SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 12
Baixar para ler offline
1. A cidadania<br />Nesta secção esclarecemos a noção normativa de cidadania, a importância<br />da cidadania e a ligação entre cidadania activa e democracia deliberativa.<br />1.1. A noção normativa de cidadania<br />Em filosofia política usa-se a expressão «cidadania<br />» num sentido diferente do habitual:<br />Em contextos filosóficos, a cidadania refere-se<br />a um ideal normativo substancial de pertença e<br />participação numa comunidade política. Ser um<br />cidadão, neste sentido, é ser reconhecido como<br />um membro integral e igual da sociedade, com o<br />direito de participar no processo político. Como<br />tal, trata-se de um ideal distintamente democrático. As pessoas que são<br />governadas por ditaduras monárquicas ou militares são súbditos e não<br />cidadãos.<br />Will Kymlicka, «Cidadania», 1998<br />ÍNDICE DO CAPÍTULO<br />1. A cidadania<br />1.1. A noção normativa de cidadania<br />1.2. A importância da cidadania<br />1.3. Cidadania e democracia<br />deliberativa<br />2. Teorias da cidadania<br />2.1. Teoria dos direitos sociais<br />2.2. Teoria dos mercados<br />2.3. Teoria da sociedade civil<br />2.4. Teoria liberal das virtudes<br />Opção<br />2 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />Assim, nos países que não são democráticos a maior parte das pessoas são<br />apenas súbditos e não cidadãos. Isto acontece porque nesses países a maior<br />parte da população não é um «membro integral e igual da sociedade, com o<br />direito de participar no processo político» — nesses países, não há eleições<br />democráticas, nem há mais de um partido político, nem as pessoas se podem<br />organizar livremente para formar um partido político, nem podem dizer<br />livremente o que pensam do seu governo nos jornais, etc.<br />Esta noção de cidadania é normativa e não descritiva.<br />􀂄 Numa afirmação descritiva pretende-se fazer corresponder a afirmação<br />à realidade.<br />􀂄 Numa afirmação normativa pretende-se fazer corresponder a realidade<br />à afirmação.<br />Por exemplo, a afirmação «O João fugiu da Maria» é uma afirmação descritiva:<br />procura descrever a realidade. Mas a afirmação «O João não devia ter<br />fugido da Maria» é normativa: procura dizer o que o João devia ter feito e<br />não descrever o que ele fez.<br />A noção normativa de cidadania não procura reflectir o modo como as<br />pessoas usam o termo «cidadania». A noção normativa determina um ideal de<br />cidadania a que as sociedades devem obedecer. Por isso, apesar de na realidade<br />se chamar «cidadãos» às pessoas que vivem submetidas a ditaduras, não<br />se está a usar o termo no seu sentido filosófico. No seu sentido filosófico, só<br />podemos dizer que alguém é um cidadão se essa pessoa vive num país ou<br />comunidade que lhe dá todos os direitos políticos. Como afirma Kant, «A<br />capacidade de votar é um pré-requisito para se ser um cidadão».<br />􀀉 Glossário: Cidadão, normativo/descritivo.<br />A NOÇÃO NORMATIVA DE CIDADANIA<br />Questões de revisão<br />1. O que é um cidadão? Define e dá exemplos.<br />2. O que significa dizer que a noção filosófica de cidadania é normativa e<br />não descritiva?<br />Problema<br />1. Será que um adolescente de 16 anos é, em Portugal, um cidadão? Porquê?<br />Capítulo 13 􀁹 A Filosofia na Cidade 3<br />1.2. A importância da cidadania<br />A solidez dos regimes democráticos depende fortemente das atitudes dos<br />cidadãos e é por isso que a cidadania é importante:<br />[…] a saúde e estabilidade de uma democracia moderna não depende<br />apenas da justiça das suas instituições básicas mas também das qualidades<br />e atitudes dos seus cidadãos: por exemplo, do seu sentido de identidade, e<br />de como encaram formas potencialmente rivais de identidades nacionais,<br />regionais, étnicas ou religiosas; da sua capacidade para tolerar e trabalhar<br />com pessoas diferentes deles próprios; do<br />seu desejo de participar no processo político<br />com vista a promover o bem público e a responsabilizar<br />as autoridades políticas; da sua<br />prontidão para mostrar autodomínio e para<br />serem pessoalmente responsáveis nas suas<br />exigências económicas e nas suas escolhas<br />pessoais que afectam a sua saúde e o meio<br />ambiente. Sem cidadãos que tenham estas<br />qualidades, as democracias tornam-se difíceis<br />de governar, e até instáveis.<br />Will Kymlicka, Filosofia Política<br />Contemporânea, 2002, p. 285<br />Compreende-se melhor a importância da<br />cidadania tendo em conta as virtudes cívicas<br />que se exigem dos cidadãos. Segundo alguns<br />filósofos, essas virtudes são as seguintes:<br />1. Virtudes gerais: Coragem, obediência à<br />lei e lealdade.<br />2. Virtudes sociais: Autonomia e abertura<br />de espírito.<br />3. Virtudes económicas: Ética profissional, capacidade para esperar pela<br />recompensa, e adaptabilidade à mudança económica e tecnológica.<br />4. Virtudes políticas: Capacidade para discernir e respeitar os direitos<br />dos outros, boa-vontade para exigir apenas o que se pode pagar,<br />capacidade para avaliar a actuação dos governantes e boa-vontade<br />para se entregar à discussão pública.<br />Muitas destas virtudes são tão básicas que são necessárias em qualquer<br />regime político, incluindo as ditaduras. Por exemplo, numa situação de emergência<br />é necessária coragem para arriscar a nossa vida de modo a salvar vidas<br />A Cidade Abandonada, de Fernand<br />Khnopff (1858-1921). Uma democracia<br />sem cidadania activa é como uma cidade<br />abandonada: as suas infra-estruturas<br />podem ser da maior qualidade, mas não<br />passa de uma cidade-fantasma.<br />4 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />alheias. E é necessária lealdade porque caso contrário as pessoas estariam o<br />tempo todo a enganar-se umas às outras e a sociedade no seu todo desagregar-<br />se-ia. É necessária boa-vontade para exigir apenas o que se pode pagar;<br />caso contrário a economia de um país torna-se incontrolável: se exigimos<br />hospitais gratuitos mas ao mesmo tempo não queremos pagar impostos, o<br />estado entrará em bancarrota.<br />Mas uma democracia saudável exige dos seus cidadãos virtudes que<br />nenhum outro regime exige: a capacidade para avaliar a actuação dos governantes<br />e a boa-vontade para se entregar à discussão pública.<br />Avaliar a actuação dos governantes implica questionar a sua autoridade.<br />Assim, só porque um certo governante defende uma dada ideia ou decisão o<br />cidadão não deve acatar essa ideia ou decisão passivamente: deve avaliá-la<br />criticamente e procurar determinar se essa ideia ou decisão resiste à crítica<br />racional.<br />A boa-vontade para se entregar à discussão pública é uma virtude que<br />exige o domínio da distinção entre a manipulação e a persuasão racional.<br />Como vimos no Capítulo 3 (secção 2), manipular uma pessoa é procurar<br />influenciá-la impedindo-a de pensar livremente. Isto consegue-se recorrendo<br />a discursos muito floreados e falsamente eloquentes, a ameaças veladas, à<br />manipulação, ao apelo a medos e esperanças do auditório, etc. Na discussão<br />pública, o cidadão virtuoso não visa a manipulação, mas a persuasão racional.<br />Se todos os cidadãos de uma democracia visarem a manipulação, a discussão<br />racional será substituída pela negociação: num debate não ganham as ideias<br />e propostas mais razoáveis, mas as ideias e propostas de quem tem maior<br />poder negocial.<br />Assim, as virtudes necessárias para o discurso político racional incluem o<br />seguinte:<br />[…] a boa-vontade para ouvir seriamente uma série de perspectivas<br />que, dada a diversidade das sociedades liberais, irão incluir ideias que o<br />ouvinte necessariamente achará estranhas e até escandalosas. A virtude do<br />discurso político inclui igualmente a boa-vontade para apresentar as nossas<br />próprias perspectivas de forma inteligível e cândida como um ponto de<br />partida para uma política de persuasão e não de manipulação ou coerção.<br />William Galston, Propósitos Liberais, 1991, p. 227<br />A importância da cidadania torna-se assim clara: sem uma cidadania<br />forte, os governantes manipulam facilmente os cidadãos; os cidadãos que não<br />pertençam à maioria étnica, religiosa, cultural ou outra nunca serão ouvidos<br />com a atenção que merecem; as decisões não serão tomadas em função do<br />que é mais racional, mas unicamente em função de quem tem maior poder<br />negocial.<br />Capítulo 13 􀁹 A Filosofia na Cidade 5<br />􀀉 Glossário: Persuasão irracional, persuasão racional.<br />A IMPORTÂNCIA DA CIDADANIA<br />Questões de revisão<br />1. Por que razão é a cidadania importante?<br />2. Quais são as virtudes próprias da cidadania democrática?<br />3. Que virtudes que se exigem do discurso político racional?<br />Problemas<br />1. Define a noção de virtude cívica.<br />2. «Numa democracia, ainda que ideal, é tudo uma questão de negociação e<br />nada tem a ver com persuasão racional.» Concordas? Porquê?<br />1.3. Cidadania e democracia deliberativa<br />O que é uma democracia? A noção mais elaborada de democracia é complexa<br />e problemática e não é isso que vamos estudar. Mas convém ter pelo<br />menos uma noção básica de democracia:<br />􀂄 Uma democracia é um sistema de governação do povo, pelo povo<br />(democracia directa) ou pelos seus representantes (democracia representativa),<br />e para o povo.<br />Numa democracia directa são os próprios cidadãos que decidem todas as<br />matérias, reunidos em assembleias. A democracia da Grécia antiga era directa.<br />As democracias modernas são representativas: os cidadãos elegem os seus<br />representantes que, em sua representação, governam o país.<br />Uma democracia representativa tanto pode ser agregativa como deliberativa:<br />􀂄 Democracia agregativa: uma democracia centrada nas eleições, na<br />qual os cidadãos não participam nos processos de decisão.<br />􀂄 Democracia deliberativa: uma democracia centrada na discussão, na<br />qual, além de votar nas eleições, os cidadãos participam nos processos<br />de decisão.<br />Um país pode ser democrático no sentido agregativo sem ser democrático<br />no sentido deliberativo. Numa democracia agregativa a participação dos<br />cidadãos no processo de decisão política limita-se quase exclusivamente à<br />6 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />votação em eleições. Numa democracia deliberativa o cidadão não só vota<br />nas eleições como participa activamente na discussão pública que deve anteceder<br />as tomadas de decisões e as próprias eleições.<br />Numa democracia agregativa a generalidade das decisões são tomadas<br />pelos governantes sem nenhuma ou quase nenhuma discussão pública amplamente<br />participada; a discussão pública é institucionalmente possível, mas<br />raramente acontece na prática. Numa democracia deliberativa as decisões<br />são tomadas pelos governantes em função da discussão pública, amplamente<br />participada.<br />Por exemplo, imagine-se que o governo está a pensar construir um novo<br />aeroporto num dado local. Numa democracia deliberativa, uma parte substancial<br />dos cidadãos participam voluntariamente na discussão: informam-se<br />sobre as vantagens e desvantagens de construir o aeroporto naquele local e<br />naquele momento, procuram pensar em alternativas; e discutem o tema<br />publicamente nos jornais, na televisão e em debates locais e nacionais. Numa<br />democracia agregativa, só os próprios políticos e os comentadores dos jornais<br />discutem o tema; e o governo acaba por tomar uma decisão que não foi<br />influenciada por uma ampla discussão pública. O exercício activo da cidadania<br />e a democracia deliberativa andam a par; são duas faces da mesma moeda.