Este artigo discute como a alimentação pode influenciar a tomada de decisões através dos seus efeitos no cérebro. Explica que o neurotransmissor serotonina, sintetizado a partir do aminoácido triptofano presente em certos alimentos, está envolvido no controlo da impulsividade. Sugere que uma dieta rica em fontes de triptofano pode ajudar a reduzir comportamentos impulsivos ao aumentar os níveis de serotonina no cérebro.
2. mRNA | Maio 20142
RNA MENSAGEIRO
Departamento de Ciências da Vida - FCTUC
Apartado 3046
3001- 401 Coimbra
Telefone 239 853 600
Fax 239 853 607
E-mail nebioq@gmail.com
9ª edição Maio 2014
Distribuição Gratuita
Tiragem
250 exemplares
Impressão
Tipografia Nocamil
Propriedade
Núcleo de Estudantes de Bioquímica da
Associação Académica de Coimbra
Direção
Carla Santos
Mariana Alves
Revisão
Ana Pratas
André Martins
Carla Santos
João Rodrigues
Mariana Alves
Nuno Mendes
Pedro Cunha
Tiago Santos
Redação
Bruna Santos
Carlos Paula
Cláudio Costa
Cláudio Valério Oliveira
Gonçalo Pires Cristóvão
José Guilherme Almeida
João Santiago Jesus
Mariana Marques
Nuno Mendes
Rita Almeida Neves
Capa
João Santiago
Design Gráfico
Carla Santos
Beatriz Beato
mRNA Ficha Técnica
3. mRNA | Maio 20143
Sumário
Ficha Técnica -----------------------------
Sumário -------------------------------------
Editorial --------------------------------------
Oligonotícias ------------------------------
Certo ou Errado? ------------------------
“Nós somos o que comemos!” ---------
O regresso do Demónio de
Laplace? -------------------------------------
E Quando Não Acerta, Erra! ------------
Dixit ------------------------------------------
O Fim do “Mercado Bolsista”-----------
Da ciência falada a falar sobre
Ciência --------------------------------------
Maquiavel revisitado ---------------------
Meio de Cultura --------------------------
Música, Cinema e Literatura -----------
Gene2Music, a criatividade ao
serviço da ciência -------------------------
Cartoon -------------------------------------
Sai mais uma revista das mentes bio-
químicas da Universidade de Coimbra (UC)!!
É graças à vontade e generosidade de to-
dos os intervenientes que aparecemos mais
uma vez com uma equipa renovada e, com
ela, novas ideias e iniciativas. Com um am-
biente de sufoco na ciência nacional, é cada
vez mais importante divulgar e falar ciência,
explicar à comunidade como é fascinante e
essencial para a vida que vivemos hoje e
para o que ambicionamos para o amanhã.
Comunicar ciência é um conceito em
crescimento mas mesmo assim é preciso
insistir. Se a muitos assusta a ideia de que
trabalhar num laboratório pode ser solitário,
uma novidade: a nossa missão só está mes-
mo completa quando levarmos às pessoas
aquilo que fazemos. Afinal, a ciência é para
as pessoas!
E o sufoco chega-nos também na licen-
ciatura, sem sabermos bem como ter tempo
livre... é importante fomentar algo diferente.
Certo ou errado!? é a questão que surgiu
com as inúmeras opções que tomamos to-
dos os dias, tanto como indivíduos como ao
nível molecular.
E tu que lês a revista, aparece no próximo
ano, participa! Não tenhas medo!
Um bem-haja a todos os mensageiros e
que a RNAm continue a cativar bioquímicos
e curiosos por esse mundo fora!
A Direcção,
Carla Santos e Mariana Alves
Editorial
2
3
3
4
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13
13
15
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18
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22
Indíce
4. mRNA | Maio 20144
Oligonotícias
Notícias compiladas por José Almeida
Músculos enlatados
Com a descoberta da possibilidade de cresci-
mento de células estaminais em cultura, acções
como a regeneração de tecidos passaram a ser
consideradas após se acharem praticamente im-
possíveis de realizar. Recentemente, uma equipa
de investigadores da Duke University conseguiu a
partir das “células-maravilha” regenerar um pedaço
de tecido muscular em ratinhos. O procedimen-
to baseia-se na extracção de células estaminais
adultas de um tipo de tecido muscular – músculo
esquelético – com capacidade regenerativa dev-
ido a essas mesmas células. Após o isolamento,
procederam ao seu cultivo, com adição de fibrin-
ogénio ao meio de cultura, uma substância que
confere coesão às células musculares. Como sem
estrutura a função é inexistente, existe a necessi-
dade de mimetizar a forma das células do múscu-
lo esquelético – alongadas, que confere ao tecido
um aspecto estriado – o que é conseguido com o
crescimento das mesmas num molde cilíndrico.
Resta apenas testar a capacidade regenerati-
va deste tecido que, com doenças como distrofia
muscular, ou até mesmo o pesar da idade, se vai
perdendo. O grupo de cientistas submeteu então o
músculo a toxinas que o destroem, observando a
sua regeneração em dois ambientes: in vitro, num
prato de cultura; ou in vivo, com a criação de uma
“janela” com as células transplantadas no dorso
de ratinhos. Os resultados foram conclusivos e
positivos: a regeneração do tecido confirmava-se.
Foram também efectuadas experiências com a
regeneração de tecido humano (proveniente de
biopsias) em ratos com resultados positivos (num
estudo cooperativo entre a Brown University e a
Harvard University).
As leveduras desde a antiguidade ajudaram
o Homem com a fermentação de vários tipos de
vinho e, mais recentemente, através da engenha-
ria genética, na produção de fármacos para curar
doenças como a malária. Num estudo publicado
recentemente, contudo, serviu de recetáculo a um
propósito megalómano: a produção de um cro-
mossoma inteiramente sintético. Esta técnica con-
siste no fabrico de pequenos pedaços de ADN e
inserção destes na célula.
O recém-sintetizado cromossoma usou como
molde o cromossoma III da levedura, contudo, não
foram sintetizadas as zonas não codificantes do
ADN e foram introduzidos alguns marcadores, bem
como alguns “brinquedos” que permitem a manip-
ulação genética mais fácil no futuro e um controlo
para apaziguar as preocupações deste “monstro”
genético: foram-lhe retiradas capacidades de so-
brevivência fora do laboratório e sem supervisão
de um especialista.
Esta área, apesar de não ser nova (já haviam
sido sintetizados genes em bactérias), nunca foi le-
vada tão longe, visto que este novo SynIII, como foi
batizado, faz parte de um projeto ainda maior e am-
bicioso: a síntese de todo o genoma da levedura,
sendo que uma outra equipa já fabricou um terço
de um outro cromossoma, o XI, que conta com
mais de seiscentos mil pares de bases.
