O documento discute o preconceito em relação às pessoas com deficiência. O preconceito surge como mecanismo de negação social da diferença, visto que as deficiências são vistas como falta ou incapacidade. O corpo deficiente causa estranheza por não se encaixar nos padrões de beleza e produtividade da sociedade. O preconceituoso se identifica com a ordem estabelecida e rejeita as diferenças, levando à discriminação e violência contra os mais fracos.
O estranhamento causado pela deficiência: preconceito e experiência
1. Luciene M. da Silva
O estranhamento causado pela deficiência:
preconceito e experiência
Luciene M. da Silva
Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-Graduação Educação e Contemporaneidade
Introdução teriais e simbólicos, o preconceito torna-se um ele-
mento presente e freqüente no processo de conhecer,
Tomando como base a análise de Horkheimer e restringindo-se, por conseguinte, à mera apreensão do
Adorno (1985) sobre o anti-semitismo, encontramos imediato. As atitudes de preconceito desenvolvem-se
elementos notórios que elucidam a dinâmica do pre- no processo de socialização que é fruto da cultura e
conceito como atitude hostil direcionada a objetos de- da sua história: “ Como tanto o processo de se tornar
finidos a partir de generalizações, informações im- indivíduo, que envolve a socialização, quanto o do
precisas e incompletas. Essa reflexão tem como desenvolvimento da cultura têm se dado em função
referência a experiência traumática vivida pelos au- da adaptação à luta pela sobrevivência, o preconceito
tores na Europa sob o terror fascista que, a despeito surge como resposta aos conflitos presentes nessa luta”
de ser um fato datado historicamente, deixa seu ras- (Crochik, 1996, p. 11).
tro visível no atual panorama sociopsíquico, com si- Nesse contexto, cabe enfatizar o elemento psi-
nais evidentes de mal-estar, vandalismo e vida precá- cológico como determinante na adesão ou vincula-
ria, configurando um terreno fértil para a reincidência ção do indivíduo aos valores que contradizem seus
da barbárie. O preconceito, para esses autores, incor- próprios interesses. O ajustamento à sociedade dá-se
pora fenômenos contemporâneos, resultantes das re- pela incompreensão de que podemos constituir-nos
lações sociais cada vez mais impeditivas para a refle- como seres autônomos capazes de realização dos ob-
xão sobre a própria impotência diante de uma ordem jetivos além dos puramente imediatos. A saída vis-
social que diferencia pela estigmatização. Numa so- lumbrada é o ajustamento à sociedade tal qual nos é
ciedade que impõe renúncias e sacrifícios, que enrijece apresentada, pela impossibilidade de negar o real e,
o pensamento dadas as condições de sobrevivência assim, refletir sobre os condicionantes e a própria
num contexto de privações determinadas por relações constituição do indivíduo. Considerando as necessi-
desiguais, de apropriação concentrada dos bens ma- dades do indivíduo para controlar suas projeções es-
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pontâneas, que estariam incorporadas no seu sistema cial. Quanto a isso, explicam Horkheimer e Adorno
psíquico de forma automatizada, o que parece ser pa- (1985, p. 188):
tológico, segundo a análise do anti-semitismo feita
por Horkheimer e Adorno (1985, p. 177), é a impos- No mundo da produção em série, a estereotipia – que
sibilidade para refletir não apenas o objeto, como tam- é seu esquema – substitui o trabalho categorial. O juízo não
bém a si próprio: “ Ele dota ilimitadamente o mundo se apóia mais numa síntese efetivamente realizada, mas
exterior de tudo aquilo que está nele mesmo; mas aqui- numa cega subsunção. Se, numa fase histórica primitiva, o
lo de que o dota é o perfeito nada, a simples prolifera- julgar consistia num rápido discriminar capaz de desfechar
ção dos meios, relações, manobras, a práxis sinistra sem hesitação a seta envenenada, nesse meio tempo a prá-
sem a perspectiva do pensamento”. tica da troca e a administração da justiça fizeram seu traba-
O preconceito materializa um possível efeito do lho. [...] Na sociedade industrial avançada ocorre uma re-
encontro entre pessoas, quando são acionados meca- gressão a um modo de efetuação do juízo que se pode dizer
nismos de defesa diante de algo que deve ser comba- desprovido do juízo, do poder de discriminação.
tido por constituir-se numa ameaça. Num mundo em
que o medo prevalece, indicando um perigo objetivo, O estereótipo oferece pronto o conteúdo reduzi-
e, ao mesmo tempo, não possibilita sua elaboração, do e vazio concedido pela pseudocultura bloqueadora
as formas de organização social seguem negando, de da possibilidade de pensar a realidade de forma dia-
forma renovada, a diferença. A cultura, que se con- lética, como afirma Crochik (1997, p. 19): “ A obriga-
verteu em mercadoria, renuncia a ser liberdade do toriedade da certeza traz a necessidade de respostas
espírito para ser um veículo da alienação e domesti- rápidas, colocadas em esquemas anteriores, que se re-
cação, bloqueando gradativamente o pensamento crí- petem independentemente das tarefas às quais se des-
tico que tornaria viável desvelar os sentidos da sobre- tina, gerando uma estereotipia nas ações e procedi-
vivência constantemente ameaçada e que determinam mentos”.