<br />Não se deve confundir democracia deliberativa com democracia directa,<br />ou com formas de consulta directa da vontade dos cidadãos, como os referendos.<br />Um referendo não é uma discussão pública, apesar de poder ser<br />antecedido por uma discussão pública. Um referendo exprime unicamente a<br />vontade da maioria, que pode não ser a mais razoável. Ao invés, numa democracia<br />deliberativa o que está em causa é procurar o que é mais razoável<br />através da discussão aberta, pública e tão amplamente participada quanto<br />possível.<br />􀀉 Glossário: Democracia, democracia agregativa, democracia deliberativa.<br />CIDADANIA E DEMOCRACIA DELIBERATIVA<br />Questões de revisão<br />1. Quais são os elementos básicos da democracia?<br />2. Qual é a diferença entre uma democracia directa e uma democracia<br />representativa?<br />3. O que é uma democracia agregativa?<br />4. O que é uma democracia deliberativa?<br />Problema<br />1. Poderá uma democracia directa não ser uma democracia deliberativa?<br />Porquê?<br />Capítulo 13 􀁹 A Filosofia na Cidade 7<br />2. Teorias da cidadania<br />Como se pode organizar a sociedade de modo a estimular os cidadãos a<br />exercer a sua cidadania? Há várias teorias que respondem de forma diferente<br />a este problema. Contudo, vamos estudar apenas as seguintes:<br />1. A teoria dos direitos;<br />2. A teoria dos mercados;<br />3. A teoria da sociedade civil;<br />4. A teoria liberal das virtudes.<br />Todas estas teorias encaram a participação dos cidadãos na vida pública<br />como um valor instrumental e não como um valor intrínseco.<br />􀂄 Uma coisa tem valor intrínseco se tem valor por si.<br />􀂄 Uma coisa tem valor instrumental se tem valor em função de ser um<br />meio para alcançar o que tem valor por si.<br />Por exemplo, ter saúde tem valor intrínseco, dado que tem valor por si: é<br />algo que é bom em si. Mas ser vacinado é algo que só tem valor instrumental,<br />dado que não tem valor por si: só tem valor porque é um meio adequado para<br />algo que tem valor, que é a saúde.<br />Uma teoria que não vamos discutir é o republicanismo aristotélico, a que<br />por vezes se chama também humanismo cívico. Esta teoria inspira-se nas<br />ideias de cidadania da antiga Grécia, segundo as quais a vida pública tinha<br />valor em si, ao passo que a vida privada era totalmente ou quase totalmente<br />destituída de valor. Deste ponto de vista, o cidadão deve participar na vida<br />pública porque só aí encontra a realização total como ser humano.<br />Hoje em dia, não se encara a vida pública como um valor intrínseco, mas<br />antes como um valor instrumental. Isto significa que se aceita a importância<br />de participar na vida pública, mas apenas porque isso é necessário para<br />defender outros valores: a liberdade, a solidez da democracia, o bem-estar<br />de todos, etc. A vida privada é hoje reconhecida como um valor intrínseco,<br />ao contrário do que acontecia na antiga Grécia:<br />Há muitas razões para esta mudança histórica, incluindo a ascensão do<br />amor romântico e da família nuclear (e a sua ênfase na intimidade e na<br />privacidade); maior prosperidade (e portanto formas mais ricas de ócio e<br />consumo); o comprometimento cristão com a dignidade do trabalho (que<br />8 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />os gregos desprezavam); e uma antipatia cada vez maior à guerra (que os<br />gregos admiravam). Os gregos viam a esfera privada como uma esfera de<br />«privação» (esta é, na verdade, a origem da palavra «privada») e não lhe<br />davam grande valor (se acaso eles tinham qualquer conceito comparável<br />do «privado»). Mas para nós, os «modernos», a intimidade, o amor, o ócio,<br />o consumo e o trabalho são fonte de imensa satisfação.<br />Will Kymlicka, Filosofia Política Contemporânea, 2002, p. 298<br />􀀉 Glossário: Valor instrumental, valor intrínseco.<br />TEORIAS DA CIDADANIA<br />Questões de revisão<br />1. Qual é a diferença entre um valor instrumental e um valor intrínseco?<br />Define ambos e dá exemplos.<br />2. O que significa dizer que as teorias da cidadania que vamos estudar encaram<br />a participação na vida pública como um valor instrumental e não<br />como um valor intrínseco?<br />Problema<br />1. Será que uma teoria que defenda o valor intrínseco da participação na<br />vida pública pode ao mesmo tempo defender que tal participação tem<br />também um valor instrumental? Porquê?<br />2.1. Teoria dos direitos sociais<br />A teoria dos direitos sociais baseia-se na ideia de que a melhor maneira<br />de estimular os cidadãos a participar na vida pública é dar-lhes direitos, em<br />particular direitos sociais.<br />Podemos distinguir três tipos de direitos:<br />1. Direitos civis;<br />2. Direitos políticos;<br />3. Direitos sociais.<br />Os direitos civis dizem respeito às liberdades concedidas aos cidadãos (a<br />liberdade religiosa e a liberdade de expressão, por exemplo) e à igualdade de<br />todos os cidadãos perante a lei. A liberdade religiosa significa que qualquer<br />cidadão pode ter a religião que quiser. A liberdade de expressão significa que<br />qualquer cidadão pode exprimir livremente as opiniões que quiser. E a igualCapítulo<br />13 􀁹 A Filosofia na Cidade 9<br />dade de todos os cidadãos perante a lei significa que as pessoas têm de ser<br />tratadas exactamente da mesma maneira seja qual for a sua religião, sexo,<br />partido político, convicções filosóficas, etc.<br />Os direitos políticos dizem respeito ao direito de escolher os governantes,<br />formar partidos políticos, concorrer a eleições e tornar-se um governante.<br />Os direitos sociais dizem respeito à distribuição<br />de bens sociais como a educação, cuidados<br />médicos, reforma e fundo de desemprego. A ideia<br />destes direitos é dar a todos os cidadãos as condições<br />mínimas para uma vida condigna, independentemente<br />do poder económico das suas respectivas<br />famílias. Sem este tipo de direitos só os<br />cidadãos mais ricos poderão, por exemplo, tirar<br />um curso superior, pois os mais pobres precisam<br />de começar a trabalhar o mais cedo possível.<br />Segundo a teoria dos direitos, basta dar aos<br />cidadãos toda esta gama de direitos para que eles<br />participem activamente na vida política da sua<br />sociedade. Esta teoria enfrenta duas críticas<br />centrais.<br />A primeira crítica é a seguinte: Nas sociedades<br />democráticas actuais os direitos civis, políticos e<br />sociais foram alargados a todos os cidadãos. Em<br />consequência disso, a generalidade das pessoas<br />tem hoje o conforto, o tempo e o dinheiro para<br />poder participar na vida pública. Contudo, não o<br />faz. A maior parte da população das sociedades<br />democráticas actuais dá uma enorme importância<br />à sua vida privada e despreza a vida pública. Isto<br />parece mostrar que a teoria dos direitos está<br />errada: afinal, não basta dar amplos direitos aos<br />cidadãos para que eles passem a participar na vida<br />pública do país. A cidadania privada ou passiva a que a ampla concessão de<br />direitos deu lugar, por oposição a uma cidadania pública ou activa, parece<br />refutar a ideia de que basta dar direitos aos cidadãos para que eles participem<br />na vida política do país.<br />A segunda crítica declara que esta apatia dos cidadãos resulta de uma<br />ênfase exagerada nos direitos sociais, sem se exigir deveres em troca. O<br />cidadão habitua-se assim a ter direito à educação, ao fundo de desemprego,<br />à saúde quase gratuita ou inteiramente gratuita, etc., mas como nada lhe é<br />exigido em troca o cidadão não sente que tem deveres que correspondem aos<br />seus direitos. Em particular, não sente que tem a obrigação de participar na<br />Diversões Inocentes, de John William<br />Godward (1861-1922). Nas sociedades<br />contemporâneas, uma vida privada mais<br />rica, nomeadamente ao nível das diversões,<br />afastou o cidadão da cidadania.<br />10 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />vida pública da sua sociedade, deixando isso inteiramente entregue aos políticos<br />profissionais.<br />TEORIA DOS DIREITOS SOCIAIS<br />Questões de revisão<br />1. O que caracteriza a teoria dos direitos? Explica e dá exemplos.<br />2. Quais são as críticas centrais à teoria dos direitos?<br />Problema<br />1. «Ter direitos, nomeadamente sociais, é uma condição necessária, mas<br />não suficiente para uma cidadania activa.» Concordas? Porquê?<br />2. Concordas com as críticas apresentadas à teoria dos direitos? Porquê?<br />2.2. Teoria dos mercados<br />Os conservadores defendem que é necessário responsabilizar os cidadãos,<br />exigindo-lhes deveres sociais básicos que sejam paralelos aos seus direitos.<br />Um dos deveres sociais básicos de cada cidadão é a sua independência económica,<br />a capacidade para ganhar a sua vida, em vez de ficar inteiramente<br />dependente do fundo de desemprego e de outros mecanismos sociais de<br />protecção. A plena imersão da vida do cidadão nas forças dos mercados obriga<br />o cidadão a ser responsável, retirando-o da apatia em que a ampla concessão<br />de direitos sociais o deixou. O cidadão tem de compreender como funcionam<br />os mercados, tem de saber orientar-se por si para ganhar a vida e isso<br />implica ter uma palavra a dizer sobre a vida pública. Assim, os conservadores<br />defendem que são os mercados, com as suas regras de funcionamento, e não<br />os direitos sociais, que estimulam a cidadania activa.<br />Esta teoria enfrenta duas críticas centrais.<br />Uma das críticas à teoria dos mercados é que a cidadania não emerge<br />como que por magia da liberdade e autonomia económicas, tal como não<br />emerge como que por magia do simples facto de os cidadãos terem direitos<br />sociais. Pelo contrário, numa sociedade que dê muita ênfase aos aspectos<br />económicos o cidadão tende a ocupar-se exclusivamente do seu bem-estar<br />económico: da sua vida privada e não da vida pública.<br />Uma segunda crítica, mais forte, é que a aplicação da teoria dos mercados<br />não só não promove a participação dos cidadãos na vida pública, como<br />encoraja comportamentos que colidem com as virtudes necessárias para uma<br />cidadania responsável. Entre esses comportamentos contam-se a tentativa<br />sistemática de enganar os outros para obter o máximo lucro possível e uma<br />Capítulo 13 􀁹 A Filosofia na Cidade 11<br />actuação parcial, que atende unicamente aos seus próprios interesses económicos<br />e não ao que é justo. Quando há conflitos de interesses quase sempre<br />há diferenças de poder negocial, tendo umas pessoas mais poder económico,<br />político, intelectual ou social do que outras. Ora, a teoria dos mercados, ao<br />subordinar a vida pública ao modelo económico dos mercados, não só não<br />ajuda a cultivar a virtude da imparcialidade, da argumentação cuidada e<br />honesta, como estimula o subterfúgio, o aproveitamento das vantagens negociais<br />para seu próprio benefício, a manipulação, etc. A consequência disto é<br />que os debates públicos tornam-se negociações irracionais nas quais quem<br />tem mais poder acaba sempre por obter melhores resultados, à custa do que<br />seria justo e do que seria melhor para o maior número de pessoas.<br />TEORIA DOS MERCADOS<br />Questões de revisão<br />1. O que caracteriza a teoria dos mercados? Explica e dá exemplos.<br />2. Quais são as críticas centrais à teoria dos mercados?<br />Problemas<br />1. «Ter deveres económicos poderá ser uma condição necessária para uma<br />cidadania activa, mas não é uma condição suficiente.» Concordas? Porquê?