A Neogénese do Genoma
Há, contudo, dois entraves (certamente su-
peráveis): O tamanho do músculo a crescer – en-
quanto que num rato eram necessários milímet-
ros de tecido regenerado, num ser humano são
necessários vários centímetros ou até mesmo
decímetros de comprimento e largura; a vascular-
ização – que graças a uma equipa da Washington
University, se está a tornar pouco a pouco numa
questão resolvida, com a introdução de pequenos
“buracos” no tecido que permitem a vascularização
e abrem boas perspectivas para o desenvolvimen-
to e uso desta técnica no futuro.
http://online.wsj.com/news/articles/SB100014240
52702303456104579487470812944310
5. mRNA | Maio 20145
Para o futuro, Dr. Boeke afirma que, apesar do
longo caminho a percorrer para serem sintetiza-
dos cromossomas de eucariotas mais desenvolvi-
dos, como animais e plantas, pequenos pedaços
genéticos chamados “mini-cromossomas” poderão
estar ao nosso alcance.
http://www.bbc.co.uk/news/science-environ-
ment-26768445
Os telómeros, desde a sua descoberta, influ-
enciaram a forma como se olha para o ADN: são
regiões não codificantes nos terminais dos cromos-
somas (aparentemente inúteis!), que com sucessi-
vas replicações (requeridas por um organismo em
constante mudança como o nosso) se vão “apa-
gando” lentamente. Eles são chamados de relógios
da célula, contudo uma analogia mais tangível seria
um simples pneu: o seu uso consecutivo, galgando
vários quilómetros, leva ao seu desgaste, sendo
que, quando fica “careca”, apesar de ser utilizável,
é conveniente que se livrem dele e o substituam.
Pois bem, os telómeros seguem muito esta
linha de pensamento: servem para “amparar” a
inevitável perda de informação nos terminais cro-
mossómicos associada a cada replicação. Os
telómeros, mais que relógios celulares, são os nos-
sos próprios “guarda costas presidenciais”, levan-
do uma bala por nós sempre que uma das nossas
células se replica.
Não me stresses que me cansas os
telómeros
Contudo, como seria de esperar, os telómeros
eventualmente esgotam, podendo levar à morte
da célula. Esta é uma temática merecedora de
discussão e extensa investigação – o que leva ao
desgaste dos telómeros?
Em 2011 foi descoberto, por exemplo, que os
telómeros de um indivíduo sujeito a condições de
stress, sofrem um desgaste mais rápido.
Contudo, apenas recentemente foi descoberto
um componente hereditário que influencia direta-
mente este desgaste. Dois genes, o TPH2 (tryp-
tophan hydroxylase 2), associado a depressões e
desordens bipolares e o 5-HTT (serotonin trans-
porter protein) têm alelos que tornam o indivíduo
mais propenso aos efeitos prejudiciais do stress ou
de um ambiente mais relaxado. Chamemos a estes
alelos “sensíveis”.
Os alelos “sensíveis” são responsáveis por
um efeito curioso: em ambientes considerados de
stress e desgaste – famílias instáveis, pobre ed-
ucação dos pais – os telómeros apresentam-se
mais curtos. Em ambientes considerados mais “nu-
tritivos” – família estável, pais com educação su-
perior – os telómeros encontra-se mais alongados.
Ou seja, esta característica depende fortemente
do ambiente que rodeia o indivíduo, tornando es-
tas crianças verdadeiros peixes no deserto quando
confrontadas com a árdua tarefa de lidar com maus
tratos, falta de estabilidade e até mesmo a negação
de certas necessidades
http://www.nature.com/news/stress-alters-chil-
dren-s-genomes-1.14997?WT.mc_id=FBK_Na-
tureNews
6. mRNA | Maio 20146
Tema de Capa
Certo ou Errado?
7. mRNA | Maio 20147
“Nós somos o que comemos!”
Mariana Marques
A frase que dá o mote a este texto é bem popu-
lar e tem a sua razão de ser, na medida em que so-
mos a consequência das nossas decisões e estas
podem ser consequência da nossa alimentação!
Tens decisões importantes a tomar e queres
fazê-lo da melhor forma? Ora, há algumas estraté-
gias que podes adotar que te permitem controlar o
teu organismo a nível fisiológico e que podem ter
influência na tomada de uma decisão importante.
Por exemplo, em situações de fadiga, raiva ou dor
todos temos tendência a tomar decisões impulsiva-
mente, acabando por agir de forma diferente à que
sabemos conscientemente ser a correta. Decerto
já te deparaste com esta faceta impulsiva quando
estás de mau humor, ou quando acabas por trazer
para casa mais do que realmente precisas quando
vais às compras fatigado.
Os neurónios, unidade celular básica do nos-
so cérebro responsável pela biossinalização, têm
a capacidade de comunicar entre si através de
substâncias químicas específicas – os neurotrans-
missores. A libertação destes pelos neurónios per-
mite a transmissão de informação crucial à reação
final num determinado órgão (ou músculo) alvo.
Deste modo, estas células nervosas podem ser
responsáveis pelo controlo de algumas alterações
que ocorrem no nosso organismo, traduzidas, por
exemplo, em ansiedade, fome ou sono.
O neurotransmissor que liga o estado fisiológi-
co do nosso organismo ao nosso comportamen-
to no momento da decisão é a serotonina. Esta
Certo ou Errado?
molécula está diretamente envolvida em reações
de controlo da impulsividade, controlo cognitivo e
até agressividade. Então, entende-se que em situ-
ações de altas dosagens no organismo, a serotoni-
na aumenta essa capacidade de controlo e diminui
a impulsividade e que, em contrapartida, baixas
dosagens aumentam comportamento impulsivo e a
incapacidade de controlar algumas decisões.
A serotonina é sintetizada a partir do triptofano,
um aminoácido essencial (não é produzido pelo
organismo) que tem de ser ingerido diariamente.
Este pode ser encontrado principalmente no que-
ijo, no leite, em frutas como abacaxi, banana e
maçã, em amêndoas e nozes e em leguminosas
como a ervilha. É assim possível que pessoas
com quadros de ansiedade, insónia ou princípio de
depressão diminuam os sintomas se incluírem na
sua dieta esses alimentos, de modo a aumentar a
quantidade de serotonina disponível no organismo.
Fig.1 - serotonina
A impulsividade em si não é necessariamente
um aspeto negativo do comportamento de uma
pessoa e dever ser, portanto, julgada dependendo
da situação. Pode ser uma má forma de agir se
nos levar a comprar alguma coisa sem termos a
certeza que a conseguiremos pagar na totalidade,
ou quando falamos sem ter consciência do que
dizemos e depois nos arrependemos. No entanto,
pode ser algo positivo quando nos deparamos com
situações no dia-a-dia que requerem agilidade e
rapidez na resposta, um bom exemplo são as situ-
ações inesperadas com as quais nos deparamos
no trânsito.
8. mRNA | Maio 20148
Certo ou Errado?
“Nós somos o que comemos!”
