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UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR
MESTRADO EM FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
MÁRCIA MARIA PIMENTA MATTOS
FUNÇÕES PARENTAIS:
A PROBLEMATIZAÇÃO FREUDIANA SOBRE DESEJO E DEVER
Salvador
2005
MÁRCIA MARIA PIMENTA MATTOS
FUNÇÕES PARENTAIS:
A PROBLEMATIZAÇÃO FREUDIANA SOBRE DESEJO E DEVER
Dissertação apresentada à Universidade Católica
do Salvador como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Família
Contemporânea.
Orientador: Prof. Dr. José Euclimar Xavier de
Menezes.
Salvador
2005
Elaborado por: Valdete Silva Andrade
CRB-Ba.-05/941
M444 Mattos, Márcia Maria Pimenta
Funções parentais: a problematização freudiana sobre desejo e
dever / Márcia Maria Pimenta Mattos.– Salvador, 2005.
154f.
Dissertação (Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea)
– Universidade Católica do Salvador, 2005.
Orientador: Prof. Dr. José Euclimar Xavier Menezes
1. Psicanálise. 2. Função paterna. 3. Revisão epistemológica. I.
Menezes, José Euclimar. II.Universidade Católica do Salvador. III.
Título.
CDU: 159.964.2
UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR
MESTRADO EM FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
MÁRCIA MARIA PIMENTA MATTOS
FUNÇÕES PARENTAIS:
A PROBLEMATIZAÇÃO FREUDIANA SOBRE DESEJO E DEVER
Dissertação para obtenção do grau de Mestre em Família na Sociedade Contemporânea
Salvador, 17 de outubro de 2005.
Banca Examinadora:
______________________________________________________________________
Profa. DENISE MARIA BARRETO COUTINHO
Doutora pela Universidade Federal da Bahia
______________________________________________________________________
Profa. ANAMÉLIA LINS E SILVA
Doutora pela Universidade Federal da Bahia
______________________________________________________________________
Prof. JOSÉ EUCLIMAR DE MENEZES
Orientador
Doutor pela UNICAMP
A meus pais, pela chance desta existência.
Às minhas três filhas, pela oportunidade
de experimentar o sabor e o saber da
maternidade.
AGRADECIMENTOS
Ao Instituto João Paulo II e à Universidade Católica de Salvador por viabilizarem o mestrado.
Ao Bispo João Carlos Petrinni pela crença e determinação em transformar seu sonho, num
sonho coletivo e realizável.
Aos mestres e colegas pela transmissão do saber, pelo exercício da troca e da convivência
amistosa.
Ao amigo e confidente, fiel incentivador, crítico contumaz , porto seguro para as travessias
turbulentas e para todos os ensaios de desistência. Sujeito de suposto e de verdadeiro saber.
Interlocutor compulsivo e instigador. Meu orientador Prof. José Euclimar de Menezes.
À doce Virgínia pelo seu acolhimento, pelo colo, ombro e por me fazer acreditar, mesmo nos
momentos mais críticos, que era possível me tornar uma mulher e um ser humano melhor.
Aos ex-companheiros que possibilitaram a constituição da minha família: a gratidão pela
experiência de me fazer mãe e o despertar para o reconhecimento do lugar paterno.
Muitos foram os que me permitiram chegar até aqui: família, amigos, colegas de trabalho,
alunos, superiores hierárquicos.
A todos aqueles que, de alguma forma, sempre conseguiram entender, respeitar e tornar-se
cúmplice dos momentos de ausência, da minha reclusão, das oscilações de humor, fica a
minha profunda gratidão.
És para mim como alimento para a vida,
como os aguaceiros de maio para a terra, e pelo
teu amor me atormento tanto, como o avarento
pena pelo ouro seu, que de possuí-lo ora exulta,
mas logo teme que seus tesouros desapareçam
com o tempo: e ora deseja estar unicamente junto
de ti, ora que o mundo admire o meu prazer,
saciado às vezes somente por ver-te, e logo
esfomeado de seu olhar; e não existe alegria que
eu tenha ou persiga, se de ti não espero ou não
me sobra. Assim devoro e desfaleço, voraz, tudo
aferrando e morrendo de fome.
Shakespeare
RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo analisar o conceito de paternidade ou de função paterna,
definido por Freud através do pensamento psicanalítico, com propósito de compreender o que
sobrevive do entendimento desta função nos novos arranjos familiares identificados na
sociedade contemporânea. O presente estudo pretende aprofundar-se, com o recurso
metodológico da pesquisa epistemológica do texto freudiano, na formação da imago paterna e
no seu papel ordenador da subjetividade e da humanização de cada sujeito, a partir da
perspectiva das relações familiares. O interesse se amplia para além da identificação da
diversidade de formas de participação do pai nas estruturas familiares. O que se quer
compreender é o que subjaz da função paterna, modelada por Freud na estrutura familiar
contemporânea. A família, presente nos mais diversos períodos históricos, constituída de
diferentes formas, procura adequar-se às necessidades humanas de cada época. Diante deste
conjunto de relações e de intersubjetividade demarcam-se obrigações para cada um de seus
membros. As imagens e os modelos de comportamento masculino e feminino, fruto de
elaborações culturais historicamente determinadas, devem ser reconhecidos como a base para
as relações entre os sexos e entre as gerações no contexto familiar, definindo os papéis, a
divisão de trabalho e as relações de poder e autoridade, e configurando, ainda, o conjunto de
valores morais, crenças e normas de comportamento para o sujeito e para suas relações
sociais. Estudar o pai ou o lugar que ele ocupa; é compreender a sua função no mundo
contemporâneo. Esse empreendimento tem Freud como um referente poderoso e provocador,
capaz de contribuir na compreensão dessa função ordenadora e fundamental, para a
constituição de cada subjetividade.
Palavras-Chave: Pai; função paterna; família; função da cultura; psicanálise; Freud.
ABSTRACT
The purpose of this dissertation is to analyse the concept of paternity or the concept of the
fatherly function, defined by Freud, with the goal of understanding what survives form the
knowledge of this function in the nem family arrangements found in contemporary society. It
is intended to show an in-depth study using the methodology of epistemologic research of the
freudian text, of the formation of the “father figure” and its ordely part in the subectivity and
humanity of each person, under the perspective of family relationships. The interest goes
beyong the identification of the diversity of ways of participation from the father in family
structures, comprinsing Freud’s theorie. Present in the most diverse historical periods, shaped
in different ways, society looks into adapting to the human needs of each era. In the face of
this group of relations and intersubjectivity, the task for each member are set. The templates
and models of masculine and feminime behaviour, a result of historically determined cultural
elaborations, are recognized as the base for relationships between the genders and generations
in the family context, defining their parts, the share of work, power and authority relations,
and also laying the moral values, faith and norms of behaviour to the person and his/her social
relations. To study the “father” or the place he occupies is the same as investigating the
peculiar nature that describes his function in contemporary society. This entrepreneurship, has
Freud as its provocator reference, being able to contribute in the understanding of this ordely
and fundamental function to the formation of each subjectivity.
Keywords: Father; paternity function; family; cultural function; psycoanalysis; Freud.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
FREUD E A PATERNIDADE 13
A CONTEMPORANEIDADE E A FUNÇÃO PATERNA 18
1 A ORDENAÇÃO PSÍQUICA EM FREUD 21
1.1 A PRÉ-HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: UM PAI AUSENTE 26
1.2 A SEXUALIDADE: CENTRALIDADE NA ORDENAÇÃO PSÍQUICA 38
1.3 OS CASOS CLÍNICOS: O APARECIMENTO DO PAI 51
2 O PRÓXIMO PASSO: FREUD E A NOÇÃO DE FANTASIA 67
2.1 FANTASIAS, TRAUMAS – O REAL E O IMAGINÁRIO SE
CONFUNDEM E SE FUNDEM PARA COMPOR O SUJEITO
73
2.2 FANTASIA E DESEJO – O PAI NÃO MAIS AUSENTE 78
3 A TRIÂNGULAÇÃO DO DESEJO 90
3.1 A SEXUALIDADE INFANTIL: DA POLIMORFIA AO MUNDO DO
OBJETO
98
3.2 ÉDIPO: O MITO DO HERÓI; O RECONHECIMENTO E O SÍMBOLO DA
FUNÇÃO PATERNA
108
3.3 A METÁFORA E O TRIÂNGULO DESIDERATIVO 111
4 A FUNÇÃO ORDENADORA DO PAI 116
4.1 O TOTEM, A HORDA E A ORDENAÇÃO SOCIAL 119
4.2 DO TOTEM AO PAI 124
4.3 O PAI, O SUJEITO DE DESEJO E A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR 133
CONCLUSÃO 146
REFERÊNCIAS 152
10
INTRODUÇÃO
As mudanças que vêm ocorrendo no contexto social desde o final do século XX e que
iniciam este novo século não constituem fenômenos isolados; formam-se como um conjunto
de transformações socioeconômicas, políticas e tecnológicas complexas que se realizam em
ritmo acelerado, nas últimas décadas, cujos resultados demoraremos de conhecer e mensurar.
(GIDDENS, 2000).1
O estudo das diversas formas familiares constitui uma passagem importante para a
compreensão do modo como a sociedade ou um grupo social organiza sua vida cotidiana,
organiza-se sob o ponto de vista material, e como atribuem significados à sua existência no
mundo, à sua colocação no tempo, no espaço e nas relações sociais, afetivas e sexuais.
Particularmente inquietantes são as transformações que atingem as relações afetivas, a
sexualidade, o parentesco, a filiação, a maternidade e a paternidade, não somente porque nos
afetam mais diretamente, como também porque reordenam a identidade social, construção
necessária para dar consistência à subjetividade. Fala-se em polimorfismos das instituições
sociais, dos sistemas de crenças e valores, do trabalho, dos relacionamentos e do modo como
nos representamos. No entanto, uma maior atenção deve estar direcionada às mudanças nas
relações familiares, segundo Lowenkron (2001).
Para Ariès (1981), esse momento cultural tão propício à valorização da
individualidade humana favorece também o desenvolvimento do sentimento de família e do
sentimento de infância. Segundo o autor, esse é um momento de reconhecimento das
particularidades da infância, da importância do afeto e do interesse psicológico pela criança.
1
Giddens afirma que estamos sendo impelidos rumo a uma nova ordem global que ninguém
compreende plenamente e cujos efeitos se fazem sentir sobre todos.
11
Donati (2003) afirma que nunca a convivência entre gênero e gerações foi simples. A
história é a representação de tensões entre gerações, ainda que a família moderna seja palco
de conflitos ainda mais significativos. Na superfície, o problema manifesta-se num
agravamento das dificuldades de comunicação e de identidade de papéis de genitores e de
filhos, de identidade de gêneros e de questões de convivência com outras gerações.
Entretanto, mais do que essa análise empírica, o mal-estar da família, segundo o autor,
remete-se ao fato privado – psicológico – e ao fato público – cultural e social, enquanto é
produzido pela falta ou de limites, ou de falhas na fronteira que definam distâncias, passagens
e solidariedade entre as gerações. Talvez o que deseja pontuar trate do sério esvaziamento de
funções e de identidade entre os atores que constituem a trama familiar.
Eis aqui o eixo que nos permite interrogar sobre a interseção entre o fato privado e o
público. Não seria exatamente a queda de fronteiras, o esvaziamento de sentidos entre o
sujeito e suas relações, entre a dimensão pessoal e a ordenação social que nos remeteria à
moda de justificação, ao pensamento freudiano, para nele reencontrar esse entrelaçamento?
É sobre essa formação de imagos, em especial sobre a imago paterna, que o presente
estudo pretende aprofundar-se, a partir do recurso metodológico da pesquisa epistemológica
do pensamento freudiano.
A escolha feita em relação ao pensamento freudiano pode ser justificada em razão das
contribuições trazidas pela psicanálise e, em especial, pelo reconhecimento, por parte de
Freud, desde os últimos anos do século XIX, de que os produtos da psique humana, ou
melhor, produtos da imaginação típicos das crianças de tenra idade são frutos da tensão de
impulsos inatos e experiências infantis vividas no ambiente da família, na relação inicial da
criança com a dupla parental.
É fato óbvio que os cuidados maternos e a convivência com adultos sempre foram
tomados como referência sobre o comportamento infantil e reconhecidos como verdades
12
antigas, ainda que, até a contemporaneidade, poucos tenham investido no tema com o
propósito da investigação científica.
O trabalho freudiano, em sua particular forma de produção de conhecimento, é,
todavia, abundante em oferecer pistas e referências sobre a importância das experiências
infantis oriundas do enredo familiar, decorrentes da relação da criança com seus pais, como
determinantes do comportamento do sujeito adulto, seja na vida privada ou social.
Talvez nenhum outro campo do pensamento contemporâneo denote a
influência de Freud com mais clareza que o da assistência à infância. [...]
Freud não somente insistiu sobre o fato óbvio de que as raízes de nossa vida
emocional residem na primeira infância e na infância propriamente dita,
como também procurou explorar de maneira sistemática a ligação existente
entre os acontecimentos dos primeiros anos e a estrutura e a função da
personalidade posterior (BOWLBY apud SUTHERLAND,1973, p.35).
13
FREUD E A PATERNIDADE
O foco de interesse deste trabalho reside na reavaliação da função paterna, definido
por Freud através do pensamento psicanalítico, com o propósito de compreender o que
sobrevive do entendimento desta função nos novos arranjos familiares identificados na
sociedade contemporânea. O interesse estende-se para além da identificação da diversidade de
formas de participação do pai nas estruturas familiares. O que se quer compreender mais
amiúde é o que permanece da função paterna dentro do arranjo familiar, típico da sociedade
dos nossos dias. A intenção é resgatar, por meio da contribuição freudiana, conceitos que
ajudem compreender a função paterna e o destino atribuído ao pai.
Ler a obra freudiana com vistas ao entendimento da família e sua ordenação e, em
particular, recortar no seu bojo o papel da função paterna, considerada a originalidade
oferecida pela Psicanálise, no que diz respeito ao enredo edipiano, mostra-se uma tarefa
desafiadora, pela sua abrangência e complexidade, já que o tema tem caráter de centralidade e
perpassa toda a sua produção.
O desafio maior e mais relevante é, antes de tudo, o de penetrar na própria obra de
Freud, seguir o caminho privilegiado de um saber, com suas regras de funcionamento e
referentes específicos, que operam na constituição e na produção desse saber singular – o
saber psicanalítico sobre o sujeito e suas relações de desejo.2
O viés do olhar sobre o enredo familiar e sobre a função paterna no conjunto da obra
freudiana não se mostra uma tarefa fácil. A ordenação epistemológica em Freud tem por
2
Ao se referir à obra de Freud Paul-Laurent Assoun, 1983, destaca o ineditismo freudiano de
constituição do saber, considerando o quanto este modelo transborda, consideravelmente, os modelos
vigentes para o pensamento científico. Reconhece, entretanto, a psicanálise como um modelo de saber
e a epistemologia freudiana como a forma de investigação sobre as condições desse saber
psicanalítico. A originalidade da obra freudiana está na forma como subverte a linguagem do seu
tempo, preservando sua episteme tanto na forma quanto no conteúdo.
14
objetivo permitir um caminho mais seguro no resgate de categorias importantes relacionadas
ao nosso atual interesse.
Assim, delimitaremos este trabalho à análise de textos que permitam objetivar a
construção do nosso propósito: o contorno simbólico auferido ao pai, na base da organização
social, da cultura e da família.
No primeiro capítulo recortamos as contribuições dos textos pré-psicanalíticos, no
intuito de proceder a uma arqueologia do pensamento de Freud na passagem do modelo
fisiológico ao modelo metapsicológico, em que surgem conceitos teóricos importantes sobre a
clínica e terapêutica dos pacientes histéricos, base para a formulação da estrutura desejante do
sujeito, território no qual garimpamos a presença da função paterna.
Iniciar nossa investigação pela influência do pensamento freudiano do final do século
XIX pode-se justificar pela efervescência da atmosfera cultural européia, o movimento
intelectual que acometia artistas, filósofos e pesquisadores de todas as áreas. No que tange à
saúde ou às doenças mentais e emocionais e do interesse sobre o comportamento sexual, os
valores e as inquietações intelectuais, vários foram os nomes de expressão com os quais Freud
conviveu: Charcot, Kafft-Ebing, Meynert, Breuer e Fraser são apenas algumas dessas muitas
referências.
A Viena de Freud, o ambiente do qual herdou influência cultural mais direta, foi palco
de inspiração para o afloramento de muitas idéias originais sobre a vida pública e privada do
homem comum desse período.
Viena no fin-de-siècle, sentindo profundamente os abalos da desintegração
social e política, revelou-se um dos terrenos mais férteis para a cultura a-
histórica do nosso século. Seus grandes inovadores intelectuais – na música
e na filosofia, na economia e arquitetura e, evidentemente, na psicanálise –
romperam, todos eles, e de modo mais ou menos deliberado, seus laços com
a perspectiva histórica essencial para a cultura liberal novecentista em que
foram gerados. (SCHORSKE, 1990, p. 14.)
15
O interesse particular pela observação clínica de pacientes neuróticos aliado à mescla
das influências culturais e científicas que envolveram a formação do jovem médico judeu
contribuíram para a precoce construção de sua peculiar abordagem, tanto no que tange aos
métodos, quanto na compreensão dos fenômenos psíquicos dos sujeitos normais ou
neuróticos. O traço de originalidade do pensamento freudiano pode ser identificado desde os
seus primeiros ensaios.
Nos textos tomados como referência, tanto Projeto para Uma Psicologia Científica
(1895), quanto Estudos sobre Histeria (1893-95), Freud demarca as bases para a compreensão
do funcionamento psíquico dos sujeitos normais e dos neuróticos. Noções sobre o Princípio
da Inércia, o Princípio de Constância, quantum de energia circulante, bem como as funções
da memória, da alucinação, do pensamento e um esboço original de comunicação do bebê
com o adulto, são elementos essenciais para o entendimento do processo de individuação do
sujeito.
O segundo capítulo trata da passagem conceitual da Teoria da Sedução, base de
sustentação da noção freudiana, construída a partir das primeiras observações clínicas sobre o
trauma histérico, para a teoria das fantasias originárias, como referência freudiana quanto à
participação da sexualidade infantil na etiologia das doenças psíquicas, em especial a histeria.
O trabalho com a clínica da histeria permitiu a Freud um embate com as experiências
primordiais do relacionamento entre a criança e os adultos que dela cuidam – seus pais.
A idéia inicial de a histeria ser fruto de uma experiência traumática de sedução
encaminha uma pesquisa cuidadosa sobre a realidade factual e a realidade psíquica dessas
pacientes. Entre uma vivência real de sedução e, na essência, uma cena imaginária de sedução
(o desejo de seduzir), a histérica circula oferecendo um material inconsciente fundamental
para a compreensão do mecanismo de construção de seus sintomas.
16
O percurso freudiano junto a essas pacientes delineou o papel das primeiras
experiências do sujeito com as figuras parentais, definindo, para a psicanálise, uma linha
divisória para uma nova compreensão da psique humana. Tais experiências primevas, suas
marcas e desdobramentos futuros na vida adulta configuram, na visão psicanalítica, a base da
formação do sujeito de desejo.
No capítulo terceiro nossa proposta é demonstrar a triangulação do desejo, constituída
pelo pensamento freudiano, a partir da noção de sexualidade infantil e do Complexo de Édipo,
tendo como obra de referência Três Ensaios sobre a Sexualidade, de 1905. Esta se mostra
fundamental para a pesquisa do complexo familiar e relacional dos sujeitos, elemento que
converge para a função paterna, fulcro de nosso interesse.
O complexo edipiano salientado na singularidade da letra freudiana é a base para a
diferenciação do sujeito, enquanto um ser de desejo, capaz de se relacionar com outro sujeito,
com um outro, objeto de seu desejo. O sujeito tencionado entre dois objetos de amor e ódio: o
pai e a mãe estrutura-se nesse emaranhado complexo de relações e compõe sua formação
psíquico-familiar. Édipo representa, portanto, o jogo de relações que ocorre no interior da
família, que move cada um dos seus componentes.
Desse modo, falar de Édipo é falar de sua mãe, da relação que os caracteriza,
dos desejos nutridos, das tensões que neste entrelaçamento vivem os
humanos. Igualmente é falar do pai, do envolvimento necessário com esta
figura, representante de uma função tão importante no Ocidente: proibição e
prescrição, papel atribuído no ápice da civilização à lei. Logo, qualquer que
seja a porta de entrada para a análise deste Mito transformado em Complexo
mergulhamos, de chofre, no drama familiar que nos caracteriza
enquantosujeitos que representamos e afetados por emoções. Em outros
termos, a estrutura psíquica tem o molde da estrutura familiar no pensamento
freudiano. (MENEZES, 2002, p.166).
Freud procurou demarcar o eixo que vincula a experiência da vida real ou imaginada
(fantasmática) com a constituição psíquica de cada ser em especial, relacionando
17
acontecimentos e relacionamentos travados muito cedo, mas significativos para a constituição
da sua estrutura psíquica. Seja em seus primeiros escritos sobre as observações clínicas de
pacientes, seja ao postular o inconsciente ou, mais adiante, ao formular sua metáfora sobre o
Complexo de Édipo, Freud sempre ressaltou na relação mãe-filho-pai a matriz básica para
pensar a constituição da subjetividade, como demonstrar-se-á na leitura das obras indicadas.
O quarto e último capítulo aponta um novo momento de transição e de diferenciação
do pensamento freudiano. Já em 1913, Freud sustenta, a partir de diversas fontes de pesquisas
antropológicas e evolucionistas, a idéia de que a espécie humana arrasta informações
filogenéticas, permeadas pelo contexto cultural. Nessa perspectiva, portanto, tais informações
estão carregadas de significados, referidos a certas imagos, especialmente paterna, materna e
fraterna. A obra Totem e Tabu, datada desse período, parte para a defesa do mito da horda
primitiva – como mito ordenador na família –, da ordem social e da cultura. O nome do pai,
fonte de toda legalidade, foi transmitido ao longo dos tempos, com as variáveis históricas, de
acordo com a constituição de sujeito fomentada por cada sociedade.
O material apresentado em Totem e Tabu inscreve de forma definitiva o passo que a
psicanálise propõe no entendimento da relação natureza e cultura, inscrita na estruturação
desiderativa que define o homem como um sujeito de desejo, distanciando-o definitivamente
da perspectiva biológica que caracteriza o instinto animal.
É neste último capítulo que a figura do pai ganha sua efetiva posição simbólica na
constituição de limite e ordenação do desejo do sujeito e de sua inserção no mundo das
relações sociais. A função paterna, na perspectiva psicanalítica, constitui-se como terceiro
elemento a atuar na trama familiar para possibilitar, pela interdição da díade mãe-filho, uma
nova direção do desejo do filho, além de oferecer as condições necessárias para interesses e
investimentos em outros elementos da cultura.