<br />2. Concordas com as críticas apresentadas à teoria dos mercados? Porquê?<br />3. Qual das duas teorias estudadas te parece mais plausível? Porquê?<br />4. Serão as duas teorias estudadas compatíveis? Porquê?<br />2.3. Teoria da sociedade civil<br />Em vez de elegerem os mercados como o meio para estimular a cidadania<br />activa, os defensores da teoria da sociedade civil elegem as organizações<br />voluntárias da sociedade civil, como as igrejas, as famílias, as associações<br />étnicas, os grupos ecologistas, as organizações de caridade, etc. Do ponto de<br />vista dos defensores desta teoria, ao participar nestas associações o cidadão<br />aprende a cultivar as virtudes fundamentais sem as quais a cidadania activa<br />não é possível. O cidadão tem de saber trabalhar com os outros, tem de saber<br />discutir ideias alheias, determinar cursos de acção, escolher alternativas,<br />etc. O funcionamento de cada associação civil é, afinal, um modelo da sociedade<br />no seu todo. E por isso é uma espécie de «escola cívica», na qual o<br />cidadão interioriza as virtudes necessárias ao exercício da cidadania.<br />12 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />A crítica fundamental à teoria da sociedade civil é que diferentes associações<br />cultivam diferentes atitudes, e estas nem sempre são compatíveis com<br />as virtudes necessárias à cidadania.<br />Por exemplo, uma virtude fundamental da cidadania é a atitude crítica<br />perante as autoridades. Ora, muitas associações, nomeadamente religiosas,<br />não cultivam a atitude crítica perante as autoridades,<br />mas antes a deferência e a aceitação da autoridade.<br />Em si, nada há de errado nesta atitude, pois<br />pode fazer todo o sentido numa confissão religiosa.<br />Mas isto significa que numa confissão religiosa os<br />seus membros não só não estão a cultivar virtudes<br />importantes para a cidadania, como estão a cultivar<br />virtudes incompatíveis com a cidadania.<br />Não são apenas as associações religiosas que<br />cultivam atitudes incompatíveis com o exercício da<br />cidadania responsável. Pense-se noutro exemplo:<br />uma virtude fundamental da cidadania é o sentido<br />de imparcialidade, a procura do bem comum e não<br />apenas do nosso próprio benefício à custa dos<br />outros. Mas muitas associações da sociedade civil<br />cultivam o chamado princípio NIMBY, do inglês not<br />in my backyard: «No meu quintal, não». Assim,<br />quando é necessário fazer uma nova prisão, por<br />exemplo, ou uma incineradora, ou seja o que for<br />que representa um custo relativo para a comunidade<br />onde tal estrutura for construída, as associações<br />cívicas têm tendência para impossibilitar a discussão<br />racional, porque a sua atitude é unicamente a<br />de recusa rígida. Não se trata de argumentar que<br />não precisamos daquelas estruturas; trata-se apenas<br />de não querer aquelas estruturas ao pé da nossa<br />casa, apesar de ser evidente que essas estruturas<br />têm de ficar ao pé da casa de alguém. Assim, o tipo<br />de atitude cultivada pelas associações voluntárias<br />da sociedade civil é muitas vezes incompatível com<br />as virtudes da cidadania, que incluem a capacidade para avaliar uma situação<br />com imparcialidade, pensando no bem geral e não apenas no seu próprio<br />bem-estar.<br />TEORIA DA SOCIEDADE CIVIL<br />Questões de revisão<br />1. O que caracteriza a teoria da sociedade civil? Explica e dá exemplos.<br />Os Pilares da Sociedade, de George<br />Grosz (1893-1959). Poderão as associações<br />voluntárias ser o berço da cidadania?<br />Ao longo da história, têm sido precisamente<br />alguns dos «pilares da sociedade» que<br />mais severamente têm sido criticados.<br />Capítulo 13 􀁹 A Filosofia na Cidade 13<br />2. Qual é a crítica central à teoria da sociedade civil?<br />Problemas<br />1. «Ter uma sociedade civil forte não é uma condição suficiente para ter<br />uma cidadania participada, ainda que seja uma condição necessária.»<br />Concordas? Porquê?<br />2. Concordas com a crítica apresentada à teoria da sociedade civil? Porquê?<br />3. Qual das três teorias até agora estudadas te parece mais plausível? Porquê?<br />4. Serão as três teorias até agora estudadas compatíveis? Porquê?<br />2.4. Teoria liberal das virtudes<br />A teoria liberal das virtudes defende que a escola é o lugar próprio para<br />cultivar as virtudes fundamentais da cidadania. Segundo esta teoria, é no<br />sistema de ensino que os cidadãos devem cultivar as virtudes necessárias à<br />cidadania activa, nomeadamente a atitude crítica perante as autoridades e a<br />razoabilidade ou imparcialidade racional, que permite encetar discussões<br />racionais de ideias.<br />Esta perspectiva enfrenta três críticas centrais.<br />Em primeiro lugar, nem sempre a escola promove o sentido crítico perante<br />as autoridades. Muitas vezes, acontece precisamente o oposto: o estudante<br />habitua-se unicamente a decorar ou a compreender o que lhe é ensinado,<br />encarando o professor e o manual escolar como autoridades que não se<br />podem colocar em causa. Portanto, a teoria liberal das virtudes é incompatível<br />com muitos sistemas de ensino, nomeadamente alguns tipos de ensino<br />religioso.<br />Em segundo lugar, se os sistemas de ensino forem realmente liberais, os<br />estudantes irão aplicar o sentido crítico adquirido na escola a outros aspectos<br />da sua vida. E isso pode ser inaceitável para certos grupos sociais, religiosos<br />ou étnicos. Por exemplo, se um estudante fundamentalista cristão entrar<br />para uma escola na qual se criticam todas as ideias abertamente, é muito<br />provável que comece a perguntar se a ideia de que a vida é sagrada é racionalmente<br />defensável, ainda que seja entendida metaforicamente. E isso<br />poderá colocar o estudante em conflito com a comunidade religiosa a que<br />pertence, o que é inaceitável para quem defende o respeito absoluto de<br />todas as tradições religiosas, sociais, culturais, etc.<br />Em terceiro lugar, mesmo que os estudantes adquiram na escola as virtudes<br />fundamentais para a cidadania, não se segue que tenham qualquer interesse<br />em intervir na vida pública. As pessoas podem aprender a discutir ideias<br />14 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />racionalmente e aprender a importância da imparcialidade, mas nunca usar<br />essas virtudes na vida pública porque, pura e simplesmente, não vêem qualquer<br />interesse em participar na vida pública.<br />TEORIA LIBERAL DAS VIRTUDES<br />Questões de revisão<br />1. O que caracteriza a teoria liberal das virtudes? Explica e dá exemplos.<br />2. Quais são as críticas centrais à teoria liberal das virtudes?<br />Problemas<br />1. «A teoria liberal das virtudes é a única que apresenta condições necessárias<br />e suficientes para uma cidadania activa.» Concordas? Porquê?<br />2. Concordas com todas as críticas apresentadas à teoria liberal das virtudes?<br />Porquê?<br />3. Qual das teorias estudadas te parece mais plausível? Escreve um ensaio de<br />uma página.<br />LEITURAS<br />1. Teorias da cidadania<br />Na Atenas antiga a cidadania era vista sobretudo em termos de deveres.<br />Os cidadãos estavam legalmente obrigados a assumir à vez funções governativas<br />e a sacrificar parte da sua vida privada para o fazer. No mundo moderno,<br />contudo, a cidadania é mais vista como uma questão de direitos do que de<br />deveres. Os cidadãos têm o direito de participar na política, mas também<br />têm o direito de colocar os seus compromissos privados acima do envolvimento<br />político. […]<br />Chama-se muitas vezes «cidadania passiva» a esta concepção, por causa<br />da ênfase que dá aos direitos passivos e à ausência de deveres cívicos. Apesar<br />de ter ajudado a estabelecer um grau razoável de segurança, prosperidade e<br />liberdade para a maior parte dos membros das sociedades ocidentais, a maior<br />parte dos especialistas pensam que a aceitação passiva de direitos tem de ser<br />complementada com o exercício activo de responsabilidades e virtudes.<br />Contudo, os especialistas discordam quanto às virtudes que são mais importantes<br />e quanto ao melhor modo de as promover.<br />Os conservadores sublinham a virtude da independência. […] Argumentam<br />que o estado-providência promoveu a passividade e a dependência entre os<br />pobres. Para promover a cidadania, devemos reduzir os direitos sociais e<br />sublinhar a responsabilidade de ganhar a vida, que é a chave para o amorCapítulo<br />13 􀁹 A Filosofia na Cidade 15<br />próprio e para a aceitação social. Os críticos respondem que ao cortar os<br />benefícios sociais marginaliza ainda mais as classes mais baixas. […]<br />Quem defende a teoria da sociedade civil centra a atenção no modo como<br />aprendemos a ser cidadãos responsáveis. Esses especialistas defendem que é<br />nas organizações voluntárias da sociedade civil — igrejas, famílias, sindicatos,<br />associações étnicas, grupos de defesa do meio ambiente, associações de<br />bairro, grupos de apoio — que aprendemos as virtudes cívicas. Porque estes<br />grupos são voluntários, quem não está à altura das responsabilidades que a<br />participação nesses grupos implica enfrenta a desaprovação e não a punição<br />legal. Contudo, porque a desaprovação tem origem na família, amigos e<br />colegas, é muitas vezes um incentivo mais forte para agir de forma responsável<br />do que a punição de um estado impessoal.<br />A afirmação de que a sociedade civil é o berço da<br />virtude cívica é discutível. A família ensina a civilidade<br />e o autodomínio, mas também pode ser «uma<br />escola de despotismo» que ensina a dominância<br />masculina sobre as mulheres. Analogamente, as<br />igrejas ensinam muitas vezes a deferência para com<br />a autoridade e a intolerância relativamente a outras<br />fés; os grupos étnicos ensinam preconceitos contra<br />outras raças, e assim por diante.<br />Quem defende a teoria liberal das virtudes sublinha<br />a importância da capacidade dos cidadãos para<br />se entregarem ao discurso público. Isto não quer<br />simplesmente dizer que cada qual deve dar a conhecer<br />o que pensa. Envolve também a virtude da<br />«razoabilidade pública». Os cidadãos têm de dar razões a favor das suas<br />exigências políticas, e não apenas afirmar as suas preferências e fazer ameaças.<br />Além disso, estas razões têm de ser «públicas», no sentido de terem o<br />poder para persuadir outras pessoas que tenham fés e nacionalidades diferentes.<br />Não basta invocar a escritura e a tradição; exige-se um esforço consciencioso<br />para distinguir as crenças que são matéria de fé privada de questões<br />que são susceptíveis de defesa pública.<br />Onde aprendemos esta virtude? Os defensores da teoria liberal das virtudes<br />sugerem muitas vezes que as escolas deviam ensinar as crianças a distanciar-<br />se das suas tradições culturais quando se entregam ao discurso público e<br />a ter em consideração outros pontos de vista. Contudo, os tradicionalistas<br />objectam que isto encoraja as crianças a pôr em causa a autoridade dos pais<br />ou da religião na vida privada. Os grupos que se apoiam na aceitação acrítica<br />da tradição e da autoridade ficam ameaçados pelas atitudes abertas e pluralistas<br />que a educação liberal encoraja. Por isso, alguns grupos religiosos<br />encaram a educação liberal obrigatória como um acto de intolerância em<br />relação a eles, ainda que seja feito para ensinar a virtude da tolerância.<br />
Filosofia na cidade
Filosofia na cidade
Filosofia na cidade
Filosofia na cidade
Filosofia na cidade
Filosofia na cidade
Filosofia na cidade
Filosofia na cidade
Filosofia na cidade
Filosofia na cidade
Filosofia na cidade