Arul Mishra e Himanshu Mishra são dois inves-
tigadores da Escola de Negócios da Universidade
de Utah, nos Estados Unidos, que se interessaram
pelo efeito do consumo de alimentos ricos em trip-
tofano em pessoas consideradas cronicamente im-
pulsivas. Com esta investigação pretenderam rela-
cionar a ingestão de triptofano e, indiretamente, a
quantidade de serotonina disponível no organismo,
com a inibição do comportamento impulsivo ness-
es pacientes.
Para isso, organizaram os participantes da ex-
periência em dois grupos: a um dos grupos foi dado
para beber um líquido rico em triptofano, enquanto
que aos participantes do outro grupo - controlo - foi
dado um líquido sem o aminoácido (placebo). Após
ingerirem os líquidos, foram propostas duas tarefas
a cada um dos participantes: uma delas mediu a
capacidade de controlar a resposta quando sujeitos
a certos estímulos e outra mediu a capacidade de
escolher entre duas opções, uma das quais clara-
mente impulsiva. Nenhum dos participantes sabia
o que estavam a ingerir nem sabiam o objetivo da
experiência à qual se estavam a sujeitar.
Os resultados foram conclusivos. Os partici-
pantes do primeiro grupo foram capazes de con-
trolar o seu comportamento em ambas as tarefas,
enquanto os do segundo demonstraram impul-
sividade no desempenho das mesmas. Foi deste
modo possível correlacionar a atividade do neuro-
transmissor com o controlo da impulsividade.
Com isto ficámos a saber que o estado fisiológi-
co do nosso organismo tem impacto direto nas nos-
sas decisões e atitudes e que a nossa alimentação
pode influenciar se tomamos a decisão certa ou a
errada! ■
Fonte: Mishra, Arul, & Mishra, Himanshu (2010).
We Are What We Consume: The Influence of
Food Consumption on Impulsive Choice Journal
of Marketing Research, XLVII, 1129-1137 Other:
1547-7193
D
S
O
N
A
D
D D
D O N AS S
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9. mRNA | Maio 20149
Certo ou Errado?
O regresso do Demónio de Laplace?
João Santiago Jesus
Fazer o certo ou o errado!? Terá mesmo o
Homem a capacidade de tomar decisões por conta
própria?
Interessaste-te pelo título do artigo e por isso
é que começaste a ler. Certo? Ou talvez eu esteja
errado e um amigo mostrou-te o artigo, o que te
condicionou a tomar a decisão de o ler.
Estamos perante uma discussão que nasceu
com os grandes pensadores da Grécia Antiga, uma
discussão que abrange não só questões filosófi-
cas mas, principalmente, questões científicas. A
controvérsia ganhou um carácter científico quando
o físico Pierre Simon Laplace, em 1814, usou a
matemática e a física de forma a “criar” um univer-
so determinista. Esta teoria científica ficou então
conhecida como o Demónio de Laplace: “Podem-
os considerar o estado presente do universo como
o efeito do seu passado e a causa do seu futuro.
Um intelecto que em um determinado momento sa-
beria todas as forças que definem a Natureza, e
todas as posições de todos as moléculas de que a
Natureza é composta, e se este intelecto também
fosse abrangente o suficiente para submeter todos
esses dados à análise, iria ter uma fórmula única
dos movimentos dos maiores corpos do universo
até ao menor átomo; para tal intelecto nada seria
incerto e o futuro, o passado e o presente aparece-
riam nos seus olhos.”
Com esta teoria Laplace põe fim a três ideias: à
possibilidade, à escolha e à incerteza. Afirma ainda
que se conseguíssemos saber tudo sobre o estado
presente do universo, conseguiríamos determinar
o passado e o futuro, uma vez que tudo já está de-
terminado.
Mas a Natureza é mais inteligente e, com o apa-
recimento de novas mentes, começaram a surgir
teorias e equações que “mataram” o Demónio de
Laplace. Entre estas encontram-se os Teoremas
da Incompletude de Gödel, a Indeterminação
Quântica de Einstein posteriormente corrigida por
Bohr e Heisenberg e que até hoje continua a ser
questionada e, por fim, a Teoria do Caos também
conhecida por Efeito Borboleta. Praticamente no
“funeral” do Demónio de Laplace, Einstein afir-
mou que: “por detrás dos segredos da Natureza
permanece algo subtil, intangível e inexplicável.
Veneração por essa força que está por detrás de
tudo que nós conseguimos compreender é a minha
religião.”
Mas não foi por este facto que a discussão so-
bre o livre arbítrio acabou. De facto, mais recente-
mente o problema tem sido intimamente ligado à
questão da responsabilidade moral. É difícil pensar
em justiça, política, religião, relações íntimas, bem
como sentimentos de remorso ou de realização
pessoal, sem primeiro imaginar que cada pessoa
é a fonte de todos os seus pensamentos e ações
e que sobre estas tem controlo. É por esta razão
que a sociedade afirma que o Homem se torna
responsável pelos seus atos, porque, quando lhe
permitem, a sua vontade é livre de escolher entre
um sem número de opções que lhe são possíveis.
Não há como negar este facto. Mas, o que nos
faz escolher? Quais são as opções que nos são
dadas? Este é o eixo em torno do qual gira toda a
discussão neste momento.
O partido do livre-arbítrio afirma que pensar não
é uma função automática, involuntária ou mesmo
infalível.
Fig.1 - “Laplace’s Demon”, ilustração por Elle Willoughby
10. mRNA | Maio 201410
Em qualquer instante da sua vida, o homem é
livre para pensar ou para se escapar desse esforço.
O homem tem que iniciar o processo de tomar uma
decisão, sustentá-la e assumir a responsabilidade
pelos seus resultados, pois a Natureza não lhe dá
nenhuma garantia automática da eficácia do seu
esforço mental.
Mas será mesmo este o caso?
John-Dylan Haynes, neurocientista do Centro
de Neurociência Computacional em Berlim, publi-
cou em 2007 na Nature um artigo uma experiên-
cia que consistia em submeter as pessoas a uma
ressonância magnética funcional durante o ato de
tomar uma decisão, revelando assim a atividade do
cérebro em tempo real. A experiência era simples:
os participantes tinham de utilizar o indicador da
mão direita ou da esquerda, sempre que era a sua
intenção, e lembrar-se da imagem que se encon-
trava no ecrã quando tomassem a decisão. Os re-
sultados foram assaz surpreendentes.
A decisão consciente de apertar o botão foi
feita, aproximadamente, um segundo antes do ato
em si, mas a equipa de Haynes também encontrou
um padrão de atividade cerebral que acontece sete
segundos antes de o indivíduo estar conhecedor
da sua decisão e que parece prever qual será essa
mesma decisão, levando assim Haynes e a sua
equipa, à conclusão que muito antes de os sujeitos
estarem cientes da sua escolha, aparentemente os
seus cérebros já tinha decidido.
