Este documento discute várias obras literárias importantes que foram escritas na prisão. Em três frases:
1) Alguns dos livros mais influentes da Bíblia, como as epístolas de São Paulo e o Apocalipse, foram escritos na prisão por seus autores.
2) O filósofo romano Boécio escreveu seu influente livro A Consolação da Filosofia enquanto estava preso, aguardando execução.
3) O Marquês de Sade escreveu suas obras literárias mais controversas e influentes
Sociologia Contemporânea - Uma Abordagem dos principais autores
A literatura na cadeia
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38.000 toques (incluindo citações comentários e ensaios feitos por fontes
entrevistadas)
A literatura na cadeia
- Não dá para falar em literatura de cadeia, não existe um gênero literatura
carcerária – mas dá para falar em literatura feita na cadeia, em escritores
que escreveram no cárcere, e isso em todas as épocas - explica para
Metáfora o professor Ottaviano de Fiore, que se aposentou na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo e foi secretário Nacional do Livro.
Segundo De Fiore, a quantidade e a qualidade da literatura produzida nas
cadeias aumenta nos períodos em que intelectuais e escritores são
encarcerados, como acontece com as ditaduras, que reprimem os opositores
de consciência.
- Uma situação específica dos livros escritos na cadeia é que neles o autor
também é personagem, de uma certa forma, ele universaliza sua condição,
como neste verso do escritor francês Jean Genet, que era ladrão e passou
boa parte da vida na cadeia: “Somos todos prisioneiros, condenados a uma
reclusão solitária no interior de nossa própria pele.”
De Fiore lembra que existe até um famoso prêmio literário inglês para
obras escritas por detentos. Ele é dado pela Fundação Arthur Koestler,
intelectual judeu húngaro-britânico do tempo da Guerra Civil Espanhola e
da Guerra Fria que também escreveu quando esteve preso e depois retomou
a experiência em livros de memórias.Com raras exceções, os livros desse
tipo de premiação, em geral tratando do cotidiano das prisões, não chegam
a se destacar literariamente e não chegam ao Brasil. Por aqui também
existem concursos de literatura produzida em prisões, com alto valor
terapêutico segundo os organizadores, mas baixa repercussão na sociedade
e nas editoras.
A seguir, comentamosalgumas obras que ao longo da história foram
escritas atrás das grades
1 – Livros da Bíblia
O professor de filosofia Domingos Zamagna acha que alguns dos mais
importantes livros escritos na cadeia estão na Bíblia. Ele cita São Paulo (5-
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67), intelectual judeu que viveu na região de Tarso (atual sul da Turquia) e
foi levado preso para Roma e executado por pregar o cristianismo, religião
a que se convertera, apesar de ter formação rabínica. “Paulo foi o grande
divulgador do cristianismo através de suas inúmeras viagens e depois de
suas cartas, as famosas epístolas”. Na cadeia escreveu as epístolas aos
Colossenses, Efésios, Filipenses e a carta a Fílemon, que, junto com outras
cartas foram incorporadas ao Novo Testamento da Bíblia. Segundo explica
o professor Zamagna, outro importante livro da Bíblia, oApocalipse,
também foi escrito na prisão, pelo evangelista São João, que viveu entre os
anos 10 e 103. O Apocalipse foi escrito numa prisão da ilha de Patnos, na
antiga Armênia e atual Turquia, para onde tinha sido levado.
CITAÇÕES
“Pois para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro. Mas se eu ainda
continuar vivendo, poderei fazer algum trabalho útil. Por isso é que não sei
bem o que escolher. Fico na indecisão: meu desejo é partir dessa vida e
estar com Cristo, e isso é muito melhor. No entanto, por causa de vocês, é
necessário que eu continue a viver.”
Carta aosFilipenses, tradução Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin,
Sociedade Bíblica Católica Internacional, Edições Paulinas, 1990
“Vi, então, uma Besta que subia do mar. Tinha dez chifres e sete cabeças.
Em cima dos chifres havia dez diademas, e nomes blasfemos sobre as
cabeças. A Besta que eu vi parecia uma pantera. Os pés eram de urso, e a
boca era de leão. O Dragão entregou para a Besta o seu poder, o seu trono e
uma grande autoridade. Uma das cabeças da Besta parecia ferida de morte,
mas a ferida mortal foi curada. A terra inteira se encheu de admiração e
seguiu a Besta, e adorou o Dragão por ter entregue a autoridade à Besta.”
Apocalipse, tradução Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin, Sociedade
Bíblica Católica Internacional, Edições Paulinas, 1990
2 – A consolação da filosofia, de Boécio
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O filósofo romano Boécio (480-525) também escreveu na cadeia um livro
importante, A consolação da filosofia, que compôs quando já se sabia
sentenciado à morte e depois de ter sido torturado na prisão. Alto
funcionário da corte de Roma sob o reinado do godo Teodorico, o Grande,
Boecio caiu em desgraça e no tempo que lhe restou de vida não buscou se
consolar com a religião, mas com a filosofia, que ele personifica como uma
bela mulher com a qual dialoga. Para Boecio, deus é a suma verdade, que
não nos abandona e que nos proporciona os dons da inteligência, do bem e
da beleza...