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

ÉTica e cidadania Profº Gilberto de Jesus
ÉTica e cidadania Profº Gilberto de JesusÉTica e cidadania Profº Gilberto de Jesus
ÉTica e cidadania Profº Gilberto de JesusGilberto de Jesus
 
Etica cidadania- direitos-humanos
Etica cidadania- direitos-humanosEtica cidadania- direitos-humanos
Etica cidadania- direitos-humanosSonia Souza
 
Sociologia atitudes de cidadania
Sociologia   atitudes de cidadaniaSociologia   atitudes de cidadania
Sociologia atitudes de cidadaniaGustavo Soares
 
Aula 1 cidadania
Aula 1   cidadaniaAula 1   cidadania
Aula 1 cidadaniaRASC EAD
 
Trabalho de sociologia sobre cidadania
Trabalho de sociologia sobre cidadaniaTrabalho de sociologia sobre cidadania
Trabalho de sociologia sobre cidadaniaDayse Ferreira
 
001 Ética em Jornalismo
001 Ética em Jornalismo001 Ética em Jornalismo
001 Ética em JornalismoRicardo Americo
 
Constr do social ii
Constr do social iiConstr do social ii
Constr do social iicattonia
 
Democracia & cidadania
Democracia & cidadaniaDemocracia & cidadania
Democracia & cidadaniaAlberto Rocha
 
Atitudes de cidadania
Atitudes de cidadaniaAtitudes de cidadania
Atitudes de cidadaniaAlfredo Rocha
 
Cp 1 liberdade e responsablidade democráticas
Cp 1   liberdade e responsablidade democráticasCp 1   liberdade e responsablidade democráticas
Cp 1 liberdade e responsablidade democráticasAdelino Carlos & Vieira
 
Reflexões e perspectivas sobre trabalho e cidadania
Reflexões e perspectivas sobre trabalho e cidadaniaReflexões e perspectivas sobre trabalho e cidadania
Reflexões e perspectivas sobre trabalho e cidadaniaAlvaro Gomes
 
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA CIDADANIA E DEMOCRACIA
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA  CIDADANIA E DEMOCRACIAHISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA  CIDADANIA E DEMOCRACIA
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA CIDADANIA E DEMOCRACIAAllan Vieira
 
Sociologia direitosa humanos e cidadania
Sociologia   direitosa humanos e cidadaniaSociologia   direitosa humanos e cidadania
Sociologia direitosa humanos e cidadaniaGustavo Soares
 
Sociologia Como exercer a Cidadania
Sociologia   Como exercer a CidadaniaSociologia   Como exercer a Cidadania
Sociologia Como exercer a CidadaniaEdenilson Morais
 
A fundamentalidade dos direitos sociais (cf88)
 A fundamentalidade dos direitos sociais (cf88) A fundamentalidade dos direitos sociais (cf88)
A fundamentalidade dos direitos sociais (cf88)IeadamArmandoMendes
 

Mais procurados (20)

ÉTica e cidadania Profº Gilberto de Jesus
ÉTica e cidadania Profº Gilberto de JesusÉTica e cidadania Profº Gilberto de Jesus
ÉTica e cidadania Profº Gilberto de Jesus
 
Etica cidadania- direitos-humanos
Etica cidadania- direitos-humanosEtica cidadania- direitos-humanos
Etica cidadania- direitos-humanos
 
Sociologia atitudes de cidadania
Sociologia   atitudes de cidadaniaSociologia   atitudes de cidadania
Sociologia atitudes de cidadania
 
Aula 1 cidadania
Aula 1   cidadaniaAula 1   cidadania
Aula 1 cidadania
 
Trabalho de sociologia sobre cidadania
Trabalho de sociologia sobre cidadaniaTrabalho de sociologia sobre cidadania
Trabalho de sociologia sobre cidadania
 
001 Ética em Jornalismo
001 Ética em Jornalismo001 Ética em Jornalismo
001 Ética em Jornalismo
 
Constr do social ii
Constr do social iiConstr do social ii
Constr do social ii
 
Democracia & cidadania
Democracia & cidadaniaDemocracia & cidadania
Democracia & cidadania
 
Cidadania
CidadaniaCidadania
Cidadania
 
A Cidadania
A CidadaniaA Cidadania
A Cidadania
 
Atitudes de cidadania
Atitudes de cidadaniaAtitudes de cidadania
Atitudes de cidadania
 
Cp 1 liberdade e responsablidade democráticas
Cp 1   liberdade e responsablidade democráticasCp 1   liberdade e responsablidade democráticas
Cp 1 liberdade e responsablidade democráticas
 
Reflexões e perspectivas sobre trabalho e cidadania
Reflexões e perspectivas sobre trabalho e cidadaniaReflexões e perspectivas sobre trabalho e cidadania
Reflexões e perspectivas sobre trabalho e cidadania
 
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA CIDADANIA E DEMOCRACIA
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA  CIDADANIA E DEMOCRACIAHISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA  CIDADANIA E DEMOCRACIA
HISTÓRIA DA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA CIDADANIA E DEMOCRACIA
 
Sociologia direitosa humanos e cidadania
Sociologia   direitosa humanos e cidadaniaSociologia   direitosa humanos e cidadania
Sociologia direitosa humanos e cidadania
 
Etica e cidadania
Etica e cidadaniaEtica e cidadania
Etica e cidadania
 
Sociologia Como exercer a Cidadania
Sociologia   Como exercer a CidadaniaSociologia   Como exercer a Cidadania
Sociologia Como exercer a Cidadania
 
A fundamentalidade dos direitos sociais (cf88)
 A fundamentalidade dos direitos sociais (cf88) A fundamentalidade dos direitos sociais (cf88)
A fundamentalidade dos direitos sociais (cf88)
 
Participação política, direitos e democracia
Participação política, direitos e democraciaParticipação política, direitos e democracia
Participação política, direitos e democracia
 
Palestra Globalização e Cidadania
Palestra Globalização e CidadaniaPalestra Globalização e Cidadania
Palestra Globalização e Cidadania
 

Destaque

Destaque (8)

FARINACEOS
FARINACEOSFARINACEOS
FARINACEOS
 
Filosofia - definição
Filosofia - definiçãoFilosofia - definição
Filosofia - definição
 
Argumentos e Falácias
Argumentos e FaláciasArgumentos e Falácias
Argumentos e Falácias
 
Trabalho de Filosofia : A Cidadania
Trabalho de Filosofia : A CidadaniaTrabalho de Filosofia : A Cidadania
Trabalho de Filosofia : A Cidadania
 
