Foi confirmada em segundo grau a sentença obtida pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) que determinou ao município de Botuverá a implantação, em 90 dias, dos programas relacionados à execução de medidas socioeducativas em meio aberto para adolescentes em conflito com a lei.
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Apelação Cível - 2013.009553-5
1. Apelação Cível n. 2013.009553-5, de Brusque
Relator: Des. Pedro Manoel Abreu
Apelação cível. Ação civil pública. Obrigação de fazer.
Ausência programas de cumprimento de medidas
socioeducativas a adolescentes. Inexistência de infraestrutura
adequada. Liminar obrigando a municipalidade à adoção de
providências, confirmada por sentença. Suscitada nulidade desta,
ante suposta ausência intimação do Município e
consequentemente, de definitividade do decisum proferido no
incidente. Inocorrência. Defesa contra fatos incontroversos.
Obrigação legal (criação de programas de cumprimento de
medidas socioeducativas) decorrente do ECA e da edição da Lei
n. 12.594/2012. Omissão inadmissível. Recurso desprovido.
A definitividade capaz de afastar a suspensão processual
desencadeada pelo aforamento de exceção de incompetência
refere-se ao primeiro julgamento da exceção, uma vez que o
agravo de instrumento interposto contra tal decisão não tem efeito
suspensivo. Precedentes do STJ.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n.
2013.009553-5, da comarca de Brusque (Vara da Família Órfãos, Sucessões, Inf e
Juventude), em que é apelante Município de Botuverá, e apelado Ministério Público
do Estado de Santa Catarina:
A Terceira Câmara de Direito Público decidiu, por votação unânime,
negar provimento ao recurso. Custas legais.
O julgamento, realizado no dia 04 de novembro de 2014, foi presidido
pelo Exmo. Sr. Des. Cesar Abreu, com voto, e dele participou o Des. Stanley da Silva
Braga.
Florianópolis, 11 de novembro de 2014.
Pedro Manoel Abreu
RELATOR
2. RELATÓRIO
O Município de Botuverá interpôs recurso de apelação contra sentença
proferida nos autos da ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado de
Santa Catarina.
O decisum hostilizado julgou procedente o pedido fo rmulado na inicial,
determinando a implantação, no prazo de 90 dias, de programa destinado à execução
de medidas socioeducativas em meio aberto (prestação de serviços à comunidade e
liberdade assistida) para adolescentes, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00.
Em sua insurgência, o apelante suscitou prefacial de nulidade da
sentença, uma vez que suscitada a exceção de incompetência em primeira instância
(necessidade de processar-se a exceção e aguardar-se o seu julgamento definitivo).
Aduz ter sido a exceção julgada improcedente em 12.07.2012 e que, sem ter sido o
Município intimado daquela sentença, proferiu-se sentença definitiva nos autos
principais. Assim, entende não ter havido preclusão em relação ao tema da
competência, motivo pelo qual estaria a sentença, a seu juízo, eivada do vício de
nulidade. No mérito, disse, numa palavra, que a decisão contrariou expressamente a
Lei n. 12.594/12, ao estabelecer prazo menor para implantação dos programas aqui
vindicados que o da legislação nacional (360 dias).
Contrarrazões às fls. 114-116.
A douta Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da lavra do Dr. André
Carvalho, manifestou-se pelo desprovimento do recurso interposto.
Este é o relatório.
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3. VOTO
Cuida-se de examinar o acerto ou desacerto da sentença que, nos autos
da ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual contra o Município de
Botuverá, julgou procedente o pedido formulado na inicial, determinando a
implantação, no prazo de 90 dias, de programa destinado à execução de medidas
socioeducativas em meio aberto (prestação de serviços à comunidade e liberdade
assistida) para adolescentes, sob pena de multa diária de R$ 5.000,00.
No tocante à prefacial de nulidade da sentença ante a ausência de
intimação do apelante acerca da decisão proferida no incidente, é inadmissível o
argumento. Do compulsar do incidente (fls. 20/21), denota-se ter sido a
municipalidade intimada por mandado no dia 09.10.2012, tendo recebido a intimação
o servidor Laodir L. Maestri (até então chefe de Gabinete da Prefeitura). Nada
obstante, a certidão de fls. 21 atesta ter sido exitosa a intimação, agora negada pelo
ente federado sem qualquer fundamento, e contrariando prova expressa contida
naqueles autos.
