1. Ano 4 • n. 2 • jul./dez. 2004 - 193
ÁGORA FILOSÓFICA
As três formas de amizade
na ética de Aristóteles
Nadir Antonio Pichler1
Resumo: o artigo investiga sucintamente, no contexto da filosofia prática
aristotélica ou do agir moral, restrito ao tratado da Ética a Nicômacos, a virtude
da amizade, subdividido em três formas. Além do conceito, abordaremos a
amizade na utilidade, comum na maioria dos homens, voltada para os interesse
pessoais; a do prazer, centrada na reciprocidade acidental, inclusive temporária.
Estas duas formas são consideradas, devido a sua finalidade, de efêmeras.
E, posteriormente, a amizade perfeita, a verdadeira, porque pressupõe uma
reciprocidade substancial, um compromisso ético, com fim em si mesmo, em
busca do bem, gerador de felicidade. Por último, algumas particularidades
referentes à philia. Palavras-chave: amizade, utilidade, prazer, bem e
felicidade.
Abstract:thispapermakesasuccinctinvestigation,inthecontextofAristotelian
practical philosophy or of moral acting and restricted to the treatise of the Ética
a Nicômacos, (Nicomachean Ethics) of the virtue of friendship, sub-divided
into three forms. Besides the concept, we shall approach friendship in the utility,
common in most men, aimed at personal interests; that of pleasure, centered on
accidental reciprocity, including temporarily. These two forms are considered
as ephemeral, due to their finality. And, afterwards, perfect friendship, the true
one, because it pre-supposes a substantial reciprocity, an ethical compromise,
as an end in itself, seeking the good, the generator of happiness. Last of all,
some particularities with reference to philia. Key-words: friendship, utility,
pleasure, good and happiness.
Introdução
Duas são as razões apresentadas por Aristóteles para justificar
a abordagem da amizade: ela é uma virtude e extremamente
necessária à vida. Para viver bem, segundo Aristóteles, é essen-
cial agir moralmente, isto é, procurar alcançar um equilíbrio nas
ações humanas, acompanhado de alguns bens materiais e amigos
idôneos, pois, ninguém é feliz sozinho.
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DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
A amizade verdadeira só é possível entre amigos que
privilegiam a reciprocidade e a lealdade, enfim, entre os amigos
bons, em que a convivência tem fim em si mesma (fazer o bem) e
não como meio para alcançar riquezas e honras.
Eis algumas razões para refletirmos sobre a virtude da
amizade, na concepção de Aristóteles, principalmente, nos dias
atuais, tão carentes de valores morais afetivos, caracterizados
pela fragmentação da subjetividade, a desagregação familiar e o
processo de desinteresse social e político. É cada vez mais acen-
tuada a emergência do direito do indivíduo a subjetividade, quer
dizer, o “mínimo” de compromisso afetivo, moral e político e o
máximo de consumo e ativismo, proporcionando uma crise de
sentido à vida. A preocupação de estabelecer parâmetros de con-
duta moral e social aos indivíduos e aos cidadãos, por meio da
philia, parece continuar pertinente atualmente. Aristóteles nos dá
alguns horizontes de reflexão e compreensão.
O artigo investiga sucintamente, no contexto do pensa-
mento aristotélico, a virtude da amizade, as três espécies de ami-
zade, ou seja, a amizade na utilidade, a amizade no prazer e a
amizade perfeita, e algumas particularidades referentes a philia.