18
A CONTEMPORANEIDADE E A FUNÇÃO PATERNA
Quaisquer que sejam as contestações a Freud, e elas são muitas, psicanalistas,
psiquiatras e psicólogos nunca abandonaram algumas de suas proposições, aceitas como
evidentes. Dentre elas está aquela que sustenta que nos primeiros meses e anos de vida o
comportamento do adulto em relação à criança é fundamental para definir um futuro saudável
ou não para ela. Muitos foram os teóricos contemporâneos que reconheceram a contribuição
psicanalítica sobre o tema (BOWLBY; WINNICOTT; MONEY-KYRLE apud
SUTHERLAND, 1973; FOUCAULT, 2001).
Claude Lévi-Strauss salienta, em 1956, que a vida familiar apresenta-se em
praticamente todas as sociedades humanas, mesmo naquelas cujos hábitos sexuais e
educativos são muito distintos dos nossos. Sua contribuição reafirma o fenômeno da
universalidade da família, como foi postulado desde sempre pela teoria psicanalítica.
Nessa perspectiva, a constatação da universalidade aponta para duas outras condições
importantes para o processo de humanização: a) a família é o lugar que humaniza e socializa o
sujeito – lugar de limite e borda para o indivíduo –, além de ser também o lugar de inserção
social; b) cada família provém do que Roudinesco (2002) chamou de “estilhaçamento” de
outras duas famílias. Para a autora, a família é o lugar de alianças e parentescos (trocas), como
postulado pelo mito constituído por Freud em Totem e Tabu.
Salienta a autora que a proibição do incesto é tão necessária à criação de uma família
quanto a união de um macho com uma fêmea. Tal proibição é um fato da cultura, sob a
perspectiva freudiana, e, como tal, oferece à instituição família um papel duplamente
universal – relaciona um fato da cultura, construído pela sociedade, a um fato da natureza,
inscrito nas leis de reprodução biológica. Assim, a existência dessas duas ordens no bojo da
família permite aos seus elementos uma fonte inesgotável de experiências humanas.
19
Nenhum outro campo do pensamento contemporâneo sofreu tanta influência da obra
freudiana quanto os temas que envolvem família e infância. O interesse pela psique humana o
fez enveredar de forma arqueológica, como muitas vezes ele mesmo descreveu, pelo cerne da
trama familiar e pelas experiências muito tenras da primeira infância.
Psicanalistas de escolas dissidentes concordam com a importância vital de uma relação
estável e permanente do desejo de uma mãe para com seu filho durante os primeiros anos de
sua infância. Avançando para além do desejo e cuidados amorosos de uma mãe protetora, a
criança precisa estar submetida também à presença e à interdição desejante de um terceiro
elemento, entre ela e sua mãe, elemento este importante na ordem da família: o pai, ou o seu
substituto, constituído, assim, a tríade familiar. Essa relação triangular básica terá a força de
definir o destino psicológico saudável ou não de qualquer criança.
Todavia, em relação a outras questões da parentalidade, observam-se opiniões e visões
distintas, talvez em decorrência da relativa novidade e complexidade que o assunto impõe.
Seria de surpreender se assim não o fosse.
Dentre os opositores freudianos encontramos a proposta fenomenológica do alemão
Hellinger (1998), que, ao se contrapor ao pensamento psicanalítico, defende a necessidade de
se visualizar o fenômeno da família não pelos processos inconscientes que subjazem aos seus
representantes – pais, filhos e outras gerações –, mas examinando o fenômeno relacional per
si, os sentimentos e comportamentos reais e as associações sistêmicas de uns com outros na
cena familiar. Ademais, não postula causalidade, muito menos uma inscrição psíquica
primeva, contudo postula uma associação sistêmica relacional, considerando que esta forma
de compreensão da trama familiar requer uma outra forma de abstração diferente da teoria
psicanalítica.
O trabalho de Freud, entretanto, ao voltar-se para a vida afetiva e emocional das
crianças, adianta uma hipótese ousada: a que nos primeiros anos é a regra e não a exceção que
20
determina relações significativas entre pais e filhos, relações estas que definem o destino da
vida afetiva do sujeito adulto (WINNICOTT apud SUTHERLAND,1973). É sobre sua
contribuição que dedicaremos toda atenção.
A proposta psicanalítica, ao tratar as necessidades da criança em tenra idade, no que
tange ao amor, à segurança e aos cuidados higiênicos básicos, entende que tais necessidades
ou exigências clamam por uma urgência de atendimento e de envolvimento com o outro que
escapa ao limite das demandas fisiológicas. Negá-las corresponderia a gerar poderosas forças
provocadoras de distanciamento e estranhamento entre os pais e seus filhos.
No texto freudiano, através do parricídio original e do mito de Édipo, elementos
centrais do conceito da função paterna e de todo o jogo psíquico que estrutura a triangulação
familiar na perspectiva psicanalítica, buscar-se-á compreender como Freud entendeu o
complexo representacional como o mais expoente do psiquismo humano, seja na posição de
pai simbólico (lugar da lei), seja na de pai biológico (pai da reprodução) ou na de pai
imaginário (pai da autoridade).
A família é contexto para que ocorram todas as experiências primordiais que
constituirão o sujeito de desejo; também é no seu cerne que a descoberta infantil da diferença
sexual se configura. Nela forma-se o princípio organizativo social, e, mais ainda, a estrutura
de rede simbólica que organiza não somente as relações sociais, mas, principalmente, os
destinos individuais. É na família que o fato de se pertencer a um determinado sexo se
transforma em destino pessoal e social, implícita ou explicitamente, regulamentado e
hierarquizado por valores, poder e responsabilidades.
É curioso constatar que justamente no momento em que a sociedade se defronta com
questões relativas a identidade de papéis, limites, conflitos de gêneros e gerações e
transformações das funções parentais sejamos remetidos a pensar, ou melhor, a repensar nas
figuras parentais e na sua importância sobre o cenário das relações atuais.
21
1 A ORDENAÇÃO PSÍQUICA EM FREUD
Por onde vens, passado, pelo vivido ou pelo
sonhado?
Que parte de ti me pertence, a que se lembra
ou a que se esquece?
Manuel Antônio Pina, 1943
Qualquer que seja o objeto de pesquisa a partir das idéias de Freud, merecerá sempre
uma análise criteriosa por parte do pesquisador, para que contemple, no pensamento
freudiano, a inclusão de categorias relevantes que vão se estruturando ao longo da construção
de sua obra. A questão da ordenação psíquica do sujeito e nosso particular interesse sobre a
função paterna como elemento ordenador da psique e das relações afetivas exigiu uma leitura
cuidadosa da obra freudiana.
O objetivo desta dissertação é compreender o papel da função paterna na organização
do psiquismo humano, função simbólica considerada por Dor como “epicentro crucial na
estruturação psíquica” (1991, p. 9). Para tanto, ressalta o caráter de operador simbólico do pai
em Freud, destacando o que na Psicanálise existe de mais significativo em relação ao pai, ou à
função paterna; seu caráter bem mais transcendente que de um pai real ou biológico. Assim, a
Psicanálise, e originalmente Freud, como veremos neste trabalho, tem o desafio de nos
apresentar, ainda no final do século XIX e início do XX, as novas funções e relações entre
paternidade e filiação.
Nesse sentido, por pouco que tenhamos, entretanto, que considerá-lo como
um ser, trata-se menos de um ser encarnado, do que de uma entidade
essencialmente simbólica que ordena uma função. Devido à premência desse
modo de existência simbólica, tal é então o seu caráter fundamentalmente
operante e estruturante para cada um, isto é, qualquer que seja o sexo
daquele que a ele se acha referido. Em outras palavras, é porque esse pai
simbólico é universal – daí a essência de sua necessidade – que nós não
podemos deixar de ser tocados pela incidência de sua função, que estrutura
nosso ordenamento na qualidade de sujeitos. (DOR, 1991, p.14).
22
Com Dor identificamos a qualidade simbólica do pai, de valor diferenciado, nascido
originalmente na letra freudiana. Ao pai atribui-se mais do que uma participação biológica,
uma outra função de caráter simbólico, significativamente mais operante, que é o seu papel de
agente ordenador do desejo. O sujeito de desejo é aquele que, transcendendo as tarefas e
exigências de sobrevivência, é capaz de constituir-se reconhecendo outras interpelações que
lhe são exigidas, além dos cuidados naturais de sua espécie, organizando-se como pessoa
através das relações familiares e sociais.
Dessa forma, entender o lugar de referência da função do pai é, sem complacência,
uma tarefa necessária e oportuna para a compreensão da inserção do sujeito na vida social, na
vida de relações e na cultura.
No entanto, reconstruir os caminhos que organizaram os alicerces freudianos para o
reconhecimento da função paterna é tarefa que exige a atenção de um arqueólogo ou um
garimpeiro, já que o tema do pai e os fundamentos teóricos para o entendimento da ordenação
da psique perpassam todo o seu trabalho de construção da própria Psicanálise.
A ênfase deste capítulo limitar-se-á aos escritos pré-psicanalíticos, considerando os
aspectos relevantes para o nosso objetivo. O primeiro deles é aquele que diz respeito à
importância que possui na construção das condições básicas para a gênese da estrutura
triangular edipiana.
Ao ler Projeto para uma Psicologia Científica,3
de 1895, e Estudos sobre Histeria de
18964
, encontramos Freud diante de uma tensão para compreender o funcionamento psíquico,
não apenas daqueles pacientes com distúrbios psicológicos, mas também quando busca
entender o funcionamento da psique do sujeito dito normal. Acreditava, desde então, na
3
Citado doravante como Projeto...
4
Citado doravante como Estudos...
23
existência de fenômenos universais presentes na estrutura dos sujeitos tanto normais quanto
daqueles com distúrbios psíquicos.
Um dos fatos mais importantes é o de que os processos primários ,
semelhantes aos que foram gradativamente suprimidos pela pressão
biológica no curso da evolução de , se apresentam diariamente a nós
durante o sono. Um segundo fato de idêntica importância é o de que os
mecanismos patológicos, revelados pela análise mais cuidadosa nas
psiconeuroses, guardam a maior analogia com os processos oníricos.
(FREUD, 1977, p.443).
Tomado de interesse pelos fenômenos da histeria, Freud transita, nesta fase, na
fronteira entre o físico e o psíquico, inscrevendo um hiato entre a forma científica vigente de
concepção dos fenômenos psíquicos e a sua observação clínica dos sintomas. Noções como
processos primários, processos secundários e repressão já se encontram presentes no
discurso freudiano.
A noção de uma estrutura psíquica, com diferentes instâncias ou formas distintas de
registros psíquicos, tanto dos estímulos internos quanto dos externos, também já constitui a
visão freudiana deste período. Uma estrutura metapsicológica para ancorar o desejo encontra
sua defesa desde esse momento do pensamento freudiano:
Se ao lembrar um sonho interrogamos a consciência quanto ao seu conteúdo,
verificamos que o significado dos sonhos como realizações de desejo se acha
encoberto por uma série de processos , todos os quais voltaremos a
encontrar nas neuroses, sendo ali característicos da índole patológica desses
transtornos. (FREUD, 1977, p.449).
Estudiosos e comentadores da Psicanálise sustentam que Freud, ao escrever Projeto...,
já teria formulado vários dos elementos básicos da teoria psicanalítica. Alguns autores
chegam a postular que muitas das teses que escreveu numa de suas obras de maior relevância,
24
A Interpretação dos Sonhos, já estariam sinalizadas em Projeto.... Esta obra é um sofisticado
modelo de neuropsicologia, no qual estão assentados os fundamentos da sua metapsicologia.
Em segundo lugar o fato de o Projeto... ser um escrito ostensivamente
neurológico levou muitos autores a articularem duas idéias importantes que,
se comprovadas, fariam com que a apreciação da teoria psicanalítica fosse
drasticamente reavaliada:1.º) que a metapsicologia freudiana posterior, a
partir de 1900, estava assentada nessa neurofisiologia do Projeto... Embora
isso fosse por Freud de maneira implícita, o que teria originado um bom
número de confusões; 2.º) com base no Projeto... poder-se-ia também
abandonar a idéia de que a Psicanálise não era uma disciplina sujeita a
verificação experimental, já que esses modelos neurofisiológicos poderiam
ser testados. (MONZANNI, 1989. p. 75-76).
Segundo Monzanni (1989), Projeto... foi o ápice para Freud fundamentar, através da
neuroanatomia e da neurofisiologia, a disciplina que estava alicerçando já há algum tempo.
Ele considera esse um momento privilegiado do pensamento freudiano, inaugurando a
perspectiva do surgimento de sua metapsicologia.
Os trabalhos de pesquisa e todo o esforço de resgatar uma visão científica de
fenômenos clínicos fizeram de Projeto... um complexo tratado de neuropsicologia, e, mais
que isso, as teorias vigentes até hoje nesse terreno sinalizam o delicado dualismo entre o
físico e o psíquico, posição que jamais foi abandonada nem por ele.
É na letra de Gay (1995) que encontramos a confirmação do movimento de descoberta
freudiana. Para este autor, a pesquisa freudiana desse período leva ao encontro não de uma
psicologia para neurologistas, mas sim, de um tratado psicológico para psicólogos. Muito
mais do que explorar os substratos fisiológicos e biológicos da mente, Freud explorava os
domínios do inconsciente e suas manifestações no pensamento e na ação, debatendo-se diante
de uma psicologia científica que tente explicar a vida mental complexa, que inclua processos
como memória, percepção, alucinação, pensamento e satisfação pelo relaxamento após a
descarga de estímulos desestabilizadores.
25
O modelo freudiano dessa época, sob muitos pontos de vista, resiste ao tempo e às
novas descobertas. Contudo, o mais relevante é que, neste período de investigação, o interesse
de Freud pela clínica, em especial o interesse pela origem dos sintomas de seus pacientes,
tornou-se a força propulsora para seguir mais adiante na descrição neurológica dos fenômenos
psíquicos.
Para Gabbi Jr.(1985), em Projeto...Freud tem como objetivo explícito representar
processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais.
Tais processos são fundamentados nos conceitos de quantidade e neurônios, e têm duas
funções a realizar: a de descarga de quantidades e a de conservar os caminhos da descarga.
O conceito de quantidade é definido como uma diferença entre atividade e
repouso e o de neurônio como uma partícula material capaz de conter uma
certa quantidade. A quantidade é governada por um princípio, o da inércia
neuronal, segundo o qual os neurônios tendem a descarregar a quantidade. O
aparelho psíquico assim concebido é insatisfatório para dar conta de sistemas
que, além de sofrerem estimulação externa, estão sujeitos às exigências da
vida: respiração, fome e sexo. Os estímulos endógenos, diferentemente dos
externos, que atuam por impacto, vão se acrescentando, e só quando o
organismo produz uma ação específica sobre o mundo externo há uma
interrupção provisória no processo de acréscimo. Para realizar a ação
específica, é preciso que o parelho suporte uma certa quantidade no seu
interior. (GABBI JR, 1985, p.5).
O reconhecimento da necessidade de um aparato psíquico mais complexo, organizado
não apenas sobre o princípio da inércia (descarga pelo acúmulo de quantidade), mais agora
também regido pelo princípio da constância, segundo o qual o organismo tende a manter no
seu interior a quantidade constante, conduz a teoria freudiana do aparelho psíquico a uma
compreensão muito mais psicológica do que neuronal, demarcando, a partir deste momento,
uma linha divisória com a neuropatologia vigente nas sociedades de língua alemã de sua
época.
A contribuição mais completa das descobertas de um aparelho psíquico, capaz de
incluir funções mentais mais elaboradas, de dar conta da relação com os estímulos endógenos
26
e os estímulos externos - estímulos que remetem o sujeito a sua relação com um outro no
acolhimento de sua ação específica, se tornaram a base para a construção que aqui desejamos
focar: as relações parentais.
1.1 A PRÉ-HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: UM PAI AUSENTE
O retorno a Projeto..., ainda que considerado uma obra inacabada pelo seu próprio
autor, justifica-se pela grande contribuição do texto para a construção de conceitos
psicanalíticos posteriores. Para Strachey (1977), Projeto..., ou melhor, seu espírito invisível,
paira sobre toda a série de obras teóricas de Freud, do início ao fim.
O trabalho exaustivo de observação sobre as neuroses e o rastreamento
neuropsicológico de o Projeto... renderam frutos muito produtivos para a teoria psicanalítica,
embora o próprio Freud não tivesse desfrutado com entusiasmo de suas recentes descobertas.
As noções de inconsciente e de recalque, desejo e sexualidade infantil só ganhariam
futuramente lugar de significação na estrutura do pensamento freudiano a partir dos achados
dessa obra.
Em carta a Fliess, de maio de 1895 (carta 24), Freud expressa exaustivamente seu
processo de trabalho com o texto:
[...] Há algum tempo me sentia atraído, de longe, por ela. Só agora,depois
que me deparei com as neuroses, se tornou mais próxima. Vivo atormentado
por duas idéias: descobrir que forma terá a teoria do funcionamento psíquico
se nela se aplicar um método de abordagem quantitativo, uma espécie de
economia da força nervosa, e, segundo lugar, extrair da psicopatologia tudo
que puder ser útil à psicologia normal. Seria, de fato, impossível conceber
uma noção geral satisfatória dos distúrbios neuropsicológicos, a não ser que
se pudesse relacioná-los a pressupostos bem definidos sobre os processos
psíquicos normais. Venho dedicando todos os meus minutos livres dessas
últimas semanas a esse trabalho; passo as noites, das onze até as duas horas
da madrugada, a imaginar, comparar e adivinhar coisas desse gênero; e só
desisto quando chego a uma conclusão absurda ou fico tão
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irremediavelmente exausto que perco o interesse pela minha atividade
médica cotidiana. Mas é cedo demais para apresentar quaisquer resultados.
(FREUD, 1977, p. 390).
Esse documento neurológico complexo contém em si os prenúncios de elementos que
contribuirão significativamente para as teorias psicológicas desenvolvidas pelo próprio Freud
com relação ao núcleo familiar básico: o complexo de Édipo.
Ainda muito influenciado pelo pensamento positivista e pelas exigências da época, de
se fazer uma psicologia nos moldes das ciências naturais, Freud apóia-se em um modelo
biofísico, aparentemente pouco flexível para suas considerações futuras sobre o psiquismo.
A tarefa de determinar quantitativamente o funcionamento da economia psíquica, a
partir dos estímulos oriundos do meio e dos instintos, torna a abordagem uma quase versão
neurológica acerca do funcionamento do sistema nervoso. No entanto, sua descrição dos
fenômenos mentais transcendeu, de forma evidente, as explicações neurofisiológicas. Desta
maneira, pode-se dizer que Projeto... rompe com o reducionismo fisiológico dos fenômenos
clínicos e com a forma de fazer ciência da época.
Para Monzanni (1989), deve-se a Freud a primeira somatomorfologia intrínseca da
experiência vivida que repousa na observação e construção naturista. Da arquitetura teórica
exibida por esse período, surge o aparelho psíquico edificado sobre o corpo.
Noções sobre a consciência, a descrição sobre fenômenos psíquicos inconscientes, o
interesse pelo mecanismo psíquico de defesa, de deslocamento, o interesse sobre a presença e
a participação da sexualidade na relação com as neuroses são extratos significativos,
recolhidos no âmago desse trabalho, de 1895.
Todos esses conceitos serão devidamente resgatados ao longo da teoria freudiana,
fazendo deste conjunto, e de tantos outros conceitos, a constelação de idéias sobre a
ordenação psíquica do sujeito, na perspectiva psicanalítica.
28
Os casos clínicos analisados nessa época apontam para a presença de relações
carregadas de catexia, em geral, com as figuras masculinas, o que levanta, em Freud, a
suspeita futura de que o pai, ainda que travestido por um tio, cunhado ou outra figura
representativa no complexo dos sintomas histéricos, poderia estar na essência do desejo
dessas pacientes.
Para o nosso objetivo, esse núcleo de idéias freudianas será fundamental, já que é nele
que encontramos o esboço, as primeiras observações sobre temas importantes; a saber: a) a
gênese do triângulo, instigada inicialmente pelo vértice filho-mãe, ou melhor, criança
faminta/desejante – mãe/objeto de satisfação (alucinado ou real, de saciação do desejo); b) a
clínica como espaço de compreensão de um enredo que se desenvolverá em todos os humanos
– a construção da definição do sujeito desejante; c) o conteúdo sexual na centralidade do
funcionamento do psíquico, tanto dos normais quanto dos neuróticos; d) a não referência à
figura paterna na origem do desejo e do ego, melhor dizendo, uma presença ainda não
revelada.
É nesse momento de sua produção teórica, que Freud descreve o funcionamento da
estrutura psíquica, e o faz a partir de dois pressupostos fundamentais: o da existência de uma
arquitetura psíquica e o da idéia de uma quantidade de excitação que estabelece, nesta
estrutura, os estados de movimento e repouso. Destaca, ainda, a tendência do funcionamento
psíquico sendo regida por processos primários e processos secundários. Tais processos,
segundo ele, são complementares e de finalidades distintas para o funcionamento psíquico.
Mas o que seriam, de fato, esses processos?
Partindo do pressuposto de uma quantidade em fluxo no aparelho psíquico primitivo,
que responderia inicialmente ao que chamou de Princípio de Inércia, cujo destino será a
descarga sempre que a quantidade deste fluxo se torne perturbadora do estado de repouso,
Freud tem o intuito de descrever a função primária do aparato anímico. O funcionamento do
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processo é iniciado na célula nervosa, o neurônio, por onde chegam os estímulos, e segue seu
fluxo, para escoar com uma ação motora. O funcionamento primário do psiquismo tem,
portanto, a direção da energia psíquica partindo do sistema sensorial para o sistema motor.
Esse funcionamento básico, elementar e simples, no entanto, não garante a vida do
sujeito, uma vez que não responde às exigências vitais; quais sejam: fome, sede, desconforto
físico, dentre outros. À proporção que aumenta a complexidade da estimulação exógena ou
endógena, a necessidade de descarga também se amplia. Em outros termos, Freud sabe que
existem outras demandas a serem atendidas, as quais este princípio não resolve. Salienta como
exemplos de exigências vitais, a fome, a sede, sexo, dentre outras. Estas, por sua vez, supõem
uma outra forma de funcionamento psíquico que transcendem circulação da quantidade de
fluxo para efetivar a ação.
Dessa forma, Freud amplia a complexidade do funcionamento psíquico propondo a
existência de um outro princípio complementar ao da Inércia: o Princípio da Constância. Este
novo princípio deve responder não apenas a um funcionamento que lide com maior resistência
a certo nível quantitativo, como também se comprometer na distribuição da quantidade no
complexo neuronal que, uma vez modificado permanentemente pela excitação, jamais retorna
ao seu estado anterior. Os processos, um tanto mais elaborados, deixam registros tanto do
percurso quantitativo quanto do caminho facilitado para novas catexias.
A estrutura psíquica ordenada de forma mais complexa torna a distribuição
quantitativa mais econômica, além de apontar para a diferenciação neuronal. Trata-se de
circunscrever os limites até onde se garante uma boa funcionalidade e a direção preferencial
por onde a quantidade escoa: da parte receptora do aparelho até a extremidade da descarga.
Secundariamente, precisa ser resolvido o problema de lidar com o sentido inverso da direção,
ou seja, num estágio posterior de desenvolvimento do aparelho psíquico, encontraremos a
30
inversão do estímulo, tendo a imaginação, a memória e posteriormente a fantasia como fatores
estimuladores internos, como veremos no capítulo seguinte.