os comportamentos hostis. O esclarecimento como Para isso, a indústria cultural subordina as reali-
desencantamento do mundo seguiu uma trilha deter- zações humanas à fórmula que se explica pela repeti-
minada pela intenção explícita de rompimento da na- ção incessante, cujas inovações, se assim podem ser
tureza, de dominação do mundo: “ a essência do es- denominadas, são procedimentos de aperfeiçoamen-
clarecimento é a alternativa que torna inevitável a to da produção em série de qualquer coisa, desde ob-
dominação” (Horkheimer & Adorno, 1985, p. 43). Tal jetos até formas ou fórmulas de pensar. Segundo Ador-
metamorfose se fez pela objetividade, que a tudo busca no (1995b, p. 144), “ na indústria, o indivíduo é ilusório
assemelhar, induzindo à estranheza irracional. O não apenas por causa da padronização do modo de
cientificismo daí decorrente se iguala ao mito, por- produção. Ele só é tolerado na medida em que sua
que enrijece seu objeto na busca de apoderar-se dele identidade incondicional com o universal está fora de
para classificar, nomear, calcular até torná-lo nulo, a questão”. O indivíduo transformado em consumidor
custo de suprimir também o sujeito que intenciona dos produtos oferecidos pela indústria cultural vê-se
conhecer, e que, dessa forma, se vê desprovido da enfraquecido diante da mesmice que lhe é oferecida
possibilidade de discriminar. Diante do novo, do e, na seqüência, é induzido a reações massificadas,
irreconhecido, temos a propensão a generalizar utili- propícias à reincidência de práticas preconceituosas.
zando estereótipos e analogias substitutivas das pos- O preconceito, que é uma disposição individual,
síveis problematizações: são simplificações que res- mas não apenas, deriva do objeto e é, ao mesmo tem-
pondem à demanda imediata do pensamento, po, independente dele, não admitindo uma conceitua-
valendo-se de conteúdos e juízos de valor incorpora- ção universal, pois tem “ aspectos constantes e aspec-
dos, conforme a condição e posição na hierarquia so- tos variáveis”, que se relacionam mais com aquilo que
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é de interesse do preconceituoso, dentre as diversas inserção funcional na sociedade, determina a prática
representações que lhes são atribuídas (Crochik, da negação social. Por outro lado, a renúncia de auto-
1997). O indivíduo preconceituoso fecha-se dogma- nomia por parte dos adaptados é algo que fica
ticamente em determinadas opiniões, sendo assim internalizado, retornando na forma de agressão e dis-
impedido de ter algum conhecimento sobre o objeto criminação àqueles que demonstram algum tipo de
que o faria rever suas posições e, assim, ultrapassar o resistência. É o caso dos alunos que são tipificados
juízo provisório. O diferente estigmatizado evoca lem- como indisciplinados ou com distúrbios de compor-
branças que quer negar, e mesmo nos momentos em tamento. A esse respeito, diz Adorno: “ A pressão do
que se torna possível a convivência é convencido da geral dominante, sobre tudo que é particular, os ho-
inconveniência de mostrar o que pode parecer identi- mens individualmente e as instituições singulares, tem
ficação com “ um outro”. Esse sentimento ambíguo, uma tendência a destroçar o particular e o individual,
de que nos fala Crochik (1997), é que determina o juntamente com seu potencial de resistência” (idem,
afastamento, o que impede o contato pelo medo de ibidem).
que, com a identificação, sejamos analogamente hu-
milhados. Vem também do medo do diferente, do que Preconceito, deficiência, experiência
não é conhecido, podendo ser transformado em infe-
rioridade, desigualdade e exclusão. O preconceituoso O preconceito às pessoas com deficiência confi-
afasta esse “ outro”, porque ele põe em perigo sua es- gura-se como um mecanismo de negação social, uma
tabilidade psíquica. Assim, o preconceito cumpre tam- vez que suas diferenças são ressaltadas como uma
bém uma função social: construir o diferente como falta, carência ou impossibilidade. A deficiência ins-
culpado pelos males e inseguranças daqueles que são creve no próprio corpo do indivíduo seu caráter parti-
iguais. cular. O corpo deficiente é insuficiente para uma so-
A ação irrefletida, a “ economia do esforço inte- ciedade que demanda dele o uso intensivo que leva
lectual” (Crochik, 1997), são as características do pre- ao desgaste físico, resultado do trabalho subservien-
conceito como predisposição para a ação de discri- te; ou para a construção de uma corporeidade que
minação. A agressão é encaminhada para o alvo objetiva meramente o controle e a correção, em fun-
errado, por não se ter a consciência de que são os ção de uma estética corporal hegemônica, com inte-
princípios sociais impregnados nas relações entre os resses econômicos, cuja matéria-prima/corpo é com-
homens e nas formas de trabalho que devem ser com- parável a qualquer mercadoria que gera lucro. A
batidos e não suas vítimas. O preconceito é, portanto, estrutura funcional da sociedade demanda pessoas
contrário às diferenças, levando o preconceituoso a fortes, que tenham um corpo “ saudável”, que sejam
uma outra identificação, como esclarecem Horkheimer eficientes para competir no mercado de trabalho. O
e Adorno (1973, p. 179): “ Para que se sintam alguém, corpo fora de ordem, a sensibilidade dos fracos, é um
essas pessoas têm necessidade de se identificar com a obstáculo para a produção. Os considerados fortes
ordem estabelecida e essa identificação faz-se com sentem-se ameaçados pela lembrança da fragilidade,
tanto mais agrado quanto mais inflexível e poderosa factível, conquanto se é humano.
for essa ordem. E dessa forma as particularidades são As pessoas com deficiência causam estranheza
destroçadas em função da totalidade”. num primeiro contato, que pode manter-se ao longo
No ensaio “ Educação após Auschwitz”, Adorno do tempo a depender do tipo de interação e dos com-
(1995b, p. 122) afirma que “ a violência contra os fra- ponentes dessa relação. O preconceito emerge como
cos se dirige, principalmente, contra os que são con- um comportamento pessoal, porém não pode ser atri-
siderados fracos”. A lembrança da fragilidade huma- buído apenas ao indivíduo, posto que não se restringe
na, da diferença compreendida como obstáculo à a exercer uma função irracional da personalidade.
