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Análise linguística de discursos sobre o trabalho feminino em "Quarto de empregada"
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Análise linguística de discursos
sobre o trabalho feminino em
“Quarto de empregada”
Priscila Lopes Viana
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
priscilalviana@gmail.com
Resumo: Neste artigo, analisamos linguisticamente os discursos sobre o
trabalho da doméstica na obra teatral “Quarto de empregada” de Roberto Freire
(1993). Nosso objetivo é investigar as representações sociais sobre essa
categoria de trabalhadoras, que representa cinco por cento da população
brasileira de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Para isso, utilizamos a metodologia empregada por Faria (1999; 2000; 2001a;
2001b; 2002; 2005), que se vale tanto de noções greimasianas quanto de
conceitos desenvolvidos por Maingueneau (1984), Fiorin (1989), entre outros.
(Apoio CNPq – Processo 142704/2009-1).
Palavras-chave: análise linguística; discursos sobre trabalho; empregadas
domésticas.
Introdução
Pretendemos, em nossa pesquisa de doutoramento, abordar o trabalho
feminino no Brasil, sobretudo o das trabalhadoras domésticas. O foco nessas
trabalhadoras deve-se ao fato de elas constituírem um número significativo da
população brasileira e estarem relacionadas a importantes questões sócio-históricas
do país.
Sendo assim, analisaremos linguisticamente alguns conjuntos de discursos
relacionados ao trabalho da doméstica: discursos das próprias domésticas, das
patroas/patrões e, ainda, outras vozes discursivas sociais, sejam representações
sobre aquelas trabalhadoras em letras de canções, poemas, crônicas, contos,
teatros, romances, sejam ainda textos legislativos e jurídicos.
Neste artigo, especificamente, iniciaremos a análise da peça teatral “Quarto
de empregada” de Roberto Freire (1993). Para isso, faremos uso do suporte teórico
e metodológico utilizado por Faria (1999; 2000; 2001a; 2001b; 2002; 2005).
Vale ressaltar que a análise de discursos relacionados ao trabalho é um novo
desafio para a linguística. Como toda atividade humana é mediada pela linguagem,
o trabalho o é de uma maneira especial, pois, além de envolver um intenso,
contínuo e potencialmente conflituoso conjunto de interações, trata-se de um agir
que, de certa maneira, ocupa uma parte considerável da vida dos seres humanos.
Nesse sentido, a relação entre as ciências do trabalho e as ciências da
linguagem tem convergido para um estudo interdisciplinar (BRONCKART, 2008).
Em outras palavras, a linguística vem alargando seu campo de estudos, e as
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ciências do trabalho estão começando a perceber a dimensão da linguagem nas
atividades de produção e a conceber as organizações de trabalho como produtoras
de sentido.
Justificativa
Nossa motivação para a realização deste trabalho se deu com a leitura de
artigos, tais como o de Rolli & Fernandes (2008), publicado na Folha de São Paulo
em 31-8-2008, que expõem os problemas enfrentados por empregadoras e
empregadas domésticas no Brasil. A matéria intitulada “Sem discriminar
domésticas, custo dobra” - que ocupou quatro páginas do jornal – apresenta
diferentes discursos em relação ao trabalho de doméstica. Além das repórteres
(Cláudia Rolli e Fátima Fernandes) e de diversos especialistas, como advogados e
especialistas em mercado de trabalho, a matéria traz três domésticas
problematizando suas condições de trabalho, a presidente do Sindicato dos
Empregadores Domésticos do Estado de São Paulo, defendendo os direitos das
patroas/patrões, e uma ex-doméstica, que atualmente é a presidente do Sindicado
das Domésticas do Município de São Paulo, lutando pelos direitos dessa categoria
de trabalhadoras.
Na reportagem, destaca-se que essa categoria é a maior dentre as demais
categorias de trabalhadores do Brasil. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística), há 6,8 milhões de trabalhadoras domésticas. Contudo,
esse número refere-se às trabalhadoras domésticas mensalistas. Sendo assim, se a
esse número forem somadas outras 2,3 milhões que trabalham como horistas
(faxineiras ou diaristas), totalizam-se 9,1 milhões de trabalhadoras. Ou seja, cinco
por cento da população brasileira pertence à categoria de trabalhadoras
domésticas.