Freud observa que esse funcionamento econômico na direção da descarga somente se
subverte no caso do contato com a dor. Devido à magnitude da quantidade, a resposta da dor
pode ser considerada como antieconômica pelo fato de não respeitar o caminho natural do
escoamento da quantidade. No entanto, quando é recordada, ou melhor, representada, produz
o desprazer, e não mais a dor. Até esse instante Freud circula num movimento teórico que
mescla postulações anatomofisiológicas com observações genuinamente psicológicas.
Esse parece ser um momento especial para o pensamento freudiano. Como salienta
Monzanni: esse é um ponto crucial de Projeto..., pois nele Freud teria, de um lado,
abandonado de vez seus projetos neurologizantes e constituído a idéia de inconsciente
psíquico, e, de outro, teria guiado sua atenção para o que constituiu, de fato, a teoria
psicanalítica. Trata-se de um processo muito mais complexo do que a descrição de
mecanismos de descarga e de caminho de um quantum de energia circulante no aparelho
psíquico, oriundo de estímulos internos e externos.
A partir desses dois postulados (quantidade e neurônio), o leitor assiste à tentativa de
Freud de construir, baseando-se em princípios puramente mecânicos, toda a imensa variedade
das funções psíquicas: percepção, memória, consciência, associações, experiências cruciais
(dor e satisfação), pensamento, juízo, etc.
A passagem de um postulado eminentemente quantitativo para um processo
qualitativo de ações. que exigem mais esforço tanto do aparato motor quanto do psíquico,
torna a explicação do princípio de constância incompleta para justificar o surgimento de
outros mecanismos psíquicos, como os já citados.
Numa formulação muito semelhante à visão do comentador anterior, Gabby Jr.
salienta que Freud está diante de duas vivências fundamentais para serem ordenadas no
31
aparelho psíquico: a vivência da dor e a vivência de satisfação, formulações essenciais ao
avanço da sua teoria sobre a ordenação da psique e do desejo.
Na vivência da dor, ... existe uma irrupção de uma quantidade de origem
externa. Quando é recordada, ou seja, representada, produz desprazer e não
dor. ... O organismo para sobreviver, deve aprender a evitar a cathexis da
representação de objetos que causaram a dor. Caso contrário, ocorrerá uma
defesa primária. Na segunda vivência, a de satisfação, trata-se de uma
quantidade de origem endógena que só pode ser interrompida a partir do
preenchimento de certas condições do organismo. Como é incapaz de
realizá-las, torna-se necessária a presença de um outro que realize, pelo
sujeito, as condições externas... Logo, em ambos os casos, há uma tendência
de repetir certas vias de descarga: as de satisfação (originadas a partir de um
processo interno de acréscimo) e as de dor (originadas a partir de um
impacto por estímulos externos). (GABBI JR., 1985, p.6).
A tentativa de explicar o mecanismo da dor e o da busca de satisfação fazem com que
a pesquisa freudiana avance para uma forma de funcionamento psíquico mais elaborada do
que previa em seu aparelho primitivo. Para o nosso interesse mais imediato manteremos a
atenção sobre a segunda situação – a busca de satisfação. A razão desta escolha se mostrará
mais evidente a seguir.
Entender como o psiquismo age na direção de eliminar a tensão que o acomete é algo
muito importante. Os movimentos motores iniciais, as vias biológicas do automatismo, não
são suficientes para eliminar o desconforto causado pela carência, a exemplo da fome, sendo,
então, necessária a ocorrência de uma ação específica externa. Nestes casos, Freud observa
que os processos secundários implicam o adiamento, a tentativa de solução da tensão e a
busca de uma forma específica de reação para a redução da descarga, uma ação específica que
garanta a descarga ou a redução do desconforto.
Essa ação específica não é de competência do sujeito, dado que não possui a
capacidade de promover a condição de alívio de sua tensão. Tais movimentos motores,
traduzidos no choro, disparados na direção desta ação, têm um caráter importante para este
32
sujeito: denunciam seu desamparo. Diante desta constatação, de que o sujeito não é capaz
sozinho de encontrar o caminho da descarga, o atendimento dessa carência pode ser realizado
pelo auxílio de um outro, despertado provavelmente pela denúncia do desamparo. Freud
segue explicando:
O enchimento dos neurônios nucleares em terá como resultado uma
propensão à descarga, uma urgência que se libera pela via motora. A
experiência demonstra que aqui a primeira via a ser seguida é a que conduz à
alteração interna (expressão das emoções, grito, inervação vascular). Mas
como já explicamos no início, nenhuma descarga desta espécie pode
produzir resultado de alívio, uma vez que o estímulo endógeno continua a
ser recebido e se restabelece a tensão . Nesse caso, a estimulação só é
capaz de ser abolida por meio de uma intervenção que suspenda
provisoriamente a descarga de Q´n no interior do corpo; e uma intervenção
dessa ordem requer uma alteração no mundo externo (fornecimento de
víveres, aproximação do objeto sexual), que, como ação específica, só pode
ser conseguida através de determinadas maneiras. (FREUD, 1977, p. 421-
422).
Essa bela imagem a que chega Freud inaugura as bases de uma constelação de relação
fundamental entre a criança faminta, insatisfeita, e um outro sujeito, provavelmente a mãe ou
o adulto, objeto de realização desta ação específica anunciada. Nesta experiência da saciação
da fome, experiência do aleitamento, a mãe é convocada a criar o primeiro e significativo
vínculo.
Para Freud, essa experiência ultrapassa o automatismo biológico que rege a satisfação
para inaugurar um processo de vinculação do sujeito com o meio bem mais complexo. Para
ele, essa via de descarga adquire a importantíssima função secundária da comunicação, e o
desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. Este
parece ser o exato instante da cisão da Psicanálise com as demais teorias sobre o
funcionamento mental de sua época.
Ao responder ao apelo do bebê faminto, nas suas iniciais manifestações de
desconforto, a mãe que o satisfaz, inaugura marcas mnêmicas importantes, instaurando no
33
bebê a possibilidade de guardar a vivência para um momento de busca de satisfação futura,
como também a percepção da possibilidade de novo contato com este objeto prestativo,
realizador da satisfação. Esta percepção de satisfação, proporcionada pelo objeto que
alimenta, imprime no psiquismo do bebê o registro da vivência de satisfação, que futuramente
poderá ser resgatada sempre que ele se perceba diante de uma nova sensação de desconforto.
Esse circuito fica, doravante, como diria o próprio Freud, privilegiadamente facilitado.
A mãe (re)significa o estado de abandono e a carência, bem como a possibilidade de solução
da tensão geradora de tal estado.
Essa percepção de satisfação, resultado da ação específica da mãe com o sujeito, traz
no seu contexto conseqüências significativas para o desenvolvimento do psiquismo primitivo.
Freud ressalta que a totalidade desse processo representa a experiência de satisfação
que tem as conseqüências mais decisivas para o desenvolvimento das funções individuais; a
saber: 1) efetua-se uma descarga permanente e, assim, elimina-se a urgência que causou o
desprazer; 2) produz-se a catexização de um ou vários neurônios que corresponda à percepção
do objeto; 3) em outros pontos chegam informações sobre a descarga conseguida mediante a
liberação do movimento reflexo que se segue à ação específica.
Na ocorrência posterior de uma nova situação de carência, todo o circuito será ativado
simultaneamente. Carência (tensão), abandono (reações motoras de denúncia) e objeto de
interrupção de tensão (ação específica) fazem parte de uma mesma vivência. Vale ressaltar
que Freud chama atenção para o fato de que a ordenação psíquica realizada não segue uma
ordem sucessória, e sim simultânea, significando que, para o sujeito, todo o conjunto de
registro faz parte de uma situação única.
Assim, diante de uma nova exigência de satisfação, independentemente da existência
ou não do objeto do mundo externo (mãe), o funcionamento psíquico ativa sua representação,
operando como se estivesse presente. A experiência de satisfação, uma vez registrada, deixa
34
sua inscrição através de via facilitada pelos registros mnêmicos, impressos quando da
primeira experiência, sendo estes registros evocados toda vez que o organismo se depara com
uma nova experiência de tensão. A esse recurso de pensamento Freud constrói toda uma
explicação para justificar o funcionamento da memória e da alucinação. É para esta lembrança
que o sujeito recorre sempre que se encontra vivenciando uma situação de tensão semelhante
à vivenciada no passado e, mais ainda, buscando uma solução imediata para o alívio da
tensão; na ausência do objeto de satisfação (mãe), alucina sua presença.
O mecanismo de alucinação tem um objetivo próprio e imediato; trata-se de uma saída
provisória, buscada pelo aparelho psíquico, com a função de promover uma redução de
tensão, ainda que temporária. É uma resposta do sujeito, utilizando-se de seus próprios meios.
Para Freud, uma defesa primária diante de um estado de desejo. Incapaz de diferenciar a
realidade da idéia imaginária, o sujeito recatexiza a lembrança do objeto e, então, põe em ação
o processo de descarga; nesse caso, não pode haver satisfação, já que o objeto não é real. Esta
solução mostra-se, portanto, pouco eficiente em curto intervalo de tempo, levando o sujeito,
mais uma vez, a buscar nova saída. A imagem alucinada não corresponde ao alívio da tensão,
sendo ele obrigado a comunicar mais efetivamente ao meio o seu abandono, a sua
impossibilidade de sobreviver sem o apoio de um outro, que deve vir em sua direção.
O que nos importa na presente situação é o registro do que aqui se inaugura: o
nascimento de uma díade (filho/mãe), forjada pela premência de uma tensão de satisfação.
O lugar da mãe é, por assim dizer, o de objeto de reconhecimento de desejo de um
sujeito que o demanda; mais que isso, o de objeto que oferece uma resposta efetiva a um
apelo de sobrevivência. Mãe e filho formam uma imagem única e, ao mesmo tempo, dual:
única na perspectiva da experiência de simultaneidade expressa pela tensão e satisfação, e
dual porque escapa de uma saída da tensão sem o auxílio do outro (adulto).
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É pelo grito primordial ou pelo esforço de anunciar seu desconforto e abandono que o
sujeito inscreve essa nova capacidade de funcionar com o meio: o bebê clama pelo
reconhecimento de sua falta, de sua necessidade de nutrição e, portanto, de sua necessidade de
ser cuidado, de ser visto, compreendido e atendido pelo outro. A possibilidade de evocar seu
desejo de satisfação e, mais do que comunicar, e fazer-se entender por este outro é um
mecanismo bastante complexo e fundamental para a organização de suas futuras formas de
comunicação com o meio externo.
No texto freudiano reencontramos a demarcação da primeira forma de comunicação,
de relação de satisfação:
O organismo humano é, a princípio, incapaz levar a cabo essa ação
específica. Ela se efetua por meio de assistência alheia, quando a atenção de
uma pessoa experiente é atraída para o estado em que se encontra a criança,
mediante a condução da descarga pela via de alteração interna. Essa via de
descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da
comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial
de todos os motivos morais. (FREUD, 1977, p. 422).
Somos levados a acreditar que o reconhecimento de um objeto que atende a uma
necessidade vital do sujeito inscreve uma referência de eu e de não-eu, de algo que se passa
entre o bebê e um outro sujeito que não é ele, alguém que está para além dele. Tais
experiências do aparelho psíquico deste sujeito mostram-se estruturantes na organização
egóica. Embora estas noções de eu e não-eu ainda não sejam largamente desenvolvidas por
Freud nesse momento da teoria, ficam como alicerce do desenvolvimento da teoria
psicanalítica.
Nessa etapa de conquistas do sujeito, no esforço ordenador do seu aparelho psíquico
primitivo, a mãe ganha um papel definitivo. Comumente costuma-se atribuir este papel à
figura materna, já que a função nutridora suporta ou está na base de toda essa configuração
relacional primária. O que lastreia o relacionamento inicial do sujeito com o meio é o
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atendimento de suas necessidades vitais, ficando tal fato evidenciado na necessidade de um
outro adulto que atenda a esta função. É a função de nutrição que vai definir o papel, a
presença de outro que responda à ação específica de satisfazer o bebê e, por conseqüência, à
noção de realidade externa; é à mãe a quem se está clamando.
Dessa forma, pode-se dizer que, na díade inicial, é formatado o primeiro vínculo entre
o bebê e o mundo externo – um vínculo carregado de significação, de energia, provindo de
uma demanda que lhe é anterior e que tem exatamente como propósito garantir a descarga de
tensão e da necessidade de satisfação, levando Freud a inscrever com isso a presença da
função materna na organização psíquica do sujeito. Memória, alucinação e comunicação são
funções que surgem da premência da relação bebê/mundo, chancelada pela presença da mãe
que acolhe, reconhece e denuncia as necessidades de sobrevivência do sujeito.
Na leitura ora realizada, de pontos selecionados de Projeto..., conclui-se o momento
em que Freud registra o lugar da maternidade, embora talvez não tenha sido este o seu
propósito com a obra. No entanto, seu trabalho para compreender a organização do
funcionamento do aparelho psíquico levou-o ao encontro de algumas constelações de idéias
sobre o sujeito e suas relações com o mundo que se tornaram base para todo o trabalho de
construção da estrutura psíquica de um sujeito ordenado pelo desejo, formulado
posteriormente, quando a teoria psicanalítica adquire contornos mais rigorosos.
Um recorte mais sutil do processo da relação do sujeito com o outro encontramos na
letra de Mezan (1988): o processo de humanização do pequeno ser nascido de um homem e
uma mulher equivale a um processo de culturalização, de transformação da mente em um
órgão capaz de representar não somente os fantasmas engendrados por ela mesma, mas
também objetos e entidades que não pode criar por seus próprios meios; a saber: seu próprio
corpo, os outros seres humanos e o mundo exterior. Precisa, portanto, receber do ambiente, de
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início, de sua própria mãe as informações necessárias e os meios para metabolizar essas
informações.
Para esse autor, “a transformação da psique em psique humana equivale à sua
transformação numa psique marcada pela cultura” (MEZAN, 1988, p.62). Resulta que a
cultura não é algo imposto à psique humana, mas, antes, ela lhe é simultaneamente interna e
externamente determinada – pelo interior por se tratar daquilo pelo qual o indivíduo se
constitui e, ao mesmo tempo, pelo exterior por não depender apenas dele para se constituir, e
sim de adultos que cuidam e vão dando significado às suas representações.
Essa forma de compreender a inserção da cultura na organização psíquica do ser
humano tem um desdobramento mais significativo no percurso do pensamento freudiano,
principalmente alguns anos depois de Projeto..., quando seu interesse se desvela sobre a
questão da função do pai na organização social e psíquica.
Nesse momento do texto freudiano o que importa é a relação diádica, cujo pai ainda
não tem um lugar de inscrição tão delimitado quanto à mãe. Na pré-história da ordenação
psíquica, na fundação da ordem desejante descrita pela díade sujeito-objeto de satisfação, o
pai não é enunciado, quando considerado um terceiro com lugar de reconhecimento
diferenciado na constelação psíquica. A construção desta díade traz algumas conseqüências
importantes para a relação do sujeito com o mundo externo.
E o que se pode dizer até então sobre o pai, foco desta dissertação? O fato de
evidenciar a dualidade entre filho-mãe denota uma etapa ainda inicial na constituição egóica e
de ordenação psíquica da criança. O modelo das relações de objeto marcadamente conhecido
pela tríade filho-mãe-pai ainda não havia sido estruturado nesse instante da observação
freudiana. Até Projeto... Freud não estabelece claramente um lugar de destaque da figura
paterna, pelo menos não de forma explícita e definitiva.
38
Entretanto, é de maneira indireta, através de questionamentos e incertezas, que até
então, encontraremos uma indicação de que esta imagem masculina, na verdade a imagem
paterna, parece deixar suas marcas e impressões desde muito cedo na constituição psíquica,
quer dos normais, quer dos neuróticos.
A clínica e os processos psíquicos dos histéricos terão um papel importante a sinalizar
sobre a presença paterna desde a pré-história da Psicanálise. Como veremos a seguir, em
Estudos sobre a Histeria de 1895, Freud vai inscrever, ainda que de maneira bastante discreta
e muitas vezes camuflada em figuras da vida adulta, os efeitos das relações e dos vínculos
com as figuras parentais na constituição psíquica do sujeito.
1.2 A SEXUALIDADE: CENTRALIDADE NA ORDENAÇÃO PSÍQUICA
Como demonstramos anteriormente, tanto Projeto...quanto Estudos... trazem em si o
germe da constituição triangular da família e do sujeito de desejo, a partir de uma demarcação
muito clara acerca do vértice mãe-filho. A presença do terceiro – o pai – é ainda uma suspeita,
um estranhamento, em que Freud questiona sua participação no trauma ou nos sintomas de
suas pacientes. Na busca de entender a clínica e encontrar um método de trabalho para
abordar seus pacientes, Freud encontra indícios destes efeitos e deixa plantado o que se
tornará, muito em breve, as bases da teoria da sexualidade infantil defendida por ele como o
alicerce constitutivo do complexo de Édipo, estrutura fundante do funcionamento psíquico e
conseqüentemente das relações de cada sujeito com o mundo, com a vida; relações estas que
serão mais ou menos saudáveis conforme a qualidade dos vínculos que a constituíram.
A observação da clínica foi, desde sempre, um espaço privilegiado ao
desenvolvimento do pensamento freudiano. Sua preocupação com o material oferecido pelos
39
pacientes fundamenta suas principais descobertas, quer no campo metodológico, quer na
técnica psicanalítica, ou, ainda, na formulação da teoria, a famosa metapsicologia. Em
Estudos..., portanto, o conjunto de textos ligeiramente anterior a Projeto..., Freud objetiva
discutir questões relacionadas ao tratamento oferecido às pacientes histéricas. A partir do
trabalho de Breuer, com a abordagem hipnótica, Freud pretende delinear uma nova forma de
compreensão da histeria como um fenômeno para além da abordagem somática, oferecida
pelos seus colegas da época.
Estudos ... constitui o ponto de partida de Freud para o desenvolvimento do que mais
tarde se traduziu como o método psicanalítico de investigação, ou o seu instrumento de
investigação da mente humana. Gay chega a afirmar que “a julgar pelos casos que Freud
apresentou em ‘Estudos sobre a Histeria’, ele fez do aprendizado com seus pacientes uma
espécie de programa” (1995, p.80), ressaltando que a importância desses analisandos para a
história da Psicanálise reside na oportunidade de terem demonstrado a Freud um significativo
material inconsciente, que o auxiliou tanto no contexto da produção teórica quanto do método
de tratamento.
Embora não estivesse totalmente convencido a superar o elemento da hereditariedade,
da herança neuropática do diagnóstico de seus pacientes, suas observações e sua prática
curiosa em relação ao comportamento e discurso das pacientes levam Freud a suspeitar da
existência de outros fatores intervenientes na causação de suas neuroses. A noção de trauma,
o conceito correspondente a uma instância psíquica não consciente, o inconsciente, e a
categoria de recalque têm suas bases traçadas nas observações de seu trabalho clínico junto a
essas histéricas. Para Laplanche (1992), o conjunto de textos freudianos, até 1887, tem sua
força na trama que liga a teoria à experiência clínica. É o que demonstra em seu comentário:
40
Reside em pôr em jogo, já de forma rigorosamente e doravante insuperável,
três fatores da racionalidade analítica: a temporalidade do a posteriori, a
tópica do sujeito e os laços tradutivos ou interpretativos entre os roteiros ou
as cenas. Reside na capacidade explicativa do modelo, amplamente
transponível e extensível, pelo menos no campo da psicopatologia. Reside na
capacidade evolutiva do modelo, aquilo que designamos acima como
‘pontilhados’ para futuros desenvolvimentos: pontilhados do ego,
pontilhados da teoria tradutiva. (LAPLANCHE, p. 122).
A escuta e a observação do conjunto de sintomas ricos em representações no corpo
físico favoreceram a pesquisa na direção não mais de uma explicação química ou orgânica
destes fenômenos, mas de buscar uma correspondência num processo psíquico, numa ação
mental que justificasse a elaboração e o aparecimento desses sintomas. Freud estava
realmente empenhado em encontrar uma estrutura complexa capaz de explicar a descrição
desses fatos mentais.
Os achados clínicos de Breuer no tratamento da paciente Anna O., compartilhado
muitas vezes com o colega Freud, vêm corroborar a compreensão e a investigação desses
processos mentais conscientes e inconscientes, exigindo, portanto, uma maior atenção por
parte dos dois pesquisadores. O trabalho conjunto, nesta obra, ajuda a sinalizar, por um lado,
o interesse pela etiologia e, por outro, as diferentes percepções de abordagem e de interesse
diagnóstico, bem como de modelos terapêuticos.
Anna O. oferece aos médicos um rico material que lhes possibilita sistematizar
reflexões acerca da produção fantasmática, imaginária, fazendo levantar a atenção sobre o
papel da fantasia, sua relação com a origem da doença e naturalmente com o tema de suas
dores psíquicas. O lugar da fantasia e a sua constituição enquanto realidade psíquica
inconsciente são elementos teóricos dos quais Freud não mais se afastará para a compreensão
dos sintomas destas pacientes. No entanto, só posteriormente a noção de fantasia será
retomada de forma mais sistemática, ao resgatar o tema da sexualidade infantil como fator
etiológico da histeria.
41
Pensar na existência de uma mente capaz de conter material que não pertença ou
mesmo nunca tenha passado pela consciência, eis um fato novo e desafiante a ser considerado
por ambos.5
Tornou-se evidente, desde o início, que o problema a ser perseguido não era o da
investigação dos conteúdos conscientes, mas sim destes outros processos mentais, até aqui
reconhecidos, porém desconhecidos em sua origem. Freud está convencido de que para
processos que são até o momento inconscientes deve existir uma forma de investigação que
permita atingi-los, torná-los conscientes e inclusos na vida dos pacientes.
Quanto mais nos ocupamos dessas manifestações, mais nos tornamos
convencidos de que a divisão da consciência, que é tão marcante nos
clássicos conhecidos sob a forma de ‘double conscience’, se acha presente
num grau rudimentar em toda a histeria, e que a tendência para tal
dissociação, e com ela o surgimento de estados anormais de consciência
(que reuniremos sob a designação de ‘hipnóides’), constitui a manifestação
básica desta neurose. (FREUD, 1977, p. 52-53, grifo do autor).
Ambos os médicos concordam que o que está em questão na etiologia da histeria é
uma experiência traumática remota, da qual a paciente nada desconfia, nem faz conexão
causal com seus sintomas atuais. Questionam a relação do trauma com os sintomas e afirmam,
já nessa etapa, que, com grande freqüência, o trauma está relacionado a algum fato na infância
dos pacientes, mais ou menos grave e que persiste por muitos anos na sua vida psíquica.
Entendem que esta conexão entre sintoma e sua causa não se dá por um mecanismo direto ou
de substituição de um elemento causal por outro.
Esta noção de trauma será adiante abandonada por Freud, ao se defrontar com as
questões relacionadas à sexualidade infantil e aos sintomas histéricos. No entanto, é o trauma,
5
“A verdade é que, em 1985, Freud encontrava-se a meio caminho no processo de passar de
explicações fisiológicas de estados psicopatológicos para psicológicos” STRACHEY apud FREUD,
1977. v. II. p.32).