- É um livro de sabedoria - explica o professor de filosofia Filipe Rangel
Celeti. –Boécio reflete sobre a vida e sobre como a sorte (Fortuna) pode
tirar tudo o que temos. Percebe claramente que o que levamos da vida não
pode ser medido em bens materiais. Como a deusa Fortuna gira a sua roda,
um dia estamos por cima, outro, por baixo. Tudo pode acontecer na vida,
estamos sujeitos ao infortúnio. Mas há algo que a Fortuna não pode nos
tirar: o conhecimento.
CITAÇÃO
“Aquilo que sem sombra de dúvida todas as coisas procuram, e, como
havíamos concluído que é o bem, temos de reconhecer que o fim de todas
as coisas é o bem.”
A consolação da filosofia (ver tradução da Martins Fontes)
3 – Um nobre abandonado e um poeta malfeitor
Jediel Gonçalves, pesquisador de literatura francesa do Centre
Interdisciplinaire d’Étude des Littératures (CIELAM), da Université de
Provence Aix-Marseille, explicou, numa entrevista por email à Metáfora
que dois importantes autores franceses do fim da Idade Média merecem ser
citados por ter escrito na cadeia.
- O primeiro é grande poeta François Villon (1431-1463), que tem fama de
ter sido aventureiro, grande encrenqueiro e ter se envolvido com mulheres,
roubo de cofres de jóias, assassinato e outras aventuras nos ambientes
universitários, eclesiásticos e cortesãos de uma França ainda feudal. Sua
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vida é quase lendária, pois só se conhecem citações a respeito dele em
processos judiciais com testemunhos e depoimentos contraditórios.
O fato é que a linguagem mais fácil das ruas, das praças, das feiras e até
das masmorras está nos seus poemas, lidos com interesse e prazer até nos
nossos dias. Seus inspirados poemas foram elogiados por Ezra Pound
devido a sua forma e melodia e até hoje são recitados pelas crianças nas
escolas de língua francesa, que naturalmente excluem os de temática mais
“pesada”. – Depois de um assalto ao College de Navarre, Villon escreveu
um “poema-testemunho”, intitulado Petit testament, pedindo desculpas e
justificando seus atos por razões sentimentais. Ele foi encarcerado várias
vezes, inclusive por roubo e assassinato.
É provável que os poemas Épitre à ses amis e Débat du coeur e du corps
tenham sido escritos na prisão de Meung-sur-Loire por causa de uma
encrenca cortesã. Preso em Paris, escreveu Quatrain e Ballade des pendus
(Balada dos enforcados), obras em que o poeta se mostra sob domínio do
medo.
Já Charles d’Orleans (1394-1465), sobrinho do rei Carlos VI da França, foi
preso na batalha de Agincourt,entre França e Inglaterra, numa época ainda
feudal de guerras entre poderosas famílias. Ele ficou encarcerado em
Londres por 25 anos porque ninguém de sua família decidiu-se a pagar a
fiança exigida pelos ingleses, conta o pesquisador Gonçalves. Enquanto
esperava providências, Charles d’Orleans, por sua vez, decidiu escrever
poesias, En la forêt de Longue Attente(Na floresta da longa espera), que
são até hoje apreciadas. A longa estada na cadeia teve o mérito de eternizar
o poeta.
CITAÇÕES
Villon
Balada dos enforcados
Irmãos humanos que depois de nós viveis.
Não tenhais duro contra nós o coração.
Porquanto se de nós, pobres, vos condoeis.
Deus vos concederá mais cedo o seu perdão.
Aqui nos vedes pendurados, cinco, seis:
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Quanto à carne, por nós demais alimentada.
Temo-la há muito apodrecida e devorada,
E nós, os ossos, cinza e pó vamos virar.
De nossa desventura ninguém dê risada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!
(Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos, Poemas de François
Villon, São Paulo, Art, s/d)
Charles d’Orleans
Na floresta da Longa Espera
Cavalgando por inúmeros caminhos
Embarco, neste época atual,
Na viagem dos Desejantes.
Em frente se foram meus cavaleiros
A fim de preparar repouso
Na cidade da Destinada;
E para meu coração e eu, eles tomaram
O albergue dos Pensamentos.
Tradução Jediel Gonçalves, especial para revista Metáfora
4–Livros-escândalo do Marquês de Sade
Foi na prisão da Bastilha, em Paris, na França, que o marquês de Sade
(1740-1814) pôs no papel “a narrativa mais impura já escrita desde que o
mundo existe”, como salienta o próprio autor na introdução de Os 120 dias
de Sodoma. Esse e outros livros escritos depois no manicômio de
Charenton lhe valeriam o título de “patrono dos surrealistas”, pois
protagoniza uma literatura sem valores morais, ou com antivalores morais,
em que o ser humano é guiado por impulsos inconscientes de provocar dor
e morte.Em Os 120 dias, alguns poderosos da sociedade (como bispo,
político, militar, nobre dono de terras)pagam para ter encerradas num
castelo a seu dispor possoas com as quais praticam orgias muitas vezes
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excrementosas e sessões de tortura e morte que vão se repetindo
desesperadamente.