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Pode ocorrer a reação mimética de que fala Crochik onde ele tem direito de sentar no “ Teatro da Vida”, deter-
(1997), que consiste num imobilismo de impacto por mina também o script que o indivíduo terá que representar
parte do preconceituoso, semelhante ao que acontece enquanto ator nesse teatro!... Assim, não só ele passa a agir
com alguns animais ao serem perseguidos. Por serem segundo os padrões esperados pelo papel (os únicos que
as motivações inconscientes decisivas para a forma- lhe foram ensinados), como os outros atores também
ção do preconceito, é pertinente uma reflexão que contracenam com ele enquanto pessoa estigmatizada refor-
resulte na explicitação das causas de tal estranheza. çando ainda mais esse papel.
O corpo marcado pela deficiência, por ser dis-
forme ou fora dos padrões, lembra a imperfeição hu- Nesse ambiente, as pessoas constituem-se de for-
mana. Como nossa sociedade cultua o corpo útil e ma defensiva para evitar maior sofrimento. Muitas ve-
aparentemente saudável, aqueles que portam uma zes as pessoas com deficiência aceitam e até defendem
deficiência lembram a fragilidade que se quer negar. encaminhamentos que negam as suas possibilidades de
Não os aceitamos porque não queremos que eles se- escolha e atuação, reforçando ações beneficentes e as-
jam como nós, pois assim nos igualaríamos. É como sistencialistas que têm a incapacidade como princípio.
se eles nos remetessem a uma situação de inferiorida- Nesse sentido, todos nós, e não apenas as pessoas com
de. Tê-los em nosso convívio funcionaria como um deficiência, nos distanciamos cada vez mais da auto-
espelho que nos lembra que também poderíamos ser nomia e da possibilidade de diferenciação, restando
como eles. Esse potencial, que é real, em vista das apenas a adaptação à situação existente, que constitui
trágicas mudanças que nos podem ocorrer, é que nos um esforço para aceitar a mentira necessária para a
faz frágeis, uma vez que queremos ser sempre com- sobrevivência ou autopreservação, porém extremamen-
pletos e constantes. O que também parece perturbar te onerosa em termos de energia que poderia ser utili-
nos contatos com pessoas com deficiência é o fato de zada para se contrapor a ela. Esse mecanismo é possí-
não sabermos como lidar com elas, posto que a previ- vel devido à consciência coisificada, que se orienta pelo
sibilidade é uma forte característica das relações so- princípio da adaptação.
ciais da contemporaneidade. O estigma, por ser uma A condição das pessoas com deficiência é um
marca, um rótulo, é o que mais evidencia, possibili- terreno fértil para o preconceito em razão de um dis-
tando a identificação. Quando passamos a reconhe- tanciamento em relação aos padrões físicos e/ou inte-
cer alguém pelo rótulo, o relacionamento passa a ser lectuais que se definem em função do que se conside-
com este, não com o indivíduo. E, assim, idealizamos ra ausência, falta ou impossibilidade. Fixa-se apenas
uma vida particular dos cegos, dos surdos, que expli- num aspecto ou atributo da pessoa, tornando a dife-
ca todos os seus comportamentos de uma forma in- rença uma exceção. Vash (1988) descreve três ten-
flexível, por exemplo: ele age assim porque é cego. dências para explicar a desvalorização das pessoas
Nesse processo de rotulação, o indivíduo estigmati- com deficiência: a consideração do preconceito como
zado incorpora determinadas representações, passa a algo biologicamente determinado, o questionamento
identificar-se com uma tipificação que o nega como psicossocial, segundo o qual no plano das relações
indivíduo. Essas pessoas passam a ser percebidas, a sociais os diferentes são menos tolerados, e a tendên-
princípio, por essa diferença negativa, o que irá indi- cia que a autora denomina político-econômica, em que
car fortemente como elas irão comportar-se. Glat ser deficiente resulta em mais custos para o sistema
(1991, p. 9) expressa esta particularidade das intera- social, que envolvem desde a família até a sociedade
ções como um “ fabuloso teatro”: mais ampla.
Amaral (1998, p. 16-17) descreve três versões
Esse rótulo tem uma dupla função: ao mesmo tempo do preconceito dirigido a essas pessoas: chama de
que serve de ingresso numerado, indicando qual o lugar “ generalização indevida” o juízo que transforma a
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condição de limitação específica de uma pessoa em diversos roteiros e mensagens sobre o “ ser deficien-
totalidade, ou seja, ela torna-se deficiente por ter uma te”, mesmo sem freqüentemente mostrá-lo, veiculan-
deficiência; “ correlação linear” é a disposição para do estereótipos diversos a partir de matérias de su-
elaborar relações do tipo “ se...então”, simplificando posta prestação de serviços, informações imprecisas
de forma demasiada o raciocínio, consolidando o pre- e errôneas, personagens caricatos em que predomi-
conceito pela economia do esforço intelectual. E o nam os discursos beneficentes, preconceituosos e sen-
“ contágio osmótico” é o temor do contato e do conví- sacionalistas. O enfoque dado pela mídia às notícias
vio, numa espécie de recusa em ser visto como um que envolvem pessoas com deficiência as coloca numa
deficiente. Inúmeras são as formas pelas quais o pre- posição de vítima, com ênfase na impotência e de-
conceito às pessoas com deficiência se constitui e é pendência, revigorando a discriminação. A publica-
reforçado: pela educação escolar, pela mídia, nas re- ção Mídia e deficiência, coordenada pela Agência de
lações familiares, pelo trabalho, pela literatura, entre Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) e Fundação
outras. Banco do Brasil, assinala:
Vivemos atualmente uma hiperexposição do cor-