1 A amizade no contexto da divisão das ciências aristotélicas
O tema da amizade abordado por Aristóteles insere-se na
área do conhecimento das ciências práticas, constituídas pela Éti-
ca e pela Política. O fim dessas ciências é buscar o saber em fun-
ção de uma conduta moral apropriada para o indivíduo, enquanto
sujeito moral e membro da comunidade política, da pólis grega. O
objeto de investigação da “filosofia das coisas humanas”2
, são os
“fatos da vida”, ou seja, o ethos local, o costume, o comportamen-
to moral historicamente dado pela tradição helênica. Essa condu-
ta ética atualiza-se no homem agindo de acordo com as virtudes
(arete), e, de modo equilibrado via mediania (mesotes), em busca
do bem supremo (a eudaimonia), conforme a finalidade (telos) da
natureza humana, sempre orientada pela sabedoria prática (phro-
nesis). As ciências práticas analisam a realidade contingente, mu-
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tável, do devir moral e são hierarquicamente inferiores às ciências
teoréticas3
. A Ética e a Política visam à preparação do indivíduo
para o agir moral em busca da perfeição, baseado na prática das
virtudes (temperança, coragem, liberalidade, justiça, prudência)
e na vida boa na pólis, como partícipe das decisões políticas da
cidade.
2 Conceito de amizade
Aristóteles dedica os Livros VIII e IX da Ética a Nicô-
macos à amizade4
. Segundo Giovanni Reale, três seriam as razões.
Primeiramente, a philia é estruturalmente intrínseca à virtude e à
felicidade, portanto um dos problemas centrais da Ética. Em se-
gundo lugar, Sócrates e Platão já haviam analisado filosoficamen-
te tal tema5
. E terceiro, a sociedade grega dava à amizade uma im-
portância mais significativa, diferente das sociedades modernas6
.
José Arthur Gianotti destaca os aspectos da benevolên-
cia, da reciprocidade e do bem querer, plenamente sublinhados
por Aristóteles na Ética a Nicômacos7
. A benevolência quer o
bem para o outro, somente o bem. Seguindo essa característica
vem a reciprocidade, o desejo de ser bem correspondido nas re-
lações afetivas. Escreve Aristóteles: “Para que as pessoas sejam
amigas, deve-se constatar que elas têm boa vontade recíproca e se
desejam bem reciprocamente”8
.
Finalmente, o bem querer, a busca do bem em si mesmo,
não como meio, mas como fim. O que fundamenta a amizade é o
bem querer: “E, quando duas pessoas se amam, elas desejam bem
uma à outra referindo-se a qualidade [amor mútuo] que funda-
menta a sua amizade”9
.
Parece que, nessa frase, Aristóteles procura definir a
amizade10
.
Aristóteles, ao analisar a natureza da amizade, enuncia
que ela é uma excelência moral ou virtude, tornando-se uma ati-
vidade filosófica e extremamente necessária à vida. Assim:
A philia tem o caráter de um hábito; ela é a expres-
são de uma determinada atitude moral e intelectual
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que visa ao amor recíproco entre amigos, baseado
numa decisão livre da vontade, em que cada um de-
seja o bem para o outro11
.
Ninguém gostaria de passar a vida sem amigos, mesmo
possuindo todos os bens12
. A amizade também ajuda os jovens a
encontrarem mais sentido à existência e a se afastarem dos vícios.
E, aos mais velhos, ajuda-os a ocuparem melhor o seu tempo. Ela
também parece manter unidos os Estados.
Em seguida, o estagirita conclui dizendo que a amizade é
mais que necessária, é nobilitante. E uma das coisas mais nobres
é ter amigos, sendo que a amizade e a bondade se encontram nos
mesmos homens13
. Assim, para a amizade ser verdadeira, requer-
se desejo e intimidade, mas sempre orientada pela razão, que for-
nece aos desejos o equilíbrio necessário.
3 As três espécies de amizade
E, ao tecer considerações acerca do caráter e dos sen-
timentos dos homens, Aristóteles investiga três questões: Se a
amizade pode manifestar-se entre quaisquer pessoas? Se pessoas
más podem ser amigas? E se há somente uma espécie de amizade
ou mais de uma?14
É em função do bem querer que se distinguem três es-
pécies de amizade. Três também são os valores que se buscam,
ou seja, as coisas que os homens amam e pelas quais desenvol-
vem as formas de amizade: pelo útil, pelo prazer e pelo bem15
.
