 15 tendas de gente que v VISÃO 10 de Agosto de 2000
  • 6. SOCIEDADE TRIBO TRANSE go», desespera Mark, com um ar cansado. v «Andei o dia todo para cá chegar.» viera porque queria ajudar. «Hi, o meu no- Diogo cede, o holandês ficará, primeiro me é Mark, venho de Amesterdão e queria com a promessa de que será só por 24 ho- saber se posso acampar aqui e se precisam ras, depois logo se vê. À noite, Mark janta de mim para alguma coisa», diz um holan- no típi (tenda índia) da Manu (Manuela), dês de 30 anos, largas entradas no cabelo senhora dos seus quarentas e tais, mãe de e pontas de espuma branca nos cantos da um dos primeiros adeptos transe portu- boca. «A melhor ajuda que podes dar de gueses. Dias antes chegara do Nepal um is- momento é não estares aqui», responde raelita com haxixe, um condensado de Diogo, no seu inglês perfeito — ele que ti- uma erva local que se diria druídica. E as- rou Engenharia de Sistemas de Som em sim o número de tendas tem crescido. Inglaterra. «Mandaram-me vir ter conti- Passam os dias em trabalho árduo, a montar um festival que tem uma dimensão tal que admira que seja praticamente des- 64
  • 7. SOCIEDADE ALUCINAÇÕES Os cogumelos ilegais, a cultura maia, hindu e druídica são algumas das influências do colorido movimento transe. As fluorescências e os fractais estão presentes nas roupas e nos adereços conhecido. A área do Flea Market ( à letra, te horas na tenda do chill out — uma área vida na Bahia (Brasil). «Às vezes sente-se mercado das pulgas — e não é uma metá- para descansar, ouvir música mais calma, mesmo que se consegue levar as pessoas a fora...) vai reunir cerca de 40 bancas de to- tocar Didgeridoo (instrumento aborígena), uma união de espíritos, a esse momento M do o mundo, das massagens asiáticas às lo- ter uma boa «aterragem» das drogas que que é o transe, em que as pessoas se abs- jas de discos, roupa e artesanato. A zona se consomem — com a garantia de que, traem delas próprias para se fundirem dos restaurantes alberga desde comida is- mesmo não havendo sítio para os comprar num colectivo, num estado colectivo de raelita a japonesa, de casas de chás preten- em quilómetros, não desaparece nem um. consciência modificado pela... muitas ve- samente alucinogéneos a cibercafés. Não há violência, não há encontrões na zes pela acção da dança», vacila. Para decorar o Boom, vieram artistas de pista de dança e também não há engates, É que, noutras vezes, o momento M é todo o mundo. Feijão, um português do ‘bocas’. «Nós, raparigas, sentimo-nos bem, conseguido de outras formas. transe e alu- Barreiro — louro, de barba, olhos azuis, ca- ninguém olha para nós, cada um está co- cinogéneos são quase indissociáveis. Mas belo atado atrás — faz pinturas de «livre mo quer», explica Paula Ferreira, uma es- talvez seja melhor começar pelo que não inspiração maia» e sobrevive quase só dis- tudante da Guarda. «Por isso é que se há: heroína e álcool, de certa forma os es- so. No caso, pintou a estrutura do Banco vêem tantas mulheres nestas festas.» tupefacientes da base e do topo. De resto, Boom, onde toda a gente irá trocar escu- Não há engates, não há ‘esquemas’. Ou quase tudo é permitido. dos pela nota oficial do festival. (Nas ante- se os há, são feitos de forma diferente. P. As drogas de eleição do movimento são riores edições, os organizadores concluí- Mac, um jovem paramédico de 27 anos os cogumelos alucinogéneos, os ácidos ram que os donos das tasquinhas não «de- que se tornou num dos bons DJ’s portu- (compostos de LSD, como reza a canção claravam» a maior parte dos seus lucros, gueses do movimento, conquistou a com- dos Beatles, Lucy in the Sky with Dia- fugindo à entrega da percentagem acorda- panheira oferecendo-lhe uma maçã, pri- monds) ou o mais moderno ecstasy. v da. A solução foi criarem uma nota pró- meiro, e um charro, depois. Sem palavras, pria para o festival.) apaixonaram-se. «Foi lindo», recorda a MOICANO Avi Kal, nome que esconde um italiano, namorada, Sílvia. Rapar o cabelo reproduz elipses gigantes rendilhadas em É suposto, portanto, falar-se pouco. antes da festa cores fortes, de luminosidade fluorescente. O transe, dizem os seus adeptos, pode Está numa tenda como toda a gente, é an- ser, num mesmo momento, altamente in- tipático, insiste em não dizer palavra. Mas trospectivo e de grande união tribal. «Não leva cerca de 300 contos por cada traba- havia grandes diálogos nos primórdios», lho, viagens e estadia à parte. E no fim de frisa um rapaz pedrado de mais pa- cada festa, queima o que criou, para des- ra