po como produto, algo passível de elaboração e re- Mesmo quando existe interesse e desejo de realizar
construção, tendo como referência uma cartografia uma boa cobertura, os jornalistas se deparam com a desin-
corporal com toques de sedução e negação dos traços formação sobre aspectos educacionais, jurídicos, técnicos,
do tempo. Sabemos que os meios de comunicação, médicos, éticos e políticos. [...] Não há preocupação em
por si sós, não determinam modelos estéticos corpo- divulgar serviços relacionados à melhora da qualidade de
rais; são, porém, um poderoso braço ideológico de vida de crianças, adolescentes, adultos e idosos com defi-
divulgação e convencimento dos padrões seleciona- ciência. Mais de 60% das matérias analisadas só ouviram
dos e acionados pela indústria. A produção televisiva uma fonte. Na maioria delas tampouco há clareza sobre os
no Brasil, reconhecidamente intensa, e uma popula- direitos desses cidadãos. E quase sempre a entrada da ques-
ção vulnerável e receptiva aos seus produtos, devido tão na pauta dos meios depende de eventos organizados por
ao baixo nível de escolaridade e rendimento, são com- entidades interessadas na causa ou da agenda de órgãos ofi-
ponentes fundamentais para a legitimação de “ neces- ciais. (Vivarta, 2003, p. 35)
sidades” e formas de satisfazê-las. A não-visibilidade
das pessoas com deficiência no âmbito das relações Além disso, não se percebe uma atitude de pres-
sociais é o que determina sua ausência na mídia, pos- são, por parte dos meios de comunicação, para que os
to que, na lógica da indústria cultural, não existem órgãos públicos prestem serviços a esse segmento da
necessidades a elas relacionadas. Sendo assim, o si- população, na medida em que veiculam matérias que
lêncio sobre elas é anterior e exterior aos veículos de envolvem muito mais as entidades filantrópicas e suas
comunicação, e suas poucas aparições ficam restritas realizações, deixando no esquecimento os órgãos do
às campanhas publicitárias para arrecadação de re- Estado responsáveis por políticas públicas na área, a
cursos para as instituições filantrópicas que veiculam exemplo da Coordenadoria Nacional para a Integra-
mensagens que as representam como vítimas ou como ção da Pessoa Portadora de Deficiência (CORDE) e a
heróis. Secretaria de Educação Especial (SEESP), ou ainda
A televisão, como um dos mais poderosos veí- o projeto de lei de autoria do senador Paulo Paim,
culos de comunicação atualmente, forja a hegemonia que busca estabelecer mecanismos e ações legais para
de valores por meio dos programas de entretenimen- assegurar os plenos direitos dessas pessoas.
to, jornalismo e publicidade, tornando-os referência Freqüentemente, das pessoas com deficiência é
para milhões de consumidores. Sua mensagem, que retirada a possibilidade de constituírem-se como su-
alia discurso e imagem, combina, de forma híbrida, jeitos, porque lhes são atribuídas qualidades especiais
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que tornam natural a sua condição de “ pessoa defi- tencial de que dispõem dentro das suas possibilida-
ciente” e, como tal, sem necessidades cognitivas, de des num ambiente misturado e rico para interações,
interações sociais ou de aprendizagem. Esse proces- mas que por si só, sem a atenção sobre suas necessi-
so de “ sublimação” é responsável pelo tratamento dades especiais, não possibilita experiências de for-
assistencialista prestado por instituições especializa- mação e não aproveita as possibilidades, deixando-
das e voluntários que impregnam suas práticas de um os limitados a uma participação precária no que se
amor caridoso justificado por um entendimento de que refere à socialização e à aprendizagem. Ora, essas
essas pessoas são naturalmente boas, carentes e pu- experiências têm sido negadas na sociedade atual, que
ras. É perceptível o sentimento de gratidão que têm impõe o conhecimento coisificado e descontextuali-
essas pessoas pelos “voluntários”. Uma certa comi- zado, pronto para ser utilizado. O desencantamento
seração se instala nos interstícios da relação “ defici- do mundo tornou-se um paradoxo, pois abstraiu das
ente/voluntário”, em que ambos se autocompadecem experiências a aproximação com as imagens e for-
de suas condições. O “ deficiente” torna-se “ grato pela mas, substituídas pelo discurso elaborado em que o
atenção dispensada”, expressando sua carência e le- conteúdo é representado a partir de recursos tecnoló-
vando seu “ agente voluntário” a assumir-se como gicos, o que favorece um outro encantamento que nada
excepcionalmente bom, solidário e generoso. A tem de racional.
filantropia não abarca somente os deficientes, mas os Se entendermos experiência como uma ativida-
desvalidos. de auto-reflexiva proporcionada pela apreensão da
O atual discurso pedagógico, tardiamente no Bra- realidade nas suas variadas manifestações, sem essa
sil, recorre a uma perspectiva de acolhimento das di- aptidão se exercita a esperteza necessária no mundo
ferenças por meio da orientação inclusivista, no in- de “ fora”, que se constitui na astúcia para sobreviver
tuito de que todos os alunos estudem num ambiente em ambientes considerados hostis.
único e que o foco da aprendizagem não esteja no O que, de fato, se torna evidente é a dificuldade
aluno, mas na classe. Embora tal orientação tenha se dos alunos, com ou sem deficiência, para constituí-
constituído em uma tendência para os encaminhamen- rem experiências, tal como a entende Adorno (1996,
tos das ações sociais em atendimento às reivindica- p. 405): “ a continuidade da consciência em que per-
ções por inclusão social de variados matizes (o movi- dura o ainda não existente e em que o exercício e a
mento antimanicomial, os movimentos dos idosos ou associação fundamentam uma tradição no indivíduo”.