Perante este facto, alguns neurocientistas argu-
mentam que a consciência de uma decisão pode
ser uma mera reflexão bioquímica tardia, que não
tem qualquer influência sobre as ações de uma
pessoa. Se tomarmos em consideração esta lógi-
ca, o livre arbítrio não será mais do que uma ilusão.
Podemos deste modo dizer que, se um homem
fizer uma má escolha, quando esta é determinada
por um certo padrão de atividade neural, o que por
sua vez é o produto de outros fatores, tais como
uma infeliz combinação de genes, uma infância in-
feliz, perda de sono, ou possivelmente uma combi-
nação de todos, quer isto dizer que a sua vontade
é “livre”?
Embora seja uma experiência recente que irá
necessitar de mais estudos e uma melhor análise
dos resultados, não deixa de ser um passo na di-
reção do determinismo e uma lembrança que o
Demónio de Laplace poderá não estar completa-
mente incorreto.
A nossa vida é uma soma de decisões e mui-
tas vezes irás fazer a escolha certa mas por vezes
poderás fazer a errada, e isso inevitavelmente irá
influenciar pessoas (entre elas tu mesmo, a tua
família, amigos, a pessoa de quem gostas). Ness-
es momentos, um sim ou um não podem mudar
completamente a nossa vida e é por isso que tomar
uma decisão nunca é fácil, envolve coragem e de-
terminação, quer a decisão seja deliberada num
universo pré-determinado quer num contexto de
livre arbítrio. ■
Dedicado a todas as pessoas influenciadas pelas
minhas decisões,
João Pedro Santiago de Jesus
Certo ou Errado?
O regresso do Demónio de Laplace?
Fig.2 - Gráfico representativo padrão de atividade cerebral das. De notar que entre 6 a 8 segundos antes de o indivíduo estar
conhecedor da sua decisão já o seu cérebro antecipou a sua escolha. Retirado de Soon, C. S., Brass, M., Heinze, H.-J., & Haynes,
J.-D. (2008). Unconscious determinants of free decisions in the human brain. Natu Neuroscience, 11(5), 543–5. doi:10.1038/nn.2112
11. mRNA | Maio 201411
Certo ou Errado?
E Quando Não Acerta, Erra!
Gonçalo Pires Cristovão
Falamos do sistema imunitário! Há um sem
número de respostas imunitárias diferentes (106),
pelo que o importante é criar uma estratégia muito
afinada, quer seja no sentido de estimular quer
seja no sentido de reprimir. Com esta enorme di-
versidade de respostas o sistema imunitário pode
errar. E erra! É aqui que surge o paradigma com-
plexidade versus simplicidade. O nosso sistema
imunitário é muito complexo, dando-nos por um
lado mais plasticidade, mas ao mesmo tempo
vários problemas, se não for bem regulado. Surge
assim a autoimunidade que não é mais que uma
agressão contra o nosso próprio organismo, ou
seja, somos alvo da nossa resposta imunitária.
Por outras palavras, é como estarmos no meio de
uma dança com passos bem complicados e a cer-
ta altura alguém nos dar uma pisadela!
Hoje em dia as doenças autoimunes ocupam
o terceiro lugar entre os grandes processos pa-
tológicos (logo a seguir às doenças neoplásicas
e às doenças cardiovasculares), estando bem
definidas mais de cem. Depois surge a questão:
porque é que a prevalência e incidência das
doenças autoimunes está a aumentar? Possivel-
mente muito devido à falta de estímulos educati-
vos! Nos dias de hoje vivemos numa sociedade
onde o antibiótico passou a ser a primeira linha
de defesa. Nos últimos 50 anos as doenças au-
toimunes (e as doenças alérgicas) têm vindo a
aumentar dramaticamente, e muitos têm sido
os estudos no sentido de compreender a base
genética para a suscetibilidade à autoimunidade
(e/ou alergia). Contudo, os fatores genéticos
não podem explicar estas mudanças bruscas de
incidência da doença. Portanto, muito provavel-
mente os fatores ambientais serão fundamentais
para explicar o aumento da incidência de doenças
autoimunes (e alergias).
Hoje estamos perante uma hipótese que, na
verdade, já foi postulada há alguns anos atrás - a
“hipótese higiénica”. Esta propõe que a redução
de infeções, especialmente durante a infância,
que predispõem respostas imunitárias aber-
rantes contra antigénios estranhos inofensivos,
provoca doenças alérgicas tais como a rinite e/
ou asma alérgica, por exemplo. Os estímulos in-
feciosos podem perturbar o sistema imunitário e
podem assim surgir doenças, nomeadamente as
doenças autoimunes. Contudo não há nenhuma
doença autoimune para a qual foi proposta uma
origem literalmente infeciosa.
Esta união entre infeção e autoimunidade
pode estar relacionada com o facto dos linfócitos
poderem reconhecer tanto os antigénios micro-
bianos como os antigénios do próprio indivíduo
(reatividade cruzada). Ou seja, os linfócitos
ativados pelo reconhecimento de um epítopo mi-
crobiano (o local específico numa proteína que
dá origem a uma resposta imunitária), que sub-
sequentemente atacam os auto-antigénios (com
sequências de aminoácidos semelhantes), levam
à indução de doença autoimune. Contudo, esta
reação cruzada entre um antigénio microbiano e
um auto-antigénio não é suficiente para induzir
a doença autoimune. Aqui surgem outros culpa-
dos… Os patogénios possuem moléculas como
o lipopolissacarídio (LPS) da parede celular bac-
teriana ou dsRNA, denominados genericamente
por PAMPs (pathogen-associated molecular
patterns). Os PAMPs são reconhecidos por um
conjunto de recetores do tipo PRRs (pattern rec-
ognition receptors), de que são exemplo os TLRs
(toll-like receptors) e que são expressos pelas
células do sistema imunitário inato, incluindo as
células dendríticas ou macrófagos (exemplos de
APCs, antigen-presenting cells). E são estes re-
cetores do tipo PRRs que possuem a capacidade
de apresentar antigénios peptídicos aos linfócitos
T do sistema imunitário.
Será esta apresentação sempre requerida?
Não. Há situações em que não é precisa a apre-
sentação de antigénios, apesar da estimulação
direta dos linfócitos poder levar à perda de de-
terminados mecanismos de segurança. Assim,
as células com capacidade de apresentação de
antigénios têm todo um trabalho molecular que
leva a uma distinção mais correta. A sinalização
através de TLRs ativa as células apresenta-
doras de antigénios que, como consequência,
passam a expressar uma variedade de citocinas
pró-inflamatórias e moléculas de co-estimulação
necessárias à ativação das células T.
12. mRNA | Maio 201412
Certo ou Errado?
E Quando Não Acerta, Erra!