Sir David Ross, filósofo escocês, justifica as espécies de amizade
de Aristóteles como ilustração da natureza essencialmente social
do homem e classifica-as em três planos: no plano inferior, os
homens possuem necessidade de amizades úteis, porque não são
auto-suficientes. No plano intermediário, estabelecem-se amiza-
des por prazer, visando a atualizar o prazer natural decorrente do
convívio com os amigos. E no plano mais elevado, constituem-se
“amizades por bondade”, onde há uma reciprocidade na partilha
do verdadeiro significado de viver o melhor da vida – amizade
enquanto fim. Assim, deseja-se o bem ao amigo por amor ao ami-
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go16
. Nesse sentido, três são os valores17
que se buscam, ou seja,
as coisas que o homem ama e pelas quais desenvolve as espécies
de amizade. Escreve Aristóteles:
Há, portanto, três espécies de amizade, em núme-
ro igual às qualidades que merecem ser amadas
[...], e quando duas pessoas se amam elas desejam
bem uma à outra referindo-se à qualidade que fun-
damenta a sua amizade [...]. Logo, as pessoas que
amam as outras por interesse amam por causa do
que é bom para si mesmas, e aquelas que amam por
causa do prazer amam por causa do que lhes é agra-
dável, e não porque a outra pessoa é a que amam,
mas porque ela é útil ou agradável. Sendo assim,
as amizades desse tipo são apenas acidentais, pois
não é por ser quem ela é que a pessoa é amada, mas
por proporcionar à outra algum proveito ou prazer.
Tais amizades se desfazem facilmente se as pessoas
não permanecem como eram inicialmente, pois se
uma delas já não é agradável ou útil a outra cessa
de amá-la [...]. Portanto, desaparecendo o motivo
da amizade esta se desfaz, uma vez que ela existe
somente como meio para chegar a um fim18
.
Analisaremos, de modo geral, cada uma destas espécies
de amizade e, posteriormente, algumas de suas particularidades.
3.1 A amizade baseada na utilidade
Os homens que buscam a amizade em função da utilida-
de, visam reciprocamente algum bem imediato, como riquezas ou
honras. Estruturam-se amizades não em vista do fim em si mes-
mo, mas como meio de adquirir vantagens. Por isso, a maioria dos
homens, devido à ambição, prefere ser amada a amar, ser adulada
a adular. Quem gosta de honrarias, prefere ser distinguido por
cidadãos detentores de poder, para, futuramente, receber favores
pessoais19
. Essa amizade é acidental e se desfaz facilmente, pois
está estruturada em motivações extrínsecas, sem consistência de
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bondade, pois os que são amigos por causa da utilidade separam-
se quando cessa a vantagem, porque não amam um ao outro, mas
apenas o que é vantajoso.
Aamizade baseada na utilidade é própria de homens com
espírito mercantil, que mantêm relações de trocas de produtos e
subsiste enquanto há vantagem. E essa espécie de amizade, com
vistas à utilidade, desenvolve-se mais facilmente entre o pobre e
o rico, entre o iletrado e o culto, porque um almeja encontrar no
outro o que lhe falta20
, sendo as amizades dessa classe repletas de
queixas e censuras, onde os amigos não lhe dão tudo o que “ne-
cessitam e merecem”.
3.2 A amizade centrada no prazer
A amizade baseada no prazer é semelhante à útil. Bus-
ca-se o prazer recíproco no convívio entre amigos. A amizade é
estável enquanto persistir esse elo prazeroso. Ama-se em função
do aprazível. Aristóteles elucida aqui, por exemplo, o prazer en-
tre o amante e a pessoa amada e nos jovens que vivem buscando
emoções e perseguem acima de tudo o agradável. Mas os praze-
res dos jovens mudam conforme a idade. Por isso eles se tornam
amigos e deixam de ser amigos tão rapidamente. A amizade muda
conforme o objeto que lhes é agradável21
.
Essas duas formas de amizade são, portanto, acidentais.