terceira idade etc.), nas últimas décadas, tem sido na O que se vê é a apreensão de informações que pres-
área de educação que a denominação mais intensiva- cindem de contato e aproximação, não permitindo
mente aderiu. Falar em movimento inclusivista hoje encontros, nem trocas, nem elaborações do vivido. A
é compreendido como a educação de crianças e jo- imagem feita pelo autor para esse estado de inércia é
vens com necessidades especiais em escolas regula- muito reveladora: como os viajantes que, do trem,
res. Mas o apelo para a convivência com as diferen- denominam lugares por onde passaram “ como um
ças – tema, aliás, recorrente na literatura educacional – raio”, porém tendo sempre uma resposta para qual-
faz um amplo eco exatamente porque a convivência quer pergunta sobre seus itinerários. Vivemos em
humana é ainda marcada por conflitos em função dos ambientes onde quase nunca encontramos pessoas
preconceitos e das discriminações de gênero, de etnia, com deficiências, devido aos diversos impedimentos
de religião, entre outros. que os tornam inacessíveis: barreiras arquitetônicas,
A observação mais atenta da ambiência da esco- ausência de sinalizações, transportes inadequados etc.,
la regular, onde estão alguns poucos alunos que têm apesar dos diversos dispositivos legais existentes no
deficiência, é nitidamente perturbadora: percebe-se país para garantia dos direitos sociais. A presença
que esses alunos tentam adaptar-se, acessando o po- desses alunos na escola causa uma natural curiosida-
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de sobre suas vidas, seu cotidiano, suas formas de contato com o diferente, medo de ser discriminado,
percepção, que até pode motivar uma aproximação de experimentar algo não habitual, medo de arriscar-
ou convivência. se ao erro. E é o medo que impede o confronto com o
O afastamento dá-se pelo medo da experiência e sofrimento, que se torna mais resistente se não nos
das relações espontâneas que permitem a elaboração colocamos diante dele. “ Quando o medo não é repri-
do medo e do desejo. Dessa forma, vivemos aquém mido, quando permitimos ter realmente tanto medo
do que potencialmente podemos ser, enrijecidos como quanto a realidade exige, então justamente por essa
o caracol que recolhe suas antenas num movimento via desaparecerá, provavelmente, grande parte dos
de bloqueio ante o perigo premeditado.1 Se este é real, efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido”
mediante os condicionamentos e as relações sociais (Adorno, 1995a, p. 129).
coisificadas, cabe forjar alternativas de liberdade e
felicidade. A apreensão dos objetos, sendo operada Diferença e tolerância
de forma dissociada, impõe o divórcio entre o pensar
e o sentir, e assim vivemos impassíveis diante do A discussão sobre as diferenças demanda uma
mundo, incapacitados para as relações mais livres. concepção de igualdade para que se possa pensar a
Essa cisão só autoriza a aproximação com os simula- sua afirmação na sociedade. A igualdade pede mais
cros, no máximo experiências incompletas, carentes que o simples reconhecimento do outro, que, assim
de reflexão e atividade. sendo, cabe enfatizar, se limita à tolerância, já que
A identificação só é possível por meio da convi- essa posição não permite que cada indivíduo se cons-
vência, na medida em que enfatiza o que não é igual titua a partir de sua experiência, sem se reduzir a um
e, ao mesmo tempo, ressalta a idéia de ser igual na insumo da racionalidade instrumental. O sentimento
diferença, desafiando os receios do estranhamento e que mais se manifesta nos tempos atuais é a tolerân-
do medo. A desvalorização e o distanciamento da ex- cia como limite do aceitável, quando já poderíamos
periência podem explicar-se, também, porque quere- nos manifestar com solidariedade em relação ao dife-
mos ver os resultados, subtraindo-a, tal como deman- rente, por ser a diferença a essência de todos nós. O
dam as relações contemporâneas baseadas no “ distinto” é mantido na sociedade dentro do parâme-
imediatismo e automatismo. Experiência é “ a conti- tro do tolerável ou integrado, e a indiferença é o que
nuidade da consciência em que perdura o ainda não resta como condição de sobrevivência, retratando a
existente e em que o exercício e a associação funda- frieza.
mentam uma tradição no indivíduo” (Adorno, 1996, A tolerância vem sendo afirmada como um prin-
p. 405). O autor diz ainda, em outra passagem do cípio instaurador para a convivência entre as pessoas
mesmo texto, que: “ Quem dispensa a continuidade diferentes. Um breve levantamento sobre o termo in-
do juízo e da experiência se vê provido por tais siste- dica que seu aparecimento se dá nos idos do século
mas, apenas com esquemas para subjugar a realidade. XIV, nos escritos do filósofo Guillermo de Ockham,
De fato, não alcançam a realidade, mas contentam-se como afirmação da possibilidade de salvação sem a
em compensar o medo diante do incompreendido” fé na religião canônica. É uma virtude em prol da con-
(idem, ibidem). A experiência desafia os medos do vivência harmoniosa e pacífica, tendo sido colocada
como um princípio fundamental na vida civil a partir
da Reforma, “ nas lutas que contrapuseram, uma à
1
A imagem do caracol, apresentada por Horkheimer e Ador- outra, as várias partes da cristandade” (Abbagnano,
no (1985, p. 239), indica a gênese do ensimesmamento, pois sem- 1970). Segundo Cardoso ([s.d.]), a Carta acerca da
pre que o pequeno animal recolhe as antenas inibe também sua tolerância de John Locke, escrita em 1689, e o Trata-
espontaneidade e curiosidade, tão necessárias para a experiência. do sobre a tolerância de Voltaire, publicado em 1763,
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são importantes referências para a compreensão do 1997 realizou na Sorbonne o Foro Internacional so-
sentido moderno de tolerância, pois esclarecem seus bre a Intolerância, que resultou na publicação, pela
elementos fundantes na idéia da diversidade e da iden- Academia Universal de Cultura, do livro A intolerân-
tidade. O autor sintetiza tais referentes da seguinte cia, com textos de Umberto Eco, Paul Ricoeur e
forma: Jacques Le Goff, entre outros.