No entanto, este processo de apresentação é
algo complexo, podíamos até dizer que é um tra-
balho muito elaborado pelas células profissionais
em apresentação. Este processo pressupõe uma
forte ligação entre quem apresenta e quem é apre-
sentado, isto é:
- um sinal de apresentação do antigénio para o
encaixar na célula apresentadora (MHC, complexo
maior de histocompatibilidade); sempre existente
no nosso organismo, pois o linfócito tem que per-
ceber que as células APCs são células benéficas
dentro do nosso organismo;
- uma molécula da APCs tem que se ligar a uma
molécula do linfócito – é outro sinal de reconheci-
mento – por exemplo, de CD80/CD28;
- uma citocina generalista, como por exemplo
IL-2, ou outro tipo de citocinas mais específicas
consoante o subtipo linfocitário.
Para que ocorra este processo de apresen-
tação antigénica onde o antigénio é apresentado, é
necessário um recetor com alguma especificidade.
E para que haja reatividade com determinados
componentes dos nosso organismo (tolerância),
só pode funcionar se for bem regulado ou suprim-
ido (supressão e regulação). Mas como já vimos
o nosso sistema imunitário pode “falhar”! A autoi-
munidade surge no processo de imunidade inata,
porque em vez de pararmos a resposta há fal-
has na regulação, na apoptose ou na supressão.
Vocês devem estar a pensar: «- O problema é uma
questão de tolerância! Porque não aumentar a tol-
erância?». Pois, mas o que teríamos na outra face
da moeda relativamente ao envelhecimento, a in-
feções e ao cancro?
Por fim, um exemplo: a diabetes mellitus tipo
1 é uma disfunção metabólica e uma doença au-
to-imune onde ocorre a produção inapropriada
de anticorpos contra as células do pâncreas que
produzem insulina. Entre 1989 e 1994, o aumento
anual da incidência de diabetes tipo 1 em crianças
europeias com menos de cinco anos de idade foi
de 6,3%. Estudos na última década indicam que
as infeções durante o(s) primeiro(s) ano(s) de vida
diminuem o risco de desenvolvimento de diabetes
tipo 1. Podem as infeções prevenir ou curar as
doenças autoimunes? Será que o sistema imu-
nitário pode beneficiar de determinados encontros
com alguns microrganismos? São novas janelas
que se abrem para a intervenção terapêutica em
autoimunidade. ■
13. mRNA | Maio 201413
Dixit
O Fim do “Mercado Bolsista”
Carlos Tadeu Paula
Portugal atravessa uma das maiores crises
de sua história. Este podia muito bem ser o início
de mais um de milhares textos que já foram pub-
licados sob o pretexto da crise. Conseguiria ser
também um texto quase não datado, pois Portu-
gal atravessa este período de crises “cíclicas” há
demasiado tempo.
Mas, não é certamente disto que quero falar.
Existe um sector que tem permanecido, pouco à
semelhança dos irredutíveis gauleses, capaz de
fazer sonhar toda uma nação com uma economia
assente em desenvolvimento sustentável. E não,
não é o Futebol. É de Ciência que vos falo.
O sector científico tem crescido em Portugal de
forma continuada, desde o início da nossa curta
história democrática, tendo esse caminho sido aux-
iliado em grande medida pela apostada da União
Europeia no sector da Investigação e Desenvolvi-
mento.
Este crescimento, com especial enfoque nos
últimos 10 anos, está relacionado em grande me-
dida com o trabalho do então Ministro da Ciência,
Tecnologia e Ensino Superior: o Professor Mariano
Gago. O seu trabalho foi amplamente reconhecido
pela comunidade científica nacional, tendo lança-
do as bases para aquele que é o sistema científico
que conhecemos atualmente em Portugal. Quanto
ao seu trabalho enquanto Ministro com a tutela do
Ensino Superior…Bom, não podemos ser bons em
tudo.
Mas vamos aos factos. Portugal apresenta um
(re)investimento em percentagem do PIB de 1.5%.
Apesar de ainda distante da meta definida para o
próximo quadro comunitário “Europa 2020” (3%), é
notório desde logo o desenvolvimento em relação
a este campo, tendo sido realizada uma enorme
aproximação à média europeia.
Todavia existem indicadores em que clara-
mente nos destacamos, apresentado um desen-
volvimento record que nos coloca na linha da frente
em muitos deles. Um desses bons exemplos é o
número de estudantes de doutoramento, em que
superámos mesmo a média europeia.
De 1986 para 2012, passámos de 1,2%
para 9,2% de Investigadores por cada mil ativos,
tendo mesmo ultrapassando países como a Ale-
manha e a França neste campo.
Mas se tudo está assim tão perfeito, porque não
continuar esta trajetória de crescimento?
Pois bem, a Ciência não podia escapar
às leis de mercado, e um pouco à semelhança do
país, também ela terá de passar por um processo
de “ajustamento”.
Portugal continua a ser um dos países da
Europa a 28 com maior dificuldade em fazer a
translação da Ciência, que tão bem se produz nas
Universidades portuguesas, para a economia real.
Tendo por base esta premissa, o Governo apli-
cou um dos mais violentos cortes ao sector, não ao
nível do financiamento para Ciência, pois esse tem
vindo paradoxalmente a aumentar ao longo dos úl-
timos anos, mas sim nas “bolsas” de doutoramento
e pós-doutoramento.
Janeiro de 2014, sinaliza assim o início de um
novo ciclo na Ciência em Portugal.
Vamos então às comparações. Comparemos
então o nosso sistema científico com um grande e
belo pomar, com muitas árvores de fruto diferentes.
Apesar das bases para a construção de um
grande pomar, devidamente diversificado, e capaz
de dar frutos em diversas áreas estar lançado, é
necessário que o sistema de rega seja capaz de
fazer chegar água a todas as diferentes locais, e de
preferência de forma capaz de suprir as suas ne-
cessidades. Havendo só um poço a fornecer água
a toda a esta estrutura, urge definir se preferimos
que todo o pomar se sacrifique, ou que algumas
árvores sequem em detrimento de outras.
Simplificando a metáfora, é, a meu ver, funda-
mental perceber qual o real papel da Fundação
para a Ciência e Tecnologia (FCT), e esta será a
única forma de financiar a “nossa” Ciência.
É no fundo isto que o país deve esclarecer,
quais as áreas em que somos ou poderemos ser
melhores e apostar sem medo nelas. Não quero
com isto dizer que não devemos continuar a pro-
mover uma diversidade e abrangência de áreas,
apenas o devemos fazer na medida dos recursos
disponíveis.
14. mRNA | Maio 201414
É com esta ideia que o Governo pensa começar
a “podar” este pomar, apostando em áreas que
considera chave (daí a aposta em financiar pro-
gramas de doutoramento, em prejuízo do concurso
nacional), mas sobretudo passar a financiar proje-
tos em vez de pessoas.
Se será o melhor modelo para garantir que so-
bretudo a Ciência de excelência sobrevive? Não
sabemos a resposta, e o resultado nunca será ime-
diato.
A atual tutela apresentou aquela que pode vir
a ser uma das reformas mais estruturantes que o
sector conheceu na sua história. É importante per-
ceber, que apesar de abrupto e injustificado, este
corte apresenta em si uma mudança clara de es-
tratégia, em que a ciência de excelência será valo-
rizada, sendo também óbvia a aposta em sectores
chave, em que o interesse estratégico nacional
será tido em conta.