Cidadania
CidadaniaCidadania
Cidadania
 
Cidadania
CidadaniaCidadania
Cidadania
 
Direitos e deveres
Direitos e deveresDireitos e deveres
Direitos e deveres
 
Aula Cidadania
Aula CidadaniaAula Cidadania
Aula Cidadania
 

Semelhante a Filosofia na cidade

[NITRO] FAQ - Direito e Humanidades - Cidadania.pdf
[NITRO] FAQ -  Direito e Humanidades - Cidadania.pdf[NITRO] FAQ -  Direito e Humanidades - Cidadania.pdf
[NITRO] FAQ - Direito e Humanidades - Cidadania.pdfBrunoCosta364836
 
1ª Série_democracia contemporãnea aula 32.pptx
1ª Série_democracia contemporãnea aula 32.pptx1ª Série_democracia contemporãnea aula 32.pptx
1ª Série_democracia contemporãnea aula 32.pptxCelimaraTiski
 
Pva curso de formação política
Pva   curso de formação políticaPva   curso de formação política
Pva curso de formação políticaLarapernambuco
 
DEMOCRACIA, DIREITOS HUAMANOS E CIDADANIA - 2º - 3º PERÍODO.pptx
DEMOCRACIA, DIREITOS HUAMANOS E CIDADANIA - 2º - 3º PERÍODO.pptxDEMOCRACIA, DIREITOS HUAMANOS E CIDADANIA - 2º - 3º PERÍODO.pptx
DEMOCRACIA, DIREITOS HUAMANOS E CIDADANIA - 2º - 3º PERÍODO.pptxAnisioDiogo
 
Pilulas Democráticas Apresentação
Pilulas Democráticas ApresentaçãoPilulas Democráticas Apresentação
Pilulas Democráticas Apresentaçãoaugustodefranco .
 
20170623 DW Debate: Cidadania, Governação e Eleições: Desafios e Perspectiva.
20170623 DW Debate: Cidadania, Governação e Eleições: Desafios e Perspectiva.20170623 DW Debate: Cidadania, Governação e Eleições: Desafios e Perspectiva.
20170623 DW Debate: Cidadania, Governação e Eleições: Desafios e Perspectiva.Development Workshop Angola
 
política filosofia
política filosofiapolítica filosofia
política filosofiaLidia Araujo
 
Democracia em Crise? - Nicholas Merlone
Democracia em Crise? - Nicholas MerloneDemocracia em Crise? - Nicholas Merlone
Democracia em Crise? - Nicholas MerloneNicholas Merlone
 
Cidadania e-democracia
Cidadania e-democraciaCidadania e-democracia
Cidadania e-democraciaSilvania souza
 
Manipulacao da midia. marilene chaui
Manipulacao da midia. marilene chauiManipulacao da midia. marilene chaui
Manipulacao da midia. marilene chauiVinícius Cordeiro
 
2polticasocialepolticaspblicas 100918164449-phpapp01
2polticasocialepolticaspblicas 100918164449-phpapp012polticasocialepolticaspblicas 100918164449-phpapp01
2polticasocialepolticaspblicas 100918164449-phpapp01patriciomode
 
política social e políticas públicas
política social e políticas públicaspolítica social e políticas públicas
política social e políticas públicasLeonardo Rocha
 
Cidadania e Empregabilidade .pdf
Cidadania e Empregabilidade .pdfCidadania e Empregabilidade .pdf
Cidadania e Empregabilidade .pdfJuditeBarbosa1
 

Semelhante a Filosofia na cidade (20)

[NITRO] FAQ - Direito e Humanidades - Cidadania.pdf
[NITRO] FAQ -  Direito e Humanidades - Cidadania.pdf[NITRO] FAQ -  Direito e Humanidades - Cidadania.pdf
[NITRO] FAQ - Direito e Humanidades - Cidadania.pdf
 
Conversas sobre política
Conversas sobre políticaConversas sobre política
Conversas sobre política
 
Marga conceitos de política
Marga conceitos de políticaMarga conceitos de política
Marga conceitos de política
 
1ª Série_democracia contemporãnea aula 32.pptx
1ª Série_democracia contemporãnea aula 32.pptx1ª Série_democracia contemporãnea aula 32.pptx
1ª Série_democracia contemporãnea aula 32.pptx
 
Pva curso de formação política
Pva   curso de formação políticaPva   curso de formação política
Pva curso de formação política
 
DEMOCRACIA, DIREITOS HUAMANOS E CIDADANIA - 2º - 3º PERÍODO.pptx
DEMOCRACIA, DIREITOS HUAMANOS E CIDADANIA - 2º - 3º PERÍODO.pptxDEMOCRACIA, DIREITOS HUAMANOS E CIDADANIA - 2º - 3º PERÍODO.pptx
DEMOCRACIA, DIREITOS HUAMANOS E CIDADANIA - 2º - 3º PERÍODO.pptx
 
Cidadania e ética - aula.ppt
Cidadania e ética - aula.pptCidadania e ética - aula.ppt
Cidadania e ética - aula.ppt
 
Questoes de filosofia enem2009 2013
Questoes de filosofia enem2009 2013Questoes de filosofia enem2009 2013
Questoes de filosofia enem2009 2013
 
Pilulas Democráticas Apresentação
Pilulas Democráticas ApresentaçãoPilulas Democráticas Apresentação
Pilulas Democráticas Apresentação
 
Sociologia
Sociologia Sociologia
Sociologia
 
Direitos humanos prova
Direitos humanos provaDireitos humanos prova
Direitos humanos prova
 
20170623 DW Debate: Cidadania, Governação e Eleições: Desafios e Perspectiva.
20170623 DW Debate: Cidadania, Governação e Eleições: Desafios e Perspectiva.20170623 DW Debate: Cidadania, Governação e Eleições: Desafios e Perspectiva.
20170623 DW Debate: Cidadania, Governação e Eleições: Desafios e Perspectiva.
 
política filosofia
política filosofiapolítica filosofia
política filosofia
 
Democracia em Crise? - Nicholas Merlone
Democracia em Crise? - Nicholas MerloneDemocracia em Crise? - Nicholas Merlone
Democracia em Crise? - Nicholas Merlone
 
Cidadania e-democracia
Cidadania e-democraciaCidadania e-democracia
Cidadania e-democracia
 
Estado e relações de poder
Estado e relações de poderEstado e relações de poder
Estado e relações de poder
 
Manipulacao da midia. marilene chaui
Manipulacao da midia. marilene chauiManipulacao da midia. marilene chaui
Manipulacao da midia. marilene chaui
 
2polticasocialepolticaspblicas 100918164449-phpapp01
2polticasocialepolticaspblicas 100918164449-phpapp012polticasocialepolticaspblicas 100918164449-phpapp01
2polticasocialepolticaspblicas 100918164449-phpapp01
 
política social e políticas públicas
política social e políticas públicaspolítica social e políticas públicas
política social e políticas públicas
 
Cidadania e Empregabilidade .pdf
Cidadania e Empregabilidade .pdfCidadania e Empregabilidade .pdf
Cidadania e Empregabilidade .pdf
 