Na espécie, o ora apelante deduziu não ter sido intimado daquele
decisum, o que representa em verdade um sofisma, já que dos autos consta
expressamente ter havido a correlata intimação formal do insurgente.
Frise-se, por oportuno, que, além de ter sido intimado do decisum, o
apelante interpôs agravo de instrumento contra a decisão proferida no incidente de
exceção de incompetência sem ter formulado pedido de concessão de efeito
suspensivo ao seu recurso. Assim, mesmo a teor do art. 306 do CPC, pelo qual
"Recebida a exceção, o processo ficará suspenso (art. 265, III), até que seja
definitivamente julgada", não há qualquer nulidade a sanar, uma vez que, não
havendo efeito suspensivo, a decisão proferida no incidente assume contorno
definitivo, autorizando a continuidade da demanda. O STJ, aliás, consolidou seu
entendimento nesse mesmo sentido. Colaciona-se:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL.
INCIDENTE DE EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. A EXPRESSÃO
'DEFINITIVAMENTE JULGADA', PREVISTA NO ARTIGO 306 DO CPC,
REFERE-SE AO PRIMEIRO JULGAMENTO DA EXCEÇÃO, POIS O AGRAVO DE
INSTRUMENTO NÃO TEM EFEITO SUSPENSIVO. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA
DO STJ. SÚMULA 83/STJ. AGRAVO DESPROVIDO (STJ, AgRg no REsp n.
1291194, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 19.02.2013).
Afasta-se, pois, a prefacial.
No mérito, há um só argumento trazido aos autos, no sentido de que a
sentença teria vulnerado disposição legal expressa inserta na Lei n. 12.594/12, ao
estabelecer prazo menor para implantação dos programas aqui vindicados que o da
legislação nacional (360 dias).
Não se olvida que a proteção do adolescente constitui direito
fundamental, a exigir do Estado "absoluta prioridade", pois o art. 227 da Constituição
determina que sejam postos a salvo de "toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão":
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4. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao
adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.
Na hipótese vertente, a omissão estatal na condução das políticas
públicas de segurança e de proteção ao adolescente decorre da não criação de
programas/serviços de execução de medidas socioeducativas em meio aberto, bem
como da consequente não inserção, nas leis orçamentárias, de verbas destinadas à
criação e manutenção dos aludidos programas (liberdade assistida e prestação de
serviços à comunidade). A omissão beira à improbidade administrativa, posto que
violadora de princípios constitucionais cruciais ao Poder Público, entre os quais
figuram a moralidade e a eficiência do Estado. Ora, desatender necessidades
primárias da população, reconhecendo, tão só, a sua falta, mas sem adotar-se
nenhuma atitude concreta de mudança na vontade política, de fato, está a merecer
intervenção judicial no campo em que se desenvolve a presente demanda, e também
no campo da improbidade administrativa. Se, na origem, os Poderes se separaram, o
pensamento contemporâneo sugere que eles se completam. As omissões e faltas
daqueles, devem ser concretizadas no âmbito do Judiciário. Daí emerge a
necessidade de controle judicial de políticas públicas e ações como o mandado de
injunção.
É conhecido, pois, o descaso do Poder Público com a segurança
pública, que tem criado no meio social um sentimento de impotência completa,
revelando um encolhimento do Estado frente à crescente marginalização. Achata-se a
sociedade, que passa a viver com medo. Temor de denunciar, de reivindicar, de lutar
pelos ideais de um mundo melhor e de uma convivência pacífica, são as
consequências mais imediatas dessa ausência. No caso dos adolescentes, a falta de
proteção e de medidas sócioeducativas indicam grande dose de descontrole
voluntário, capaz de de conduzí-los à marginalização completa pela falta de
imposição de limites sociais. O adolescente não pode julgar-se infenso à Lei. Ele está
submetido a ela como qualquer outra pessoa que a transgride. Deve saber que seus
atos geram consequências, mas que, acima de tudo, em sua condição, o Poder
Público está compelido por normas imperativas a lhes assistir. Condutas como a do
Município de Botuverá, que, é cediço, está acompanhado de muitas outras
municipalidades neste Estado e também pelo Brasil, são as que dão azo às teses de
redução da maioridade penal, para atingir pessoas em desenvolvimento. Fosse o
ECA aplicado em sua integralidade, talvez os fatos não fossem os que ora se
apresentam.