42
ou a cena, que enreda o discurso e o sintoma da histérica; que permite o avanço de que
necessitamos para compreender como os fatos e as experiências infantis repercutem na
história pessoal e familiar de cada sujeito.
Corroborado tanto por Projeto... quanto por Estudos..., Freud constata que a
experiência clínica evidenciou-lhe dois fatos importantes: a) o ego afasta ou reprime da
consciência as idéias que lhe provocam algum tipo de afeto desagradável ou penoso e que
naturalmente geram desprazer; e b) essas idéias fazem parte da vida sexual da pessoa em
questão.
Tais constatações abrem caminho para tudo que adiante vai sustentar o pensamento
freudiano sobre a centralidade do conteúdo sexual na etiologia das neuroses, mais
explicitamente abordado na neurose histérica. Diante do quadro de Katharina, uma de suas
pacientes, Freud comenta:
Neste sentido, o caso de Katharina é típico. Em toda análise de um caso de
histeria baseado em traumas sexuais, verificamos que as impressões do
período pré-sexual que não produziram nenhum efeito na criança atingem
um poder traumático numa data posterior como lembranças, quando a moça
ou a mulher casada adquirir uma compreensão da vida sexual. Pode-se dizer
que a separação de grupos psíquicos em um processo normal no
desenvolvimento do adolescente, sendo fácil ver que sua recepção posterior
pelo ego proporciona oportunidades freqüentes para perturbações psíquicas.
(FREUD, 1977, p.182).
A relação que agora começa a se estabelecer entre conteúdos inconscientes (alijados
da consciência), idéia de trauma e formação de sintoma como defesa demarca o distinto
interesse de Freud sobre a etiologia da histeria e das neuroses, além de subsidiar a sua
construção da teoria psicanalítica dos processos psíquicos ditos normais.
O interesse pelo mecanismo do ego em evitar o desprazer constitui, a partir de então, a
base da pesquisa sobre o sintoma histérico, e é a esse mecanismo que Freud, agora sem o
apoio de Breuer, vai devotar o trabalho de rastreamento. Para Freud, o processo de formação
43
simbólica do sintoma deflagra o trabalho de defesa do ego: a idéia rechaçada é desviada da
consciência e uma outra surge como alternativa para simbolizar ou representar a que foi
reprimida pelo desprazer causado, embora esta última esteja diretamente entrelaçada com a
primeira. Num comentário ao tratamento da paciente – Fräulein Elisabeth Von R. – , Freud diz
textualmente:
Os conceitos do ‘desvio’ de uma idéia incompatível, da gênese dos sintomas
histéricos através da conversão de excitações psíquicas em algo físico e a
formação de um grupo psíquico separado, através do ato de vontade que
conduziu ao desvio – todas essas coisas, naquele momento, apareceram
diante de meus olhos de forma concreta (FREUD, 1977, p.206).
Nessa perspectiva, o sintoma ganha um caráter simbólico: aparece no lugar da situação
ou idéia que causou desprazer e sendo, portanto, alijada da consciência. Freud é naturalmente
levado a suspeitar, nesse período, que tais idéias, uma vez afastadas da consciência, têm em
comum um elemento sexual em seus conteúdos, o que justificaria a necessidade de mantê-lo
reprimido e afastado do ego. E é ainda na reflexão do caso Elisabeth que Freud conclui:
Essa moça sentiu pelo cunhado uma ternura cuja aceitação consciente
encontrou a resistência de todo o seu ser moral. Ela conseguiu poupar-se da
dolorosa convicção de que amava o marido de sua irmã, induzindo dores
físicas em si mesma. E foi nos momentos em que essa convicção procurou
extravasar-se (no seu passeio com ele, durante o seu devaneio da manhã, no
banho, ao lado do leito da irmã) que suas dores surgiram, graças à conversão
bem sucedida. Quando comecei o trabalho dela, o grupo de idéias relativas
ao seu amor já havia sido separado do seu conhecimento (FREUD, 1977, p.
206).
Vale salientar que a questão da sexualidade e sua relação com a histeria foram
formuladas de maneira efetiva desde as primeiras reflexões metapsicológicas do final dos
anos 90, especialmente trabalhos que se seguiram aos Estudos... Segundo Laplanche (1985),
o Projeto... é uma tentativa freudiana de ligar organicamente, do interior, o recalque e a
44
sexualidade numa mesma teoria, tornando-se o substrato de tudo que Freud escreveu sobre a
histeria até 1900. Para este autor, é a sexualidade que resume o essencial da contribuição
psicanalítica ao pensamento contemporâneo, sob o ponto de vista não apenas da histeria, mas
de toda a pesquisa metapsicológica.
Essa hipótese do componente sexual na etiologia das neuroses, em especial da histeria,
para cujo ponto todo o seu trabalho foi voltado nessa época, norteou a pesquisa freudiana
desde então. Freud retorna a este tema em artigo sobre As neuropsicoses de defesa de 1894.
Dois anos mais tarde, entretanto, descobre que não é a sexualidade, mas sim a sexualidade
infantil e o reconhecimento da persistência dos impulsos inconscientes que constituem a base
da formação das neuroses.
Para o nosso trabalho de análise da organização psíquica do sujeito de desejo, cabe
aqui uma discussão um pouco mais cautelosa sobre a descoberta do trauma, levantada tanto
por Freud quanto pelo colega Breuer, na análise dos casos oferecidos em Estudos... O
conteúdo dos processos ditos traumáticos, bem como os personagens neles envolvidos, são
substratos importantes para a construção da nossa atual pesquisa.
Segundo Gay, os histéricos tratados por Freud e Breuer nos anos de 1890
apresentavam muitos sintomas de conversão, estados depressivos e alucinações intermitentes.
Para ele, Freud, ainda relutante em abandonar o elemento da hereditariedade, preferia agora
procurar experiências traumáticas, como pista para a compreensão dos estranhos sintomas.
Estavam convencidos, ele e Breuer, que os segredos dos neuróticos eram os conflitos sexuais
ocultos pelos e dos próprios sujeitos.
Tomando como base as observações clínicas derivadas do tratamento das histéricas,
Freud está convencido de que a repressão, entendida aqui como recurso defensivo, se
manifesta a partir de uma experiência traumática, de conteúdo sexual, reconhecido somente
por uma ação retardada do ego. A relação entre os conteúdos do trauma e as queixas atuais
45
não é reconhecida pelos pacientes. As histéricas não podem, ou melhor, não querem acessar o
conflito. Existe um hiato entre esses dois momentos, e isso move Freud a investigar o
processo de recalque. O que agora se demonstra é a suspeita de Freud acerca da relação entre
a conversão e a conexão associativa com o desejo (que foi recalcado). O que é necessário
recusar é o desejo que a paciente nutre inconscientemente e, pela não aceitação, sofre,
transformando sua dor psíquica em dores físicas. Freud demonstra suas suspeitas através de
suas observações sobre os sintomas de Elisabeth:
Mas o que deve ter tido influência positivamente decisiva sobre o rumo
tomado pela conversão foi outra linha de conexão associativa: o fato de que
durante vários dias seguidos uma de suas pernas doloridas entrou em contato
com a perna intumescida do pai, enquanto as ataduras estavam sendo
trocadas. A região da sua perna direita que foi marcada por esse contato
permaneceu, a partir daí, o foco de suas dores e o ponto de onde se
irradiavam. Formou uma zona histerogênica artificial, cuja origem poderia
no presente caso ser claramente observada. (FREUD, 1977, p. 224).
Se há algo que recisa escapar à consciência porque causa desprazer, é preciso saber
sobre este algo que foi rejeitado pela consciência e, portanto, recalcado. O ego se defende
exatamente de quê? O que lhe parece intolerável? O que aqui se desvenda definitivamente é o
caráter sexual do conflito. Desde então Freud devota sua atenção sobre a suspeita dessa
defesa, como pudemos reconhecer no recorte acima.
Esse parece ser o ponto relevante para a construção do desejo. O trabalho de
decomposição ou de rastreamento do sintoma histérico remete Freud ao encontro que, até
então, não havia se configurado de forma direta: o encontro com o desejo pelo pai. O sintoma,
forma travestida de falar da sedução do adulto para com a criança retrata, na verdade, uma
cena estrutural que inaugura o contato com o infantil desejo original: o desejo sexual.
Falta, entretanto, relacionar, desvendar o mecanismo que converte o desejo de ser
seduzido no desejo de seduzir. Este é o próximo caminho a ser percorrido. Na conversão, o
46
afeto, não vivido na ocasião do trauma pelo não-reconhecimento do conteúdo, reaparece
diante de uma nova situação de desprazer na vida atual da histérica. Como salienta Freud:
“Enunciado em termos de teoria da conversão, esse fato indiscutível da somação dos traumas
e da latência preliminar dos sintomas nos ensina que a conversão pode resultar tanto de novos
quanto de sintomas relembrado”. (FREUD, 1977, p. 222).
O trauma, ou melhor, a lembrança do trauma atua como um corpo estranho que
continua apresentando seus efeitos por muito tempo. A emoção vinculada ao trauma foi
reprimida, permanecendo, no entanto, ligada à lembrança. Para Freud, os histéricos sofrem de
reminiscências. A esta constatação somos remetidos a uma outra formulação freudiana da
organização psíquica: os pequenos seres se organizam para garantir um estado de prazer e
registram na memória essas experiências. Os humanos funcionam fixados em caminhos que
remontam às experiências prazerosas. Por outro lado, eles também funcionam pelo
afastamento ou defesa daquelas experiências ou registros de memória que oferecem o seu
oposto.
A histérica alucina e afasta da consciência determinados complexos representacionais
relacionados ao desprazer. Vive aprisionada em seu trauma, num processo que a aliena e
produz sintomas, pela impossibilidade de ab-reagir adequadamente. Incapaz de realizar uma
saída para o desprazer causado pelo trauma, engendra um processo de exclusão de
determinadas representações, mas, em contrapartida, o investimento psíquico assume uma
representação substituta, aceita pela consciência.
Isso acontece porque os traumas não foram suficientemente ab-reagidos, em razão de
dois grupos de condições: a) situações nas quais não cabia uma reação e a emoção foi
intencionalmente reprimida; e b) situações em que as emoções se tornaram gravemente
paralisantes. É a natureza do estado que torna impossível uma reação de fato. Na maioria dos
casos, ambas as condições estão presentes e são determinantes naquilo que originou o trauma.
47
O entendimento do mecanismo de defesa – afastar o desprazer foi, desde o início,
reconhecido por Freud como um mecanismo natural e primitivo do aparato psíquico. No
entanto, o que aparece aqui como esquisito ou constrangedor é que Freud está diante de uma
histérica que, ao converter o desejo em sintoma, reprime, na verdade, um prazer sexual
adiado, não realizado.
Essa substituição, que constitui o processo de simbolização do sintoma, presente na
histeria, aturde e surpreende o próprio Freud. Este mecanismo do sintoma seria uma inversão
do processo natural de defesa: afastar o desprazer. Então, como entender o mecanismo de
recalque e de simbolização do sintoma histérico?
Por simbolização entende-se a substituição da coisa por algo que venha no seu lugar,
de forma disfarçada. Esse processo se constitui em uma saída, diferente da ab-reação, mas
evoca, como conseqüência, a alienação. O sintoma não faz sentido para o sujeito e o não-
saber do paciente histérico era de fato um não querer saber.
O trauma histérico leva ao afastamento do estado psíquico normal. Neste novo estado
psíquico cindido isola-se da consciência tudo aquilo que pode trazer ou gerar desprazer. Por
um mecanismo invertido, o funcionamento dos processos psíquicos dessas pacientes vai
ocorrer da memória para a percepção, e não o contrário do que acontece em situações
normais. Assim, essas pacientes vivem das lembranças e registros de memória, que, não tendo
a liberação de emergir em sua forma original, se transforma em dores físicas ou transtornos de
comportamento.
O que não é possível ou não aceito na consciência é algo que a própria paciente não
quer lembrar de forma direta: o prazer originário de experiências que deixaram traços ou
registros de uma sexualidade ainda não compreendida pelo aparato psíquico da criança.
Esse retardamento na compreensão do que foi vivido antes é uma característica geral
da organização psíquica. Freud está diante de uma conclusão importante para a organização
48
do sujeito. Os registros dessas experiências ficam marcados no inconsciente, apesar de só
posteriormente ganharem uma significação para o seu portador. Como referenda o texto de
Laplanche:
Deixada em suspenso, a lembrança não é em si mesma patógena, nem
traumatizante. Só se torna traumática pela sua revivescência, por ocasião de
uma segunda cena que entra em ressonância associativa com a primeira.
Mas, devido às novas possibilidades de reação do sujeito, é a própria
lembrança, e não a nova cena, que vai funcionar como fonte de energia
traumatizante, como fonte autotraumatizante. (LAPLANCHE, 1992, p.120).
O efeito retardado do ego deve-se ao fato do retardamento da sexualidade até a
puberdade, quando, então, o sujeito pode compreender e nomear o que lhe aconteceu ou o que
constelou a situação traumática vivida por ele em alguma fase de sua infância. Os pacientes
histéricos movem-se a partir de suas lembranças ou da recordação do que lhe causou
desprazer, buscando afastar-se agora de tudo que lhe faça nova menção à situação original.
Tal qual no sonho, a alucinação da histérica faz criar realidades psíquicas sem que estejam
presentes os referentes no mundo externo. O mecanismo interno de defesa sobre esse núcleo
de idéias censuradas é assim descrito na letra freudiana:
[...] reconheci uma característica universal de tais idéias: eram todas de
natureza aflitiva, capazes de despertar emoções de vergonha, da autocensura
e de dor psíquica e o sentimento de estar sendo prejudicado, eram todas de
uma espécie que a pessoa preferiria não ter experimentado, que antes
preferia esquecer.
[...] A idéia em questão foi forçada para fora da consciência e da memória. O
seu vestígio psíquico aparentemente se perdeu de vista. Não obstante, deve
estar lá . (FREUD, 1977, p. 325).
A suspeita de o trauma abrigar uma experiência de desprazer, de caráter sexual e
ocorrida numa fase remota da vida do paciente, geralmente relacionada a sua infância, faz
supor exatamente o material de que tanto precisávamos em nossa reconstrução teórica. Seus
49
escritos da clínica estão cheios de exemplos sobre essas experiências sexuais prematuras. O
que Freud constata no discurso das pacientes é a presença de uma situação de relação entre o
adulto e a criança, marcada pela irrupção de sensações de prazer sexual que não são
elaboradas como sexual pela criança devido à sua imaturidade psíquica. As primeiras relações
da criança com os pais estão marcadas por impressões carregadas de sexualidade. A mãe que
cuida e responde ao apelo do pequeno sujeito também imprime, no seu contato com o filho,
experiências de prazer que ficam inscritas até que o sujeito tenha recursos para decodificar o
conteúdo sexual de tais impressões. Como descreve Laplanche o “pré-sexual” em questão é
um “pré” um “antes” tanto absoluto quanto relativo: o que vem “antes” de um certo tipo de
compreensão possível; e há vários “pré-sexuais” possíveis, correspondendo às diferentes
etapas da evolução infantil.
Freud está construindo sua teoria para dar conta dos conteúdos inconscientes, a partir
dos quais encontraria futuramente sérios argumentos para identificar o componente da
sexualidade infantil, ao tempo em que questiona a presença comum e constante de um adulto
perverso na história de todos os pacientes. A cena de sedução das histéricas aponta para a
suspeita da participação do pai, e diante disso Freud encontra-se perplexo ou incrédulo, como
comenta com o colega Fliess em carta 69, de 1897:
Confiar-lhe-ei imediatamente o grande segredo que lentamente comecei a
compreender nos últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica.
Provavelmente isto não é compreensível sem uma explicação; [...] Depois,
veio a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai, não
excluindo o meu, tinha de ser apontado como pervertido – a constatação da
inesperada freqüência da histeria, na qual o mesmo fator determinante está
invariavelmente estabelecido, embora tão difundida dimensão da perversão
em relação às crianças, afinal, não seja muito provável. (FREUD, 1977, p.
350).
O desconforto com tais observações remete Freud não ao abandono da sedução, como
poderia parecer, mas o faz seguir na direção de delimitar a participação das figuras parentais,
50
denunciadas em cada sintoma: através de um amor oculto pelo cunhado; da devoção e desvelo
ao pai no leito; de fantasias em relação à sedução de um tio; estes são alguns dos exemplos
que devotam sua atenção sobre os fatos.
A demonstração sobre a forma de funcionamento psíquico nos casos de histeria, tão
cuidadosamente discutido por Freud na ânsia de encontrar o seu método de trabalho e
pesquisa, nos servirá de material ou fonte de reflexão sobre nosso propósito. No entanto,
nesse período encontramos um Freud vacilante ou, no mínimo, questionador da real
participação dos pais na cena. O trabalho quase que arqueológico, como ele mesmo
metaforiza em seu texto, para chegar ao núcleo patogênico do sintoma, conduziu Freud ao
encontro de experiências primárias, registros de experiências emotivas que datam de um
passado remoto dessas pacientes e que naturalmente remetem às figuras parentais.
O material psíquico em tais casos de histeria apresenta-se como uma
estrutura em várias dimensões, que é estratificada em pelo menos três formas
diferentes. (Espero logo poder justificar esta modalidade pictórica de
expressão). Inicialmente, há um núcleo que consiste de lembranças de fatos,
ou seqüências de pensamento, nos quais o fator traumático culminou, ou a
idéia patogênica encontrou sua manifestação mais pura. Em torno desse
núcleo encontramos o que é freqüentemente uma quantidade incrivelmente
grande de um outro material mnêmico que tem de ser elaborado na análise e
que é, como dissemos, arranjado numa ordem tríplice. (FREUD, 1977, p.
345).
Pois bem, é o próprio Freud quem destaca como quantidade incrivelmente grande de
outro material mnêmico que tem de ser elaborado no processo da análise. Esta referência
remete naturalmente às primeiras relações objetais do sujeito, embora só alguns anos depois
Freud venha a confirmar esta observação, a respeito deste material mnêmico e de sua relação
de objeto com as figuras parentais. Mais uma vez, o que aqui se desvenda é o conteúdo
edipiano nascente na teoria psicanalítica.
51
No entanto, em que momento, ou de que forma poderemos reconhecer nesse material
as funções parentais? Como a função paterna pode ser desenhada no bojo de todo esse
conteúdo clínico? Está posto que é na clínica que se fundamenta a teoria psicanalítica, e é dela
que o autor extrai sua matéria-prima. Neste caso, é lá que devemos encontrar, portanto, o
nosso material de pesquisa e a nossa questão de trabalho: o lugar que ocupam as figuras
materna e paterna na constituição da psique humana.
Será mais prudente retornar ao texto freudiano e verificar a partir de que ponto se pode
traçar um lugar do pai em seu discurso. Na análise dos casos clínicos oferecidos por ele, há
uma série de insuspeitas observações que nos fazem constatar que Freud pensava além do que
ouvia ou percebia da interpretação direta e inequívoca do relato de suas pacientes. É verdade
que não encontraremos a figura paterna, objeto de nosso estudo, explicitado ou envolvido de
forma direta ou indireta nos relatos clínicos. Porém, parece possível demonstrar na leitura de
cada caso clínico, na possibilidade de perceber o processo da simbolização do sintoma, uma
perspectiva de encontrarmos ora um pai, ora uma mãe travestida de outros objetos de desejo
ou representantes do desejo do sujeito.
1.3 OS CASOS CLÍNICOS: O APARECIMENTO DO PAI
A análise dos casos apresentada por Freud serve-nos de apoio ao nosso objetivo: o de
elaborar uma genealogia das idéias de pai no bojo do pensamento freudiano. Tomemos,
portanto, como ponto de partida, o exemplo da paciente tratada por Breuer, mote de
observações de Freud. Anna O. é uma jovem amável, inteligente e prestativa, mas com uma
sintomatologia rica e diversificada. É curioso atentar para o destaque oferecido aos seus
diversos atributos e às observações que lhes foram conferidas. Assim diz Breuer: “[...] o
52
elemento de sexualidade estava surpreendentemente não desenvolvido nela”, e mais adiante:
“[...] nunca se apaixonara” ( apud FREUD, 1977, p. 64). Por que esse tipo de observação
poderia ser relevante, considerando que neste aspecto Breuer e Freud divergiam? Muitas de
suas indagações sobre o material fizeram com que ambos redobrassem o interesse pela clínica
da histeria e por sua relação com a sexualidade dos pacientes.
Reconhecer o que de fato se passa nos sintomas histéricos e, mais ainda, compreender
o mecanismo de sua produção passaram a ser o principal foco de interesse dessa clínica. A
obstinação nos relatos e na reconstrução ou recordação de cenas traumáticas, associada aos
momentos de surgimento dos sintomas, ocupou um espaço significativo na sua pesquisa, já
que acreditava estar diante de um mecanismo comum na organização histérica.
Em Estudos... encontra-se formulada a Teoria da Sedução6 6
, que, como fulcro,
sustentará que o conteúdo dos relatos dos sofrimentos psíquicos das pacientes, de ordem
sexual, originava-se nas recordações alucinadas das histéricas. Em alguns casos essas
recordações são relatadas como foram descobertas; em outros, no entanto, elas aparecem
parcialmente distorcidas ou alteradas, censuradas em função da dificuldade de aceitar ou
enfrentar o conteúdo que emergia das fantasias inconscientes dessas pacientes.
No tratamento de Fraülen Elisabeth Von R., Freud estabelece uma analogia ao
processo arqueológico com a pesquisa do material inconsciente, comparando o processo de
análise à técnica de desenterrar uma cidade soterrada, em que se precisa retirar as camadas do
material psíquico para penetrar gradativamente nas camadas mais profundas da lembrança da
cena primitiva. Reconhecê-la é atingir o seu âmago, para poder ab-reagir.
O material oferecido por essas pacientes serve não apenas para a pesquisa etiológica
da histeria. O relato cuidadoso das queixas e a atenção devotada pelas pacientes às fantasias e
às vias que as relacionam com os sintomas favoreceram uma nova abordagem técnica ou
6
A teoria da sedução será tratada mais detidamente no segundo capítulo desta dissertação.
53
método de observação. Freud abandona a hipnose, experimentando um método para seguir
com esses relatos e acompanhar os caminhos oferecidos pela consciência, acreditando acessar,
assim, o conteúdo mais remoto – o material inconsciente. Desta forma descreve o seu
tratamento:
Esse processo foi o de desembaraçar o material psíquico patogênico camada
por camada, e gostamos de compará-lo à técnica de escavar uma cidade
soterrada. Começava fazendo com que a paciente me contasse o que sabia e
[eu] cuidadosamente anotava os pontos em que alguma sucessão de
pensamentos permanecia obscura, ou algum elo da cadeia causal parecia
estar faltando. E depois penetraria em camadas mais profundas de suas
lembranças nesses pontos, realizando uma pesquisa sob hipnose ou pelo uso
de alguma técnica semelhante.(FREUD, 1977, p. 188).