“Trata-se de uma obra interrogativa sobre os atrativos sexuais da fealdade”,
escreveu Simone de Beauvoir, autora de Devemos queimar Sade?Foi preso
mais por suas idéias do que por seus crimes, pois não matou nem mutilou
ninguém, ao contrário do que acontece em seu romance. O que pesou sobre
Sade foi a perseguição de sua sogra, que era ligada ao rei e ficou indignada
quando seu genro, Sade, passou a paquerar também a irmã de sua mulher,
a cunhada que então tinha 14 anos. A mulher de Sade, entretanto, fazia
vista grossa e continuou dando apoio ao marido. Consta que participava de
orgias com os criados por ele patrocinadas e que o ajudou a escrever Os120
dias na prisão, enviando-lhe manuais de tortura da Inquisição nas quais se
inspirou para cenas do livro. Com a tomada da Bastilha em 1789, Sade foi
transferido para outra cadeia e considerou que a obra, que escrevera num
rolo de papel com 12 metros, tinha sido perdida. Sem que ele e a família
soubessem, o rolo foi emparedado numa casa e só seria descoberto no fim
do século 19, sendo publicado em 1904.
A obra causou muito escândalo e foi proibida em quase todo o mundo ao
longo do século 20, só conseguindo plena liberação no final do século.
Inspirou o psiquiatra alemão Krafft-Ehbing, introdutor dos conceitos de
sadismo, masoquismo e fetichismo no comportamento sexual, e surrealistas
como o cineasta Luis Buñuel.Outros livros do marquês de Sade foram
escritos no hospício de Charenton, para o qual foi transferido depois da
Bastilha. É o caso de Justine, uma heroína masoquista que tenta fazer o
bem e sempre leva a pior, e Juliette, sua irmã do mal, que sempre prospera.
CITAÇÕES
Fantasmas
“Ser quimérico e vão, cujo nome derramou mais sangue na face da terra do
que jamais fará qualquer guerra política, por que não retornas ao nada de
onde a louca esperança dos homens e seu ridículo temor infelizmente
ousaram te arrancar? Quantos crimes seriam poupados na terra se
houvessem degolado o primeiro imbecil que ousou falar em ti! Vamos,
aparece se existes e não admitas que uma frágil criatura ouse te insultar,
afrontar, ultrajar como faço, renegando tuas maravilhas e rindo de tua
existência, feitor de pretensos milagres!”
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Fantasmas, tradução de Allan François e Contador Borges, in Diálogo
entre um padre e um moribundo e outras diatribes e blasfêmias, São Paulo,
editora Iluminuras)
Os 120 dias de Sodoma
“Embora o crime não possua o tipo de delicadeza encontrado na virtude,
não é ele sempre mais sublime? Não tem um caráter constante de beleza e
sublimidade que prevalece e sempre prevalecerá sobre os encantos
monótonos e efeminados da virtude? Quereis falar da utilidade de um ou de
outra? Será que nos cabe sondar as leis da natureza, ou decidir se, sendolhe o vício tão necessário quanto a virtude, ela talvez nos inspire de modo
igual um pendor para um ou para outra, em razão de suas necessidades
próprias?”
Os 120 dias de Sodoma, tradução de Alain François, Iluminuras, São Paulo,
2008.
CITAÇÕES DE SADE
. Eu quero explodir o Sol!
. Quando o ateísmo quiser mártires, que o diga, o meu sangue está pronto.
. As paixões humanas não passam dos meios que a natureza utiliza para
atingir os seus fins.
. Tudo é ótimo quando em excesso.
. Só me dirijo às pessoas capazes de me entender, e essas poderão ler-me
sem perigo.
. É sem qualquer terror que eu vejo a desunião das moléculas da minha
existência.
(Extraídas de cartas citadas no livro Vie du marquis de Sade de Gilbert
Lely)
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5 - Jean Genet: prisão vira poesia
A apologia do crime, feita de uma forma mais romântica e dita numa
linguagem que mistura palavrões com a solenidade dos textos religiosos
caracteriza a obra do escritor francês Jean Genet (1910-1986). Filho de
uma prostituta, de pai desconhecido, ele caiu no crime ainda na
adolescência e foi preso por ser um ladrão contumaz. Escreveu na cadeia
seu primeiro livro, o poema O condenado à morte, dedicado a um jovem
assassino e de fortes conotações homoeróticas, que revela um talento
singular e um uso inusitado da linguagem, em que palavrões e termos
litúrgicos se harmonizam. O poema o tornaria conhecido entre os
intelectuais. Também na cadeia ele escreveria romances como Diário de
um ladrão e Nossa senhora das flores, que chamariam atenção da
intelectualidade francesa para sua obra. Apesar de ter ficado amigo de
Sartre, Jean Cocteau, Michel Foucault, Igor Stravinski, Jacques Derrida,
nunca deixou de produzir uma literatura de revolta contra a sociedade. “A
sociedade, tal como vocês a constituem, eu a odeio. Eu sempre a odiei e
vomitei, desde meu primeiro sopro de vida. Sou filho de um orfanato e foi
na cadeia que aprendi a viver. Eu o sei, eu o testemunho: a ordem social só
se mantém ao preço de uma infernal maldição que aflige os seres, dentre os
quais os mais nulos, os mais vis, estão mais próximos de mim do que
qualquer burguês virtuoso e assegurado. Para sempre eu me fiz intérprete
dos dejetos humanos, dos resíduos que apodrecem nas cadeias, debaixo das
pontes, no fundo da fétida podridão das cidades”, comentou Genet numa
entrevista.