A verdadeira e autêntica amizade é entre os homens bons e virtu-
osos. Por si mesmos, só os homens bons podem ser amigos. En-
quanto a amizade efetuada na utilidade e no prazer, até os maus
podem ser amigos uns dos outros, ou até mesmo os bons podem
ser amigos dos maus, desde que a amizade traga vantagem22
.
3.3 A amizade ideal e perfeita
A amizade baseada na bondade e na virtude é considera-
da por Aristóteles como completa e perfeita, pois visa somente ao
bem para o amigo e possui uma estrutura de durabilidade. O fim
proposto é o bem em si mesmo. Eis as palavras do estagirita:
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A amizade perfeita é a existente entre as pessoas
boas e semelhantes em termos de excelência moral;
neste caso, cada uma das pessoas quer bem à outra
de maneira idêntica, porque a outra pessoa é boa, e
elas são boas em si mesmas. Então as pessoas que
querem bem aos seus amigos por causa deles são
amigas no sentido mais amplo, pois querem bem
por causa da própria natureza dos amigos, e não por
acidente; logo, sua amizade durará enquanto estas
pessoas forem boas, e ser bom é uma coisa dura-
doura23
.
Nessa forma de amizade, os que amam um amigo, amam
o que é bom para eles mesmos. O homem bom torna-se um bem
para o amigo24
. Assim, essa boa vontade se aperfeiçoa e atua no
outro como bondade moral. Essa bondade é princípio e fonte de
amizade. Ama-se o outro amigo por aquilo que ele é. É a verda-
deira forma de amizade porque o fim é em si mesmo, centrado no
valor do homem e não como meio para obter vantagens (riquezas
e honras). Por isso se diz que o amigo é um outro eu. Ele é pos-
sibilidade de autoconhecimento25
. Conhecemo-nos olhando para
o outro. Devido a nossa finitude existencial, procuramos atingir
a perfeição moral no espelhamento do outro26
. Isso não isenta o
homem de sua responsabilidade moral e social. Querer bem ao
amigo é agir em consonância com o princípio da benevolência. E,
para atingir esse grau de certa forma padrão de amizade requer-se
tempo e familiaridade. Aristóteles realça que a amizade entre os
bons não é muito freqüente, porque os homens que a praticam são
raros27
.
As espécies de amizade centradas no útil e no prazer
também são boas. Os homens que querem o bem aos amigos por
causa deles e não por interesses ou vantagens são amigos no sen-
tido mais amplo, pois querem o bem por natureza e não por aci-
dente.
Parece que Aristóteles sublinha que o amar é a virtude
essencial na convivência entre amigos. Ela passa a ser uma dispo-
sição de caráter, um habitus, algo adquirido pela prática de amar,
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igualmente na justa medida, que é característica da virtude ou
excelência moral. Diz exatamente Aristóteles:
Já que a amizade depende mais de amar do que ser
amado, e são as pessoas que amam seus amigos que
são louvados, amar parece ser uma característica
da excelência moral dos amigos, de tal forma que
somente as pessoas em que tal característica está
presente na mediania certa são amigos constantes,
e somente sua amizade é duradoura28
.
Portanto os amigos são realmente um grande bem. Pas-
sar os dias junto com eles é algo muito prazeroso29
. Por outro
lado, passar os dias junto com pessoas não agradáveis é doloroso,
e parece ser contra a natureza humana. Também é característico
dos homens bons não fazer mal a eles mesmos nem permitir que
seus amigos o façam30
. O verdadeiro amigo, se for necessário, dá
a vida pelo amigo e pela pátria. Devido a sua bondade, renuncia
riquezas, honras e competições, preferindo um breve período de
intenso prazer, a um contentamento aparente, tornando-se nobre
e justo31
. Assim, os amigos compartilham sua amizade, reunindo-
se para beber juntos, jogar dados, praticar atletismo, caçar, e até
mesmo para estudar filosofia32
.
Em suma, Aristóteles considera a amizade necessária à
felicidade. Ela entra no catálogo dos bens superiores. De certo
modo, a felicidade verdadeira depende da amizade. Ao mesmo
tempo, a natureza do homem é ser social, tendo necessidade dos
outros para compartilhar seus bens espirituais, ou seja, ser virtu-
oso e feliz. Por isso o homem feliz tem necessidade de amigos.