se lhe perguntar o nome. «Ha- gosto dos organizadores. via o riso, o choro e pouco K.C., um artista japonês, reproduziu fisi- mais. E no entanto as pessoas camente, um pouco por todo o perímetro, entendiam-se, comungavam», instalações que, a partir de cálculos com- explica, enquanto enrola mais putadorizados, replicam as estruturas geo- um charro de haxixe nepalês. métricas em que a visão humana decom- «O momento M, consegui-o em duas poria as formas, se elas pudessem ser redu- ou três ocasiões», reforça por sua zidas a equações matemáticas. Numa pin- vez Paulo Cego, um DJ invisual tura, disse ele a um dos trancers portugue- com residência em Paris e meia ses, tentou mesmo «reproduzir o DNA de Deus». ‘Uma maçã e um charro’ Um verdadeiro ambiente transe é algo de diferente. Por exemplo, podem deixar- se maços de cigarros duran- VISÃO 10 de Agosto de 2000
  • 8. SOCIEDADE REFEIÇÃO Ao pé do seu tipi, Manu, mãe de um dos trancers, prepara a refeição vegetariana DESCANSO Feijão, artista plástico que se «inspira livremente» na cultura maia, toca um instrumento oriental TRIBO TRANSE estrada não saberia, com toda a certeza, a do bastante negro. «Essa noite foi um bad v que se devia aquele inusitado movimento flight», dirão depois. Aliás, todo o espectáculo visual de uma automóvel. «Uma coisa que me impressionou bem, festa transe parece montado de forma a Foram quilómetros de cerejeiras antes de princípio, foi a paz de espírito que se facilitar alucinações. de lá chegar e nada garantia que a ponte sentia, toda aquela boa onda», recorda aguentasse o peso de um carro. Junto a um uma jornalista de uma rádio de projecção ‘Sair da Beira vivo’ pequeno casario começam a avistar-se os nacional que esteve de baixa vários meses Um fim-de-semana de Julho, muito an- BMW, os Volkswagens e os Land Rover. por causa do ecstasy e dos ácidos. «Só de- tes do festival. Para esta festa, ninguém fez No bar, improvisado numa ruína abando- pois vi o resto. As pastilhas não são como publicidade, não havia quaisquer indica- nada, cheira a haxixe — um cheiro forte, a heroína, não são drogas que tenham um ções. Foram pequenas mensagens escritas bem mais forte do que o habitual. Está lá momento alto em que se sobe e desce em passadas por telemóvel — às vezes em tro- tudo: as fluorescências, os fractais, as luzes pouco tempo», explica. ca de uma palavra-chave — que os fizeram negras, os símbolos hindus. Mas qualquer Uma «pedra» destas pode durar 24 ho- lá chegar. Foram quase secretistas. No fim coisa não corre bem. Há imensa droga a ras e o problema não é a dependência físi- de uma aldeia, na estrada que liga a Covi- rodar, nomeadamente cocaína. Há muita ca. «Aquilo absorve-te completamente, o lhã à Guarda, há uma cancela branca de gente também bêbeda e muita gente «pas- ambiente fascina-te, só pensas na próxima uma propriedade agrícola: «Está fechada e tilhada». O clima é agressivo. festa, não consegues trabalhar. Aí, vês que é para continuar fechada. Levanta-a, bai- Um dos adeptos do movimento diz que aquilo mexeu com a tua cabeça. Mas se es- xa-a, anda uns quilómetros, passa uma os flashes da máquina fotográfica interfe- tás de mal contigo, nem tu lá vais fazer na- ponte de madeira, anda um pouco mais e rem com a «onda» de uma festa transe. da, nem eles te querem lá.» hás-de começar a ver os outros carros.» Uma questão de ciclos, esclarece. Diferen- É então que vem o pesadelo. «Ninguém Foi a única pista, de voz que se quis anó- ciam-se da música, interferem com os rit- está no transe mais de um ano», reforça nima, para chegar a esta festa. mos dela. Mas isso não explica tudo. Há um colega desta mulher de trinta e poucos É meia-noite. A aldeia — que não pode violência no ar, os estados de espírito va- anos. «Só os ‘carolas’, os que vivem daqui- ser identificada para não denunciar o pro- riam da euforia, ao ódio, à tristeza. «Pira- lo — os outros, ao fim desse tempo, ou se prietário da enorme quinta onde decorreu te que ainda não sais da Beira vivo», dizem vêm embora ou precisam de tratamento o encontro — está completamente deserta a um dos elementos da equipa de reporta- psiquiátrico.» Para lidar com os problemas e mesmo que alguém passeasse à beira da gem da VISÃO. O transe tem afinal um la- da vida real. s MÚSICA LUCÍLIA MONTIRO LUÍS BARRA Paulo, DJ invisual: «O momento M, em que a multidão comunga em transe, consegui-o muito poucas vezes» DROGA Festa numa «floresta», algures na Beira. Nem para todos o transe é inocente. Há drogas duras e também há quem arranje sérios problemas 66