Freud está convencido do papel do trauma e principalmente da existência de conteúdos
inconscientes que retornam à consciência travestidos de outros significados. Acompanhando
suas pacientes numa pesquisa arquelógica de decifração dos sintomas, insistindo nas
associações feitas pelas pacientes, Freud tem a intenção de, escavando as idéias e associações
conscientes, atingir o trauma ou o momento originário em que a experiência prematura se
instala. O esforço do método é resgatar a marca ou o traço psíquico original, que retorna a
posteriori numa cena da vida adulta, cujo conteúdo sexual se atualiza e gera o desprazer.
Sendo o nosso objetivo demonstrar o funcionamento do aparelho psíquico a partir da
organização do desejo, estamos diante de um material significativamente importante da teoria
psicanalítica. Como se explica que um traço psíquico residual depositado em uma vivência
pretérita possa assumir a condução do comportamento atual do sujeito? Como entender que o
sintoma remete a experiências tão originárias? O retorno à clinica faz-se necessário para a
compreensão dessas questões.
Elisabeth sofria de muitas dores nas pernas, mas Freud acredita que ela tinha
consciência de que suas dores, na verdade, falavam de um segredo guardado e não
compreendido. Seus sintomas estavam quase sempre relacionados aos cuidados que
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MARCIA MARIA PIMENTA MATTOS

  • 1. UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR MESTRADO EM FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA MÁRCIA MARIA PIMENTA MATTOS FUNÇÕES PARENTAIS: A PROBLEMATIZAÇÃO FREUDIANA SOBRE DESEJO E DEVER Salvador 2005
  • 2. MÁRCIA MARIA PIMENTA MATTOS FUNÇÕES PARENTAIS: A PROBLEMATIZAÇÃO FREUDIANA SOBRE DESEJO E DEVER Dissertação apresentada à Universidade Católica do Salvador como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Família Contemporânea. Orientador: Prof. Dr. José Euclimar Xavier de Menezes. Salvador 2005
  • 3. Elaborado por: Valdete Silva Andrade CRB-Ba.-05/941 M444 Mattos, Márcia Maria Pimenta Funções parentais: a problematização freudiana sobre desejo e dever / Márcia Maria Pimenta Mattos.– Salvador, 2005. 154f. Dissertação (Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea) – Universidade Católica do Salvador, 2005. Orientador: Prof. Dr. José Euclimar Xavier Menezes 1. Psicanálise. 2. Função paterna. 3. Revisão epistemológica. I. Menezes, José Euclimar. II.Universidade Católica do Salvador. III. Título. CDU: 159.964.2
  • 4. UNIVERSIDADE CATÓLICA DO SALVADOR MESTRADO EM FAMÍLIA NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA MÁRCIA MARIA PIMENTA MATTOS FUNÇÕES PARENTAIS: A PROBLEMATIZAÇÃO FREUDIANA SOBRE DESEJO E DEVER Dissertação para obtenção do grau de Mestre em Família na Sociedade Contemporânea Salvador, 17 de outubro de 2005. Banca Examinadora: ______________________________________________________________________ Profa. DENISE MARIA BARRETO COUTINHO Doutora pela Universidade Federal da Bahia ______________________________________________________________________ Profa. ANAMÉLIA LINS E SILVA Doutora pela Universidade Federal da Bahia ______________________________________________________________________ Prof. JOSÉ EUCLIMAR DE MENEZES Orientador Doutor pela UNICAMP
  • 5. A meus pais, pela chance desta existência. Às minhas três filhas, pela oportunidade de experimentar o sabor e o saber da maternidade.
  • 6. AGRADECIMENTOS Ao Instituto João Paulo II e à Universidade Católica de Salvador por viabilizarem o mestrado. Ao Bispo João Carlos Petrinni pela crença e determinação em transformar seu sonho, num sonho coletivo e realizável. Aos mestres e colegas pela transmissão do saber, pelo exercício da troca e da convivência amistosa. Ao amigo e confidente, fiel incentivador, crítico contumaz , porto seguro para as travessias turbulentas e para todos os ensaios de desistência. Sujeito de suposto e de verdadeiro saber. Interlocutor compulsivo e instigador. Meu orientador Prof. José Euclimar de Menezes. À doce Virgínia pelo seu acolhimento, pelo colo, ombro e por me fazer acreditar, mesmo nos momentos mais críticos, que era possível me tornar uma mulher e um ser humano melhor. Aos ex-companheiros que possibilitaram a constituição da minha família: a gratidão pela experiência de me fazer mãe e o despertar para o reconhecimento do lugar paterno. Muitos foram os que me permitiram chegar até aqui: família, amigos, colegas de trabalho, alunos, superiores hierárquicos. A todos aqueles que, de alguma forma, sempre conseguiram entender, respeitar e tornar-se cúmplice dos momentos de ausência, da minha reclusão, das oscilações de humor, fica a minha profunda gratidão.
  • 7. És para mim como alimento para a vida, como os aguaceiros de maio para a terra, e pelo teu amor me atormento tanto, como o avarento pena pelo ouro seu, que de possuí-lo ora exulta, mas logo teme que seus tesouros desapareçam com o tempo: e ora deseja estar unicamente junto de ti, ora que o mundo admire o meu prazer, saciado às vezes somente por ver-te, e logo esfomeado de seu olhar; e não existe alegria que eu tenha ou persiga, se de ti não espero ou não me sobra. Assim devoro e desfaleço, voraz, tudo aferrando e morrendo de fome. Shakespeare
  • 8. RESUMO Esta dissertação tem como objetivo analisar o conceito de paternidade ou de função paterna, definido por Freud através do pensamento psicanalítico, com propósito de compreender o que sobrevive do entendimento desta função nos novos arranjos familiares identificados na sociedade contemporânea. O presente estudo pretende aprofundar-se, com o recurso metodológico da pesquisa epistemológica do texto freudiano, na formação da imago paterna e no seu papel ordenador da subjetividade e da humanização de cada sujeito, a partir da perspectiva das relações familiares. O interesse se amplia para além da identificação da diversidade de formas de participação do pai nas estruturas familiares. O que se quer compreender é o que subjaz da função paterna, modelada por Freud na estrutura familiar contemporânea. A família, presente nos mais diversos períodos históricos, constituída de diferentes formas, procura adequar-se às necessidades humanas de cada época. Diante deste conjunto de relações e de intersubjetividade demarcam-se obrigações para cada um de seus membros. As imagens e os modelos de comportamento masculino e feminino, fruto de elaborações culturais historicamente determinadas, devem ser reconhecidos como a base para as relações entre os sexos e entre as gerações no contexto familiar, definindo os papéis, a divisão de trabalho e as relações de poder e autoridade, e configurando, ainda, o conjunto de valores morais, crenças e normas de comportamento para o sujeito e para suas relações sociais. Estudar o pai ou o lugar que ele ocupa; é compreender a sua função no mundo contemporâneo. Esse empreendimento tem Freud como um referente poderoso e provocador, capaz de contribuir na compreensão dessa função ordenadora e fundamental, para a constituição de cada subjetividade. Palavras-Chave: Pai; função paterna; família; função da cultura; psicanálise; Freud.
  • 9. ABSTRACT The purpose of this dissertation is to analyse the concept of paternity or the concept of the fatherly function, defined by Freud, with the goal of understanding what survives form the knowledge of this function in the nem family arrangements found in contemporary society. It is intended to show an in-depth study using the methodology of epistemologic research of the freudian text, of the formation of the “father figure” and its ordely part in the subectivity and humanity of each person, under the perspective of family relationships. The interest goes beyong the identification of the diversity of ways of participation from the father in family structures, comprinsing Freud’s theorie. Present in the most diverse historical periods, shaped in different ways, society looks into adapting to the human needs of each era. In the face of this group of relations and intersubjectivity, the task for each member are set. The templates and models of masculine and feminime behaviour, a result of historically determined cultural elaborations, are recognized as the base for relationships between the genders and generations in the family context, defining their parts, the share of work, power and authority relations, and also laying the moral values, faith and norms of behaviour to the person and his/her social relations. To study the “father” or the place he occupies is the same as investigating the peculiar nature that describes his function in contemporary society. This entrepreneurship, has Freud as its provocator reference, being able to contribute in the understanding of this ordely and fundamental function to the formation of each subjectivity. Keywords: Father; paternity function; family; cultural function; psycoanalysis; Freud.
  • 10. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 FREUD E A PATERNIDADE 13 A CONTEMPORANEIDADE E A FUNÇÃO PATERNA 18 1 A ORDENAÇÃO PSÍQUICA EM FREUD 21 1.1 A PRÉ-HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: UM PAI AUSENTE 26 1.2 A SEXUALIDADE: CENTRALIDADE NA ORDENAÇÃO PSÍQUICA 38 1.3 OS CASOS CLÍNICOS: O APARECIMENTO DO PAI 51 2 O PRÓXIMO PASSO: FREUD E A NOÇÃO DE FANTASIA 67 2.1 FANTASIAS, TRAUMAS – O REAL E O IMAGINÁRIO SE CONFUNDEM E SE FUNDEM PARA COMPOR O SUJEITO 73 2.2 FANTASIA E DESEJO – O PAI NÃO MAIS AUSENTE 78 3 A TRIÂNGULAÇÃO DO DESEJO 90 3.1 A SEXUALIDADE INFANTIL: DA POLIMORFIA AO MUNDO DO OBJETO 98 3.2 ÉDIPO: O MITO DO HERÓI; O RECONHECIMENTO E O SÍMBOLO DA FUNÇÃO PATERNA 108 3.3 A METÁFORA E O TRIÂNGULO DESIDERATIVO 111 4 A FUNÇÃO ORDENADORA DO PAI 116 4.1 O TOTEM, A HORDA E A ORDENAÇÃO SOCIAL 119 4.2 DO TOTEM AO PAI 124 4.3 O PAI, O SUJEITO DE DESEJO E A ORGANIZAÇÃO FAMILIAR 133 CONCLUSÃO 146 REFERÊNCIAS 152
  • 11. 10 INTRODUÇÃO As mudanças que vêm ocorrendo no contexto social desde o final do século XX e que iniciam este novo século não constituem fenômenos isolados; formam-se como um conjunto de transformações socioeconômicas, políticas e tecnológicas complexas que se realizam em ritmo acelerado, nas últimas décadas, cujos resultados demoraremos de conhecer e mensurar. (GIDDENS, 2000).1 O estudo das diversas formas familiares constitui uma passagem importante para a compreensão do modo como a sociedade ou um grupo social organiza sua vida cotidiana, organiza-se sob o ponto de vista material, e como atribuem significados à sua existência no mundo, à sua colocação no tempo, no espaço e nas relações sociais, afetivas e sexuais. Particularmente inquietantes são as transformações que atingem as relações afetivas, a sexualidade, o parentesco, a filiação, a maternidade e a paternidade, não somente porque nos afetam mais diretamente, como também porque reordenam a identidade social, construção necessária para dar consistência à subjetividade. Fala-se em polimorfismos das instituições sociais, dos sistemas de crenças e valores, do trabalho, dos relacionamentos e do modo como nos representamos. No entanto, uma maior atenção deve estar direcionada às mudanças nas relações familiares, segundo Lowenkron (2001). Para Ariès (1981), esse momento cultural tão propício à valorização da individualidade humana favorece também o desenvolvimento do sentimento de família e do sentimento de infância. Segundo o autor, esse é um momento de reconhecimento das particularidades da infância, da importância do afeto e do interesse psicológico pela criança. 1 Giddens afirma que estamos sendo impelidos rumo a uma nova ordem global que ninguém compreende plenamente e cujos efeitos se fazem sentir sobre todos.
  • 12. 11 Donati (2003) afirma que nunca a convivência entre gênero e gerações foi simples. A história é a representação de tensões entre gerações, ainda que a família moderna seja palco de conflitos ainda mais significativos. Na superfície, o problema manifesta-se num agravamento das dificuldades de comunicação e de identidade de papéis de genitores e de filhos, de identidade de gêneros e de questões de convivência com outras gerações. Entretanto, mais do que essa análise empírica, o mal-estar da família, segundo o autor, remete-se ao fato privado – psicológico – e ao fato público – cultural e social, enquanto é produzido pela falta ou de limites, ou de falhas na fronteira que definam distâncias, passagens e solidariedade entre as gerações. Talvez o que deseja pontuar trate do sério esvaziamento de funções e de identidade entre os atores que constituem a trama familiar. Eis aqui o eixo que nos permite interrogar sobre a interseção entre o fato privado e o público. Não seria exatamente a queda de fronteiras, o esvaziamento de sentidos entre o sujeito e suas relações, entre a dimensão pessoal e a ordenação social que nos remeteria à moda de justificação, ao pensamento freudiano, para nele reencontrar esse entrelaçamento? É sobre essa formação de imagos, em especial sobre a imago paterna, que o presente estudo pretende aprofundar-se, a partir do recurso metodológico da pesquisa epistemológica do pensamento freudiano. A escolha feita em relação ao pensamento freudiano pode ser justificada em razão das contribuições trazidas pela psicanálise e, em especial, pelo reconhecimento, por parte de Freud, desde os últimos anos do século XIX, de que os produtos da psique humana, ou melhor, produtos da imaginação típicos das crianças de tenra idade são frutos da tensão de impulsos inatos e experiências infantis vividas no ambiente da família, na relação inicial da criança com a dupla parental. É fato óbvio que os cuidados maternos e a convivência com adultos sempre foram tomados como referência sobre o comportamento infantil e reconhecidos como verdades
  • 13. 12 antigas, ainda que, até a contemporaneidade, poucos tenham investido no tema com o propósito da investigação científica. O trabalho freudiano, em sua particular forma de produção de conhecimento, é, todavia, abundante em oferecer pistas e referências sobre a importância das experiências infantis oriundas do enredo familiar, decorrentes da relação da criança com seus pais, como determinantes do comportamento do sujeito adulto, seja na vida privada ou social. Talvez nenhum outro campo do pensamento contemporâneo denote a influência de Freud com mais clareza que o da assistência à infância. [...] Freud não somente insistiu sobre o fato óbvio de que as raízes de nossa vida emocional residem na primeira infância e na infância propriamente dita, como também procurou explorar de maneira sistemática a ligação existente entre os acontecimentos dos primeiros anos e a estrutura e a função da personalidade posterior (BOWLBY apud SUTHERLAND,1973, p.35).
  • 14. 13 FREUD E A PATERNIDADE O foco de interesse deste trabalho reside na reavaliação da função paterna, definido por Freud através do pensamento psicanalítico, com o propósito de compreender o que sobrevive do entendimento desta função nos novos arranjos familiares identificados na sociedade contemporânea. O interesse estende-se para além da identificação da diversidade de formas de participação do pai nas estruturas familiares. O que se quer compreender mais amiúde é o que permanece da função paterna dentro do arranjo familiar, típico da sociedade dos nossos dias. A intenção é resgatar, por meio da contribuição freudiana, conceitos que ajudem compreender a função paterna e o destino atribuído ao pai. Ler a obra freudiana com vistas ao entendimento da família e sua ordenação e, em particular, recortar no seu bojo o papel da função paterna, considerada a originalidade oferecida pela Psicanálise, no que diz respeito ao enredo edipiano, mostra-se uma tarefa desafiadora, pela sua abrangência e complexidade, já que o tema tem caráter de centralidade e perpassa toda a sua produção. O desafio maior e mais relevante é, antes de tudo, o de penetrar na própria obra de Freud, seguir o caminho privilegiado de um saber, com suas regras de funcionamento e referentes específicos, que operam na constituição e na produção desse saber singular – o saber psicanalítico sobre o sujeito e suas relações de desejo.2 O viés do olhar sobre o enredo familiar e sobre a função paterna no conjunto da obra freudiana não se mostra uma tarefa fácil. A ordenação epistemológica em Freud tem por 2 Ao se referir à obra de Freud Paul-Laurent Assoun, 1983, destaca o ineditismo freudiano de constituição do saber, considerando o quanto este modelo transborda, consideravelmente, os modelos vigentes para o pensamento científico. Reconhece, entretanto, a psicanálise como um modelo de saber e a epistemologia freudiana como a forma de investigação sobre as condições desse saber psicanalítico. A originalidade da obra freudiana está na forma como subverte a linguagem do seu tempo, preservando sua episteme tanto na forma quanto no conteúdo.
  • 15. 14 objetivo permitir um caminho mais seguro no resgate de categorias importantes relacionadas ao nosso atual interesse. Assim, delimitaremos este trabalho à análise de textos que permitam objetivar a construção do nosso propósito: o contorno simbólico auferido ao pai, na base da organização social, da cultura e da família. No primeiro capítulo recortamos as contribuições dos textos pré-psicanalíticos, no intuito de proceder a uma arqueologia do pensamento de Freud na passagem do modelo fisiológico ao modelo metapsicológico, em que surgem conceitos teóricos importantes sobre a clínica e terapêutica dos pacientes histéricos, base para a formulação da estrutura desejante do sujeito, território no qual garimpamos a presença da função paterna. Iniciar nossa investigação pela influência do pensamento freudiano do final do século XIX pode-se justificar pela efervescência da atmosfera cultural européia, o movimento intelectual que acometia artistas, filósofos e pesquisadores de todas as áreas. No que tange à saúde ou às doenças mentais e emocionais e do interesse sobre o comportamento sexual, os valores e as inquietações intelectuais, vários foram os nomes de expressão com os quais Freud conviveu: Charcot, Kafft-Ebing, Meynert, Breuer e Fraser são apenas algumas dessas muitas referências. A Viena de Freud, o ambiente do qual herdou influência cultural mais direta, foi palco de inspiração para o afloramento de muitas idéias originais sobre a vida pública e privada do homem comum desse período. Viena no fin-de-siècle, sentindo profundamente os abalos da desintegração social e política, revelou-se um dos terrenos mais férteis para a cultura a- histórica do nosso século. Seus grandes inovadores intelectuais – na música e na filosofia, na economia e arquitetura e, evidentemente, na psicanálise – romperam, todos eles, e de modo mais ou menos deliberado, seus laços com a perspectiva histórica essencial para a cultura liberal novecentista em que foram gerados. (SCHORSKE, 1990, p. 14.)
  • 16. 15 O interesse particular pela observação clínica de pacientes neuróticos aliado à mescla das influências culturais e científicas que envolveram a formação do jovem médico judeu contribuíram para a precoce construção de sua peculiar abordagem, tanto no que tange aos métodos, quanto na compreensão dos fenômenos psíquicos dos sujeitos normais ou neuróticos. O traço de originalidade do pensamento freudiano pode ser identificado desde os seus primeiros ensaios. Nos textos tomados como referência, tanto Projeto para Uma Psicologia Científica (1895), quanto Estudos sobre Histeria (1893-95), Freud demarca as bases para a compreensão do funcionamento psíquico dos sujeitos normais e dos neuróticos. Noções sobre o Princípio da Inércia, o Princípio de Constância, quantum de energia circulante, bem como as funções da memória, da alucinação, do pensamento e um esboço original de comunicação do bebê com o adulto, são elementos essenciais para o entendimento do processo de individuação do sujeito. O segundo capítulo trata da passagem conceitual da Teoria da Sedução, base de sustentação da noção freudiana, construída a partir das primeiras observações clínicas sobre o trauma histérico, para a teoria das fantasias originárias, como referência freudiana quanto à participação da sexualidade infantil na etiologia das doenças psíquicas, em especial a histeria. O trabalho com a clínica da histeria permitiu a Freud um embate com as experiências primordiais do relacionamento entre a criança e os adultos que dela cuidam – seus pais. A idéia inicial de a histeria ser fruto de uma experiência traumática de sedução encaminha uma pesquisa cuidadosa sobre a realidade factual e a realidade psíquica dessas pacientes. Entre uma vivência real de sedução e, na essência, uma cena imaginária de sedução (o desejo de seduzir), a histérica circula oferecendo um material inconsciente fundamental para a compreensão do mecanismo de construção de seus sintomas.
  • 17. 16 O percurso freudiano junto a essas pacientes delineou o papel das primeiras experiências do sujeito com as figuras parentais, definindo, para a psicanálise, uma linha divisória para uma nova compreensão da psique humana. Tais experiências primevas, suas marcas e desdobramentos futuros na vida adulta configuram, na visão psicanalítica, a base da formação do sujeito de desejo. No capítulo terceiro nossa proposta é demonstrar a triangulação do desejo, constituída pelo pensamento freudiano, a partir da noção de sexualidade infantil e do Complexo de Édipo, tendo como obra de referência Três Ensaios sobre a Sexualidade, de 1905. Esta se mostra fundamental para a pesquisa do complexo familiar e relacional dos sujeitos, elemento que converge para a função paterna, fulcro de nosso interesse. O complexo edipiano salientado na singularidade da letra freudiana é a base para a diferenciação do sujeito, enquanto um ser de desejo, capaz de se relacionar com outro sujeito, com um outro, objeto de seu desejo. O sujeito tencionado entre dois objetos de amor e ódio: o pai e a mãe estrutura-se nesse emaranhado complexo de relações e compõe sua formação psíquico-familiar. Édipo representa, portanto, o jogo de relações que ocorre no interior da família, que move cada um dos seus componentes. Desse modo, falar de Édipo é falar de sua mãe, da relação que os caracteriza, dos desejos nutridos, das tensões que neste entrelaçamento vivem os humanos. Igualmente é falar do pai, do envolvimento necessário com esta figura, representante de uma função tão importante no Ocidente: proibição e prescrição, papel atribuído no ápice da civilização à lei. Logo, qualquer que seja a porta de entrada para a análise deste Mito transformado em Complexo mergulhamos, de chofre, no drama familiar que nos caracteriza enquantosujeitos que representamos e afetados por emoções. Em outros termos, a estrutura psíquica tem o molde da estrutura familiar no pensamento freudiano. (MENEZES, 2002, p.166). Freud procurou demarcar o eixo que vincula a experiência da vida real ou imaginada (fantasmática) com a constituição psíquica de cada ser em especial, relacionando
  • 18. 17 acontecimentos e relacionamentos travados muito cedo, mas significativos para a constituição da sua estrutura psíquica. Seja em seus primeiros escritos sobre as observações clínicas de pacientes, seja ao postular o inconsciente ou, mais adiante, ao formular sua metáfora sobre o Complexo de Édipo, Freud sempre ressaltou na relação mãe-filho-pai a matriz básica para pensar a constituição da subjetividade, como demonstrar-se-á na leitura das obras indicadas. O quarto e último capítulo aponta um novo momento de transição e de diferenciação do pensamento freudiano. Já em 1913, Freud sustenta, a partir de diversas fontes de pesquisas antropológicas e evolucionistas, a idéia de que a espécie humana arrasta informações filogenéticas, permeadas pelo contexto cultural. Nessa perspectiva, portanto, tais informações estão carregadas de significados, referidos a certas imagos, especialmente paterna, materna e fraterna. A obra Totem e Tabu, datada desse período, parte para a defesa do mito da horda primitiva – como mito ordenador na família –, da ordem social e da cultura. O nome do pai, fonte de toda legalidade, foi transmitido ao longo dos tempos, com as variáveis históricas, de acordo com a constituição de sujeito fomentada por cada sociedade. O material apresentado em Totem e Tabu inscreve de forma definitiva o passo que a psicanálise propõe no entendimento da relação natureza e cultura, inscrita na estruturação desiderativa que define o homem como um sujeito de desejo, distanciando-o definitivamente da perspectiva biológica que caracteriza o instinto animal. É neste último capítulo que a figura do pai ganha sua efetiva posição simbólica na constituição de limite e ordenação do desejo do sujeito e de sua inserção no mundo das relações sociais. A função paterna, na perspectiva psicanalítica, constitui-se como terceiro elemento a atuar na trama familiar para possibilitar, pela interdição da díade mãe-filho, uma nova direção do desejo do filho, além de oferecer as condições necessárias para interesses e investimentos em outros elementos da cultura.