Ninguém é bom somente para si mesmo. Precisamos dos amigos
tanto nos momentos de prosperidade como nos de dificuldades.
Isolados não somos sujeitos éticos. Precisa Aristóteles:
Outra questão muito debatida é saber se uma pessoa
feliz necessita ou não de amigos. Diz-se que as pes-
soas sumamente felizes e auto-suficientes não ne-
cessitam de amigos, pois elas já têm as coisas boas
e, portanto, sendo auto-suficientes, não necessitam
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de qualquer outra coisa, ao passo que a função de
um amigo, que é um outro “eu”, é proporcionar as
coisas que a própria pessoa não pode obter [...]. É
sem dúvida estranho, também, fazer do homem su-
mamente feliz um solitário, pois ninguém desejaria
todo o mundo com a condição de estar só, já que
o homem é um animal social e um animal para o
qual a convivência é natural. Logo, mesmo o ho-
mem feliz tem de conviver, pois ele deve ter tudo
o que é naturalmente bom. É obviamente melhor
passar os dias com os amigos e boas pessoas do
que com estranhos e companheiros casuais. Conse-
qüentemente, o homem feliz necessita de amigos33
.
A amizade é um comportamento dirigido para o outro.
É um momento essencial da vida feliz e implica reconhecimento,
bondade e reciprocidade. Assim, atinge-se a expansão social do
eu. Ela é um valor ou um telos que nos conduz à eudaimonia, à
felicidade como experiência e vivência da plenitude humana, me-
diada com amigos bons e vida contemplativa34
.
E, quando a philia atinge sua plenitude na convivência
entre amigos bons, pois os amigos são considerados o maior dos
bens exteriores, a virtude da justiça não se faz necessária enquan-
to critério regulador de relações pessoais e coletivas. Por outro
lado, para ser justo é necessária a virtude da amizade. Assim se
expressa Aristóteles: “Quando as pessoas são amigas não têm ne-
cessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas ne-
cessitam da amizade; considera-se que a mais autêntica forma de
justiça é uma disposição amistosa”35
.
4 Algumas particularidades sobre a amizade
Passaremos agora a investigar algumas particularidades
da amizade ainda.
Sobre a quantidade de amigos,Aristóteles inicia sua aná-
lise partindo de um pressuposto da tradição abordado por Hesío-
do, expresso na seguinte frase: “Não ser homem de muitos convi-
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DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
dados, nem homem de nenhum”36
. Para solucionar esse problema,
Aristóteles recorre ao meio-termo (mesotes), marca registrada no
sistema aristotélico e, principalmente, ao estudo do dever ser éti-
co, onde propõe nem excesso nem falta, solução característica da
marca helênica no estagirita. Assim, dentre a espécie de amigos
bons e virtuosos, somente alguns são necessários e possíveis de-
vido a nossa condição humana de convívio. Na convivência na
pólis, com os concidadãos, é possível ser amigo de muitos, pois
essa amizade é de cunho mais social e direcionado para discussão
e deliberação de questões políticas. O excesso de amigos torna
nossa existência inviável e é um obstáculo à vida nobre37
.Ao mes-
mo tempo, os homens que têm muitos amigos, passam a não ser
amigos de ninguém. Escreve Aristóteles:
Mas é óbvio que uma pessoa não pode conviver com
muitas outras nem dividir-se entre elas [...]. Presu-
me-se, então, que é bom não procurar ter tantos ami-
gos quantos pudermos, mas tantos quantos bastarem
para efeito de convivência, pois parece realmente
impossível ser um grande amigo de muitas pesso-
as [...]; logo, também uma grande amizade somente
pode ser sentida em relação a poucas pessoas38
.