CITAÇÃO
Diário de um ladrão
" Do planeta Urânio, parece, a atmosfera seria tão pesada que os fetos são
rasteiros; os bichos se arrastam esmagados pelo peso dos gases. A esses
humilhados sempre sobre a barriga, eu me quero misturado. Se a
metempsicose me conceder uma nova moradia, escolho aquele planeta,
habito-o com os forçados da minha raça. Entre pavorosos répteis, vou à
procura de uma morte eterna, miserável, em trevas cujas as folhas são
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pretas, a água dos pântanos espessa e fria. O sono me será negado. Ao
contrário, cada vez mais lúcido, reconheço a imunda fraternidade dos
crocodilos sorridentes. " Diário de um Ladrão, Jean Genet.
Tradução de Jacqueline Laurence.
CITAÇÃO BOX COM ENTREVISTA EXCLUSIVA
TRADUTOR DE O CONDENADO À MORTE
O condenado à morte
(...)
Sonhemos junto, Amor, com algum rude amante
grande como o Universo,no corpo manchas sombrias.
Ele nos enrabará nus em tristes hospedarias
entre suas coxas de ouro, sobre seu ventre fumegante.
Um bofe deslumbrante, num arcanjo talhado
tesudo sobre um buquê de jasmins e rosas
tremulamente deposto por tuas mãos luminosas
sobre seu flanco augusto, por teu beijo perturbado.
Tristeza em minha boca! Amargor inchando,
Inchando este pobre coração! Os amores perfumados
Adeus, vão partir! Adeus, meus colhões amados!
Ó pica em brasa que corta meu suspiro brando!
COM
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O condenado à morte (tradução de Paulo Azevedo Chaves & Raimundo de
Moraes, Edição Virtual, Pernambuco, Brasil, 2011,
http://www.interpoetica.com/_livros/Poemas_%20Homoeroticos_%20Esco
lhidos.pdf)
Original francês
Le condamné à mort
(...)
Rêvons ensemble, Amour, a quelque dur amant
Grand comme l’Univers mais le corps taché d’ombres
Qui nous bouclera nus dans ces auberges sombres,
Entre ses cuisses d’or, sur son ventre fumant.
Un mac éblouissant taillé dans un archange
Bandant sur les bouquets d’oillets e de jasmins
Que porteront tremblant tes lumineuses mains
Sur son auguste flanc que ton baiser dérange.
Tristesse dans ma bouche! Amertume gonflant
Gonflant mon pauvre coeur! Mes amours parfumées
Adieu vont s’en aller! Adieu couilles aimées!
O sur ma voix coupée adieu chibre insolent!
(...)
Comentário do tradutor sobre a tradução
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MINHA VISÃO PESSOAL DE JEAN GENET E SUA OBRA
Paulo Azevedo Chaves, jornalista, poeta e escritor, colunista do Diário de
Pernambuco
Genet inverteu a ordem de valores religiosos e morais de seu tempo.Ele
sacralizou a abjeção e elevou à santidade os párias do submundo
homossexual que frequentou em Paris. Os termos mais chulos se inserem
em sua literatura numa linguagem lírica e de grande rigor formal. Ao se
apropriar de símbolos e rituais da Igreja para descrever a fauna humana
formada por prostitutas, travestis, cafetões, michês, ladrões, pederastas,
guardas sádicos de prisões imaginárias e vividas, ele sacraliza a abjeção e
ridiculariza os valores morais repressivos da sociedade francesa puritana
dos anos pré e pós segunda guerra mundial. Ele foi realmente “comediante
e mártir”, como o título do ensaio famoso de Sartre “São Jean Genet,
Comediante e Mártir”, mas sobretudo um revolucionário por sua postura
existencial e pelo sentido moralmente transgressor de seus textos.
O desafio de traduzir a poesia de Genet advém principalmente de
se conseguir ser fiel ao profuso imaginário barroco de sua narrativa,
expressa, paradoxalmente, numa linguagem quase clássica de rigor e
disciplina impecáveis. E sobretudo vencer o desafio de decifrar e encontrar
correspondentes em nosso vernáculo às gírias do submundo gay e da
marginalidade parisiense, usadas à exaustão em sua poesia, em seu teatro e
no caudaloso romance Nossa Senhora das Flores.
Genet viveu intensamente uma vida marginal e uma sexualidade
estigmatizada pela sociedade bem estabelecida, de rígidos padrões morais e
religiosos. Masoquista, ele se ofereceu ao sacrifício, foi preso, humilhado e
fez disso seu triunfo. Ladrão, condenado à prisão, Genet encontrou ali seus
personagens e temas mais constantes. Aliás, sua única experiência
filmográfica, um curtametragem chamado Un Chant d’Amour (1950),
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mostra o relacionamento amoroso entre prisioneiros e um guarda sádico e
voyeur, em imagens cruas e de profundo lirismo.