  • 19. 18 A CONTEMPORANEIDADE E A FUNÇÃO PATERNA Quaisquer que sejam as contestações a Freud, e elas são muitas, psicanalistas, psiquiatras e psicólogos nunca abandonaram algumas de suas proposições, aceitas como evidentes. Dentre elas está aquela que sustenta que nos primeiros meses e anos de vida o comportamento do adulto em relação à criança é fundamental para definir um futuro saudável ou não para ela. Muitos foram os teóricos contemporâneos que reconheceram a contribuição psicanalítica sobre o tema (BOWLBY; WINNICOTT; MONEY-KYRLE apud SUTHERLAND, 1973; FOUCAULT, 2001). Claude Lévi-Strauss salienta, em 1956, que a vida familiar apresenta-se em praticamente todas as sociedades humanas, mesmo naquelas cujos hábitos sexuais e educativos são muito distintos dos nossos. Sua contribuição reafirma o fenômeno da universalidade da família, como foi postulado desde sempre pela teoria psicanalítica. Nessa perspectiva, a constatação da universalidade aponta para duas outras condições importantes para o processo de humanização: a) a família é o lugar que humaniza e socializa o sujeito – lugar de limite e borda para o indivíduo –, além de ser também o lugar de inserção social; b) cada família provém do que Roudinesco (2002) chamou de “estilhaçamento” de outras duas famílias. Para a autora, a família é o lugar de alianças e parentescos (trocas), como postulado pelo mito constituído por Freud em Totem e Tabu. Salienta a autora que a proibição do incesto é tão necessária à criação de uma família quanto a união de um macho com uma fêmea. Tal proibição é um fato da cultura, sob a perspectiva freudiana, e, como tal, oferece à instituição família um papel duplamente universal – relaciona um fato da cultura, construído pela sociedade, a um fato da natureza, inscrito nas leis de reprodução biológica. Assim, a existência dessas duas ordens no bojo da família permite aos seus elementos uma fonte inesgotável de experiências humanas.
  • 20. 19 Nenhum outro campo do pensamento contemporâneo sofreu tanta influência da obra freudiana quanto os temas que envolvem família e infância. O interesse pela psique humana o fez enveredar de forma arqueológica, como muitas vezes ele mesmo descreveu, pelo cerne da trama familiar e pelas experiências muito tenras da primeira infância. Psicanalistas de escolas dissidentes concordam com a importância vital de uma relação estável e permanente do desejo de uma mãe para com seu filho durante os primeiros anos de sua infância. Avançando para além do desejo e cuidados amorosos de uma mãe protetora, a criança precisa estar submetida também à presença e à interdição desejante de um terceiro elemento, entre ela e sua mãe, elemento este importante na ordem da família: o pai, ou o seu substituto, constituído, assim, a tríade familiar. Essa relação triangular básica terá a força de definir o destino psicológico saudável ou não de qualquer criança. Todavia, em relação a outras questões da parentalidade, observam-se opiniões e visões distintas, talvez em decorrência da relativa novidade e complexidade que o assunto impõe. Seria de surpreender se assim não o fosse. Dentre os opositores freudianos encontramos a proposta fenomenológica do alemão Hellinger (1998), que, ao se contrapor ao pensamento psicanalítico, defende a necessidade de se visualizar o fenômeno da família não pelos processos inconscientes que subjazem aos seus representantes – pais, filhos e outras gerações –, mas examinando o fenômeno relacional per si, os sentimentos e comportamentos reais e as associações sistêmicas de uns com outros na cena familiar. Ademais, não postula causalidade, muito menos uma inscrição psíquica primeva, contudo postula uma associação sistêmica relacional, considerando que esta forma de compreensão da trama familiar requer uma outra forma de abstração diferente da teoria psicanalítica. O trabalho de Freud, entretanto, ao voltar-se para a vida afetiva e emocional das crianças, adianta uma hipótese ousada: a que nos primeiros anos é a regra e não a exceção que
  • 21. 20 determina relações significativas entre pais e filhos, relações estas que definem o destino da vida afetiva do sujeito adulto (WINNICOTT apud SUTHERLAND,1973). É sobre sua contribuição que dedicaremos toda atenção. A proposta psicanalítica, ao tratar as necessidades da criança em tenra idade, no que tange ao amor, à segurança e aos cuidados higiênicos básicos, entende que tais necessidades ou exigências clamam por uma urgência de atendimento e de envolvimento com o outro que escapa ao limite das demandas fisiológicas. Negá-las corresponderia a gerar poderosas forças provocadoras de distanciamento e estranhamento entre os pais e seus filhos. No texto freudiano, através do parricídio original e do mito de Édipo, elementos centrais do conceito da função paterna e de todo o jogo psíquico que estrutura a triangulação familiar na perspectiva psicanalítica, buscar-se-á compreender como Freud entendeu o complexo representacional como o mais expoente do psiquismo humano, seja na posição de pai simbólico (lugar da lei), seja na de pai biológico (pai da reprodução) ou na de pai imaginário (pai da autoridade). A família é contexto para que ocorram todas as experiências primordiais que constituirão o sujeito de desejo; também é no seu cerne que a descoberta infantil da diferença sexual se configura. Nela forma-se o princípio organizativo social, e, mais ainda, a estrutura de rede simbólica que organiza não somente as relações sociais, mas, principalmente, os destinos individuais. É na família que o fato de se pertencer a um determinado sexo se transforma em destino pessoal e social, implícita ou explicitamente, regulamentado e hierarquizado por valores, poder e responsabilidades. É curioso constatar que justamente no momento em que a sociedade se defronta com questões relativas a identidade de papéis, limites, conflitos de gêneros e gerações e transformações das funções parentais sejamos remetidos a pensar, ou melhor, a repensar nas figuras parentais e na sua importância sobre o cenário das relações atuais.
  • 22. 21 1 A ORDENAÇÃO PSÍQUICA EM FREUD Por onde vens, passado, pelo vivido ou pelo sonhado? Que parte de ti me pertence, a que se lembra ou a que se esquece? Manuel Antônio Pina, 1943 Qualquer que seja o objeto de pesquisa a partir das idéias de Freud, merecerá sempre uma análise criteriosa por parte do pesquisador, para que contemple, no pensamento freudiano, a inclusão de categorias relevantes que vão se estruturando ao longo da construção de sua obra. A questão da ordenação psíquica do sujeito e nosso particular interesse sobre a função paterna como elemento ordenador da psique e das relações afetivas exigiu uma leitura cuidadosa da obra freudiana. O objetivo desta dissertação é compreender o papel da função paterna na organização do psiquismo humano, função simbólica considerada por Dor como “epicentro crucial na estruturação psíquica” (1991, p. 9). Para tanto, ressalta o caráter de operador simbólico do pai em Freud, destacando o que na Psicanálise existe de mais significativo em relação ao pai, ou à função paterna; seu caráter bem mais transcendente que de um pai real ou biológico. Assim, a Psicanálise, e originalmente Freud, como veremos neste trabalho, tem o desafio de nos apresentar, ainda no final do século XIX e início do XX, as novas funções e relações entre paternidade e filiação. Nesse sentido, por pouco que tenhamos, entretanto, que considerá-lo como um ser, trata-se menos de um ser encarnado, do que de uma entidade essencialmente simbólica que ordena uma função. Devido à premência desse modo de existência simbólica, tal é então o seu caráter fundamentalmente operante e estruturante para cada um, isto é, qualquer que seja o sexo daquele que a ele se acha referido. Em outras palavras, é porque esse pai simbólico é universal – daí a essência de sua necessidade – que nós não podemos deixar de ser tocados pela incidência de sua função, que estrutura nosso ordenamento na qualidade de sujeitos. (DOR, 1991, p.14).
  • 23. 22 Com Dor identificamos a qualidade simbólica do pai, de valor diferenciado, nascido originalmente na letra freudiana. Ao pai atribui-se mais do que uma participação biológica, uma outra função de caráter simbólico, significativamente mais operante, que é o seu papel de agente ordenador do desejo. O sujeito de desejo é aquele que, transcendendo as tarefas e exigências de sobrevivência, é capaz de constituir-se reconhecendo outras interpelações que lhe são exigidas, além dos cuidados naturais de sua espécie, organizando-se como pessoa através das relações familiares e sociais. Dessa forma, entender o lugar de referência da função do pai é, sem complacência, uma tarefa necessária e oportuna para a compreensão da inserção do sujeito na vida social, na vida de relações e na cultura. No entanto, reconstruir os caminhos que organizaram os alicerces freudianos para o reconhecimento da função paterna é tarefa que exige a atenção de um arqueólogo ou um garimpeiro, já que o tema do pai e os fundamentos teóricos para o entendimento da ordenação da psique perpassam todo o seu trabalho de construção da própria Psicanálise. A ênfase deste capítulo limitar-se-á aos escritos pré-psicanalíticos, considerando os aspectos relevantes para o nosso objetivo. O primeiro deles é aquele que diz respeito à importância que possui na construção das condições básicas para a gênese da estrutura triangular edipiana. Ao ler Projeto para uma Psicologia Científica,3 de 1895, e Estudos sobre Histeria de 18964 , encontramos Freud diante de uma tensão para compreender o funcionamento psíquico, não apenas daqueles pacientes com distúrbios psicológicos, mas também quando busca entender o funcionamento da psique do sujeito dito normal. Acreditava, desde então, na 3 Citado doravante como Projeto... 4 Citado doravante como Estudos...
  • 24. 23 existência de fenômenos universais presentes na estrutura dos sujeitos tanto normais quanto daqueles com distúrbios psíquicos. Um dos fatos mais importantes é o de que os processos primários , semelhantes aos que foram gradativamente suprimidos pela pressão biológica no curso da evolução de , se apresentam diariamente a nós durante o sono. Um segundo fato de idêntica importância é o de que os mecanismos patológicos, revelados pela análise mais cuidadosa nas psiconeuroses, guardam a maior analogia com os processos oníricos. (FREUD, 1977, p.443). Tomado de interesse pelos fenômenos da histeria, Freud transita, nesta fase, na fronteira entre o físico e o psíquico, inscrevendo um hiato entre a forma científica vigente de concepção dos fenômenos psíquicos e a sua observação clínica dos sintomas. Noções como processos primários, processos secundários e repressão já se encontram presentes no discurso freudiano. A noção de uma estrutura psíquica, com diferentes instâncias ou formas distintas de registros psíquicos, tanto dos estímulos internos quanto dos externos, também já constitui a visão freudiana deste período. Uma estrutura metapsicológica para ancorar o desejo encontra sua defesa desde esse momento do pensamento freudiano: Se ao lembrar um sonho interrogamos a consciência quanto ao seu conteúdo, verificamos que o significado dos sonhos como realizações de desejo se acha encoberto por uma série de processos , todos os quais voltaremos a encontrar nas neuroses, sendo ali característicos da índole patológica desses transtornos. (FREUD, 1977, p.449). Estudiosos e comentadores da Psicanálise sustentam que Freud, ao escrever Projeto..., já teria formulado vários dos elementos básicos da teoria psicanalítica. Alguns autores chegam a postular que muitas das teses que escreveu numa de suas obras de maior relevância,
  • 25. 24 A Interpretação dos Sonhos, já estariam sinalizadas em Projeto.... Esta obra é um sofisticado modelo de neuropsicologia, no qual estão assentados os fundamentos da sua metapsicologia. Em segundo lugar o fato de o Projeto... ser um escrito ostensivamente neurológico levou muitos autores a articularem duas idéias importantes que, se comprovadas, fariam com que a apreciação da teoria psicanalítica fosse drasticamente reavaliada:1.º) que a metapsicologia freudiana posterior, a partir de 1900, estava assentada nessa neurofisiologia do Projeto... Embora isso fosse por Freud de maneira implícita, o que teria originado um bom número de confusões; 2.º) com base no Projeto... poder-se-ia também abandonar a idéia de que a Psicanálise não era uma disciplina sujeita a verificação experimental, já que esses modelos neurofisiológicos poderiam ser testados. (MONZANNI, 1989. p. 75-76). Segundo Monzanni (1989), Projeto... foi o ápice para Freud fundamentar, através da neuroanatomia e da neurofisiologia, a disciplina que estava alicerçando já há algum tempo. Ele considera esse um momento privilegiado do pensamento freudiano, inaugurando a perspectiva do surgimento de sua metapsicologia. Os trabalhos de pesquisa e todo o esforço de resgatar uma visão científica de fenômenos clínicos fizeram de Projeto... um complexo tratado de neuropsicologia, e, mais que isso, as teorias vigentes até hoje nesse terreno sinalizam o delicado dualismo entre o físico e o psíquico, posição que jamais foi abandonada nem por ele. É na letra de Gay (1995) que encontramos a confirmação do movimento de descoberta freudiana. Para este autor, a pesquisa freudiana desse período leva ao encontro não de uma psicologia para neurologistas, mas sim, de um tratado psicológico para psicólogos. Muito mais do que explorar os substratos fisiológicos e biológicos da mente, Freud explorava os domínios do inconsciente e suas manifestações no pensamento e na ação, debatendo-se diante de uma psicologia científica que tente explicar a vida mental complexa, que inclua processos como memória, percepção, alucinação, pensamento e satisfação pelo relaxamento após a descarga de estímulos desestabilizadores.
  • 26. 25 O modelo freudiano dessa época, sob muitos pontos de vista, resiste ao tempo e às novas descobertas. Contudo, o mais relevante é que, neste período de investigação, o interesse de Freud pela clínica, em especial o interesse pela origem dos sintomas de seus pacientes, tornou-se a força propulsora para seguir mais adiante na descrição neurológica dos fenômenos psíquicos. Para Gabbi Jr.(1985), em Projeto...Freud tem como objetivo explícito representar processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais. Tais processos são fundamentados nos conceitos de quantidade e neurônios, e têm duas funções a realizar: a de descarga de quantidades e a de conservar os caminhos da descarga. O conceito de quantidade é definido como uma diferença entre atividade e repouso e o de neurônio como uma partícula material capaz de conter uma certa quantidade. A quantidade é governada por um princípio, o da inércia neuronal, segundo o qual os neurônios tendem a descarregar a quantidade. O aparelho psíquico assim concebido é insatisfatório para dar conta de sistemas que, além de sofrerem estimulação externa, estão sujeitos às exigências da vida: respiração, fome e sexo. Os estímulos endógenos, diferentemente dos externos, que atuam por impacto, vão se acrescentando, e só quando o organismo produz uma ação específica sobre o mundo externo há uma interrupção provisória no processo de acréscimo. Para realizar a ação específica, é preciso que o parelho suporte uma certa quantidade no seu interior. (GABBI JR, 1985, p.5). O reconhecimento da necessidade de um aparato psíquico mais complexo, organizado não apenas sobre o princípio da inércia (descarga pelo acúmulo de quantidade), mais agora também regido pelo princípio da constância, segundo o qual o organismo tende a manter no seu interior a quantidade constante, conduz a teoria freudiana do aparelho psíquico a uma compreensão muito mais psicológica do que neuronal, demarcando, a partir deste momento, uma linha divisória com a neuropatologia vigente nas sociedades de língua alemã de sua época. A contribuição mais completa das descobertas de um aparelho psíquico, capaz de incluir funções mentais mais elaboradas, de dar conta da relação com os estímulos endógenos
  • 27. 26 e os estímulos externos - estímulos que remetem o sujeito a sua relação com um outro no acolhimento de sua ação específica, se tornaram a base para a construção que aqui desejamos focar: as relações parentais. 1.1 A PRÉ-HISTÓRIA DA PSICANÁLISE: UM PAI AUSENTE O retorno a Projeto..., ainda que considerado uma obra inacabada pelo seu próprio autor, justifica-se pela grande contribuição do texto para a construção de conceitos psicanalíticos posteriores. Para Strachey (1977), Projeto..., ou melhor, seu espírito invisível, paira sobre toda a série de obras teóricas de Freud, do início ao fim. O trabalho exaustivo de observação sobre as neuroses e o rastreamento neuropsicológico de o Projeto... renderam frutos muito produtivos para a teoria psicanalítica, embora o próprio Freud não tivesse desfrutado com entusiasmo de suas recentes descobertas. As noções de inconsciente e de recalque, desejo e sexualidade infantil só ganhariam futuramente lugar de significação na estrutura do pensamento freudiano a partir dos achados dessa obra. Em carta a Fliess, de maio de 1895 (carta 24), Freud expressa exaustivamente seu processo de trabalho com o texto: [...] Há algum tempo me sentia atraído, de longe, por ela. Só agora,depois que me deparei com as neuroses, se tornou mais próxima. Vivo atormentado por duas idéias: descobrir que forma terá a teoria do funcionamento psíquico se nela se aplicar um método de abordagem quantitativo, uma espécie de economia da força nervosa, e, segundo lugar, extrair da psicopatologia tudo que puder ser útil à psicologia normal. Seria, de fato, impossível conceber uma noção geral satisfatória dos distúrbios neuropsicológicos, a não ser que se pudesse relacioná-los a pressupostos bem definidos sobre os processos psíquicos normais. Venho dedicando todos os meus minutos livres dessas últimas semanas a esse trabalho; passo as noites, das onze até as duas horas da madrugada, a imaginar, comparar e adivinhar coisas desse gênero; e só desisto quando chego a uma conclusão absurda ou fico tão
  • 28. 27 irremediavelmente exausto que perco o interesse pela minha atividade médica cotidiana. Mas é cedo demais para apresentar quaisquer resultados. (FREUD, 1977, p. 390). Esse documento neurológico complexo contém em si os prenúncios de elementos que contribuirão significativamente para as teorias psicológicas desenvolvidas pelo próprio Freud com relação ao núcleo familiar básico: o complexo de Édipo. Ainda muito influenciado pelo pensamento positivista e pelas exigências da época, de se fazer uma psicologia nos moldes das ciências naturais, Freud apóia-se em um modelo biofísico, aparentemente pouco flexível para suas considerações futuras sobre o psiquismo. A tarefa de determinar quantitativamente o funcionamento da economia psíquica, a partir dos estímulos oriundos do meio e dos instintos, torna a abordagem uma quase versão neurológica acerca do funcionamento do sistema nervoso. No entanto, sua descrição dos fenômenos mentais transcendeu, de forma evidente, as explicações neurofisiológicas. Desta maneira, pode-se dizer que Projeto... rompe com o reducionismo fisiológico dos fenômenos clínicos e com a forma de fazer ciência da época. Para Monzanni (1989), deve-se a Freud a primeira somatomorfologia intrínseca da experiência vivida que repousa na observação e construção naturista. Da arquitetura teórica exibida por esse período, surge o aparelho psíquico edificado sobre o corpo. Noções sobre a consciência, a descrição sobre fenômenos psíquicos inconscientes, o interesse pelo mecanismo psíquico de defesa, de deslocamento, o interesse sobre a presença e a participação da sexualidade na relação com as neuroses são extratos significativos, recolhidos no âmago desse trabalho, de 1895. Todos esses conceitos serão devidamente resgatados ao longo da teoria freudiana, fazendo deste conjunto, e de tantos outros conceitos, a constelação de idéias sobre a ordenação psíquica do sujeito, na perspectiva psicanalítica.