Porém a meu ver o problema que nós, enquan-
to futuro da Ciência em Portugal devemos colocar
é outro. Se faz sentido continuar a viver com este
“Mercado Bolsista” em que o trabalho científico é
tratado como facilmente descartável, pois haverá
sempre outro “bolseiro” capaz de realizar aquelas
funções. Em que o Estado poderá definir quem fica
em quem sai a cada ano, por critérios muito pouco
claros e pouco transparentes. No fundo, apesar da
reforma, faltou coragem política para resolver situ-
ações como a precariedade do emprego científico.
É por isso que nos devemos bater, pela valori-
zação do trabalho científico. Pois, é impensável que
aquela que é a “elite laboral” portuguesa continue a
ser tratada por este governo como “emigrável”. Um
país não se pode dizer preocupado com a fuga de
cérebros, e permitir que a sua geração mais qualifi-
cada seja sujeita a este tipo de instabilidade.
Porque por muito que nós gostemos do nosso
país, também teremos sempre de gostar um pouco
de nós.
Não espero com esta reflexão chegar a con-
clusões estanques ou a uma visão final daquela
que deve ser a política científica de um país da
dimensão do nosso, mas espero pelo menos ter
lançado uma visão diferente, e ter acrescentado
algo à discussão. ■
Dixit
O Fim do “Mercado Bolsista”
15. mRNA | Maio 201415
Dixit
Da ciência falada a falar sobre Ciência
Rita de Almeida Neves
A Ciência nunca foi tão falada. Os cortes nas
bolsas individuais de doutoramento e pós doutora-
mento pagas através da FCT constituíram a gota
de água necessária para que de repente a crise do
sistema científico português saltasse para o espaço
mediático. Páginas de jornais repletas de artigos
sobre ciência, opiniões de cientistas, políticos e até
economistas. Todos falam de ciência.
É bom que se fale de ciência, que se fale do que
se faz nas universidades e nos centros de inves-
tigação, que se fale das descobertas e caminhos
a tomar. Mas não é bom que a ciência seja falada
pelas piores razões. Não é bom que a Ciência seja
falada como sem rumo, não é bom que a Ciência
seja falada com base em equívocos e mal-enten-
didos e sobretudo não é bom que seja falada uma
crise na Ciência, que existe sim, sem se clarificar os
seus contornos.
Todo este falatório parece pecar pela super-
ficialidade e confusão. Falam os entendidos, e os
não-entendidos que acreditam entender. Cada um
usa os números que entende e como entende, de
investimento a desinvestimento na Ciência, de prox-
imidade a completo afastamento do mundo real. E
no final de contas, é isso que conta, as contas.
Mas e se falar sobre contas… e Ciência. Na
verdade, nenhum cientista (ou aspirante a) que
se preze deve deixar conduzir o que vai fazer na
ciência pela lógica do capital. Ainda assim, na so-
ciedade em que vivemos sabemos que, para fazer
a ciência que queremos fazer, precisamos desse
capital. E aqui encontramos a barreira: a ligação da
ciência ao mundo capital – as empresas.
Existe, sem dúvida, em Portugal um problema
de ligação das empresas com a investigação. Mas
essa ligação não se prende com a redução ou au-
mento do rácio entre investigação fundamental e in-
vestigação aplicada. Uma não existe sem a outra. A
diferença crucial entre a fundamental e aplicada em
nada tem que ver com a irrelevância ou utilidade de
cada uma, mas sim com o facto de o conhecimento
científico fundamental ser um bem público e o con-
hecimento científico aplicado capaz de ser um bem
privado. E por isso mesmo, a investigação científica
pode ser produzida e financiada tanto pelo estado
como pelo sector privado.
Contudo, as empresas baseiam a sua decisão
de investir em produção de conhecimento numa
análise custo-benefício. Mas apesar dos benefícios
imensuráveis do conhecimento científico, estes
não se revelam no curto-prazo e num mercado
competitivo a luta pela sobrevivência depende mui-
tas vezes de resultados no imediato. Eis o grande
problema de ligação.
O que tem de acontecer, é percebermos que
investimentos em ciência e educação rendem ju-
ros, benefícios que por vezes os economistas não
sabem que existem, mas são reais. No entanto,
não são apenas os investigadores que “vivem no
conforto de estar longe das empresas e da vida
real” mas sim a maioria das empresas que não
consegue viver com o risco de investir em inves-
tigação e desenvolvimento (das cerca de 400 mil
empresas do universo nacional, apenas cerca de 3
mil investe em I&D).
Para que esta interacção empresas-academia
funcione, é preciso que os incentivos de ambas as
partes estejam alinhados, que sejam compreendi-
dos os ritmos de cada um e acima de tudo que o
conhecimento científico seja valorizado em todas
as suas vertentes.
Não há o certo e o errado, precisamos apenas
de uma estratégia clara e sem demagogia. No fun-
do, precisamos de mais ciência e passar da ciência
falada a falar sobre Ciência. ■
16. mRNA | Maio 201416
Dixit
Poderá um conjunto de berlindes subir uma co-
lina só com um incentivo? A questão poderá pare-
cer inusitada mas ajudará compreender que a ana-
logia, embora no sentido descendente, foi usada
por Conrad Hal Waddington para descrever o pro-
cesso de diferenciação das células pluripotentes e
a forma como a epigenética regula esse mesmo
processo (embora, na altura, tivesse apenas ide-
ias muito rudimentares destes conceitos). Segundo
Waddington, um conjunto de berlindes (equipara-
dos a células pluripotentes) que desça uma colina
(processo de diferenciação) tem vários destinos
possíveis (diversos tipos celulares) dependendo
do relevo da paisagem e dos obstáculos que possa
encontrar (maior ou menor expressão de determi-
nados genes). Mas poderão os “berlindes” inverter
o sentido e recuperar a pluripotência? Sabe-se, de
alguns anos a esta parte, que a resposta é pos-
itiva. Acreditou-se no entanto que era necessária
manipulação artificial da porção nuclear ou a in-
trodução de múltiplos factores de transcrição.
Um trabalho realizado por uma equipa liderada
por Haruko Obokata, no RIKEN Center for De-
velopmental Biology (CDB), no Japão, investigou
a possibilidade de, através de estímulos externos
agressivos (“sub-letais”), se alterarem os padrões
epigenéticos de células somáticas de mamíferos
(o fenómeno já tinha sido observado em espécies
vegetais) e assim despoletar uma reprogramação
nuclear capaz de reconverter as células a um es-
tado pluripotente – processo denominado de STAP
(stimulus-triggered acquisition of pluripotency).