O homoerotismo é o leitmotiv da obra em prosa e versos de Jean
Genet. É uma obra contundente em seu permanente desafio ao status quo,
ao conformismo burguês, à linguagem estratificada do establishment
literário. Ele revoluciona a prosa e poesia de seu e nosso tempo com suas
imagens cruas de sexo homossexual, com permanente recurso aos termos
chulos e à gíria do submundo social em que se insere e de que se alimenta
enquanto escritor. Constituindo-se no transgressor mor da literatura
francesa do século XX, sua influência se mantém viva e alimenta a criação
literária de nosso próprio tempo. Ele nos ensina a cartilha do
inconformismo como seiva e inspiração para nossa própria vida em seu dia
a dia. Com efeito,é preciso romper as amarras das convenções que nos
aprisionam o coração e mente, navegar na vida e na literatura qual um
“barco ébrio”, como nos ensinou outro transgressor da poesia francesa no
final do século XIX , o iluminado Rimbaud.
O sentido da prisão em jean genet
Jediel Gonçalves
Jediel Gonçalves é pesquisador de literatura francesa do Centre
Interdisciplinaire d’Etude des Littératures (CIELAM), da Université de
Provence Aix-Marseille, em Marselha, na França
O ano é 1942, Jean Genet tem 32 anos. Está encarcerado na Prision de
laSanté, no XIV distrito de Paris, por oito meses, por ter sido flagrado
roubando livros. Já é sua décima primeira condenação por roubo: uma
dúzia de lenços na loja La Samaritaine; quatro garrafas de aperitivo num
bar-café em Brest; uma camisa e um pedaço de seda nos Magasins du
Louvre, no Bazar de l’Hôtel de Ville; um pedaço de linho branco no atelier
de um alfaiate em Paris, etc.
Genet não se incomodava com isso. Era um gatuno confesso. O roubo
prova sua dificuldade em integrar-se à sociedade. Porém, ele afirma ser um
ladrão sem muitos talentos, um total fracassado. Assim como o personagem
Mignon, ele se considerava “ladrão de nada, ladrão de livros, de cordas de
sinos, de crinas e de rabos de cavalos, de bicicletas, de cães de luxo”.
Longe de vangloriar-se, ele persiste nestes pequenos delitos – o que lhe
torna um frequentador assíduo das prisões.
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Por exemplo, no episódio da prisão iugoslava, narrado em Nossa Senhora
das flores, na cela onde o narrador se encontra encarcerado com outros
detentos, três ciganos fundam uma “escola de trombadinhas”. O exercício
atribuído por um deles era o de esvaziar os bolsos de um detento que
descansava, em seguida os encher novamente, sem acordar o companheiro
de cela. Quando é a sua vez de agir, o narrador desmaia de nervosismo,
cometendo uma gafe magistral durante a prova iniciática. Excluído do
grupo, o narrador não passa de um vagabundo aos olhos dos vagabundos,
de um miserável aos olhos dos miseráveis.
Para a literatura, a conclusão que se pode tirar é a de que, enquanto um
ladrão profissional transgride a ordem social, o ladrão sem talento – sem
habilidades para roubar – pode tornar-se “a consciência do roubo” e acabar
subvertendo a ordem, fora da qual ele encontra sozinho seu lugar. Mesmo
assim a experiência da prisão é importante ao ladrão sem talento. Ele é
condenado e sentenciado para ganhar reconhecimento. E, às vezes, para
ganhar prestígio, ele é capaz ir mais além: é sentenciado à prisão perpétua
com o intuito de assumir o julgamento e fazer deste último sua grande
glória. Ao tornar-se poeta, ele acusa a si mesmo em sua própria língua e
exige a condenação de sua própria raça. Desta vez, o julgamento se
transforma e se inverte. Acusar em seu próprio idioma, é acusar sua própria
língua que, por sua vez, é a língua de seu inimigo. Acusar em sua própria
língua significa inverter o processo contra seu inimigo; ganhando o
processo, ele poderá finalmente ser posto em liberdade.
Como Genet diz numa carta a uma amiga alemã, Ann Bloch, a prisão é
uma experiência salutar para ele, um porto seguro para uma experiência
iniciática, de natureza poética. É preciso isolar-se e dialogar consigo
mesmo a fim de conseguir bater asas para fora de si mesmo e ver o mundo,
“com mais objetividade, passividade, indiferença, enfim, com mais poesia
(...) As paredes da minha cela são transparentes”.
Ao confrontar o horror da humilhação e da degradação, a prisão coloca o
homem Genet diante de si próprio. A prisão estava presente no interior do
escritor antes que o mundo o trancafiasse dentro dela. Ele diz: “Acho que
eu carregava esta vida dentro de mim, até então secreta, bastasse eu ter
entrado em contato com ela para que, externamente, ela me fosse revelada
em sua realidade”.