Outro aspecto da amizade destacada por Aristóteles é se
convém ou não romper a amizade com os amigos. As amizades
baseadas na utilidade e no prazer são facilmente rompidas quan-
do cessam os atributos de utilidade ou de aprazibilidade, con-
forme já enunciamos anteriormente. Deve-se romper a amizade
entre os bons, quando eventualmente um amigo se torna mau,
pois a amizade verdadeira só ocorre entre os bons. Mas, se as
atitudes morais de nossos amigos forem passíveis de mudanças,
devemos procurar ajudá-los, no que se refere tanto ao caráter
quanto aos bens materiais. Mas, se, no decorrer do tempo, per-
cebe-se que o amigo não mudou de procedimento moral, é lícito
abandoná-lo39
.
Quanto à amizade entre pais e filhos, deve-se valorizar
os pais de modo semelhante à honra estendida aos deuses. Os
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pais amam os filhos como partes de si mesmos. Os filhos são uma
espécie de outros “eus”40
.
Às pessoas mais velhas deve-se prestar igualmente as
honras apropriadas às suas idades, como, por exemplo, levantar-
se para recebê-las e procurar lugares para elas se sentarem.
Considerações finais
Enfim, para concluir, pode-se dizer que o homem feliz é
o homem satisfeito consigo mesmo, que se ama e ama seus ami-
gos de forma generosa e desinteressada. A amizade é uma forma
de coroamento da vida virtuosa e a maior fonte de felicidade para
o homem. A amizade é o desabrochar em plenitude da natureza
humana em suas dimensões individual e social41
.
E a plenitude da natureza humana se realiza na vida ati-
va, na ação, praticando as virtudes da justiça, da temperança, da
coragem, da prudência. A prudência é a capacidade de escolher
bem entre dois extremos, nem falta nem excesso, mas uma justa
medida de equilíbrio, procurando ser bom, praticando atos justos
não por coação, mas por uma disposição interior de querer fazer
o bem na convivência com amigos bons, sentindo uma satisfação
profunda de bem estar, idêntica à vida contemplativa, a vida de-
dicada do filósofo em busca da sabedoria suprema, o saber total,
atingido pela prática das virtudes morais e virtudes intelectuais,
alcançando a felicidade completa. Portanto, na convivência com
os amigos, sente-se essa satisfação total, a realização humana na
sua plenitude de ser, realizando a finalidade (telos) da existência
humana que é ser feliz. Assim, “a amizade é uma parte estrutu-
rante da felicidade, entendida como vida boa e boa conduta”42
.
Nos dias atuais, estamos tão carentes de amigos bons e virtuo-
sos.
A amizade é importante porque (re) estabelece as rela-
ções de generosidade e confiança, proporcionando sentido à exis-
tência. Diante do ativismo da vida moderna, quase não se tem
tempo e até nem mesmo desejo de tê-lo, e são raras as pessoas
que se dedicam à vida intelectual, a um estudo profundo em busca
12. 204 - UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
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dos conhecimentos últimos do ser, do agir e do fazer, fontes de
felicidade, segundo Aristóteles.
Notas
1
Mestre em Filosofia e professor da Universidade de Passo Fundo - RS
2
ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Traduzido por Mário da Gama Kury.
3 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, X, 9, 1181 b 16, p.
210.. Nas próximas citações, estaremos nos referindo a esta tradução e só
utilizaremos a sigla EN.
3
Formadas pela Metafísica, Física e Matemática. Estas têm como objeto de
estudo os primeiros princípios e as causas últimas do ser, isto é, a realidade
universal. O fim dessas ciências é a busca do saber em função de si mes-
mo, em função do ser. Busca-se o saber pelo saber. O terceiro grupo, na
distinção do conhecimento de Aristóteles, são as ciências poiéticas ou pro-
dutivas, formadas pela Poética e pela Retórica. O fim destas é o saber em
função do fazer, ou seja, produzir objetos, instrumentos, como um discurso
numa assembléia ou uma representação teatral, com regras e conhecimen-
tos técnicos.