A razão pela qual a matéria jornalística foi publicada deveu-se ao fato de uma
proposta de emenda constitucional - que ampliaria os direitos das trabalhadoras
domésticas – ter sido estudada no governo Lula. Para isso, cinco ministérios
(Trabalho, Planejamento, Previdência Social, Fazendo e Casa Civil) haviam sido
acionados para trabalhar em prol da mudança na legislação.
Se os sindicatos das empregadas domésticas conseguirem a aprovação dessa
alteração na Constituição, a categoria dessas trabalhadoras terá todos os direitos
concedidos às demais categorias, isto é: recebimento de salário família, FGTS
(Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) obrigatório, limite da jornada de trabalho
estabelecida por lei, hora extra e adicional noturno. Com isso, o custo dos encargos
trabalhistas dobrará, de acordo com cálculos de especialistas em mercado de
trabalho, advogados e representantes de empregadores e trabalhadores do Estado
de São Paulo.
Segundo o advogado trabalhista Luís Carlos Moro, “A Constituição é
discriminatória com essa categoria. A legislação que trata das domésticas está
vencida e foi inspirada nas relações entre a casa-grande e a senzala. É resíduo
cultural da época da escravidão” (FOLHA DE S.PAULO, 2008, p. B1). Esse “resíduo
cultural” pode ser percebido também nas palavras da ex-doméstica Emerenciana
Oliveira (presidente do Sindicato das Domésticas do Município de São Paulo): “Há
30 anos lutamos pelo FGTS obrigatório e por direitos que todos os trabalhadores
têm, como a jornada de trabalho de 44 horas semanais estabelecida na
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Constituição. Não estamos pedindo nada de extraordinário. Doméstico não é
escravo” (FOLHA DE S.PAULO, 2008, p. B3).
Williams (1979) conceitua “resíduo” da seguinte maneira: “O residual, por
definição, foi efetivamente formado no passado, mas como um elemento efetivo do
presente”. Haja vista que a escravidão foi um sistema de trabalho exploratório
marcante na constituição do povo brasileiro, acreditamos – como Silva (2007) -
que, mesmo após a abolição da escravidão, a cultura dominante possua algo dessa
prática. Todavia, houve uma diluição e reinterpretação desse resíduo pela cultura
contemporânea.
Ainda em função de aspectos sócio-históricos, poderíamos constatar uma
grande prevalência de mulheres negras na categoria de domésticas. Até mesmo as
três domésticas focalizadas pela Folha de S.Paulo como também a presidente do
sindicato das domésticas são afro-descendentes. Essa condição faz com que essas
trabalhadoras sejam desrespeitadas e sejam alvos de diversos preconceitos, sejam
eles raciais ou, até mesmo, socioculturais - como se pode ler na matéria jornalística
que apresenta os casos de Maria Gorette (doméstica que processa antigos patrões)
e de Erinei de Souza (doméstica que foi demitida quando engravidou por não poder
fazer jornada aos domingos).
As relações entre patroa versus empregada são salientadas pela socióloga C.
Nunes (1993), que tece considerações sobre as representações marginalizadas
dadas pelas patroas e pelas próprias domésticas a essa categoria de trabalhadoras.
Nas palavras de Nunes (1993, p. 242) “O trabalho de doméstica é assim definido a
partir do que ela não é, evitando por pouco, a marginalidade. Contudo, sendo
positivo por pouco, a estigmatização do seu trabalho contém um potencial de
marginalidade”. A autora ainda prossegue apontando que “tanto a doméstica
quanto sua patroa estão impregnadas de representações passadas, e ambas têm
uma grande dificuldade em modificar disposições adquiridas” (NUNES, 1993, p.
296). Lembrando que, para Moscovici (2003, p. 46) “as representações sociais
devem ser vistas como uma maneira específica de compreender e comunicar o que
nós já sabemos”.
Pode-se verificar nas palavras de Nunes (1993) a figura do gênero feminino
marcada através de sua escolha linguística ao utilizar o vocábulo “patroa” ao invés
de “patrão”. Ao pensarmos que a mulher é quem, na maioria dos casos, gerencia o
trabalho da doméstica, tornar-se-á relevante à nossa pesquisa abordar a diferença
da figura feminina da “patroa” em oposição à masculina do “patrão”. Devido,
inclusive, ao envolvimento diferente da mulher e do homem no controle das
atividades de trabalho da doméstica, supomos que a patroa e o patrão tenham
representações distintas das domésticas.