Para testar a hipótese apresentada, os investi-
gadores recolheram células com diferentes graus
de diferenciação de murganhos transgénicos (em
que uma “tag” de Green Fluorescent Protein: GFP,
foi acoplada ao gene Oct4 – um dos genes marca-
dores de pluripotência) com 1 semana de idade e,
de entre os diversos tipos estudados, o tipo celu-
lar com maior taxa de sobrevivência e posterior
reprogramação foram as células hematopoiéticas
do baço. As referidas células foram: sujeitas a dif-
erentes perturbações, colocadas em meio de cul-
tura suplementado com alguns factores inibitórios
da diferenciação e analisadas para verificar a ac-
tivação do promotor de Oct4.
O trabalho focou-se em tratamentos muito sim-
ples como incubação em pH baixo (entre 5,4 e
5,8) ou a aplicação de grandes pressões sobre a
membrana celular, tendo o primeiro revelado maior
eficácia na indução da expressão de Oct4.
Em meio de cultura, as células tratadas au-
mentaram gradualmente a expressão de GFP e,
ao 7º dia, mostraram: 1) distinta estrutura nucle-
ar, 2) menor tamanho celular do que as células
que lhes tinham dado origem e 3) a expressão de
proteínas e genes marcadores de pluripotência em
proporções comparáveis às de células estaminais
embrionárias.
Para confirmar a indução de pluripotência
nestas células, impunha-se a realização de en-
saios de diferenciação, tanto in vitro como in vivo.
O sucesso destes ensaios e ainda a geração de
um embrião em que todas as células eram GFP+
(demonstrando a capacidade das células STAP
se diferenciarem em todas as linhagens celulares
in vivo) provaram possível a STAP em células de
mamíferos.
Tendo em conta a rapidez e simplicidade deste
processo quando comparado com as técnicas exis-
tentes (transferência nuclear somática, células iPS,
…), a investigação foi imediatamente catalogada
como “revolucionária” e apontada como o camin-
ho a seguir na medicina regenerativa. No entanto,
o tempo e a controvérsia gerada, no seguimento
Maquiavel Revisitado
Nuno Mendes
Fig.1 - Embrião em que todas as células são GFP+
17. mRNA | Maio 201417
das publicações deste grupo, por investigadores
incapazes de reproduzir os resultados (mesmo
aquando do seguimento integral do protocolo apre-
sentado) vieram dar razão aos mais cépticos que
acreditavam ser prudente aplicar o princípio “de-
masiado bom para ser verdade” sem maior volume
de provas concludentes.
Eis os factos que nos foram dados a conhecer:
i) 14 dias após a publicação do artigo pela revis-
ta Nature (30 de Janeiro de 2014), uma denúncia
de um investigador da própria instituição deu ori-
gem à elaboração de um inquérito preliminar pela
administração do RIKEN CDB, cujos resultados
justificaram a instauração de uma comissão de in-
quérito para aferir se existiu ou não má conduta por
parte dos autores da investigação.
ii) No dia 1 de Abril de 2014, a referida comissão
anunciou que dois conjuntos de imagens utilizados
nos artigos científicos foram manipulados ou mod-
ificados pela Dra. Haruko Obokata e que, tendo
sido considerada culpada de má conduta, seria
punida de acordo com o regulamento interno da
instituição após um período em que a visada pode-
ria recorrer da decisão. Foi ainda divulgado que,
não tendo tido participação activa na alteração dos
resultados, também os co-autores do estudo eram
responsáveis por verificar o rigor e a precisão dos
resultados antes da submissão do trabalho para a
referida revista, o que não aconteceu.
iii) A comissão investigou o fenómeno das célu-
las STAP, estimando necessitar-se de um período
de 9 meses a 1 ano para apresentar resultados
suficientes que excluam ou verifiquem a possibili-
dade de reprogramar células de mamíferos pelas
vias apresentadas.
Fazendo uma análise introspectiva às infor-
mações disponíveis e depois de muita especulação
sobre as razões que condicionaram e conduziram
a Dra. Obokata a falsear os resultados, ocorre-me
dizer que a geração de conhecimento só pode ser
legitimada pelo método, em particular o validado
cientificamente. Sem método, a ciência seria um
conjunto de opiniões. Sem método, a ciência não
seria mais que uma religião, assente em dogmas,
questões inquestionáveis e sobre as quais é impos-
sível estabelecer debate. Uma violação do método
Dixit
Maquiavel revisitado
Fig.2 - Dra. Haruko Obokata, na conferência de imprensa
em que nega ter agido deliberadamente, atribuindo os er-
ros à falta de experiência
levará, inevitavelmente à deformação da essência
da ciência e à destruição da sua credibilidade, não
só junto da comunidade científica mas também, e
principalmente, junto do público em geral.
Aguardemos o desenrolar deste episódio tão
Vicentino. Talvez a hipótese inicial desta jovem
investigadora seja um dia aceite cientificamente
como “correcta”, mas o caminho que percorreu
será sempre (espero) o mais inesperado e con-
traproducente.
Em ciência, a busca pela “verdade” não pactua
com maquiavelismos em que certos “fins justificam
os meios”. A progressão científica deve ser inspira-
da pela ética na inovação de base.
“O mundo salta e avança como uma bola
colorida nas mãos de uma criança”. ■
18. mRNA | Maio 201418
O mais consagrado coletivo de hip-hop no
ativo vai lançar, em breve, um novo trabalho que
tem vindo a ser produzido em segredo nos últimos
anos. Será editada apenas uma cópia que percor-
rerá museus e galerias mundiais para, no fim, ser
leiloada a alguém que escolherá se partilha a obra
com o mundo… ou fica com ela só para si.
Depois de terem brilhado em vários projectos,
nos quais se destacam os At the Drive-In e The
Mars Volta, Omar e Cedric estão de novo a tra-
balhar juntos e, desta vez, com Flea (Red Hot Chili
Peppers) sob o nome ANTEMASQUE. Sabe-se
ainda pouco sobre esta nova banda, mas já há sin-
gles online. Significará também isto um futuro res-
suscitar dos The Mars Volta, que acabaram logo
a seguir à edição do consagrado Noctourniquet
(2012)?
Meio de Cultura
Música - clássicos! Música - novidades!
Claúdio Valério Oliveira Claúdio Valério Oliveira
Novo albúm dos Wu-tang Clan
Omar Rodríguez-López e Cedric
Bixler-Zavala voltam a trabalhar
em conjunto.
Activa principalmente durante a década de 70,
esta banda britânica foi percursora na globalização
do reggae e de outros sons jamaicanos... Teve
também um papel importante na luta pela igual-
dade social, numa altura em que esta estava tudo
menos assegurada.
Greyhound
Activo durante 30 anos (1965-1995), este pro-
jecto californiano foi das maiores provas de que
fusões de géneros funcionam. Pincelaram sem-
pre o seu rock psicadélico com géneros tão distin-
tos como a típica música americana (country, blues
e folk) ou negra (jazz, reggae), tudo com uma forte
componente de improvisação verificada até em
apresentações ao vivo.