A prisão já existia em seu interior sem o seu conhecimento. Genet a ama
feito um vício. Roubar livros para revendê-los, antes de começar a escrever
seus próprios livros, já é um ato simbólico que coloca em questão a poesia
como ato delituoso e subversivo. Na prisão, pouco tempo antes de começar
a escrever, Genet leu a obra À Sombra das raparigas em flores, de Marcel
Proust, que ele havia roubado em uma livraria. Esta leitura é, para ele, uma
revelação! Como um ladrão, ele vai “furtar” o maravilhoso texto
proustiano, para em seguida escrever “Nossa Senhora das Flores”.
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Na cela, ele não se incomoda do odor de fezes e de urina. Assim como
Proust, Genet se deixa conduzir pelos odores trazidos pela memória que o
surpreende. A prisão lhe faz lembrar os sanitários da infância, onde ele
sonhava penetrar, “lentamente como num sono ou num lago ou num seio
materno ou num gesto incestuoso”, os poderes noturnos do sonho,
enraizados ainda na infância. A prisão lhe é um lugar de reconexão com o
vital e com o seio materno; para ele, ela se torna materna e fecunda.
No movimento da obra, existe primeiramente um desejo de sair da prisão
que, no final de Nossa Senhora das Flores e O condenado à morte,
coincide com a total ruína do encarceramento. A grande questão que está
por detrás da pluma de Jean Genet pode ser definida assim: qual
experiência poética e qual trabalho a serem realizados na língua para se
conseguir escapar da prisão? Prisão é um termo que deve ser compreendido
no sentido próprio da palavra: prisões são locais onde a sociedade aprisiona
aqueles indivíduos que se desviaram da lei, os “fora-da-lei”. E, num certo
sentido para Genet, sair do universo da prisão implica declarar guerra à
própria língua, pressupor outra “poesia”, à sociedade inimiga. No entanto,
o termo prisão também pode ser conduzido a um sentido imaginário: uma
prisão imaginária, casa de detenção das ilusões construída no interior de si
mesmo, arquitetada na nossa própria língua, com o material do imaginário
e dos desejos mais íntimos, que nos controla e nos manipula o tempo todo
de maneira perversa. A guerra contra o inimigo para sair da prisão começa,
então, no imaginário da língua; nesta mesma língua onde cada um de nós
sonha, deseja e tem prazer.
Se Genet, com muito afinco, do começo ao fim de sua obra, busca assim
“sair da prisão”, é porque este desafio lhe é vital. Para um artista que se viu
morto, ou trancafiado numa espécie de prisão-túmulo, o desafio da poesia –
pela saída que ela mesma almeja e lhe proporciona – é um eterno reviver,
um tornar-se vivo cotidianamente. Por isso, sair da prisão significa também
acabar com os funerais e nascer vivo, mesmo que se tenha vivido morto
toda uma vida. A experiência poética de Genet, raciocinada como saída da
prisão, conduz à questão central da teatralidade e, por assim dizer, ao lugar
do teatro em sua obra. Na verdade, a prisão é “casa das ilusões” na obra
genetiana, a saída da prisão passa obrigatoriamente por um trabalho poético
sobre a teatralidade.
6 – Wilde: Culpa e autoanálise
“Apesar de ter a vida cercada pelo escândalo, Oscar Wilde (1854-1900)
produziu obras de uma inexpugnável inocência”, comentou Jorge Luis
Borges sobre os contos do mestre inglês, como O príncipe feliz e O
rouxinol e a rosa, obras de pungente lirismo. Em outras obras, esse autor de
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diálogos brilhantes usou argumentos mais pérfidos e maliciosos, como no
romance O retrato de Dorian Gray e na peça Salomé. Mas uma de suas
obras-primas, foi escrita na prisão, a carta a seu amante, lord Alfred
Douglas, publicada com o título de De profundis. Foi preso por acusação
do pai do próprio Alfred Douglas que o apontou como homossexual numa
época em que a homossexualidade era considerada crime na Inglaterra.
Escreveu a carta, em que faz sua autoanálise e desvenda sentimentos de
culpa, nos intervalos dos trabalhos forçados. Nos dois anos em que esteve
encarcerado, 1895 a 1897, escreveu ainda um clássico da literatura utópica
socialista, A alma do homem sob o socialismo, e o poema A balada do
cárcere de Reading. A estada na prisão abalou sua saúde e lhe encurtou a
vida.
CITAÇÃO
“Cansado das alturas, desci voluntariamente às profundezas em busca de
novas sensações. O que o paradoxo significava para mim no âmbito do
pensamento, a depravação passou a significar no âmbito das paixões. No
fim o desejo era como uma doença, uma loucura, ou ambas. Deixei de
pensar nos outros, desfrutava o prazer onde quer que o encontrasse e seguia
adiante. Esqueci que cada pequena ação cotidiana pode fazer ou desfazer
um caráter e que tudo aquilo que fazemos no segredo da alcova teremos
que confessá-lo um dia, gritando do alto dos telhados. Deixei de ser senhor
de mim mesmo.
De Profundis, Tradução de Júlia Tettamanzy, coleção L&PM Pocket, 2002
7 – Koestler, agonia e êxtase na prisão
Arthur Koestler (1905-1983), judeu húngaro e jornalista de esquerda, com
ligações com a União Soviética, alistou-se para combater as forças de
Franco na Guerra Civil Espanhola. Foi preso pelos franquistas em 1936 e
condenado à morte. Acabou libertado por interferência inglesa. O professor
Ottaviano de Fiore conta que ficou muito impressionado com o livro
“agoniante” escrito por Koestler na prisão e que foi publicado com o nome
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de Testamento espanhol. “A experiência também lhe serviu de base para
escrever Darkness at noon, o livro que o tornaria famoso”, conta De Fiore.