Nesse sentido, dada a relevância social do tema, temos investigado os
discursos sobre o trabalho da doméstica, numa perspectiva linguística, de forma
que possamos contribuir para a constante busca de compreensão do ser humano e
de seu desenvolvimento.
Alguns fundamentos teóricos
Estudos realizados por Faria (1999; 2000; 2001a; 2001b; 2002; 2005) têm
buscado contribuições da Análise do Discurso para a compreensão da linguagem
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ficcional (e outras linguagens) que, por sua vez, sendo constitutiva da linguagem
humana, torna-se um instrumento revelador das atividades discursivas e não-
discursivas humanas.
A metodologia utilizada pelo autor - que se vale tanto de noções greimasianas
quanto de conceitos desenvolvidos por Maingueneau (1984), Fiorin (1989), Fiorin e
Savioli (1996), Ducrot (1987), entre outros - inclui as seguintes categorias
analíticas, com as quais também pretendemos realizar as análises das letras de
canções e dos textos literários supracitados:
do intradiscurso, isto é, dos textos que materializam o discurso,
identificam-se os percursos semânticos, que englobam dois conjuntos
de elementos semânticos: o percurso temático e o figurativo – o
primeiro mais abstrato e o segundo mais concreto e
do interdiscurso, a categoria de oposição.
Dessa forma, os passos metodológicos para a análise dos textos serão,
primeiramente, a identificação dos percursos semânticos do intradiscurso; a seguir,
a identificação dos traços distintivos subjacentes aos percursos semânticos
intradiscursivos; posteriormente, a identificação das correspondentes oposições
constitutivas do interdiscurso, a partir dos já identificados traços distintivos
subjacentes aos percursos semânticos do intradiscurso; e, por último, o
estabelecimento das relações entre os percursos semânticos intradiscursivos e as
oposições interdiscursivas.
Fiorin e Savioli (1996, p. 306) expõem que há em todo texto informações
explícitas e implícitas. Como exemplo, podemos citar a sentença:
(01) “Hoje sou funcionário público”.
Podemos observar como informação explícita o fato de o enunciador, no
momento da enunciação, ser funcionário público. No entanto, como informação
implícita, está o fato de o enunciador não ter sido sempre funcionário público. Essa
carga implícita é trazida pelo dêitico “hoje”.
Assim, os autores afirmam que as informações implícitas podem ser de dois
tipos: pressupostas e subentendidas. Os pressupostos são ideias que o leitor pode
recuperar a partir do sentido de certas palavras ou expressões contidas na frase.
Não estão expressas de maneira explícita. Por exemplo:
(02) “Atualmente, Natália está filiada a um grupo do movimento de luta
antimanicomial e atua ativamente”.
Por um lado, o advérbio “atualmente” expressa explicitamente duas
informações: (I) hoje Natália é membro filiada de um grupo do movimento de luta
antimanicomial e (II) hoje Natália atua ativamente em um grupo do movimento de
luta antimanicomial. Por outro lado, tal advérbio implica a discussão de duas
informações implícitas: (I) anteriormente Natália não era membro filiada de um
grupo do movimento de luta antimanicomial e (II) anteriormente Natália não
atuava ativamente em um grupo do movimento de luta antimanicomial.
Para os autores, os pressupostos são recursos argumentativos que visam
levar o leitor ou ouvinte a aceitar certas ideias, já que as informações explícitas
podem ser questionadas pelo ouvinte, enquanto as ideias implícitas não são postas
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em discussão (supõem-se verdadeiras). Assim, as informações explícitas
contribuem para confirmar as implícitas.
Vale ressaltar que a identificação de pressupostos pelo leitor demonstra
perspicácia, proficiência e habilidade de reflexão. Isto é, demonstra uma
competência linguística discursiva do agente-receptor.
Retomando o exemplo “Natália é filiada de um grupo do movimento de luta
antimanicomial e atua ativamente”, podemos discutir alguns pressupostos: (I)
Natália solicitou sua filiação a um grupo de um movimento e foi aceita, (II) o
estado anterior à filiação de Natália representa também metonimicamente um
grupo de pessoas que não se filiaram/filiam a um grupo do movimento de luta
antimanicomial e (III) a possibilidade de ser membro de um grupo do movimento
de luta antimanicomial sem ser ativamente atuante.