4
O Livro VII, da Ética a Eudemo e alguns textos da Magna Moralia, tam-
bém tratam especificamente da amizade. Essas três obras constituem, o que
pode ser considerado, o Tratado Ético de Aristóteles.
5
Uma análise da philia em Platão, caracterizando-a como uma reflexão que
perpassa todo sistema platônico à procura da verdade, encontra-se em Or-
tega, Francisco, Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras LTDA,
2002, p. 25-36.
6
REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Traduzido por Henrique
Lima Vaz e Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1994, v. II, p. 422. – (Série
História da Filosofia).
7
GIANOTTI, José Arthur. O amigo e o benfeitor: reflexões sobre a filia do
ponto de vista de Aristóteles. Analytica, Rio de Janeiro, n. 03, 1996, p.
168.
8
EN, VIII, 2, 1156 a 4-5, p. 155.
9
EN, VIII, 3, 1156 a 11-13, p. 155.
10
Cícero, ao definir a amizade, assim se expressa: “A amizade é uma suma
harmonia nas coisas divinas e humanas, com benevolência e amor. Dons
tão grandes, que não sei se os Deuses concederam [exceto a sabedoria] ou-
tro maior aos mortais” (CÍCERO. Diálogo sobre a amizade. Trad. de José
Perez. São Paulo: Cultura Moderna, [s.d.], p. 37).
11
ORTEGA, 2002, p. 37.
12
EN, VIII, 1, 1155 a 3-6; 12-13; 24-26, p. 153.
13
EN, VIII, 1, 1155 a 33-36, p. 154.
14
EN, VIII, 1, 1155 b 8-13, p. 154. Segundo Ortega, Platão desenvolve a
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philia na perspectiva ontológica, almejando o ideal de “amizade perfeita”
(proton philon), realizável no Mundo das Idéias transcendentes; enquanto
Aristóteles, preserva o núcleo platônico de amizade, identificando-a com o
bem, dando um caráter imanente (teleia philia), de cunho fenomenológico,
focalizando a amizade na vontade recíproca entre amigos. Assim, “Aris-
tóteles transformaria a noção platônica de uma idéia transcendental para
um tipo sociológico, o qual, embora difícil de atingir, constitui o critério
que guia a análise e avaliação de todas as formas de philia. A amizade é
explicável sem referência a um bem transcendental a nossa experiência
empírica, considerando a sociabilidade humana como um fato original. O
estagirita focalizará a sua abordagem na própria personalidade do amigo e
não na essência eterna da philia, como fizera o mestre” (2002, p. 39).
15
ORTEGA, 2002, p. 39-40 e MORAES NETO, Joaquim José de. A amiza-
de em Aristóteles. Londrina: Ed. UEL, 1999. p. 27-34.
16
ROSS, Sir David. Aristóteles. Trad. de Luís F. Bragança S.S. Teixeira.
Lisboa: Dom Quixote, 1987. p. 235.
17
REALE, 1994, p. 442 e RODHEN, Luiz. Amizade, entre filosofia e educa-
ção. In: PIOVESAN, Américo (org.). Filosofia e ensino em debate. Ijuí:
Ed. Unijuí, 2002. p. 117-118. – (Coleção filosofia e ensino, 2).
18
EN, VIII, 3, 1156 a 8-28, p. 155. Grifo do autor.
19
EN, VIII, 8 1159 a 18-28, p. 162.
20
EN, VIII, 8, 1159 b 11-15, p. 163.
21
EN, VIII, 3, 1156 a 39-48, p. 156.
22
EN, VIII, 4, 1157 a 8-13, p. 157. “Logo, a atividade das pessoas más é má
[por causa de sua instabilidade elas se unem em atividades más, e além dis-
to passam a ser más por tornarem semelhantes umas às outras], enquanto a
atividade das pessoas boas é boa, sendo incrementada por seu companhei-
rismo” (EN, IX, 12, 1172 a 6-9, p. 190). “Sem a maturidade da razão, não
há pois amizade durável. A diversidade de gostos, desune as amizades: e
se os bons não podem amar os maus, nem os maus amar os bons, é uni-
camente a dessemelhança dos seus costumes e gostos que o determina”
(CÍCERO, Diálogo sobre a amizade., p. 113).