Entretanto, é preciso lembrar que, numa socie-
A Carta de Locke e o Tratado de Voltaire parecem dade que convive com desigualdades intensas, a tole-
evidenciar duas linhas de fundamentação filosófica do va- rância parece seguir sempre um movimento linear, de
lor tolerância na modernidade. A primeira, o empirismo, vê mão única. Recorrer a esse argumento, iludindo-se
na cultura, e não na natureza humana, as características fun- com a pretensa igualdade de todos numa sociedade
damentais do ser humano. Não existe uma sociedade hu- injusta, atesta poucas possibilidades de convencimento
mana única, pois muitas são as culturas historicamente cons- ante uma “ igualdade abstrata”; em dado momento,
truídas. Seguindo a tradição cética, o empirismo afasta-se pode ser vista com uma postura de superioridade, e
da verdade universal, enquanto identidade metafísica, para não como atitude transitória em direção ao verdadei-
buscar na necessidade da convivência social com o dife- ro reconhecimento: “ eu te suporto, porque sou gene-
rente a justificativa para o comportamento tolerante. Uma roso”. Torna-se uma aceitação com reticências, uma
sociedade racionalmente evoluída é aquela cujas bases fun- licença condescendente às particularidades, como se
dam-se em um contrato de convivência, onde todos são li- fosse uma deferência ao outro. Com esse entendimen-
vres para expressarem suas posições, tendo assegurado o to, existe um limite para tolerar-se, e a fronteira para
bem comum. Na segunda vertente, fundada no racionalis- isso está no que pode ser aceitável ou o que não mais
mo, o valor tolerância é construído sobre as bases da tradi- é considerado saudável. A intolerância seria uma for-
ção metafísica. Em outras palavras, Voltaire extrai da pró- ma de imputar culpa aos que não souberam controlar
pria natureza do ser humano os argumentos a favor da boa os riscos que os tornaram diferentes. Ora, como exis-
convivência. Não se trata de aceitar o outro pelo respeito te um valor para um padrão de beleza, saúde, quali-
àquilo que temos de diferente: a cultura ou as idiossincrasias, dade de vida, autocontrole, entre outros, os que se
mas por nossa identificação mútua como seres humanos. distanciam desses alvos devem ser punidos por tal
(Cardoso, [s.d.], p. 1) negligência. A intolerância torna-se uma agressividade
irracional contra formas de ser e estilos de vida con-
A partir do século XIX, a tolerância já estava to- trários aos que se convencionou, por escolha ou
talmente desvinculada do seu sentido religioso, po- (pseudo)formação, como absolutamente verdadeiros.
rém com um significado tal como ainda encontramos Rouanet (2003, p. 11) afirma que tolerância deve ser
nos dicionários: tolerar como consentimento tácito de um caminho, não um fim: “ A implantação de uma
suportar ou agüentar, revelando a ideologia do colo- cultura da tolerância é um cessar-fogo na guerra das
nizador no seu projeto de dominação. Nos últimos diferenças, mas ainda não é a paz. As diferenças não
anos, tolerância tornou-se quase uma palavra de or- devem ser apenas toleradas, porque do contrário elas
dem nos diversos eventos e publicações, indicando o se reduziriam a um sistema de guetos estanques, que
exercício necessário em favor das diferenças e contra se comunicariam apenas no espaço público”.
qualquer cerceamento do pensamento, ou uma espé- Marcuse (1970, p. 102), em ensaio sobre o signi-
cie de valoração positiva que se invoca em momen- ficado de tolerância na sociedade estadunidense,
tos de conflitos. Em 1995, na sua Conferência Geral posiciona-se em favor de uma tolerância partidária,
em Paris, a Organização das Nações Unidas para a pois que para ser um fim em si mesma requer uma
Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) aprovou condição de universalidade, sob pena de servir “ à cau-
a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, e em sa da opressão”. O autor dá um exemplo de tolerân-
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 33 set./dez. 2006 431
9. Luciene M. da Silva
cia desumana, ainda que presumivelmente pautada no tos da cultura. Nesse sentido, as diferenças tornam-se
que se considera equivalente à objetividade: desigualdades nas quais os indivíduos são negados
entre os que se consideram iguais. É pertinente con-
[...] se um locutor de rádio descreve a tortura e assas- siderar a produção social dessa diferença, que resulta
sinato de propagandistas de direitos civis no mesmo tom em atitudes, preconceitos, estereótipos e estigmatiza-
sem emoção que usa para descrever as flutuações do mer- ção, posicionando socialmente aqueles considerados
cado ou as condições do tempo, ou com a mesma grande diferentes como cidadãos de segunda categoria.
emoção com que lê os comerciais, então tal objetividade é A convivência na diversidade não significa as-
espúria – mais ainda, ofende a humanidade e à verdade sumir a posição de espectador passivo e tolerante. O
porque se mostra calmo onde deveria ter-se enfurecido, e pressuposto essencial está em admitir que cada indi-
porque se abstém de acusar quando a acusação ressalta dos víduo tem direito de combinar experiências pessoais
próprios fatos. [...] Se a objetividade tem algo a ver com a de vida com a coletividade, imprimindo, todavia, uma
verdade, e se a verdade é algo mais do que uma questão de identidade particular que constitui sua individualida-
lógica ou ciência, então esse tipo de objetividade é falso, e de. É importante reafirmar que esse direito se encon-
essa espécie de tolerância é desumana. tra impedido de ser realizado na atual sociedade, que
dispensa as singularidades individuais.