No fim? 35 milhões de discos vendidos e um
legado que perdurará.
The Grateful Dead
19. mRNA | Maio 201419
A 24 de Maio, ficou disponível para compra o
primeiro trabalho deste projecto de Oliveira de
Azeméis. “Linhas”
Este álbum de O Corvo Mudo foi produzido nos
Estúdios Sá da Bandeira e é uma ode ao experi-
mentalismo, centrando-se no rock progressivo mas
contendo elementos de jazz e folk, tudo isto com
um vinco claramente português.
Álbum de estreia de O Corvo Mudo
lançado
Literatura
Claúdio Valério Oliveira
Este livro de 2013 da autoria de Christina Baker
Kline segue as vivências de Vivian Daly, uma órfã
que, como outros 250 mil, foi “deslocada” para o,
na altura pouco explorado, Midwest Americano.
Uma história de amizade e segundas-oportuni-
dades.
Comboio de Órfãos
Televisão
Claúdio Valério Oliveira
Sob a liderança do produtor Ronald D. Moore,
conhecido pelo seu trabalho nas séries de ficção
científica Battlestar Galactica e Star Trek, estreou
(na Syfy americana), em Janeiro, uma série que
segue o trabalho de um grupo de cientistas do CDC
(Centers for Disease Control and Prevention) numa
unidade farmacêutica situada em pleno Ártico,
onde a falta de jurisdição impede que muitas leis
que temos como consagradas, no que diz respeito
à investigação em engenharia genética, sejam se-
quer levadas em conta.
Para além de um vírus com potencial para, rapi-
damente, causar uma calamidade de ordem global,
esta equipa do CDC tem de lidar com a desinfor-
mação e a oposição por parte das mesmas enti-
dades que criaram algo tão perigoso.
A aposta em Helix tem sido forte, com uma re-
alização ousada que não é feita com meia dúzia
de tostões (não nos esqueçamos que uma série
de televisão tem muito mais dificuldades em ser
rentabilizada face a um filme); mas parece estar a
resultar, pois conseguiu em média 2.1 milhões de
espectadores por episódio; o que levou a que fosse
renovada para uma segunda temporada a estrear,
provavelmente, no próximo Inverno. Entretanto, a
primeira já chegou ao fim, após 13 episódios.
“Helix” - a luta contra um vírus
Meio de Cultura
20. mRNA | Maio 201420
Cinema
Claúdio Valério Oliveira
Já quase a fazer um quarto de século, mas com
uma aura que lhe dá um ar ainda mais antigo; este
filme segue uma relação improvável entre um gé-
nio caído em desgraça e uma menor libertina, já
grávida quando se conhecem.
Pelo meio, um bebé (outro) é raptado.
Trust (1990)
Este filme de Lars von Trier é polémico, não
há como negar. O próprio título não deixa margem
para dúvidas. Contudo, é muito mais do que sexo.
É uma abordagem pouco comum às relações in-
terpessoais e à condição humana, desde os seus
instintos primários até à racionalidade máxima.
Conta também com actores consagrados como
Charlotte Gainsbourg, Shia LaBeouf, Uma Thur-
man e até Willem Dafoe, a tutelar outros menos
experientes, mas que deixaram uma boa marca.
Ninfomaníaca (2013)
Meio de Cultura
21. mRNA | Maio 201421
Albert Einstein afirmou que “só duas coisas são
infinitas, o universo e a estupidez humana”. Eu sou
da opinião que há outra coisa infinita. Trata-se da
criatividade humana. Eu diria que essa não tem
limites.
Rie Takahashi é uma jovem cientista norte
americana, licenciada em Microbiologia, Imunolo-
gia e Genética Molecular pela Universidade da Cal-
ifórnia (UCLA). No seu terceiro ano de faculdade,
aquando da participação num seminário intitulado
Ciência e Sociedade, Rie decidiu abraçar o de-
safio de tornar a linguagem científica acessível a
qualquer pessoa, tendo o professor orientador do
seminário, Jeffrey Miller, como parceiro neste de-
safio.
E que melhor maneira de fazê-lo senão utilizar
algo tão universal como a música? Segundo Rie,
“não há barreiras linguísticas quando o assunto é
música”. Apesar de haver registos anteriores de
diversas tentativas de aliar a genética à música,
nenhuma teve sucesso… Rie e Miller tentam ser
a excepção.
Rie criou um programa de computador, o qual
designou Gene2Music, que utiliza os aminoácidos
para desencadear acordes, sendo que a cada ami-
noácido atribuiu um acorde. A aminoácidos semel-
hantes, como por exemplo, a tirosina e a fenilala-
nina, atribuiu o mesmo acorde, mas invertido para
uma das moléculas. Neste exemplo em concreto,
à tirosina corresponde o acorde de sol no estado
fundamental (a nota sol é a nota mais grave do
acorde cuja sequência é sol-si-ré) e à fenilalanina
corresponde o mesmo acorde na primeira inversão
(si-ré-sol). O programa atribui ainda ritmos de acor-
do com a frequência de codões.
Aquilo que aparentemente seria apenas uma
pequena brincadeira que unia a ciência e a música
tornou-se, segundo Rie Takahashi, uma ferramenta
de ensino para estudantes de Medicina. “Algumas
vezes é mais fácil ouvir padrões que vê-los”. A ci-
entista deu o exemplo da doença de Huntington,
um problema neurológico hereditário que causa
falta de coordenação e distúrbios de personali-
dade. Esta doença é causada por uma repetição
de determinados aminoácidos. Escutando a músi-
ca gerada pela sequência de aminoácidos do gene
Meio de Cultura
Gene2Music, a criatividade ao serviço da ciência
Claúdio Santos
Huntingtin, torna-se evidente essa repetição de um
mesmo padrão, o que indicia algo errado (1).
Rie acredita que, no futuro, a análise de se-
quências de aminoácidos por meio da música pode
levar a avanços científicos. “Conseguir ouvir as se-
quências pode-nos ajudar a encontrar padrões que
não percebemos antes.”
Também é possível criar música muito
agradável de se ouvir a partir da música gerada
pelo Gene2Music. Exemplo disso é uma variação
criada pela autora do projecto, a partir da sequên-
cia de aminoácidos da enzima ThyA.
Esperemos não só que Rie esteja certa na sua
intuição, como também que mais ideias criativas
deste género surjam. O mundo para evoluir precisa
de ideias, e as ideias advêm da criatividade. Que
o exemplo de Rie sirva de modelo para todos nós.
http://www.mimg.ucla.edu/faculty/miller_jh/gen-
e2music/AUDIO/Huntingtin.mp3 , ou, de forma
abreviada, http://tinyurl.com/huntingtin .
http://www.mimg.ucla.edu/faculty/miller_jh/gen-
e2music/AUDIO/ThyA_variation.mp3 , ou, de
forma abreviada, http://tinyurl.com/variacao .
Fig.1 - Pauta de música criada através do Gene2Music
23. mRNA | Maio 201423
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