Filosofia na cidade

  • 1. 1. A cidadania<br />Nesta secção esclarecemos a noção normativa de cidadania, a importância<br />da cidadania e a ligação entre cidadania activa e democracia deliberativa.<br />1.1. A noção normativa de cidadania<br />Em filosofia política usa-se a expressão «cidadania<br />» num sentido diferente do habitual:<br />Em contextos filosóficos, a cidadania refere-se<br />a um ideal normativo substancial de pertença e<br />participação numa comunidade política. Ser um<br />cidadão, neste sentido, é ser reconhecido como<br />um membro integral e igual da sociedade, com o<br />direito de participar no processo político. Como<br />tal, trata-se de um ideal distintamente democrático. As pessoas que são<br />governadas por ditaduras monárquicas ou militares são súbditos e não<br />cidadãos.<br />Will Kymlicka, «Cidadania», 1998<br />ÍNDICE DO CAPÍTULO<br />1. A cidadania<br />1.1. A noção normativa de cidadania<br />1.2. A importância da cidadania<br />1.3. Cidadania e democracia<br />deliberativa<br />2. Teorias da cidadania<br />2.1. Teoria dos direitos sociais<br />2.2. Teoria dos mercados<br />2.3. Teoria da sociedade civil<br />2.4. Teoria liberal das virtudes<br />Opção<br />2 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />Assim, nos países que não são democráticos a maior parte das pessoas são<br />apenas súbditos e não cidadãos. Isto acontece porque nesses países a maior<br />parte da população não é um «membro integral e igual da sociedade, com o<br />direito de participar no processo político» — nesses países, não há eleições<br />democráticas, nem há mais de um partido político, nem as pessoas se podem<br />organizar livremente para formar um partido político, nem podem dizer<br />livremente o que pensam do seu governo nos jornais, etc.<br />Esta noção de cidadania é normativa e não descritiva.<br />􀂄 Numa afirmação descritiva pretende-se fazer corresponder a afirmação<br />à realidade.<br />􀂄 Numa afirmação normativa pretende-se fazer corresponder a realidade<br />à afirmação.<br />Por exemplo, a afirmação «O João fugiu da Maria» é uma afirmação descritiva:<br />procura descrever a realidade. Mas a afirmação «O João não devia ter<br />fugido da Maria» é normativa: procura dizer o que o João devia ter feito e<br />não descrever o que ele fez.<br />A noção normativa de cidadania não procura reflectir o modo como as<br />pessoas usam o termo «cidadania». A noção normativa determina um ideal de<br />cidadania a que as sociedades devem obedecer. Por isso, apesar de na realidade<br />se chamar «cidadãos» às pessoas que vivem submetidas a ditaduras, não<br />se está a usar o termo no seu sentido filosófico. No seu sentido filosófico, só<br />podemos dizer que alguém é um cidadão se essa pessoa vive num país ou<br />comunidade que lhe dá todos os direitos políticos. Como afirma Kant, «A<br />capacidade de votar é um pré-requisito para se ser um cidadão».<br />􀀉 Glossário: Cidadão, normativo/descritivo.<br />A NOÇÃO NORMATIVA DE CIDADANIA<br />Questões de revisão<br />1. O que é um cidadão? Define e dá exemplos.<br />2. O que significa dizer que a noção filosófica de cidadania é normativa e<br />não descritiva?<br />Problema<br />1. Será que um adolescente de 16 anos é, em Portugal, um cidadão? Porquê?<br />Capítulo 13 􀁹 A Filosofia na Cidade 3<br />1.2. A importância da cidadania<br />A solidez dos regimes democráticos depende fortemente das atitudes dos<br />cidadãos e é por isso que a cidadania é importante:<br />[…] a saúde e estabilidade de uma democracia moderna não depende<br />apenas da justiça das suas instituições básicas mas também das qualidades<br />e atitudes dos seus cidadãos: por exemplo, do seu sentido de identidade, e<br />de como encaram formas potencialmente rivais de identidades nacionais,<br />regionais, étnicas ou religiosas; da sua capacidade para tolerar e trabalhar<br />com pessoas diferentes deles próprios; do<br />seu desejo de participar no processo político<br />com vista a promover o bem público e a responsabilizar<br />as autoridades políticas; da sua<br />prontidão para mostrar autodomínio e para<br />serem pessoalmente responsáveis nas suas<br />exigências económicas e nas suas escolhas<br />pessoais que afectam a sua saúde e o meio<br />ambiente. Sem cidadãos que tenham estas<br />qualidades, as democracias tornam-se difíceis<br />de governar, e até instáveis.<br />Will Kymlicka, Filosofia Política<br />Contemporânea, 2002, p. 285<br />Compreende-se melhor a importância da<br />cidadania tendo em conta as virtudes cívicas<br />que se exigem dos cidadãos. Segundo alguns<br />filósofos, essas virtudes são as seguintes:<br />1. Virtudes gerais: Coragem, obediência à<br />lei e lealdade.<br />2. Virtudes sociais: Autonomia e abertura<br />de espírito.<br />3. Virtudes económicas: Ética profissional, capacidade para esperar pela<br />recompensa, e adaptabilidade à mudança económica e tecnológica.<br />4. Virtudes políticas: Capacidade para discernir e respeitar os direitos<br />dos outros, boa-vontade para exigir apenas o que se pode pagar,<br />capacidade para avaliar a actuação dos governantes e boa-vontade<br />para se entregar à discussão pública.<br />Muitas destas virtudes são tão básicas que são necessárias em qualquer<br />regime político, incluindo as ditaduras. Por exemplo, numa situação de emergência<br />é necessária coragem para arriscar a nossa vida de modo a salvar vidas<br />A Cidade Abandonada, de Fernand<br />Khnopff (1858-1921). Uma democracia<br />sem cidadania activa é como uma cidade<br />abandonada: as suas infra-estruturas<br />podem ser da maior qualidade, mas não<br />passa de uma cidade-fantasma.<br />4 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />alheias. E é necessária lealdade porque caso contrário as pessoas estariam o<br />tempo todo a enganar-se umas às outras e a sociedade no seu todo desagregar-<br />se-ia. É necessária boa-vontade para exigir apenas o que se pode pagar;<br />caso contrário a economia de um país torna-se incontrolável: se exigimos<br />hospitais gratuitos mas ao mesmo tempo não queremos pagar impostos, o<br />estado entrará em bancarrota.<br />Mas uma democracia saudável exige dos seus cidadãos virtudes que<br />nenhum outro regime exige: a capacidade para avaliar a actuação dos governantes<br />e a boa-vontade para se entregar à discussão pública.<br />Avaliar a actuação dos governantes implica questionar a sua autoridade.<br />Assim, só porque um certo governante defende uma dada ideia ou decisão o<br />cidadão não deve acatar essa ideia ou decisão passivamente: deve avaliá-la<br />criticamente e procurar determinar se essa ideia ou decisão resiste à crítica<br />racional.<br />A boa-vontade para se entregar à discussão pública é uma virtude que<br />exige o domínio da distinção entre a manipulação e a persuasão racional.<br />Como vimos no Capítulo 3 (secção 2), manipular uma pessoa é procurar<br />influenciá-la impedindo-a de pensar livremente. Isto consegue-se recorrendo<br />a discursos muito floreados e falsamente eloquentes, a ameaças veladas, à<br />manipulação, ao apelo a medos e esperanças do auditório, etc. Na discussão<br />pública, o cidadão virtuoso não visa a manipulação, mas a persuasão racional.<br />Se todos os cidadãos de uma democracia visarem a manipulação, a discussão<br />racional será substituída pela negociação: num debate não ganham as ideias<br />e propostas mais razoáveis, mas as ideias e propostas de quem tem maior<br />poder negocial.<br />Assim, as virtudes necessárias para o discurso político racional incluem o<br />seguinte:<br />[…] a boa-vontade para ouvir seriamente uma série de perspectivas<br />que, dada a diversidade das sociedades liberais, irão incluir ideias que o<br />ouvinte necessariamente achará estranhas e até escandalosas. A virtude do<br />discurso político inclui igualmente a boa-vontade para apresentar as nossas<br />próprias perspectivas de forma inteligível e cândida como um ponto de<br />partida para uma política de persuasão e não de manipulação ou coerção.<br />William Galston, Propósitos Liberais, 1991, p. 227<br />A importância da cidadania torna-se assim clara: sem uma cidadania<br />forte, os governantes manipulam facilmente os cidadãos; os cidadãos que não<br />pertençam à maioria étnica, religiosa, cultural ou outra nunca serão ouvidos<br />com a atenção que merecem; as decisões não serão tomadas em função do<br />que é mais racional, mas unicamente em função de quem tem maior poder<br />negocial.<br />Capítulo 13 􀁹 A Filosofia na Cidade 5<br />􀀉 Glossário: Persuasão irracional, persuasão racional.<br />A IMPORTÂNCIA DA CIDADANIA<br />Questões de revisão<br />1. Por que razão é a cidadania importante?<br />2. Quais são as virtudes próprias da cidadania democrática?<br />3. Que virtudes que se exigem do discurso político racional?<br />Problemas<br />1. Define a noção de virtude cívica.<br />2. «Numa democracia, ainda que ideal, é tudo uma questão de negociação e<br />nada tem a ver com persuasão racional.» Concordas? Porquê?<br />1.3. Cidadania e democracia deliberativa<br />O que é uma democracia? A noção mais elaborada de democracia é complexa<br />e problemática e não é isso que vamos estudar. Mas convém ter pelo<br />menos uma noção básica de democracia:<br />􀂄 Uma democracia é um sistema de governação do povo, pelo povo<br />(democracia directa) ou pelos seus representantes (democracia representativa),<br />e para o povo.<br />Numa democracia directa são os próprios cidadãos que decidem todas as<br />matérias, reunidos em assembleias. A democracia da Grécia antiga era directa.<br />As democracias modernas são representativas: os cidadãos elegem os seus<br />representantes que, em sua representação, governam o país.<br />Uma democracia representativa tanto pode ser agregativa como deliberativa:<br />􀂄 Democracia agregativa: uma democracia centrada nas eleições, na<br />qual os cidadãos não participam nos processos de decisão.<br />􀂄 Democracia deliberativa: uma democracia centrada na discussão, na<br />qual, além de votar nas eleições, os cidadãos participam nos processos<br />de decisão.<br />Um país pode ser democrático no sentido agregativo sem ser democrático<br />no sentido deliberativo. Numa democracia agregativa a participação dos<br />cidadãos no processo de decisão política limita-se quase exclusivamente à<br />6 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />votação em eleições. Numa democracia deliberativa o cidadão não só vota<br />nas eleições como participa activamente na discussão pública que deve anteceder<br />as tomadas de decisões e as próprias eleições.<br />Numa democracia agregativa a generalidade das decisões são tomadas<br />pelos governantes sem nenhuma ou quase nenhuma discussão pública amplamente<br />participada; a discussão pública é institucionalmente possível, mas<br />raramente acontece na prática. Numa democracia deliberativa as decisões<br />são tomadas pelos governantes em função da discussão pública, amplamente<br />participada.<br />Por exemplo, imagine-se que o governo está a pensar construir um novo<br />aeroporto num dado local. Numa democracia deliberativa, uma parte substancial<br />dos cidadãos participam voluntariamente na discussão: informam-se<br />sobre as vantagens e desvantagens de construir o aeroporto naquele local e<br />naquele momento, procuram pensar em alternativas; e discutem o tema<br />publicamente nos jornais, na televisão e em debates locais e nacionais. Numa<br />democracia agregativa, só os próprios políticos e os comentadores dos jornais<br />discutem o tema; e o governo acaba por tomar uma decisão que não foi<br />influenciada por uma ampla discussão pública. O exercício activo da cidadania<br />e a democracia deliberativa andam a par; são duas faces da mesma moeda.