Marcuse deixa clara a contradição entre a estru- A conveniência do discurso da diferença expres-
tura social e política da sociedade e o princípio da sa-se pela necessidade de pacificação social naquilo
tolerância que, sendo falsa e abstrata, mais obsta do que inquieta. É necessário harmonizar as relações
que promove a mudança ou desempenha a função pela com o outro marginal e estranho para fortalecer a
qual foi forjada pelos protagonistas liberais. Já Matos segurança e garantir minimamente a “ paz social”. Im-
([s.d.]) chama a atenção para um outro sentido de to- pedir o conflito e a violência das relações sem supe-
lerância que contraria a concepção conciliadora, quan- rar as causas que assim as configuram apenas forja
do entendida como combate: “ Neste caso, tolerar é uma aparência de sociedade acolhedora e democrá-
esforço para desfazer ortodoxias, revelar a desseme- tica, pois que a essência do conflito irracional não é
lhança no que parece homogêneo, a fim de que um superada. Este tem sido o encaminhamento dado pela
possa ir ao encontro do Outro” (p. 1). mídia, por meio de peças publicitárias rentáveis,
O desejo de individuação e diferenciação não se quando veicula mensagens mitigadoras das relações
define por um simples “ ideal do eu”. Mais que isso, multiculturais, convertendo-as em causas nobres,
pressupõe condições sociais para que o reconhecimen- para assim legitimar socialmente a convivência to-
to do outro ultrapasse a simples relação interpessoal. lerante. É a ideologia prestando-se à defesa dos
Mesmo a idéia de igualdade pela distribuição de ren- ideais liberais de igualdade e fraternidade ao que é
da, por si só, não garante o princípio de respeito às permitido na sociedade atual. Os alinhamentos pro-
diferenças. Assim, igualdade e diferença são concei- postos pelos mecanismos ideológicos criam neces-
tos não excludentes, mas interdependentes, que man- sidades de consumo e de comportamentos sedutores
têm permanente interação. para um projeto exterior aos indivíduos e, por assim
A igualdade na perspectiva da democracia libe- ser, não exercem a liberdade e a autonomia. Na me-
ral afirma-se pelo direito de todos perante a lei, con- dida em que a pulsão pela vida está enfraquecida, o
siderando que todos são livres e obedecem às mes- risco do impulso destrutivo é uma perspectiva real
mas leis. Sua contradição efetiva está em que, como de prevalência da barbárie. Nesse processo, a ideo-
princípio, se contrapõe à desigualdade real no que se logia revela, não mais oculta, levando as pessoas a
refere à apropriação dos bens, posicionamento no tra- gastarem muito da energia que têm para esconder a
balho e distribuição material e espiritual dos produ- percepção do horror.
432 Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 33 set./dez. 2006
10. O estranhamento causado pela deficiência
Essa possibilidade custosa de que falam os auto- ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: ADOR-
res não pode ser contestada, pois que os processos de NO, Theodor W. Palavras e sinais: modelos críticos. 2. ed.
individuação e indiferenciação são movimentos de Petrópolis: Vozes, 1995a. p.119-138.
tensão e conflito subordinados às relações de poder. . Tabus que pairam sobre a profissão de ensinar. In:
Porém, como afirma Zuin (1999, p. 118), “ o não-pre- ADORNO, Theodor W. Palavras e sinais: modelos críticos. 2. ed.
sente não pode e não deve se transformar num ausen- Petrópolis: Vozes, 1995b. p. 83-103.
te”. Falar que a individuação é um projeto inviável . Teoria da semicultura. Educação e Sociedade, Cam-
nesta sociedade não indica a impossibilidade de nela pinas, CEDES, n. 56, p. 389-411, 1996.
haver confrontos e conflitos que podem, pela crítica AMARAL, Lígia. Sobre crocodilos e avestruzes: falando de dife-
imanente, desmascarar o caráter afirmativo do real a renças físicas, preconceitos e sua superação. In: AQUINO, Júlio
partir da leitura do que é silenciado. G. (Org.). Diferenças e preconceitos. São Paulo: Summus, 1998.
O que ora se apresenta na sociedade contemporâ- p.11-30.
nea, vinda dos movimentos sociais e por parte dos in- CARDOSO, Clodoaldo Meneguello. Tolerância: um valor ético para
telectuais que se põem em favor de um projeto de hu- o século XXI, [s.d]. Disponível em: <www.faac.unesp.be/pesquisa/
manização das relações sociais, é uma clara intenção tolerancia/texto_tolerancia_cardoso>. Acesso em: 30 ago. 2003.
de criticar todo tipo de segregação mantenedora da CROCHIK, J. Leon. Aspectos que permitem a segregação na es-
menoridade e heteronomia de seus membros. Se antes cola pública. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA.
esse era um fenômeno justificado pela carência de con- Educação especial em debate. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
dições objetivas para superar tal situação, hoje não é p. 13-22.
mais acolhido como argumento racional. O entendi- . Preconceito. Indivíduo e cultura. São Paulo: Robe,
mento sobre diferenças como um componente da in- 1997.
dividualidade remete-nos aos questionamentos sobre GLAT, Rosana. Inclusão total: mais uma utopia? Revista Integra-
sua possibilidade nesta sociedade, em que as relações ção, Brasília, MEC/SEESP, ano 8, n. 20, p. 26-28, 1991.
continuam sendo de domínio e expropriação que mais HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Elementos do anti-
respondem a uma sobrevivência irracional. É impor- semitismo. In: ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max (Orgs.).
tante reafirmar a dependência mútua da sociedade e Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
do indivíduo, para evitar o entendimento dessa reci- 1985.
procidade como uma abstração, como se fosse um . Temas básicos de sociologia. São Paulo: Cultrix,
conceito puro. O indivíduo não é um ser natural que 1973.
se emancipa dentro dos limites de si mesmo, uma vez MARCUSE, Herbert. Tolerância repressiva. In: WOLFF, Robert
que não é apenas uma entidade biológica. A autode- Paul; MOORE JR., Barrington; MARCUSE, Herbert. Crítica da
terminação ocorre na medida em que, tomando cons- tolerância pura. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. p.87-126.
ciência do mundo, adquire consciência de si. Assim, o MATOS, Olgária. Sociedade: tolerância, confiança, amizade, [s.d.].
indivíduo concretiza-se na sociedade e por meio dela. Disponível em: <www.culturabrasil.pro.br/direitoshumanos2.htm>.