23
EN, VIII, 3, 1156 a 48-50 e b 1-5, p. 156.
24
“Parece-me que a verdadeira amizade é mais rica e mais generosa: não cal-
cula com exatidão com medo de oferecer mais do que recebeu. Não se deve
temer na amizade que se vá dar demais ou que se vá perder alguma coisa”
(CÍCERO, Diálogo sobre a amizade, p. 90). E o fundamento da amizade se
expressa na confiança. Sem ela, nada é estável (Ibid, p. 101 e RODHEN,
2002, p. 119).
25
“Porque o verdadeiro amigo vê o outro como uma imagem de si mesmo”
(CÍCERO, Diálogo sobre a amizade, p. 41) e ORTEGA, 2002, p. 41.
26
Na visão de Cícero, o olhar do outro requer dar e receber conselhos, evi-
tando adulações: “Pois que é próprio da verdadeira amizade dar e receber
conselhos, dá-los com franqueza e sem azedume, recebê-los com paciência
14. 206 - UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
e sem repugnância, persuadamo-nos bem [de] que não há defeito maior na
amizade que a lisonja, a adulação, as baixas complacências” (CÍCERO,
Diálogo sobre a amizade., p. 141).
27
EN, VIII, 3, 1156 b 21-23, p. 159 e GIANOTTI, 1996, p. 169.
28
EN, VIII, 8, 1159 a 42-47, p. 162. Uma análise significativa da amizade,
encontra-se no livro de ALBERONI, Francesco. Amizade. Traduzido por
de Wilma Lucchesi. Rio de Janeiro: Ed. Rocco LTDA, 1989.
29
Para Tomás de Aquino, amar é fazer o outro feliz (ALBERONI, 1989, p.
9).
30
EN, VIII, 8, 1159 b 4-6, p. 162-163. Para Cícero, a primeira lei da amizade
é ser honesto com os amigos, demonstrar-lhes zelo, dar conselhos (Diálogo
sobre a amizade, p. 73).
31
EN, IX, 8, 1169 a 23-35, p. 184-185.
32
EN, IX, 12, 1172 a 1-3, p. 190.
33
EN, IX, 9, 1169 b 3-27, p. 185 (grifo do autor) e REALE, 1994, p. 425.
34
Ortega observa que esta forma de amizade ideal (teleia philia) é pouco
freqüente, quase impossível de realização, e que ela serve de modelo para
avaliar as espécies de amizade. Por outro lado, a tradição filosófica identi-
ficou o ideal de amizade perfeita como padrão para desqualificar as outras
espécies de amizade, nominando-a como amicitia perfecta, vera amicitia,
amicitia cristiana, amicitia dei, fazendo da philia um estudo perfeito, su-
blime, desconsiderando a realidade contingente e ambígua no qual está in-
serido o homem existencial (ORTEGA, 2002, p. 40).
35
EN, VIII, 1, 1155 a 29-32, p. 153-154; noutra passagem, VIII, 9, 1160 a
9-12, p. 164, Aristóteles diz que conforme aumenta o grau de justiça, au-
menta a amizade, sendo nesse caso coextensivas entre as mesmas pessoas.
Ver ORTEGA, 2002, p. 44.
36
EN, IX, 10, 1170 b 28, p. 187 e HESÍODO, Trabalhos e dias, 750.
37
ROHDEN, 2002, p. 120.
38
EN, IX, 10, 1170 b 48-57; 1171 a 1-3, p. 188.
39
EN, IX, 3, 1165 b 17-25, p. 177.
40
MORAES NETO, 1999, p. 39.
41
PEGORARO, Olinto Antonio. Ética é justiça. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995,
p. 75.
42
ORTEGA, 2002, p. 40.
Referências
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ROSS, Sir David. Aristóteles. Trad. de Luís F. Bragança. Teixeira. Lis-
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