<br />Não se deve confundir democracia deliberativa com democracia directa,<br />ou com formas de consulta directa da vontade dos cidadãos, como os referendos.<br />Um referendo não é uma discussão pública, apesar de poder ser<br />antecedido por uma discussão pública. Um referendo exprime unicamente a<br />vontade da maioria, que pode não ser a mais razoável. Ao invés, numa democracia<br />deliberativa o que está em causa é procurar o que é mais razoável<br />através da discussão aberta, pública e tão amplamente participada quanto<br />possível.<br />􀀉 Glossário: Democracia, democracia agregativa, democracia deliberativa.<br />CIDADANIA E DEMOCRACIA DELIBERATIVA<br />Questões de revisão<br />1. Quais são os elementos básicos da democracia?<br />2. Qual é a diferença entre uma democracia directa e uma democracia<br />representativa?<br />3. O que é uma democracia agregativa?<br />4. O que é uma democracia deliberativa?<br />Problema<br />1. Poderá uma democracia directa não ser uma democracia deliberativa?<br />Porquê?<br />Capítulo 13 􀁹 A Filosofia na Cidade 7<br />2. Teorias da cidadania<br />Como se pode organizar a sociedade de modo a estimular os cidadãos a<br />exercer a sua cidadania? Há várias teorias que respondem de forma diferente<br />a este problema. Contudo, vamos estudar apenas as seguintes:<br />1. A teoria dos direitos;<br />2. A teoria dos mercados;<br />3. A teoria da sociedade civil;<br />4. A teoria liberal das virtudes.<br />Todas estas teorias encaram a participação dos cidadãos na vida pública<br />como um valor instrumental e não como um valor intrínseco.<br />􀂄 Uma coisa tem valor intrínseco se tem valor por si.<br />􀂄 Uma coisa tem valor instrumental se tem valor em função de ser um<br />meio para alcançar o que tem valor por si.<br />Por exemplo, ter saúde tem valor intrínseco, dado que tem valor por si: é<br />algo que é bom em si. Mas ser vacinado é algo que só tem valor instrumental,<br />dado que não tem valor por si: só tem valor porque é um meio adequado para<br />algo que tem valor, que é a saúde.<br />Uma teoria que não vamos discutir é o republicanismo aristotélico, a que<br />por vezes se chama também humanismo cívico. Esta teoria inspira-se nas<br />ideias de cidadania da antiga Grécia, segundo as quais a vida pública tinha<br />valor em si, ao passo que a vida privada era totalmente ou quase totalmente<br />destituída de valor. Deste ponto de vista, o cidadão deve participar na vida<br />pública porque só aí encontra a realização total como ser humano.<br />Hoje em dia, não se encara a vida pública como um valor intrínseco, mas<br />antes como um valor instrumental. Isto significa que se aceita a importância<br />de participar na vida pública, mas apenas porque isso é necessário para<br />defender outros valores: a liberdade, a solidez da democracia, o bem-estar<br />de todos, etc. A vida privada é hoje reconhecida como um valor intrínseco,<br />ao contrário do que acontecia na antiga Grécia:<br />Há muitas razões para esta mudança histórica, incluindo a ascensão do<br />amor romântico e da família nuclear (e a sua ênfase na intimidade e na<br />privacidade); maior prosperidade (e portanto formas mais ricas de ócio e<br />consumo); o comprometimento cristão com a dignidade do trabalho (que<br />8 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />os gregos desprezavam); e uma antipatia cada vez maior à guerra (que os<br />gregos admiravam). Os gregos viam a esfera privada como uma esfera de<br />«privação» (esta é, na verdade, a origem da palavra «privada») e não lhe<br />davam grande valor (se acaso eles tinham qualquer conceito comparável<br />do «privado»). Mas para nós, os «modernos», a intimidade, o amor, o ócio,<br />o consumo e o trabalho são fonte de imensa satisfação.<br />Will Kymlicka, Filosofia Política Contemporânea, 2002, p. 298<br />􀀉 Glossário: Valor instrumental, valor intrínseco.<br />TEORIAS DA CIDADANIA<br />Questões de revisão<br />1. Qual é a diferença entre um valor instrumental e um valor intrínseco?<br />Define ambos e dá exemplos.<br />2. O que significa dizer que as teorias da cidadania que vamos estudar encaram<br />a participação na vida pública como um valor instrumental e não<br />como um valor intrínseco?<br />Problema<br />1. Será que uma teoria que defenda o valor intrínseco da participação na<br />vida pública pode ao mesmo tempo defender que tal participação tem<br />também um valor instrumental? Porquê?<br />2.1. Teoria dos direitos sociais<br />A teoria dos direitos sociais baseia-se na ideia de que a melhor maneira<br />de estimular os cidadãos a participar na vida pública é dar-lhes direitos, em<br />particular direitos sociais.<br />Podemos distinguir três tipos de direitos:<br />1. Direitos civis;<br />2. Direitos políticos;<br />3. Direitos sociais.<br />Os direitos civis dizem respeito às liberdades concedidas aos cidadãos (a<br />liberdade religiosa e a liberdade de expressão, por exemplo) e à igualdade de<br />todos os cidadãos perante a lei. A liberdade religiosa significa que qualquer<br />cidadão pode ter a religião que quiser. A liberdade de expressão significa que<br />qualquer cidadão pode exprimir livremente as opiniões que quiser. E a igualCapítulo<br />13 􀁹 A Filosofia na Cidade 9<br />dade de todos os cidadãos perante a lei significa que as pessoas têm de ser<br />tratadas exactamente da mesma maneira seja qual for a sua religião, sexo,<br />partido político, convicções filosóficas, etc.<br />Os direitos políticos dizem respeito ao direito de escolher os governantes,<br />formar partidos políticos, concorrer a eleições e tornar-se um governante.<br />Os direitos sociais dizem respeito à distribuição<br />de bens sociais como a educação, cuidados<br />médicos, reforma e fundo de desemprego. A ideia<br />destes direitos é dar a todos os cidadãos as condições<br />mínimas para uma vida condigna, independentemente<br />do poder económico das suas respectivas<br />famílias. Sem este tipo de direitos só os<br />cidadãos mais ricos poderão, por exemplo, tirar<br />um curso superior, pois os mais pobres precisam<br />de começar a trabalhar o mais cedo possível.<br />Segundo a teoria dos direitos, basta dar aos<br />cidadãos toda esta gama de direitos para que eles<br />participem activamente na vida política da sua<br />sociedade. Esta teoria enfrenta duas críticas<br />centrais.<br />A primeira crítica é a seguinte: Nas sociedades<br />democráticas actuais os direitos civis, políticos e<br />sociais foram alargados a todos os cidadãos. Em<br />consequência disso, a generalidade das pessoas<br />tem hoje o conforto, o tempo e o dinheiro para<br />poder participar na vida pública. Contudo, não o<br />faz. A maior parte da população das sociedades<br />democráticas actuais dá uma enorme importância<br />à sua vida privada e despreza a vida pública. Isto<br />parece mostrar que a teoria dos direitos está<br />errada: afinal, não basta dar amplos direitos aos<br />cidadãos para que eles passem a participar na vida<br />pública do país. A cidadania privada ou passiva a que a ampla concessão de<br />direitos deu lugar, por oposição a uma cidadania pública ou activa, parece<br />refutar a ideia de que basta dar direitos aos cidadãos para que eles participem<br />na vida política do país.<br />A segunda crítica declara que esta apatia dos cidadãos resulta de uma<br />ênfase exagerada nos direitos sociais, sem se exigir deveres em troca. O<br />cidadão habitua-se assim a ter direito à educação, ao fundo de desemprego,<br />à saúde quase gratuita ou inteiramente gratuita, etc., mas como nada lhe é<br />exigido em troca o cidadão não sente que tem deveres que correspondem aos<br />seus direitos. Em particular, não sente que tem a obrigação de participar na<br />Diversões Inocentes, de John William<br />Godward (1861-1922). Nas sociedades<br />contemporâneas, uma vida privada mais<br />rica, nomeadamente ao nível das diversões,<br />afastou o cidadão da cidadania.<br />10 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />vida pública da sua sociedade, deixando isso inteiramente entregue aos políticos<br />profissionais.<br />TEORIA DOS DIREITOS SOCIAIS<br />Questões de revisão<br />1. O que caracteriza a teoria dos direitos? Explica e dá exemplos.<br />2. Quais são as críticas centrais à teoria dos direitos?<br />Problema<br />1. «Ter direitos, nomeadamente sociais, é uma condição necessária, mas<br />não suficiente para uma cidadania activa.» Concordas? Porquê?<br />2. Concordas com as críticas apresentadas à teoria dos direitos? Porquê?<br />2.2. Teoria dos mercados<br />Os conservadores defendem que é necessário responsabilizar os cidadãos,<br />exigindo-lhes deveres sociais básicos que sejam paralelos aos seus direitos.<br />Um dos deveres sociais básicos de cada cidadão é a sua independência económica,<br />a capacidade para ganhar a sua vida, em vez de ficar inteiramente<br />dependente do fundo de desemprego e de outros mecanismos sociais de<br />protecção. A plena imersão da vida do cidadão nas forças dos mercados obriga<br />o cidadão a ser responsável, retirando-o da apatia em que a ampla concessão<br />de direitos sociais o deixou. O cidadão tem de compreender como funcionam<br />os mercados, tem de saber orientar-se por si para ganhar a vida e isso<br />implica ter uma palavra a dizer sobre a vida pública. Assim, os conservadores<br />defendem que são os mercados, com as suas regras de funcionamento, e não<br />os direitos sociais, que estimulam a cidadania activa.<br />Esta teoria enfrenta duas críticas centrais.<br />Uma das críticas à teoria dos mercados é que a cidadania não emerge<br />como que por magia da liberdade e autonomia económicas, tal como não<br />emerge como que por magia do simples facto de os cidadãos terem direitos<br />sociais. Pelo contrário, numa sociedade que dê muita ênfase aos aspectos<br />económicos o cidadão tende a ocupar-se exclusivamente do seu bem-estar<br />económico: da sua vida privada e não da vida pública.<br />Uma segunda crítica, mais forte, é que a aplicação da teoria dos mercados<br />não só não promove a participação dos cidadãos na vida pública, como<br />encoraja comportamentos que colidem com as virtudes necessárias para uma<br />cidadania responsável. Entre esses comportamentos contam-se a tentativa<br />sistemática de enganar os outros para obter o máximo lucro possível e uma<br />Capítulo 13 􀁹 A Filosofia na Cidade 11<br />actuação parcial, que atende unicamente aos seus próprios interesses económicos<br />e não ao que é justo. Quando há conflitos de interesses quase sempre<br />há diferenças de poder negocial, tendo umas pessoas mais poder económico,<br />político, intelectual ou social do que outras. Ora, a teoria dos mercados, ao<br />subordinar a vida pública ao modelo económico dos mercados, não só não<br />ajuda a cultivar a virtude da imparcialidade, da argumentação cuidada e<br />honesta, como estimula o subterfúgio, o aproveitamento das vantagens negociais<br />para seu próprio benefício, a manipulação, etc. A consequência disto é<br />que os debates públicos tornam-se negociações irracionais nas quais quem<br />tem mais poder acaba sempre por obter melhores resultados, à custa do que<br />seria justo e do que seria melhor para o maior número de pessoas.<br />TEORIA DOS MERCADOS<br />Questões de revisão<br />1. O que caracteriza a teoria dos mercados? Explica e dá exemplos.<br />2. Quais são as críticas centrais à teoria dos mercados?