Segundo Fiorin e Savioli (1996, p. 309), os marcadores de pressupostos
podem ser adjetivos, verbos que indicam mudança ou permanência de estado,
verbos que indicam um ponto de vista sobre o fato expresso pelo seu
complemento, certos advérbios, orações adjetivas e certas conjunções.
Ducrot (1987, p. 32) reexamina sua própria concepção sobre pressupostos e
subentendidos e, para isso, demonstra as diferenças entre a “concepção antiga” e a
“concepção nova”. A tese da concepção antiga consiste na ideia de que os
pressupostos suscitados por um enunciado estão determinados unicamente pela
frase da qual este enunciado é a realização. A essa tese se relacionam as seguintes
proposições:
A significação da frase pode implicar a existência, no sentido de seus
enunciados, deste ou daquele pressuposto, e
Todos os pressupostos que aparecem no sentido do enunciado estão já
previstos na própria significação da frase.
Sendo assim, o pressuposto se transmitiria sempre da significação para o
sentido. No entanto, Ducrot (1987, p. 33) observa que isso não se constata se
certas especificações que estão ausentes da frase forem consideradas, por
exemplo, a especificação do tempo no qual se situa o fato pressuposto. Além disso,
o autor questiona o pressuposto como “condição de emprego” (concepção da
literatura filosófica).
Segundo o autor, o critério clássico para deduzir o fenômeno da
pressuposição utiliza a negação e a interrogação. Podemos exemplificar com a
sentença
(03) “O regulamento do prédio é explícito” / Negação: “O regulamento do prédio não é
explícito” / Interrogação: “O regulamento do prédio é explícito?”.
Por meio desse critério, pode-se compreender, como pressuposto dessa sentença,
que “O prédio possui um regulamento.
A pressuposição, para o autor, é um ato ilocutório, que está inscrito na frase.
Apresenta suas próprias palavras como induzindo, imediatamente, a uma
transformação jurídica da situação. Um pedido pode exemplificar:
(04) “Me dá um cigarro?”
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O subentendido, por sua vez, não está marcado na frase e é sempre gerado a
partir da intenção comunicativa do enunciador. Dessa forma, só aparece no
momento da enunciação e pertence ao sentido. Trata-se de um ato perlocutório,
pois é inerente à frase. Com ele, pode ser que o enunciador espere um efeito
indireto - e não necessariamente imediato -, ligado a um encadeamento causal
muito complexo.
Refletindo sobre tudo isso, Ducrot (1987, p. 37) chega a uma conclusão. Para
ele, o valor ilocutório pode não estar marcado na frase, já que a pressuposição
pode aparecer no nível do enunciado e sob a forma de subentendido. Ou seja,
haveria pressuposições subentendidas, como há pedidos subentendidos,
A análise
A peça teatral “Quarto de empregada”, desde o seu título, faz-nos inferir que
as trabalhadoras domésticas serão tematizadas. Pode-se notar nesse título um
processo de linguagem semântico para fazer referência implícita (subentendida) ao
local de trabalho e à própria vida da empregada doméstica: a metáfora, através da
qual compara-se essa pequena parcela da casa – o quarto – à vida da trabalhadora
em oposição a todas as demais partes da casa de uso dos patrões. Com essa
oposição, pode-se perceber nesse título o tema implícito da pobreza (das
trabalhadoras) versus o tema implícito da riqueza (dos patrões).
No primeiro parágrafo da peça (FREIRE, 1993, p. 17), o quarto é descrito
como um “cubículo”, “típico quarto de empregada em apartamentos modernos”,
com “armário repleto de roupas que transbordam” e decorado por um “espelhinho,
gravura de São Jorge, retratos amarelados etc.” Vale apontar as formações lexicais
diminutivas “cubículo” e “espelhinho”, que podem transmitir um sentido pejorativo
ao ambiente da doméstica, desenvolvendo o tema da pobreza das trabalhadoras.
É interessante, ainda, estabelecer uma comparação entre o quarto de
empregada moderno e a senzala do período da escravidão do Brasil (séculos XVI–
XIX). O resquício da escravidão no país pode ser evidenciado pela própria
arquitetura dos “apartamentos modernos”, que possuem um pequeno quarto (de
acordo com o autor da peça, um “cubículo”) nos fundos do apartamento.