Sem nomear o país em que se passa a história, a obraé uma alegoria
ambientada durante os expurgos políticos promovidos por Stálin em 1938,
personificando a história de um revolucionário perseguido pelo regime que
ele mesmo tinha ajudado a criar. Koestler rompeu com o Partido
Comunista, sobreviveu à guerra, e passou a viver na Inglaterra, tendo se
naturalizado cidadão inglês. Escreveu romances que denunciavam os
desmandos e massacres de Stálin e por isso sofreu duras críticas da
esquerda da época, na figura de nomes como Jean-Paul Sartre e Marcel
Camus, que ainda fechavam os olhos para as atrocidades da desumana
máquina burocrática em que tinha se tornado a ex-URSS. Foi também
mestre na divulgação científica, autor de livros como Os sonâmbulos, que
faz uma história das ideias do homem sobre o universo. Escreveu também
sobre psicologia e foi três vezes candidato ao Prêmio Nobel. Em 1954,
escreveu o livro The invisible writing (não traduzido para o português) em
que retoma a memória de sua experiência na cadeia na época de Franco e
aprofunda a análise da sensação de experiência mística que o fato de se
saber condenado à morte o fez sentir. Suicidou-se em 1983 ao perceber que
seu mal de Alzheimer estava avançando.
8 – A Divina Comédia de Ezra Pound
Na prisão norte-americana em Pisa, na Itália, foram escritos os Cantos
pisanos, de Ezra Pound (1885-1972), no ano de 1945. O escritor,
considerado um dos maiores poetas de todos os tempos, tinha sido preso
por apoiar e elogiar Hitler, Mussolini e o nazifascismo em programa de
rádio durante a Segunda Guerra Mundial. Cidadão norte-americano que
dava aulas e editava revistas literárias na Europa, chefiando movimentos de
renovação da poesia, Pound fez uma genial análise da literatura, em livros
como ABC da Literatura, nos ensaios sobre poesia e sobre os ideogramas
chineses. “Grande literatura é linguagem carregada de sentido no máximo
grau possível”, disse o mestre. Mas também, como contrapõe o professor e
ensaísta Ottaviano de Fiore, “era um fascista bem irascível e antissemita
17. 17
paranoico”. Ficou preso numa unidade americana em Pisa na Itália (nas
primeiras semanas em exibição dentro de uma jaula) e depois foi
transferido para os EUA, onde permaneceria internado ainda por outros 13
anos. “Quem o salvou da pena de morte foi Hemingway que liderou um
movimento de artistas americanos destinado a convencer Roosewelt que o
homem era louco e não realmente um fascista. O que era falso, mas o fez ir
para um hospício e não para o paredão.”, lembra Ottaviano.
É fato que grandes gênios da literatura como Pound tenham se aferrado a
idéias fixas, paranoias e preconceitos. Isso aconteceu também com Céline,
autor de dois extraordinários romances “marginais”, Viagem ao fundo da
noite e Morte a crédito, de alta carga lúcida e poética, que depois
descambou para escrever panfletos paranoicos de propaganda antissemita.
Preso pela mesma razão que Pound (colaborar com os nazifascistas),
escreveu na prisão milhares de cartas aos amigos, todas paranoicas e
panfletárias, sem o nível de seus romances.
Outro nível, altíssimo, têm Os Cantos pisanos, que Pound escreveu
naprisãoe fazem parte de um ambicioso projeto de compor uma espécie de
Divina comédia moderna, que o autor concebeu em 1915 ebatizou de
Cantos.A obra já tinha 120 seções quando a morte do autor a interrompeu
em 1972. Os Cantos fazem uma imensa e vertiginosa colagem da história
da literatura incluindo clássicos gregos e latinos, poetas da Idade Média,
mestres chineses, reflexões sobre a economia, comentários sobre a história
europeia, num intrincado jogo de aforismos de confecção poeticamente
perfeita. Chega a corrigir clássicos como Homero e Virgílio, um insere
traduções de obras deles em sequência a comentários sobre a realidade
europeia, por exemplo.
BOXE 1
Memórias do cárcere
Alguns livros sobre a experiência na prisão foram escritos depois que o
autor já estava em liberdade. Mas mostram que a cadeia deixou marcas
18. 18
. Dostoiévski (1821-1881), escreveu em 1862 o livro Recordações da casa
dos mortos, em que revive a experiência de ter ficado preso dos 30 aos 40
anos. Aos 29 anos, quando já era escritor (tinha publicado Gente pobre e
Noites brancas), ele participou de uma revolução para derrubar o czar. Foi
preso (1849) e condenado à morte. Só no último momento, à beira do
patíbulo, a pena foi trocada por deportação para a Sibéria. Todo esse
trauma é revivido no livro. É um dos maiores escritores russos, autor de
Crime e castigo e Os irmãos Karamázov.