  • 29. 28 Os casos clínicos analisados nessa época apontam para a presença de relações carregadas de catexia, em geral, com as figuras masculinas, o que levanta, em Freud, a suspeita futura de que o pai, ainda que travestido por um tio, cunhado ou outra figura representativa no complexo dos sintomas histéricos, poderia estar na essência do desejo dessas pacientes. Para o nosso objetivo, esse núcleo de idéias freudianas será fundamental, já que é nele que encontramos o esboço, as primeiras observações sobre temas importantes; a saber: a) a gênese do triângulo, instigada inicialmente pelo vértice filho-mãe, ou melhor, criança faminta/desejante – mãe/objeto de satisfação (alucinado ou real, de saciação do desejo); b) a clínica como espaço de compreensão de um enredo que se desenvolverá em todos os humanos – a construção da definição do sujeito desejante; c) o conteúdo sexual na centralidade do funcionamento do psíquico, tanto dos normais quanto dos neuróticos; d) a não referência à figura paterna na origem do desejo e do ego, melhor dizendo, uma presença ainda não revelada. É nesse momento de sua produção teórica, que Freud descreve o funcionamento da estrutura psíquica, e o faz a partir de dois pressupostos fundamentais: o da existência de uma arquitetura psíquica e o da idéia de uma quantidade de excitação que estabelece, nesta estrutura, os estados de movimento e repouso. Destaca, ainda, a tendência do funcionamento psíquico sendo regida por processos primários e processos secundários. Tais processos, segundo ele, são complementares e de finalidades distintas para o funcionamento psíquico. Mas o que seriam, de fato, esses processos? Partindo do pressuposto de uma quantidade em fluxo no aparelho psíquico primitivo, que responderia inicialmente ao que chamou de Princípio de Inércia, cujo destino será a descarga sempre que a quantidade deste fluxo se torne perturbadora do estado de repouso, Freud tem o intuito de descrever a função primária do aparato anímico. O funcionamento do
  • 30. 29 processo é iniciado na célula nervosa, o neurônio, por onde chegam os estímulos, e segue seu fluxo, para escoar com uma ação motora. O funcionamento primário do psiquismo tem, portanto, a direção da energia psíquica partindo do sistema sensorial para o sistema motor. Esse funcionamento básico, elementar e simples, no entanto, não garante a vida do sujeito, uma vez que não responde às exigências vitais; quais sejam: fome, sede, desconforto físico, dentre outros. À proporção que aumenta a complexidade da estimulação exógena ou endógena, a necessidade de descarga também se amplia. Em outros termos, Freud sabe que existem outras demandas a serem atendidas, as quais este princípio não resolve. Salienta como exemplos de exigências vitais, a fome, a sede, sexo, dentre outras. Estas, por sua vez, supõem uma outra forma de funcionamento psíquico que transcendem circulação da quantidade de fluxo para efetivar a ação. Dessa forma, Freud amplia a complexidade do funcionamento psíquico propondo a existência de um outro princípio complementar ao da Inércia: o Princípio da Constância. Este novo princípio deve responder não apenas a um funcionamento que lide com maior resistência a certo nível quantitativo, como também se comprometer na distribuição da quantidade no complexo neuronal que, uma vez modificado permanentemente pela excitação, jamais retorna ao seu estado anterior. Os processos, um tanto mais elaborados, deixam registros tanto do percurso quantitativo quanto do caminho facilitado para novas catexias. A estrutura psíquica ordenada de forma mais complexa torna a distribuição quantitativa mais econômica, além de apontar para a diferenciação neuronal. Trata-se de circunscrever os limites até onde se garante uma boa funcionalidade e a direção preferencial por onde a quantidade escoa: da parte receptora do aparelho até a extremidade da descarga. Secundariamente, precisa ser resolvido o problema de lidar com o sentido inverso da direção, ou seja, num estágio posterior de desenvolvimento do aparelho psíquico, encontraremos a
  • 31. 30 inversão do estímulo, tendo a imaginação, a memória e posteriormente a fantasia como fatores estimuladores internos, como veremos no capítulo seguinte. Freud observa que esse funcionamento econômico na direção da descarga somente se subverte no caso do contato com a dor. Devido à magnitude da quantidade, a resposta da dor pode ser considerada como antieconômica pelo fato de não respeitar o caminho natural do escoamento da quantidade. No entanto, quando é recordada, ou melhor, representada, produz o desprazer, e não mais a dor. Até esse instante Freud circula num movimento teórico que mescla postulações anatomofisiológicas com observações genuinamente psicológicas. Esse parece ser um momento especial para o pensamento freudiano. Como salienta Monzanni: esse é um ponto crucial de Projeto..., pois nele Freud teria, de um lado, abandonado de vez seus projetos neurologizantes e constituído a idéia de inconsciente psíquico, e, de outro, teria guiado sua atenção para o que constituiu, de fato, a teoria psicanalítica. Trata-se de um processo muito mais complexo do que a descrição de mecanismos de descarga e de caminho de um quantum de energia circulante no aparelho psíquico, oriundo de estímulos internos e externos. A partir desses dois postulados (quantidade e neurônio), o leitor assiste à tentativa de Freud de construir, baseando-se em princípios puramente mecânicos, toda a imensa variedade das funções psíquicas: percepção, memória, consciência, associações, experiências cruciais (dor e satisfação), pensamento, juízo, etc. A passagem de um postulado eminentemente quantitativo para um processo qualitativo de ações. que exigem mais esforço tanto do aparato motor quanto do psíquico, torna a explicação do princípio de constância incompleta para justificar o surgimento de outros mecanismos psíquicos, como os já citados. Numa formulação muito semelhante à visão do comentador anterior, Gabby Jr. salienta que Freud está diante de duas vivências fundamentais para serem ordenadas no
  • 32. 31 aparelho psíquico: a vivência da dor e a vivência de satisfação, formulações essenciais ao avanço da sua teoria sobre a ordenação da psique e do desejo. Na vivência da dor, ... existe uma irrupção de uma quantidade de origem externa. Quando é recordada, ou seja, representada, produz desprazer e não dor. ... O organismo para sobreviver, deve aprender a evitar a cathexis da representação de objetos que causaram a dor. Caso contrário, ocorrerá uma defesa primária. Na segunda vivência, a de satisfação, trata-se de uma quantidade de origem endógena que só pode ser interrompida a partir do preenchimento de certas condições do organismo. Como é incapaz de realizá-las, torna-se necessária a presença de um outro que realize, pelo sujeito, as condições externas... Logo, em ambos os casos, há uma tendência de repetir certas vias de descarga: as de satisfação (originadas a partir de um processo interno de acréscimo) e as de dor (originadas a partir de um impacto por estímulos externos). (GABBI JR., 1985, p.6). A tentativa de explicar o mecanismo da dor e o da busca de satisfação fazem com que a pesquisa freudiana avance para uma forma de funcionamento psíquico mais elaborada do que previa em seu aparelho primitivo. Para o nosso interesse mais imediato manteremos a atenção sobre a segunda situação – a busca de satisfação. A razão desta escolha se mostrará mais evidente a seguir. Entender como o psiquismo age na direção de eliminar a tensão que o acomete é algo muito importante. Os movimentos motores iniciais, as vias biológicas do automatismo, não são suficientes para eliminar o desconforto causado pela carência, a exemplo da fome, sendo, então, necessária a ocorrência de uma ação específica externa. Nestes casos, Freud observa que os processos secundários implicam o adiamento, a tentativa de solução da tensão e a busca de uma forma específica de reação para a redução da descarga, uma ação específica que garanta a descarga ou a redução do desconforto. Essa ação específica não é de competência do sujeito, dado que não possui a capacidade de promover a condição de alívio de sua tensão. Tais movimentos motores, traduzidos no choro, disparados na direção desta ação, têm um caráter importante para este
  • 33. 32 sujeito: denunciam seu desamparo. Diante desta constatação, de que o sujeito não é capaz sozinho de encontrar o caminho da descarga, o atendimento dessa carência pode ser realizado pelo auxílio de um outro, despertado provavelmente pela denúncia do desamparo. Freud segue explicando: O enchimento dos neurônios nucleares em terá como resultado uma propensão à descarga, uma urgência que se libera pela via motora. A experiência demonstra que aqui a primeira via a ser seguida é a que conduz à alteração interna (expressão das emoções, grito, inervação vascular). Mas como já explicamos no início, nenhuma descarga desta espécie pode produzir resultado de alívio, uma vez que o estímulo endógeno continua a ser recebido e se restabelece a tensão . Nesse caso, a estimulação só é capaz de ser abolida por meio de uma intervenção que suspenda provisoriamente a descarga de Q´n no interior do corpo; e uma intervenção dessa ordem requer uma alteração no mundo externo (fornecimento de víveres, aproximação do objeto sexual), que, como ação específica, só pode ser conseguida através de determinadas maneiras. (FREUD, 1977, p. 421- 422). Essa bela imagem a que chega Freud inaugura as bases de uma constelação de relação fundamental entre a criança faminta, insatisfeita, e um outro sujeito, provavelmente a mãe ou o adulto, objeto de realização desta ação específica anunciada. Nesta experiência da saciação da fome, experiência do aleitamento, a mãe é convocada a criar o primeiro e significativo vínculo. Para Freud, essa experiência ultrapassa o automatismo biológico que rege a satisfação para inaugurar um processo de vinculação do sujeito com o meio bem mais complexo. Para ele, essa via de descarga adquire a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. Este parece ser o exato instante da cisão da Psicanálise com as demais teorias sobre o funcionamento mental de sua época. Ao responder ao apelo do bebê faminto, nas suas iniciais manifestações de desconforto, a mãe que o satisfaz, inaugura marcas mnêmicas importantes, instaurando no
  • 34. 33 bebê a possibilidade de guardar a vivência para um momento de busca de satisfação futura, como também a percepção da possibilidade de novo contato com este objeto prestativo, realizador da satisfação. Esta percepção de satisfação, proporcionada pelo objeto que alimenta, imprime no psiquismo do bebê o registro da vivência de satisfação, que futuramente poderá ser resgatada sempre que ele se perceba diante de uma nova sensação de desconforto. Esse circuito fica, doravante, como diria o próprio Freud, privilegiadamente facilitado. A mãe (re)significa o estado de abandono e a carência, bem como a possibilidade de solução da tensão geradora de tal estado. Essa percepção de satisfação, resultado da ação específica da mãe com o sujeito, traz no seu contexto conseqüências significativas para o desenvolvimento do psiquismo primitivo. Freud ressalta que a totalidade desse processo representa a experiência de satisfação que tem as conseqüências mais decisivas para o desenvolvimento das funções individuais; a saber: 1) efetua-se uma descarga permanente e, assim, elimina-se a urgência que causou o desprazer; 2) produz-se a catexização de um ou vários neurônios que corresponda à percepção do objeto; 3) em outros pontos chegam informações sobre a descarga conseguida mediante a liberação do movimento reflexo que se segue à ação específica. Na ocorrência posterior de uma nova situação de carência, todo o circuito será ativado simultaneamente. Carência (tensão), abandono (reações motoras de denúncia) e objeto de interrupção de tensão (ação específica) fazem parte de uma mesma vivência. Vale ressaltar que Freud chama atenção para o fato de que a ordenação psíquica realizada não segue uma ordem sucessória, e sim simultânea, significando que, para o sujeito, todo o conjunto de registro faz parte de uma situação única. Assim, diante de uma nova exigência de satisfação, independentemente da existência ou não do objeto do mundo externo (mãe), o funcionamento psíquico ativa sua representação, operando como se estivesse presente. A experiência de satisfação, uma vez registrada, deixa
  • 35. 34 sua inscrição através de via facilitada pelos registros mnêmicos, impressos quando da primeira experiência, sendo estes registros evocados toda vez que o organismo se depara com uma nova experiência de tensão. A esse recurso de pensamento Freud constrói toda uma explicação para justificar o funcionamento da memória e da alucinação. É para esta lembrança que o sujeito recorre sempre que se encontra vivenciando uma situação de tensão semelhante à vivenciada no passado e, mais ainda, buscando uma solução imediata para o alívio da tensão; na ausência do objeto de satisfação (mãe), alucina sua presença. O mecanismo de alucinação tem um objetivo próprio e imediato; trata-se de uma saída provisória, buscada pelo aparelho psíquico, com a função de promover uma redução de tensão, ainda que temporária. É uma resposta do sujeito, utilizando-se de seus próprios meios. Para Freud, uma defesa primária diante de um estado de desejo. Incapaz de diferenciar a realidade da idéia imaginária, o sujeito recatexiza a lembrança do objeto e, então, põe em ação o processo de descarga; nesse caso, não pode haver satisfação, já que o objeto não é real. Esta solução mostra-se, portanto, pouco eficiente em curto intervalo de tempo, levando o sujeito, mais uma vez, a buscar nova saída. A imagem alucinada não corresponde ao alívio da tensão, sendo ele obrigado a comunicar mais efetivamente ao meio o seu abandono, a sua impossibilidade de sobreviver sem o apoio de um outro, que deve vir em sua direção. O que nos importa na presente situação é o registro do que aqui se inaugura: o nascimento de uma díade (filho/mãe), forjada pela premência de uma tensão de satisfação. O lugar da mãe é, por assim dizer, o de objeto de reconhecimento de desejo de um sujeito que o demanda; mais que isso, o de objeto que oferece uma resposta efetiva a um apelo de sobrevivência. Mãe e filho formam uma imagem única e, ao mesmo tempo, dual: única na perspectiva da experiência de simultaneidade expressa pela tensão e satisfação, e dual porque escapa de uma saída da tensão sem o auxílio do outro (adulto).
  • 36. 35 É pelo grito primordial ou pelo esforço de anunciar seu desconforto e abandono que o sujeito inscreve essa nova capacidade de funcionar com o meio: o bebê clama pelo reconhecimento de sua falta, de sua necessidade de nutrição e, portanto, de sua necessidade de ser cuidado, de ser visto, compreendido e atendido pelo outro. A possibilidade de evocar seu desejo de satisfação e, mais do que comunicar, e fazer-se entender por este outro é um mecanismo bastante complexo e fundamental para a organização de suas futuras formas de comunicação com o meio externo. No texto freudiano reencontramos a demarcação da primeira forma de comunicação, de relação de satisfação: O organismo humano é, a princípio, incapaz levar a cabo essa ação específica. Ela se efetua por meio de assistência alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é atraída para o estado em que se encontra a criança, mediante a condução da descarga pela via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. (FREUD, 1977, p. 422). Somos levados a acreditar que o reconhecimento de um objeto que atende a uma necessidade vital do sujeito inscreve uma referência de eu e de não-eu, de algo que se passa entre o bebê e um outro sujeito que não é ele, alguém que está para além dele. Tais experiências do aparelho psíquico deste sujeito mostram-se estruturantes na organização egóica. Embora estas noções de eu e não-eu ainda não sejam largamente desenvolvidas por Freud nesse momento da teoria, ficam como alicerce do desenvolvimento da teoria psicanalítica. Nessa etapa de conquistas do sujeito, no esforço ordenador do seu aparelho psíquico primitivo, a mãe ganha um papel definitivo. Comumente costuma-se atribuir este papel à figura materna, já que a função nutridora suporta ou está na base de toda essa configuração relacional primária. O que lastreia o relacionamento inicial do sujeito com o meio é o
  • 37. 36 atendimento de suas necessidades vitais, ficando tal fato evidenciado na necessidade de um outro adulto que atenda a esta função. É a função de nutrição que vai definir o papel, a presença de outro que responda à ação específica de satisfazer o bebê e, por conseqüência, à noção de realidade externa; é à mãe a quem se está clamando. Dessa forma, pode-se dizer que, na díade inicial, é formatado o primeiro vínculo entre o bebê e o mundo externo – um vínculo carregado de significação, de energia, provindo de uma demanda que lhe é anterior e que tem exatamente como propósito garantir a descarga de tensão e da necessidade de satisfação, levando Freud a inscrever com isso a presença da função materna na organização psíquica do sujeito. Memória, alucinação e comunicação são funções que surgem da premência da relação bebê/mundo, chancelada pela presença da mãe que acolhe, reconhece e denuncia as necessidades de sobrevivência do sujeito. Na leitura ora realizada, de pontos selecionados de Projeto..., conclui-se o momento em que Freud registra o lugar da maternidade, embora talvez não tenha sido este o seu propósito com a obra. No entanto, seu trabalho para compreender a organização do funcionamento do aparelho psíquico levou-o ao encontro de algumas constelações de idéias sobre o sujeito e suas relações com o mundo que se tornaram base para todo o trabalho de construção da estrutura psíquica de um sujeito ordenado pelo desejo, formulado posteriormente, quando a teoria psicanalítica adquire contornos mais rigorosos. Um recorte mais sutil do processo da relação do sujeito com o outro encontramos na letra de Mezan (1988): o processo de humanização do pequeno ser nascido de um homem e uma mulher equivale a um processo de culturalização, de transformação da mente em um órgão capaz de representar não somente os fantasmas engendrados por ela mesma, mas também objetos e entidades que não pode criar por seus próprios meios; a saber: seu próprio corpo, os outros seres humanos e o mundo exterior. Precisa, portanto, receber do ambiente, de
  • 38. 37 início, de sua própria mãe as informações necessárias e os meios para metabolizar essas informações. Para esse autor, “a transformação da psique em psique humana equivale à sua transformação numa psique marcada pela cultura” (MEZAN, 1988, p.62). Resulta que a cultura não é algo imposto à psique humana, mas, antes, ela lhe é simultaneamente interna e externamente determinada – pelo interior por se tratar daquilo pelo qual o indivíduo se constitui e, ao mesmo tempo, pelo exterior por não depender apenas dele para se constituir, e sim de adultos que cuidam e vão dando significado às suas representações. Essa forma de compreender a inserção da cultura na organização psíquica do ser humano tem um desdobramento mais significativo no percurso do pensamento freudiano, principalmente alguns anos depois de Projeto..., quando seu interesse se desvela sobre a questão da função do pai na organização social e psíquica. Nesse momento do texto freudiano o que importa é a relação diádica, cujo pai ainda não tem um lugar de inscrição tão delimitado quanto à mãe. Na pré-história da ordenação psíquica, na fundação da ordem desejante descrita pela díade sujeito-objeto de satisfação, o pai não é enunciado, quando considerado um terceiro com lugar de reconhecimento diferenciado na constelação psíquica. A construção desta díade traz algumas conseqüências importantes para a relação do sujeito com o mundo externo. E o que se pode dizer até então sobre o pai, foco desta dissertação? O fato de evidenciar a dualidade entre filho-mãe denota uma etapa ainda inicial na constituição egóica e de ordenação psíquica da criança. O modelo das relações de objeto marcadamente conhecido pela tríade filho-mãe-pai ainda não havia sido estruturado nesse instante da observação freudiana. Até Projeto... Freud não estabelece claramente um lugar de destaque da figura paterna, pelo menos não de forma explícita e definitiva.
  • 39. 38 Entretanto, é de maneira indireta, através de questionamentos e incertezas, que até então, encontraremos uma indicação de que esta imagem masculina, na verdade a imagem paterna, parece deixar suas marcas e impressões desde muito cedo na constituição psíquica, quer dos normais, quer dos neuróticos. A clínica e os processos psíquicos dos histéricos terão um papel importante a sinalizar sobre a presença paterna desde a pré-história da Psicanálise. Como veremos a seguir, em Estudos sobre a Histeria de 1895, Freud vai inscrever, ainda que de maneira bastante discreta e muitas vezes camuflada em figuras da vida adulta, os efeitos das relações e dos vínculos com as figuras parentais na constituição psíquica do sujeito. 1.2 A SEXUALIDADE: CENTRALIDADE NA ORDENAÇÃO PSÍQUICA Como demonstramos anteriormente, tanto Projeto...quanto Estudos... trazem em si o germe da constituição triangular da família e do sujeito de desejo, a partir de uma demarcação muito clara acerca do vértice mãe-filho. A presença do terceiro – o pai – é ainda uma suspeita, um estranhamento, em que Freud questiona sua participação no trauma ou nos sintomas de suas pacientes. Na busca de entender a clínica e encontrar um método de trabalho para abordar seus pacientes, Freud encontra indícios destes efeitos e deixa plantado o que se tornará, muito em breve, as bases da teoria da sexualidade infantil defendida por ele como o alicerce constitutivo do complexo de Édipo, estrutura fundante do funcionamento psíquico e conseqüentemente das relações de cada sujeito com o mundo, com a vida; relações estas que serão mais ou menos saudáveis conforme a qualidade dos vínculos que a constituíram. A observação da clínica foi, desde sempre, um espaço privilegiado ao desenvolvimento do pensamento freudiano. Sua preocupação com o material oferecido pelos
  • 40. 39 pacientes fundamenta suas principais descobertas, quer no campo metodológico, quer na técnica psicanalítica, ou, ainda, na formulação da teoria, a famosa metapsicologia. Em Estudos..., portanto, o conjunto de textos ligeiramente anterior a Projeto..., Freud objetiva discutir questões relacionadas ao tratamento oferecido às pacientes histéricas. A partir do trabalho de Breuer, com a abordagem hipnótica, Freud pretende delinear uma nova forma de compreensão da histeria como um fenômeno para além da abordagem somática, oferecida pelos seus colegas da época. Estudos ... constitui o ponto de partida de Freud para o desenvolvimento do que mais tarde se traduziu como o método psicanalítico de investigação, ou o seu instrumento de investigação da mente humana. Gay chega a afirmar que “a julgar pelos casos que Freud apresentou em ‘Estudos sobre a Histeria’, ele fez do aprendizado com seus pacientes uma espécie de programa” (1995, p.80), ressaltando que a importância desses analisandos para a história da Psicanálise reside na oportunidade de terem demonstrado a Freud um significativo material inconsciente, que o auxiliou tanto no contexto da produção teórica quanto do método de tratamento. Embora não estivesse totalmente convencido a superar o elemento da hereditariedade, da herança neuropática do diagnóstico de seus pacientes, suas observações e sua prática curiosa em relação ao comportamento e discurso das pacientes levam Freud a suspeitar da existência de outros fatores intervenientes na causação de suas neuroses. A noção de trauma, o conceito correspondente a uma instância psíquica não consciente, o inconsciente, e a categoria de recalque têm suas bases traçadas nas observações de seu trabalho clínico junto a essas histéricas. Para Laplanche (1992), o conjunto de textos freudianos, até 1887, tem sua força na trama que liga a teoria à experiência clínica. É o que demonstra em seu comentário:
  • 41. 40 Reside em pôr em jogo, já de forma rigorosamente e doravante insuperável, três fatores da racionalidade analítica: a temporalidade do a posteriori, a tópica do sujeito e os laços tradutivos ou interpretativos entre os roteiros ou as cenas. Reside na capacidade explicativa do modelo, amplamente transponível e extensível, pelo menos no campo da psicopatologia. Reside na capacidade evolutiva do modelo, aquilo que designamos acima como ‘pontilhados’ para futuros desenvolvimentos: pontilhados do ego, pontilhados da teoria tradutiva. (LAPLANCHE, p. 122). A escuta e a observação do conjunto de sintomas ricos em representações no corpo físico favoreceram a pesquisa na direção não mais de uma explicação química ou orgânica destes fenômenos, mas de buscar uma correspondência num processo psíquico, numa ação mental que justificasse a elaboração e o aparecimento desses sintomas. Freud estava realmente empenhado em encontrar uma estrutura complexa capaz de explicar a descrição desses fatos mentais. Os achados clínicos de Breuer no tratamento da paciente Anna O., compartilhado muitas vezes com o colega Freud, vêm corroborar a compreensão e a investigação desses processos mentais conscientes e inconscientes, exigindo, portanto, uma maior atenção por parte dos dois pesquisadores. O trabalho conjunto, nesta obra, ajuda a sinalizar, por um lado, o interesse pela etiologia e, por outro, as diferentes percepções de abordagem e de interesse diagnóstico, bem como de modelos terapêuticos. Anna O. oferece aos médicos um rico material que lhes possibilita sistematizar reflexões acerca da produção fantasmática, imaginária, fazendo levantar a atenção sobre o papel da fantasia, sua relação com a origem da doença e naturalmente com o tema de suas dores psíquicas. O lugar da fantasia e a sua constituição enquanto realidade psíquica inconsciente são elementos teóricos dos quais Freud não mais se afastará para a compreensão dos sintomas destas pacientes. No entanto, só posteriormente a noção de fantasia será retomada de forma mais sistemática, ao resgatar o tema da sexualidade infantil como fator etiológico da histeria.
  • 42. 41 Pensar na existência de uma mente capaz de conter material que não pertença ou mesmo nunca tenha passado pela consciência, eis um fato novo e desafiante a ser considerado por ambos.5 Tornou-se evidente, desde o início, que o problema a ser perseguido não era o da investigação dos conteúdos conscientes, mas sim destes outros processos mentais, até aqui reconhecidos, porém desconhecidos em sua origem. Freud está convencido de que para processos que são até o momento inconscientes deve existir uma forma de investigação que permita atingi-los, torná-los conscientes e inclusos na vida dos pacientes. Quanto mais nos ocupamos dessas manifestações, mais nos tornamos convencidos de que a divisão da consciência, que é tão marcante nos clássicos conhecidos sob a forma de ‘double conscience’, se acha presente num grau rudimentar em toda a histeria, e que a tendência para tal dissociação, e com ela o surgimento de estados anormais de consciência (que reuniremos sob a designação de ‘hipnóides’), constitui a manifestação básica desta neurose. (FREUD, 1977, p. 52-53, grifo do autor). Ambos os médicos concordam que o que está em questão na etiologia da histeria é uma experiência traumática remota, da qual a paciente nada desconfia, nem faz conexão causal com seus sintomas atuais. Questionam a relação do trauma com os sintomas e afirmam, já nessa etapa, que, com grande freqüência, o trauma está relacionado a algum fato na infância dos pacientes, mais ou menos grave e que persiste por muitos anos na sua vida psíquica. Entendem que esta conexão entre sintoma e sua causa não se dá por um mecanismo direto ou de substituição de um elemento causal por outro. Esta noção de trauma será adiante abandonada por Freud, ao se defrontar com as questões relacionadas à sexualidade infantil e aos sintomas histéricos. No entanto, é o trauma, 5 “A verdade é que, em 1985, Freud encontrava-se a meio caminho no processo de passar de explicações fisiológicas de estados psicopatológicos para psicológicos” STRACHEY apud FREUD, 1977. v. II. p.32).