Como se posiciona o próprio quarto das domésticas – nos fundos -, a vida
dessas trabalhadoras, representada pelas personagens explícitas Rosa e Suely,
também se dá à margem da vida da família para a qual ela trabalha. Elas convivem
com um luxo que não é delas, criando, algumas vezes, um conflito, como o
relatado na peça (FREIRE, 1993, p. 31):
Rosa: - Olha, Suely, olha este quarto... nem mesmo é quarto.
Suely: - Você fica aqui porque quer.
Rosa: - Ir pra onde? São todos iguais.
Suely: - O quarto da patroa é diferente. O meu...
Rosa: - Deixa de ilusão, sua tonta! Se sair daqui, deste, cai noutro. Não, Suely,
não adianta pensar nos tapetes e nas cortinas lá da sala, nem no colchão de
mola...
Nota-se explicitamente uma oposição entre o quarto de empregada e o quarto
da patroa, ou seja, da vida da trabalhadora e da patroa. Nesse segmento, como no
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decorrer de toda a peça teatral, há o desenvolvimento das temáticas da pobreza
das empregadas em oposição à riqueza dos patrões. A situação conflituosa relatada
acima prossegue com a descoberta feita pela personagem Rosa do furto da
personagem Suely, que rouba alguns talheres de prata da casa da patroa. O desejo
de Suely de ascender socialmente fica implícito com o furto.
A indignação da personagem Rosa diante dos sonhos de Suely de melhorar de
vida se evidencia ao afirmar que deviam operar as empregadas para que não
ficassem grávidas (FREIRE, 1993, p. 34). A personagem Rosa vê seus erros se
repetindo na vida da personagem Suely. Rosa confessa que outrora sonhou com
casamento e melhorias de vida, mas só conseguiu sofrimento perdendo seu filho e
sendo abandonada por seu amante. A categoria das trabalhadoras domésticas é
explicitamente diminuída pela personagem Rosa ao afirmar que somente as
empregadas domésticas deveriam ser operadas para não engravidarem. Vê-se,
com isso, o ponto máximo da ausência de direitos a bens, na medida em que a
personagem Rosa não acha plausível nem mesmo o direito da trabalhadora de sua
categoria de ter sua prole.
A concepção de não se ter direito nem mesmo a uma prole remete-nos
implicitamente ao período da escravidão do Brasil, no qual, de fato, os escravos e
os filhos destes pertenciam aos senhores de escravos. Inclusive, os direitos sexuais
dos senhores de escravos sobre estes são retomados na peça no momento em que
a personagem Rosa afirma que, se as empregadas fossem operadas, tanto as
empregadas quanto as patroas viveriam em paz (FREIRE, 1993, p. 34).
O tema implícito da escravidão persiste nas palavras de Rosa, que afirma:
“Aqui você tem pelo menos cama e comida” (FREIRE, 1993, p. 34). Pode-se
observar que não se explicita a relação trabalhista da prestação de serviço em troca
de um salário. O questionamento dessa situação surge nas palavras da personagem
Suely (FREIRE, 1993, p. 34-35): “De quem é a culpa? (...) Da gente ser
empregada, não poder gostar de um homem direito que case com a gente... (...)
Uns têm tudo... tudo dá certo, como no cinema... na novela. Eu conheço tanta
gente feliz! É dos patrões a culpa?”. Percebe-se, nesse segmento, explicitamente o
tema das diferenças de classes e, implicitamente, a temática da exploração
capitalista.
Há, portanto, na peça a oposição interdiscursiva entre “empregadas” versus
“patrões”. Dessa forma, há passagens do texto que abordam, intradiscursivamente,
o tema da pobreza na figura do “cubículo” (quarto) em que habitam. Já no nível do
interdiscurso, opõe-se a riqueza e a felicidade dos patrões à pobreza e infelicidade
das empregadas domésticas.
Considerações finais:
Por meio dessa análise, podemos verificar que os principais percursos
semânticos de “Quarto de empregada” são: o do trabalho e o das diferenças de
classes. A pobreza e o sofrimento das trabalhadoras são temas que perpassam por
toda a obra.
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Percebemos em alguns segmentos da peça um tom de denúncia contra o
sistema capitalista e questionamentos sobre a relação de trabalho entre patroas e
empregadas domésticas que vivenciam resquícios de uma sociedade escravagista.
Sendo assim, explícita e implicitamente os temas são abordados nessa peça
podendo levar o enunciatário a refletir sobre o sofrimento e a pobreza das
empregadas domésticas.
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