. Em Memórias do cárcere (1955), Graciliano Ramos (1892-1953) conta
como ele, um escritor e pedagogo consagrado em Alagoas, acabou preso
em 1936 a mando das forças do presidente Getúlio Vargas, que então
preparava o golpe do Estado Novo (1937-1945). No porão de um navio, ele
foi deportado para um cárcere no Rio de Janeiro, onde permaneceu quase
um ano. Anos depois ele relembraria os companheiros de cela, o
sentimento de estar preso, o sentido e a eterna possibilidade da liberdade,
ao mesmo tempo que passa a vida em revista.
. O judeu italiano Primo Levi (1919-1987) publicou em 1947 o livro É isto
um homem?, contando sua experiência de prisioneiro por 11 meses no
campo de concentração de Auschwitz, na Alemanha, para onde fora
deportado em 1944 depois de ter sido feito prisioneiro entre os combatentes
do nazifascismo na Itália de Mussolini. Ele conta o cotidiano no campo de
concentração e o terrível processo de degradação e definhamento a que as
pessoas eram submetidas. Dos 650 judeus mandados para Auschwitz com
Levi, só vinte sobreviveram.
. Tendo combatido pelas forças soviéticas na Segunda Guerra, Alexander
Soljenítsin (1918-2008) foi preso em 1945 porque as forças de vigilância
comunistas encontraram uma crítica a Stálin numa carta particular que ele
escrevera. Acabou condenado a trabalhos forçados e, depois, à prisão
perpétua. Mais de uma década depois, com a distensão do regime, acabou
solto. Enquanto trabalhava como professor, escreveu em segredo um
romance que o tornaria famoso e que só seria publicado em 1962, Um dia
19. 19
na vida de Ivan denisovish que relata a vida de um preso político nas
prisões. Em 1970, ganharia o Nobel de Literatura, mas em 1974, seria
expulso da União Soviética. Exilou-se nos EUA e depois voltou para a
Rússia, com o fim da União Soviética. Morreu em Moscou. Seu mais
impressionante livro sobre a rede de campos de trabalho forçado soviéticos
onde eram mantidos os opositores de consciência é O arquipélago de
Gulag, publicado em 1972.
Diário de um detento
Racionais Mc
Escrita pelo ex-detento Jocenir, a letra de Diário de um detento do
Racionais MC’s fala do dia anterior ao do massacre de 2 de outubro de
1992, quando 111 presidiários foram fuzilados pela Polícia Militar, no
evento conhecido como Massacre do Carandiru. A música ficou em 52º
lugar na lista das 100 melhores da música brasileira segundo a revista
Rolling Stones.
CITAÇÃO
“São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã.
Aqui estou, mais um dia.
Sob o olhar sanguinário do vigia.
Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira de
uma HK.
Metralhadora alemã ou de Israel.
Estraçalha ladrão que nem papel.
Na muralha, em pé, mais um cidadão José.
Servindo o Estado, um PM bom.
Passa fome, metido a Charles Bronson.
Ele sabe o que eu desejo.
Sabe o que eu penso.
20. 20
O dia tá chuvoso. O clima tá tenso.
Vários tentaram fugir, eu também quero.
Mas de um a cem, a minha chance é zero.”
(...)
BOXE 3
Médicos viram porta-vozes
O médico e escritor Drauzio Varella lançou em 1999 o best-seller Estação
Carandiru, que recebeu o prêmio Jabuti na categoria não-ficção e foi
adaptado ao cinema por Hector Babenco em 2003, com o nome Carandiru.
Destacado comunicador, Varella trabalhou no presídio do ano de 1989 a
2002, época em que foi desativado. O livro faz o retrato da vida de alguns
presos e conta como foi massacre de 1992. É a prisão vista de fora, mas
com muita empatia e sensibilidade.
Os presos da Alemanha também têm o seu Drauzio Varella: trata-se de Joe
Bausch, ex-médico de presídios que participa de séries de tevê e talkshows.
Ele calcula que passou 12 anos preso, dos 25 anos que atuou como médico
de presídio.Bausch acaba de lançar o livro Prisão (Knast), pela Editora
Ullstein. Mais “alemão” que o dr. Drauzio, Bausch tenta fazer uma
tipologia dos detentos e diz que os condenados por abuso infantil chamam
21. 21
a atenção por não quererem chamar a atenção, os ladrões são desconfiados,
os estupradores têm pouca capacidade de empatia, os assassinos são afáveis
e suportam a prisão com mais facilidade, por estarem mais conscientes da
gravidade de seu ato e não se rebelarem com o destino.
BOX
Memórias de um preso político
O professor de literatura, escritor e historiador Joel Rufino dos Santos,
esteve preso entre 1973 e 1975, quando era militante de esquerda. Entre os
muitos livros que escreveu, inclusive didáticos e paradidáticos – ele é um
dos maiores especialistas em cultura africana no país – está o livro Quando
eu voltei, eu tive uma surpresa, que reúne cartas endereçadas ao filho. O
livro ganhou o Prêmio Orígenes Lessa no ano 2000. Escritor consagrado,
Joel Rufino dos Santos ganhou diversas vezes o Jabuti de Literatura.