  • 43. 42 ou a cena, que enreda o discurso e o sintoma da histérica; que permite o avanço de que necessitamos para compreender como os fatos e as experiências infantis repercutem na história pessoal e familiar de cada sujeito. Corroborado tanto por Projeto... quanto por Estudos..., Freud constata que a experiência clínica evidenciou-lhe dois fatos importantes: a) o ego afasta ou reprime da consciência as idéias que lhe provocam algum tipo de afeto desagradável ou penoso e que naturalmente geram desprazer; e b) essas idéias fazem parte da vida sexual da pessoa em questão. Tais constatações abrem caminho para tudo que adiante vai sustentar o pensamento freudiano sobre a centralidade do conteúdo sexual na etiologia das neuroses, mais explicitamente abordado na neurose histérica. Diante do quadro de Katharina, uma de suas pacientes, Freud comenta: Neste sentido, o caso de Katharina é típico. Em toda análise de um caso de histeria baseado em traumas sexuais, verificamos que as impressões do período pré-sexual que não produziram nenhum efeito na criança atingem um poder traumático numa data posterior como lembranças, quando a moça ou a mulher casada adquirir uma compreensão da vida sexual. Pode-se dizer que a separação de grupos psíquicos em um processo normal no desenvolvimento do adolescente, sendo fácil ver que sua recepção posterior pelo ego proporciona oportunidades freqüentes para perturbações psíquicas. (FREUD, 1977, p.182). A relação que agora começa a se estabelecer entre conteúdos inconscientes (alijados da consciência), idéia de trauma e formação de sintoma como defesa demarca o distinto interesse de Freud sobre a etiologia da histeria e das neuroses, além de subsidiar a sua construção da teoria psicanalítica dos processos psíquicos ditos normais. O interesse pelo mecanismo do ego em evitar o desprazer constitui, a partir de então, a base da pesquisa sobre o sintoma histérico, e é a esse mecanismo que Freud, agora sem o apoio de Breuer, vai devotar o trabalho de rastreamento. Para Freud, o processo de formação
  • 44. 43 simbólica do sintoma deflagra o trabalho de defesa do ego: a idéia rechaçada é desviada da consciência e uma outra surge como alternativa para simbolizar ou representar a que foi reprimida pelo desprazer causado, embora esta última esteja diretamente entrelaçada com a primeira. Num comentário ao tratamento da paciente – Fräulein Elisabeth Von R. – , Freud diz textualmente: Os conceitos do ‘desvio’ de uma idéia incompatível, da gênese dos sintomas histéricos através da conversão de excitações psíquicas em algo físico e a formação de um grupo psíquico separado, através do ato de vontade que conduziu ao desvio – todas essas coisas, naquele momento, apareceram diante de meus olhos de forma concreta (FREUD, 1977, p.206). Nessa perspectiva, o sintoma ganha um caráter simbólico: aparece no lugar da situação ou idéia que causou desprazer e sendo, portanto, alijada da consciência. Freud é naturalmente levado a suspeitar, nesse período, que tais idéias, uma vez afastadas da consciência, têm em comum um elemento sexual em seus conteúdos, o que justificaria a necessidade de mantê-lo reprimido e afastado do ego. E é ainda na reflexão do caso Elisabeth que Freud conclui: Essa moça sentiu pelo cunhado uma ternura cuja aceitação consciente encontrou a resistência de todo o seu ser moral. Ela conseguiu poupar-se da dolorosa convicção de que amava o marido de sua irmã, induzindo dores físicas em si mesma. E foi nos momentos em que essa convicção procurou extravasar-se (no seu passeio com ele, durante o seu devaneio da manhã, no banho, ao lado do leito da irmã) que suas dores surgiram, graças à conversão bem sucedida. Quando comecei o trabalho dela, o grupo de idéias relativas ao seu amor já havia sido separado do seu conhecimento (FREUD, 1977, p. 206). Vale salientar que a questão da sexualidade e sua relação com a histeria foram formuladas de maneira efetiva desde as primeiras reflexões metapsicológicas do final dos anos 90, especialmente trabalhos que se seguiram aos Estudos... Segundo Laplanche (1985), o Projeto... é uma tentativa freudiana de ligar organicamente, do interior, o recalque e a
  • 45. 44 sexualidade numa mesma teoria, tornando-se o substrato de tudo que Freud escreveu sobre a histeria até 1900. Para este autor, é a sexualidade que resume o essencial da contribuição psicanalítica ao pensamento contemporâneo, sob o ponto de vista não apenas da histeria, mas de toda a pesquisa metapsicológica. Essa hipótese do componente sexual na etiologia das neuroses, em especial da histeria, para cujo ponto todo o seu trabalho foi voltado nessa época, norteou a pesquisa freudiana desde então. Freud retorna a este tema em artigo sobre As neuropsicoses de defesa de 1894. Dois anos mais tarde, entretanto, descobre que não é a sexualidade, mas sim a sexualidade infantil e o reconhecimento da persistência dos impulsos inconscientes que constituem a base da formação das neuroses. Para o nosso trabalho de análise da organização psíquica do sujeito de desejo, cabe aqui uma discussão um pouco mais cautelosa sobre a descoberta do trauma, levantada tanto por Freud quanto pelo colega Breuer, na análise dos casos oferecidos em Estudos... O conteúdo dos processos ditos traumáticos, bem como os personagens neles envolvidos, são substratos importantes para a construção da nossa atual pesquisa. Segundo Gay, os histéricos tratados por Freud e Breuer nos anos de 1890 apresentavam muitos sintomas de conversão, estados depressivos e alucinações intermitentes. Para ele, Freud, ainda relutante em abandonar o elemento da hereditariedade, preferia agora procurar experiências traumáticas, como pista para a compreensão dos estranhos sintomas. Estavam convencidos, ele e Breuer, que os segredos dos neuróticos eram os conflitos sexuais ocultos pelos e dos próprios sujeitos. Tomando como base as observações clínicas derivadas do tratamento das histéricas, Freud está convencido de que a repressão, entendida aqui como recurso defensivo, se manifesta a partir de uma experiência traumática, de conteúdo sexual, reconhecido somente por uma ação retardada do ego. A relação entre os conteúdos do trauma e as queixas atuais
  • 46. 45 não é reconhecida pelos pacientes. As histéricas não podem, ou melhor, não querem acessar o conflito. Existe um hiato entre esses dois momentos, e isso move Freud a investigar o processo de recalque. O que agora se demonstra é a suspeita de Freud acerca da relação entre a conversão e a conexão associativa com o desejo (que foi recalcado). O que é necessário recusar é o desejo que a paciente nutre inconscientemente e, pela não aceitação, sofre, transformando sua dor psíquica em dores físicas. Freud demonstra suas suspeitas através de suas observações sobre os sintomas de Elisabeth: Mas o que deve ter tido influência positivamente decisiva sobre o rumo tomado pela conversão foi outra linha de conexão associativa: o fato de que durante vários dias seguidos uma de suas pernas doloridas entrou em contato com a perna intumescida do pai, enquanto as ataduras estavam sendo trocadas. A região da sua perna direita que foi marcada por esse contato permaneceu, a partir daí, o foco de suas dores e o ponto de onde se irradiavam. Formou uma zona histerogênica artificial, cuja origem poderia no presente caso ser claramente observada. (FREUD, 1977, p. 224). Se há algo que recisa escapar à consciência porque causa desprazer, é preciso saber sobre este algo que foi rejeitado pela consciência e, portanto, recalcado. O ego se defende exatamente de quê? O que lhe parece intolerável? O que aqui se desvenda definitivamente é o caráter sexual do conflito. Desde então Freud devota sua atenção sobre a suspeita dessa defesa, como pudemos reconhecer no recorte acima. Esse parece ser o ponto relevante para a construção do desejo. O trabalho de decomposição ou de rastreamento do sintoma histérico remete Freud ao encontro que, até então, não havia se configurado de forma direta: o encontro com o desejo pelo pai. O sintoma, forma travestida de falar da sedução do adulto para com a criança retrata, na verdade, uma cena estrutural que inaugura o contato com o infantil desejo original: o desejo sexual. Falta, entretanto, relacionar, desvendar o mecanismo que converte o desejo de ser seduzido no desejo de seduzir. Este é o próximo caminho a ser percorrido. Na conversão, o
  • 47. 46 afeto, não vivido na ocasião do trauma pelo não-reconhecimento do conteúdo, reaparece diante de uma nova situação de desprazer na vida atual da histérica. Como salienta Freud: “Enunciado em termos de teoria da conversão, esse fato indiscutível da somação dos traumas e da latência preliminar dos sintomas nos ensina que a conversão pode resultar tanto de novos quanto de sintomas relembrado”. (FREUD, 1977, p. 222). O trauma, ou melhor, a lembrança do trauma atua como um corpo estranho que continua apresentando seus efeitos por muito tempo. A emoção vinculada ao trauma foi reprimida, permanecendo, no entanto, ligada à lembrança. Para Freud, os histéricos sofrem de reminiscências. A esta constatação somos remetidos a uma outra formulação freudiana da organização psíquica: os pequenos seres se organizam para garantir um estado de prazer e registram na memória essas experiências. Os humanos funcionam fixados em caminhos que remontam às experiências prazerosas. Por outro lado, eles também funcionam pelo afastamento ou defesa daquelas experiências ou registros de memória que oferecem o seu oposto. A histérica alucina e afasta da consciência determinados complexos representacionais relacionados ao desprazer. Vive aprisionada em seu trauma, num processo que a aliena e produz sintomas, pela impossibilidade de ab-reagir adequadamente. Incapaz de realizar uma saída para o desprazer causado pelo trauma, engendra um processo de exclusão de determinadas representações, mas, em contrapartida, o investimento psíquico assume uma representação substituta, aceita pela consciência. Isso acontece porque os traumas não foram suficientemente ab-reagidos, em razão de dois grupos de condições: a) situações nas quais não cabia uma reação e a emoção foi intencionalmente reprimida; e b) situações em que as emoções se tornaram gravemente paralisantes. É a natureza do estado que torna impossível uma reação de fato. Na maioria dos casos, ambas as condições estão presentes e são determinantes naquilo que originou o trauma.
  • 48. 47 O entendimento do mecanismo de defesa – afastar o desprazer foi, desde o início, reconhecido por Freud como um mecanismo natural e primitivo do aparato psíquico. No entanto, o que aparece aqui como esquisito ou constrangedor é que Freud está diante de uma histérica que, ao converter o desejo em sintoma, reprime, na verdade, um prazer sexual adiado, não realizado. Essa substituição, que constitui o processo de simbolização do sintoma, presente na histeria, aturde e surpreende o próprio Freud. Este mecanismo do sintoma seria uma inversão do processo natural de defesa: afastar o desprazer. Então, como entender o mecanismo de recalque e de simbolização do sintoma histérico? Por simbolização entende-se a substituição da coisa por algo que venha no seu lugar, de forma disfarçada. Esse processo se constitui em uma saída, diferente da ab-reação, mas evoca, como conseqüência, a alienação. O sintoma não faz sentido para o sujeito e o não- saber do paciente histérico era de fato um não querer saber. O trauma histérico leva ao afastamento do estado psíquico normal. Neste novo estado psíquico cindido isola-se da consciência tudo aquilo que pode trazer ou gerar desprazer. Por um mecanismo invertido, o funcionamento dos processos psíquicos dessas pacientes vai ocorrer da memória para a percepção, e não o contrário do que acontece em situações normais. Assim, essas pacientes vivem das lembranças e registros de memória, que, não tendo a liberação de emergir em sua forma original, se transforma em dores físicas ou transtornos de comportamento. O que não é possível ou não aceito na consciência é algo que a própria paciente não quer lembrar de forma direta: o prazer originário de experiências que deixaram traços ou registros de uma sexualidade ainda não compreendida pelo aparato psíquico da criança. Esse retardamento na compreensão do que foi vivido antes é uma característica geral da organização psíquica. Freud está diante de uma conclusão importante para a organização
  • 49. 48 do sujeito. Os registros dessas experiências ficam marcados no inconsciente, apesar de só posteriormente ganharem uma significação para o seu portador. Como referenda o texto de Laplanche: Deixada em suspenso, a lembrança não é em si mesma patógena, nem traumatizante. Só se torna traumática pela sua revivescência, por ocasião de uma segunda cena que entra em ressonância associativa com a primeira. Mas, devido às novas possibilidades de reação do sujeito, é a própria lembrança, e não a nova cena, que vai funcionar como fonte de energia traumatizante, como fonte autotraumatizante. (LAPLANCHE, 1992, p.120). O efeito retardado do ego deve-se ao fato do retardamento da sexualidade até a puberdade, quando, então, o sujeito pode compreender e nomear o que lhe aconteceu ou o que constelou a situação traumática vivida por ele em alguma fase de sua infância. Os pacientes histéricos movem-se a partir de suas lembranças ou da recordação do que lhe causou desprazer, buscando afastar-se agora de tudo que lhe faça nova menção à situação original. Tal qual no sonho, a alucinação da histérica faz criar realidades psíquicas sem que estejam presentes os referentes no mundo externo. O mecanismo interno de defesa sobre esse núcleo de idéias censuradas é assim descrito na letra freudiana: [...] reconheci uma característica universal de tais idéias: eram todas de natureza aflitiva, capazes de despertar emoções de vergonha, da autocensura e de dor psíquica e o sentimento de estar sendo prejudicado, eram todas de uma espécie que a pessoa preferiria não ter experimentado, que antes preferia esquecer. [...] A idéia em questão foi forçada para fora da consciência e da memória. O seu vestígio psíquico aparentemente se perdeu de vista. Não obstante, deve estar lá . (FREUD, 1977, p. 325). A suspeita de o trauma abrigar uma experiência de desprazer, de caráter sexual e ocorrida numa fase remota da vida do paciente, geralmente relacionada a sua infância, faz supor exatamente o material de que tanto precisávamos em nossa reconstrução teórica. Seus
  • 50. 49 escritos da clínica estão cheios de exemplos sobre essas experiências sexuais prematuras. O que Freud constata no discurso das pacientes é a presença de uma situação de relação entre o adulto e a criança, marcada pela irrupção de sensações de prazer sexual que não são elaboradas como sexual pela criança devido à sua imaturidade psíquica. As primeiras relações da criança com os pais estão marcadas por impressões carregadas de sexualidade. A mãe que cuida e responde ao apelo do pequeno sujeito também imprime, no seu contato com o filho, experiências de prazer que ficam inscritas até que o sujeito tenha recursos para decodificar o conteúdo sexual de tais impressões. Como descreve Laplanche o “pré-sexual” em questão é um “pré” um “antes” tanto absoluto quanto relativo: o que vem “antes” de um certo tipo de compreensão possível; e há vários “pré-sexuais” possíveis, correspondendo às diferentes etapas da evolução infantil. Freud está construindo sua teoria para dar conta dos conteúdos inconscientes, a partir dos quais encontraria futuramente sérios argumentos para identificar o componente da sexualidade infantil, ao tempo em que questiona a presença comum e constante de um adulto perverso na história de todos os pacientes. A cena de sedução das histéricas aponta para a suspeita da participação do pai, e diante disso Freud encontra-se perplexo ou incrédulo, como comenta com o colega Fliess em carta 69, de 1897: Confiar-lhe-ei imediatamente o grande segredo que lentamente comecei a compreender nos últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica. Provavelmente isto não é compreensível sem uma explicação; [...] Depois, veio a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, tinha de ser apontado como pervertido – a constatação da inesperada freqüência da histeria, na qual o mesmo fator determinante está invariavelmente estabelecido, embora tão difundida dimensão da perversão em relação às crianças, afinal, não seja muito provável. (FREUD, 1977, p. 350). O desconforto com tais observações remete Freud não ao abandono da sedução, como poderia parecer, mas o faz seguir na direção de delimitar a participação das figuras parentais,
  • 51. 50 denunciadas em cada sintoma: através de um amor oculto pelo cunhado; da devoção e desvelo ao pai no leito; de fantasias em relação à sedução de um tio; estes são alguns dos exemplos que devotam sua atenção sobre os fatos. A demonstração sobre a forma de funcionamento psíquico nos casos de histeria, tão cuidadosamente discutido por Freud na ânsia de encontrar o seu método de trabalho e pesquisa, nos servirá de material ou fonte de reflexão sobre nosso propósito. No entanto, nesse período encontramos um Freud vacilante ou, no mínimo, questionador da real participação dos pais na cena. O trabalho quase que arqueológico, como ele mesmo metaforiza em seu texto, para chegar ao núcleo patogênico do sintoma, conduziu Freud ao encontro de experiências primárias, registros de experiências emotivas que datam de um passado remoto dessas pacientes e que naturalmente remetem às figuras parentais. O material psíquico em tais casos de histeria apresenta-se como uma estrutura em várias dimensões, que é estratificada em pelo menos três formas diferentes. (Espero logo poder justificar esta modalidade pictórica de expressão). Inicialmente, há um núcleo que consiste de lembranças de fatos, ou seqüências de pensamento, nos quais o fator traumático culminou, ou a idéia patogênica encontrou sua manifestação mais pura. Em torno desse núcleo encontramos o que é freqüentemente uma quantidade incrivelmente grande de um outro material mnêmico que tem de ser elaborado na análise e que é, como dissemos, arranjado numa ordem tríplice. (FREUD, 1977, p. 345). Pois bem, é o próprio Freud quem destaca como quantidade incrivelmente grande de outro material mnêmico que tem de ser elaborado no processo da análise. Esta referência remete naturalmente às primeiras relações objetais do sujeito, embora só alguns anos depois Freud venha a confirmar esta observação, a respeito deste material mnêmico e de sua relação de objeto com as figuras parentais. Mais uma vez, o que aqui se desvenda é o conteúdo edipiano nascente na teoria psicanalítica.
  • 52. 51 No entanto, em que momento, ou de que forma poderemos reconhecer nesse material as funções parentais? Como a função paterna pode ser desenhada no bojo de todo esse conteúdo clínico? Está posto que é na clínica que se fundamenta a teoria psicanalítica, e é dela que o autor extrai sua matéria-prima. Neste caso, é lá que devemos encontrar, portanto, o nosso material de pesquisa e a nossa questão de trabalho: o lugar que ocupam as figuras materna e paterna na constituição da psique humana. Será mais prudente retornar ao texto freudiano e verificar a partir de que ponto se pode traçar um lugar do pai em seu discurso. Na análise dos casos clínicos oferecidos por ele, há uma série de insuspeitas observações que nos fazem constatar que Freud pensava além do que ouvia ou percebia da interpretação direta e inequívoca do relato de suas pacientes. É verdade que não encontraremos a figura paterna, objeto de nosso estudo, explicitado ou envolvido de forma direta ou indireta nos relatos clínicos. Porém, parece possível demonstrar na leitura de cada caso clínico, na possibilidade de perceber o processo da simbolização do sintoma, uma perspectiva de encontrarmos ora um pai, ora uma mãe travestida de outros objetos de desejo ou representantes do desejo do sujeito. 1.3 OS CASOS CLÍNICOS: O APARECIMENTO DO PAI A análise dos casos apresentada por Freud serve-nos de apoio ao nosso objetivo: o de elaborar uma genealogia das idéias de pai no bojo do pensamento freudiano. Tomemos, portanto, como ponto de partida, o exemplo da paciente tratada por Breuer, mote de observações de Freud. Anna O. é uma jovem amável, inteligente e prestativa, mas com uma sintomatologia rica e diversificada. É curioso atentar para o destaque oferecido aos seus diversos atributos e às observações que lhes foram conferidas. Assim diz Breuer: “[...] o
  • 53. 52 elemento de sexualidade estava surpreendentemente não desenvolvido nela”, e mais adiante: “[...] nunca se apaixonara” ( apud FREUD, 1977, p. 64). Por que esse tipo de observação poderia ser relevante, considerando que neste aspecto Breuer e Freud divergiam? Muitas de suas indagações sobre o material fizeram com que ambos redobrassem o interesse pela clínica da histeria e por sua relação com a sexualidade dos pacientes. Reconhecer o que de fato se passa nos sintomas histéricos e, mais ainda, compreender o mecanismo de sua produção passaram a ser o principal foco de interesse dessa clínica. A obstinação nos relatos e na reconstrução ou recordação de cenas traumáticas, associada aos momentos de surgimento dos sintomas, ocupou um espaço significativo na sua pesquisa, já que acreditava estar diante de um mecanismo comum na organização histérica. Em Estudos... encontra-se formulada a Teoria da Sedução6 6 , que, como fulcro, sustentará que o conteúdo dos relatos dos sofrimentos psíquicos das pacientes, de ordem sexual, originava-se nas recordações alucinadas das histéricas. Em alguns casos essas recordações são relatadas como foram descobertas; em outros, no entanto, elas aparecem parcialmente distorcidas ou alteradas, censuradas em função da dificuldade de aceitar ou enfrentar o conteúdo que emergia das fantasias inconscientes dessas pacientes. No tratamento de Fraülen Elisabeth Von R., Freud estabelece uma analogia ao processo arqueológico com a pesquisa do material inconsciente, comparando o processo de análise à técnica de desenterrar uma cidade soterrada, em que se precisa retirar as camadas do material psíquico para penetrar gradativamente nas camadas mais profundas da lembrança da cena primitiva. Reconhecê-la é atingir o seu âmago, para poder ab-reagir. O material oferecido por essas pacientes serve não apenas para a pesquisa etiológica da histeria. O relato cuidadoso das queixas e a atenção devotada pelas pacientes às fantasias e às vias que as relacionam com os sintomas favoreceram uma nova abordagem técnica ou 6 A teoria da sedução será tratada mais detidamente no segundo capítulo desta dissertação.
  • 54. 53 método de observação. Freud abandona a hipnose, experimentando um método para seguir com esses relatos e acompanhar os caminhos oferecidos pela consciência, acreditando acessar, assim, o conteúdo mais remoto – o material inconsciente. Desta forma descreve o seu tratamento: Esse processo foi o de desembaraçar o material psíquico patogênico camada por camada, e gostamos de compará-lo à técnica de escavar uma cidade soterrada. Começava fazendo com que a paciente me contasse o que sabia e [eu] cuidadosamente anotava os pontos em que alguma sucessão de pensamentos permanecia obscura, ou algum elo da cadeia causal parecia estar faltando. E depois penetraria em camadas mais profundas de suas lembranças nesses pontos, realizando uma pesquisa sob hipnose ou pelo uso de alguma técnica semelhante.(FREUD, 1977, p. 188). Freud está convencido do papel do trauma e principalmente da existência de conteúdos inconscientes que retornam à consciência travestidos de outros significados. Acompanhando suas pacientes numa pesquisa arquelógica de decifração dos sintomas, insistindo nas associações feitas pelas pacientes, Freud tem a intenção de, escavando as idéias e associações conscientes, atingir o trauma ou o momento originário em que a experiência prematura se instala. O esforço do método é resgatar a marca ou o traço psíquico original, que retorna a posteriori numa cena da vida adulta, cujo conteúdo sexual se atualiza e gera o desprazer. Sendo o nosso objetivo demonstrar o funcionamento do aparelho psíquico a partir da organização do desejo, estamos diante de um material significativamente importante da teoria psicanalítica. Como se explica que um traço psíquico residual depositado em uma vivência pretérita possa assumir a condução do comportamento atual do sujeito? Como entender que o sintoma remete a experiências tão originárias? O retorno à clinica faz-se necessário para a compreensão dessas questões. Elisabeth sofria de muitas dores nas pernas, mas Freud acredita que ela tinha consciência de que suas dores, na verdade, falavam de um segredo guardado e não compreendido. Seus sintomas estavam quase sempre relacionados aos cuidados que