As limitações para sua constituição pelos processos Acesso em: 6 mar. 2004.
formativos da atual sociedade, contudo, retiram a for- ROUANET, Sérgio Paulo. O Eros da diferença. Folha de S. Pau-
ça da individuação, reforçando a não-diferenciação, lo, São Paulo, 9 fev. 2003. Caderno Mais!, p. 11.
que é a outra face do processo de socialização. VASH, Carolyn L. Enfrentando a deficiência. São Paulo: Pionei-
ra; Ed. da Universidade de São Paulo, 1988.
Referências bibliográficas VIVARTA, Veet. Mídia e deficiência. Brasília: ANDI; Fundação
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ABBAGNANO, Nicolas. Dicionário de filosofia. São Paulo: Mes- ZUIN, Antonio. Indústria cultural e educação. Campinas: Auto-
tre Jou, 1970. res Associados, 1999.
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 33 set./dez. 2006 433
11. Luciene M. da Silva
LUCIENE M. DA SILVA, doutora em educação pela Pon- 2005); Apontamentos sobre as contradições da questão deficiên-
cia e trabalho (In: ENCONTRO MINEIRO DE PSICOLOGIA
tifícia Universidade Católica de São Paulo, é professora da Uni-
versidade do Estado da Bahia, atuando no Curso de Graduação SOCIAL DA ABRAPSO, 14., 2005, Belo Horizonte. Anais... Belo
Horizonte, 2005. 1 CD-ROM). Pesquisa em desenvolvimento:
em Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação Educação e Con-
temporaneidade da mesma universidade. Publicações mais im- “ Um estudo sobre o movimento em defesa dos direitos das pes-
soas com deficiência: a atuação para a inclusão”. E-mail:
portantes: com FALSARELLA, Ana Maria. Preconceito na es-
cola inclusiva (Presença Pedagógica, Belo Horizonte, Dimen- luciene@portfolium.com.br
são, v. 8, n. 46, p. 96-106, jul./ago. 2002); com OLAVO, Anto-
nio; PEREIRA, Dirceu de Socorro; GUERRA FILHO, Sérgio. Recebido em janeiro de 2006
Quilombos da Bahia – Manual Pedagógico (Salvador: Portfolium, Aprovado em maio de 2006
434 Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 33 set./dez. 2006
12. Resumos/Abstracts/Resumens
de que demanda dele o uso intensivo
que leva ao desgaste físico, resultado
do trabalho subserviente; ou para uma
construção de corporeidade que objeti-
va meramente o controle e a correção,
em função de uma estética corporal he-
gemônica, com interesses econômicos.
Nesse sentido, todos nós nos distancia-
mos cada vez mais da autonomia e da
possibilidade de diferenciação, restan-
do apenas a adaptação à situação exis-
tente, que se constitui em um esforço
para aceitar a mentira necessária para a
sobrevivência ou autopreservação.
Palavras-chave: Diferença; preconceito;
inclusão; deficiência; educação especial
The uneasiness caused by disability:
discrimination and experience
This text discusses the relationship
between discrimination and disability.
We take as fundamental references the
studies carried out by T. Adorno and
M. Horkheimer on discrimination, as
well as the contribution of such
authors as Lígia Amaral and José Leon
Crochik, for whom discrimination
against disabled people is understood
as a mechanism of social negation,
since their differences are emphasized
as an absence, need or inability.
Luciene M. da Silva Disability carves on the very body of
O estranhamento causado pela the individual its specific character.
deficiência: preconceito e The disabled body is not sufficient for
experiência a society that requires its intensive use
Discute as relações entre preconceito e leading to physical wear which is a
deficiência. Tomo como referenciais result of subservient work; or for the
fundamentais os estudos de T. Adorno construction of a corporeity that has in
e M. Horkheimer sobre preconceito, view mere control and correction, in
além das contribuições de autores terms of a hegemonic corporal
como Lígia Amaral e José Leon aesthetics with economic interests. In
Crochik. Para eles, o preconceito às this sense, we all are more and more
pessoas com deficiência configura-se distant from the autonomy and from the
como um mecanismo de negação so- possibility of differentiation, remaining
cial, uma vez que suas diferenças são adaptation alone to the existing
ressaltadas como uma falta, carência situation which constitutes an attempt
ou impossibilidade. A deficiência ins- to accept the lie necessary for survival
creve no próprio corpo do indivíduo or self-preservation.
seu caráter particular. O corpo defi- Key words: difference; discrimination;
ciente é insuficiente para uma socieda- inclusion; disability; special education
560 Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 33 set./dez. 2006
13. Resumos/Abstracts/Resumens
El desconocimiento causado por la
deficiencia: prejuicio y experiencia
Se discute las relaciones entre
prejuicio y deficiencia. Tomo como
referencia fundamental los estudios de
T. Adorno y M. Horkheimer sobre
prejuicio, además de las
contribuciones de autores como Ligia
Amaral y José Leon Crochik. Para
ellos el prejuicio a las personas con
deficiencia se configura como un me-
canismo de negación social, una vez
que sus diferencias son destacadas
como una falta, carencia o
imposibilidad. La diferencia inscribe
en el propio cuerpo del individuo su
carácter particular. El cuerpo deficien-
te es insuficiente para una sociedad
que demanda de él el uso intensivo,
que lo lleva al desgaste físico, resulta-
do del trabajo subsirviente; o para una
construcción corporal cuyo objetivo es
meramente el control y corrección, en
función de una estética de supremacía
del cuerpo, con intereses económicos.
En este sentido, todos nosotros nos dis-
tanciamos cada vez más de la
autonomía y de la posibilidad de dife-
renciación, restándonos apenas la
adaptación a la situación existente,
que se constituye en un esfuerzo para
aceptar la mentira necesaria para
sobrevivir o para la autoprotección.
Palabras claves: diferencia; prejuicio;
inclusión; deficiencia; educación es-
pecial
Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 33 set./dez. 2006 561