<br />Problemas<br />1. «Ter deveres económicos poderá ser uma condição necessária para uma<br />cidadania activa, mas não é uma condição suficiente.» Concordas? Porquê?<br />2. Concordas com as críticas apresentadas à teoria dos mercados? Porquê?<br />3. Qual das duas teorias estudadas te parece mais plausível? Porquê?<br />4. Serão as duas teorias estudadas compatíveis? Porquê?<br />2.3. Teoria da sociedade civil<br />Em vez de elegerem os mercados como o meio para estimular a cidadania<br />activa, os defensores da teoria da sociedade civil elegem as organizações<br />voluntárias da sociedade civil, como as igrejas, as famílias, as associações<br />étnicas, os grupos ecologistas, as organizações de caridade, etc. Do ponto de<br />vista dos defensores desta teoria, ao participar nestas associações o cidadão<br />aprende a cultivar as virtudes fundamentais sem as quais a cidadania activa<br />não é possível. O cidadão tem de saber trabalhar com os outros, tem de saber<br />discutir ideias alheias, determinar cursos de acção, escolher alternativas,<br />etc. O funcionamento de cada associação civil é, afinal, um modelo da sociedade<br />no seu todo. E por isso é uma espécie de «escola cívica», na qual o<br />cidadão interioriza as virtudes necessárias ao exercício da cidadania.<br />12 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />A crítica fundamental à teoria da sociedade civil é que diferentes associações<br />cultivam diferentes atitudes, e estas nem sempre são compatíveis com<br />as virtudes necessárias à cidadania.<br />Por exemplo, uma virtude fundamental da cidadania é a atitude crítica<br />perante as autoridades. Ora, muitas associações, nomeadamente religiosas,<br />não cultivam a atitude crítica perante as autoridades,<br />mas antes a deferência e a aceitação da autoridade.<br />Em si, nada há de errado nesta atitude, pois<br />pode fazer todo o sentido numa confissão religiosa.<br />Mas isto significa que numa confissão religiosa os<br />seus membros não só não estão a cultivar virtudes<br />importantes para a cidadania, como estão a cultivar<br />virtudes incompatíveis com a cidadania.<br />Não são apenas as associações religiosas que<br />cultivam atitudes incompatíveis com o exercício da<br />cidadania responsável. Pense-se noutro exemplo:<br />uma virtude fundamental da cidadania é o sentido<br />de imparcialidade, a procura do bem comum e não<br />apenas do nosso próprio benefício à custa dos<br />outros. Mas muitas associações da sociedade civil<br />cultivam o chamado princípio NIMBY, do inglês not<br />in my backyard: «No meu quintal, não». Assim,<br />quando é necessário fazer uma nova prisão, por<br />exemplo, ou uma incineradora, ou seja o que for<br />que representa um custo relativo para a comunidade<br />onde tal estrutura for construída, as associações<br />cívicas têm tendência para impossibilitar a discussão<br />racional, porque a sua atitude é unicamente a<br />de recusa rígida. Não se trata de argumentar que<br />não precisamos daquelas estruturas; trata-se apenas<br />de não querer aquelas estruturas ao pé da nossa<br />casa, apesar de ser evidente que essas estruturas<br />têm de ficar ao pé da casa de alguém. Assim, o tipo<br />de atitude cultivada pelas associações voluntárias<br />da sociedade civil é muitas vezes incompatível com<br />as virtudes da cidadania, que incluem a capacidade para avaliar uma situação<br />com imparcialidade, pensando no bem geral e não apenas no seu próprio<br />bem-estar.<br />TEORIA DA SOCIEDADE CIVIL<br />Questões de revisão<br />1. O que caracteriza a teoria da sociedade civil? Explica e dá exemplos.<br />Os Pilares da Sociedade, de George<br />Grosz (1893-1959). Poderão as associações<br />voluntárias ser o berço da cidadania?<br />Ao longo da história, têm sido precisamente<br />alguns dos «pilares da sociedade» que<br />mais severamente têm sido criticados.<br />Capítulo 13 􀁹 A Filosofia na Cidade 13<br />2. Qual é a crítica central à teoria da sociedade civil?<br />Problemas<br />1. «Ter uma sociedade civil forte não é uma condição suficiente para ter<br />uma cidadania participada, ainda que seja uma condição necessária.»<br />Concordas? Porquê?<br />2. Concordas com a crítica apresentada à teoria da sociedade civil? Porquê?<br />3. Qual das três teorias até agora estudadas te parece mais plausível? Porquê?<br />4. Serão as três teorias até agora estudadas compatíveis? Porquê?<br />2.4. Teoria liberal das virtudes<br />A teoria liberal das virtudes defende que a escola é o lugar próprio para<br />cultivar as virtudes fundamentais da cidadania. Segundo esta teoria, é no<br />sistema de ensino que os cidadãos devem cultivar as virtudes necessárias à<br />cidadania activa, nomeadamente a atitude crítica perante as autoridades e a<br />razoabilidade ou imparcialidade racional, que permite encetar discussões<br />racionais de ideias.<br />Esta perspectiva enfrenta três críticas centrais.<br />Em primeiro lugar, nem sempre a escola promove o sentido crítico perante<br />as autoridades. Muitas vezes, acontece precisamente o oposto: o estudante<br />habitua-se unicamente a decorar ou a compreender o que lhe é ensinado,<br />encarando o professor e o manual escolar como autoridades que não se<br />podem colocar em causa. Portanto, a teoria liberal das virtudes é incompatível<br />com muitos sistemas de ensino, nomeadamente alguns tipos de ensino<br />religioso.<br />Em segundo lugar, se os sistemas de ensino forem realmente liberais, os<br />estudantes irão aplicar o sentido crítico adquirido na escola a outros aspectos<br />da sua vida. E isso pode ser inaceitável para certos grupos sociais, religiosos<br />ou étnicos. Por exemplo, se um estudante fundamentalista cristão entrar<br />para uma escola na qual se criticam todas as ideias abertamente, é muito<br />provável que comece a perguntar se a ideia de que a vida é sagrada é racionalmente<br />defensável, ainda que seja entendida metaforicamente. E isso<br />poderá colocar o estudante em conflito com a comunidade religiosa a que<br />pertence, o que é inaceitável para quem defende o respeito absoluto de<br />todas as tradições religiosas, sociais, culturais, etc.<br />Em terceiro lugar, mesmo que os estudantes adquiram na escola as virtudes<br />fundamentais para a cidadania, não se segue que tenham qualquer interesse<br />em intervir na vida pública. As pessoas podem aprender a discutir ideias<br />14 Desafios e Horizontes da Filosofia 􀁹 Parte 5<br />racionalmente e aprender a importância da imparcialidade, mas nunca usar<br />essas virtudes na vida pública porque, pura e simplesmente, não vêem qualquer<br />interesse em participar na vida pública.<br />TEORIA LIBERAL DAS VIRTUDES<br />Questões de revisão<br />1. O que caracteriza a teoria liberal das virtudes? Explica e dá exemplos.<br />2. Quais são as críticas centrais à teoria liberal das virtudes?<br />Problemas<br />1. «A teoria liberal das virtudes é a única que apresenta condições necessárias<br />e suficientes para uma cidadania activa.» Concordas? Porquê?<br />2. Concordas com todas as críticas apresentadas à teoria liberal das virtudes?<br />Porquê?<br />3. Qual das teorias estudadas te parece mais plausível? Escreve um ensaio de<br />uma página.<br />LEITURAS<br />1. Teorias da cidadania<br />Na Atenas antiga a cidadania era vista sobretudo em termos de deveres.<br />Os cidadãos estavam legalmente obrigados a assumir à vez funções governativas<br />e a sacrificar parte da sua vida privada para o fazer. No mundo moderno,<br />contudo, a cidadania é mais vista como uma questão de direitos do que de<br />deveres. Os cidadãos têm o direito de participar na política, mas também<br />têm o direito de colocar os seus compromissos privados acima do envolvimento<br />político. […]<br />Chama-se muitas vezes «cidadania passiva» a esta concepção, por causa<br />da ênfase que dá aos direitos passivos e à ausência de deveres cívicos. Apesar<br />de ter ajudado a estabelecer um grau razoável de segurança, prosperidade e<br />liberdade para a maior parte dos membros das sociedades ocidentais, a maior<br />parte dos especialistas pensam que a aceitação passiva de direitos tem de ser<br />complementada com o exercício activo de responsabilidades e virtudes.<br />Contudo, os especialistas discordam quanto às virtudes que são mais importantes<br />e quanto ao melhor modo de as promover.<br />Os conservadores sublinham a virtude da independência. […] Argumentam<br />que o estado-providência promoveu a passividade e a dependência entre os<br />pobres. Para promover a cidadania, devemos reduzir os direitos sociais e<br />sublinhar a responsabilidade de ganhar a vida, que é a chave para o amorCapítulo<br />13 􀁹 A Filosofia na Cidade 15<br />próprio e para a aceitação social. Os críticos respondem que ao cortar os<br />benefícios sociais marginaliza ainda mais as classes mais baixas. […]<br />Quem defende a teoria da sociedade civil centra a atenção no modo como<br />aprendemos a ser cidadãos responsáveis. Esses especialistas defendem que é<br />nas organizações voluntárias da sociedade civil — igrejas, famílias, sindicatos,<br />associações étnicas, grupos de defesa do meio ambiente, associações de<br />bairro, grupos de apoio — que aprendemos as virtudes cívicas. Porque estes<br />grupos são voluntários, quem não está à altura das responsabilidades que a<br />participação nesses grupos implica enfrenta a desaprovação e não a punição<br />legal. Contudo, porque a desaprovação tem origem na família, amigos e<br />colegas, é muitas vezes um incentivo mais forte para agir de forma responsável<br />do que a punição de um estado impessoal.<br />A afirmação de que a sociedade civil é o berço da<br />virtude cívica é discutível. A família ensina a civilidade<br />e o autodomínio, mas também pode ser «uma<br />escola de despotismo» que ensina a dominância<br />masculina sobre as mulheres. Analogamente, as<br />igrejas ensinam muitas vezes a deferência para com<br />a autoridade e a intolerância relativamente a outras<br />fés; os grupos étnicos ensinam preconceitos contra<br />outras raças, e assim por diante.<br />Quem defende a teoria liberal das virtudes sublinha<br />a importância da capacidade dos cidadãos para<br />se entregarem ao discurso público. Isto não quer<br />simplesmente dizer que cada qual deve dar a conhecer<br />o que pensa. Envolve também a virtude da<br />«razoabilidade pública». Os cidadãos têm de dar razões a favor das suas<br />exigências políticas, e não apenas afirmar as suas preferências e fazer ameaças.<br />Além disso, estas razões têm de ser «públicas», no sentido de terem o<br />poder para persuadir outras pessoas que tenham fés e nacionalidades diferentes.<br />Não basta invocar a escritura e a tradição; exige-se um esforço consciencioso<br />para distinguir as crenças que são matéria de fé privada de questões<br />que são susceptíveis de defesa pública.<br />Onde aprendemos esta virtude? Os defensores da teoria liberal das virtudes<br />sugerem muitas vezes que as escolas deviam ensinar as crianças a distanciar-<br />se das suas tradições culturais quando se entregam ao discurso público e<br />a ter em consideração outros pontos de vista. Contudo, os tradicionalistas<br />objectam que isto encoraja as crianças a pôr em causa a autoridade dos pais<br />ou da religião na vida privada. Os grupos que se apoiam na aceitação acrítica<br />da tradição e da autoridade ficam ameaçados pelas atitudes abertas e pluralistas<br />que a educação liberal encoraja. Por isso, alguns grupos religiosos<br />encaram a educação liberal obrigatória como um acto de intolerância em<br />relação a eles, ainda que seja feito para ensinar a virtude da tolerância.<br />