Demais disso, sem demérito algum às Polícias, cujos corpos funcionais
fazem o impossível para atender a demanda por segurança pública, assistimos a
desorganização dos Governos Federal, Estadual e Municipal. Vê-se, por exemplo, em
diversas cidades, a guarda-municipal bem aparelhada, com carros de luxo, armada,
mas ainda em busca de identidade não consolidada. Não foi à toa, que o STF
reconheceu repercussão geral em dois recursos extraordinários provenientes dos
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5. Estados de São Paulo e Rio de Janeiro (respectivamente os REs n. 608.588/SP e n.
637.539/RJ) sobre o tema em apreço. Nesse ínterim, a Polícia Militar Estadual
esqueceu-se de uma de suas missões, qual seja, a fiscalização ostensiva, mas por
culpa exclusiva da falta de efetivo da desorganização político-administrativa. O Poder
Público preferiu substituí-la pelos "pardais", existentes em alguns semáforos, e por
câmeras, instaladas em poucas praças. Ao mesmo tempo, o Estado olvidou-se de
ditar, com firmeza, as competências da Guarda Municipal. Pior, relega o cidadão à
proteção da segurança privada, como se dele não cobrasse qualquer tributo pela
prestação desse serviço.
A hipótese da comarca de Botuverá é só mais um exemplo da profunda
crise de segurança pública pela qual passa o Estado (não só Santa Catarina, mas, de
uma forma geral, todo o País), mascarada por sofismas de desenvolvimento
anunciados no meio midiático. A Capital do Estado é anunciada como o local mais
amistoso do Brasil para se viver, assertiva desmentida pelo noticiário diário, que
revela o estado de insegurança da população, refém de políticas públicas deficientes.
Trata-se de situação insustentável e que não pode permanecer fora da agenda
política de todas as esferas da Federação.
Neste aspecto, a permanecer como está, caminha-se no sentido inverso
àquele propugnado pela Administração Pública como sinônimo de desenvolvimento,
inclusive porque a própria existência do Estado é colocada à prova sem políticas
efetivas de segurança. Em verdade, ela se consubstancia num verdadeiro sistema
integrado de prevenção, coerção, distribuição de justiça e de cidadania, iniciando-se
na prevenção e ultimando-se no tratamento das causas de delinquência, na
reparação dos danos, e na reinclusão social.
Desta feita, a ausência de aparato para controle de aplicação daquelas
medidas, detona os fins básicos do Estado, que o são a segurança pública e a
consecução do bem-estar (in casu, da sociedade e dos próprios adolescentes),
presentes no preâmbulo da Carta Republicana. Representa, na hipótese concreta,
ferimento ao direito de todos os adolescentes, porque também têm o direito de viver
em uma ordem social que lhes garanta limites, sempre voltados à boa formação do
indivíduo.
Trata-se, como já frisado, de medida concreta adotada na esfera do
Poder Judiciário para afastar a lesão a direitos individuais, coletivos e difusos, que
não vulnera a tripartição dos Poderes nem adentra em atribuições exclusivamente
administrativas. Apenas corrige a conduta comissiva e omissiva do Estado, que
promove o desamparo de adolescentes do Município de Botuverá.
No tocante ao foco específico da celeuma, repise-se, há um único
argumento lançado pelo Município, no sentido de que a sentença, ao fixar o prazo
máximo de cumprimento da obrigação para 90 dias, teria ofendido o disposto no art.
7.º, § 2.º, da Lei n. 12.594/2012, assim disposto:
Art. 7o
O Plano de que trata o inciso II do art. 3o
desta Lei deverá incluir um
diagnóstico da situação do Sinase, as diretrizes, os objetivos, as metas, as
prioridades e as formas de financiamento e gestão das ações de atendimento para
os 10 (dez) anos seguintes, em sintonia com os princípios elencados na Lei n. 8.069,
de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
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6. § 1o
As normas nacionais de referência para o atendimento socioeducativo
devem constituir anexo ao Plano de que trata o inciso II do art. 3o
desta Lei.
§ 2o
Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão, com base no
Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo, elaborar seus planos decenais
correspondentes, em até 360 (trezentos e sessenta) dias a partir da aprovação do
Plano Nacional.
Ora, a Lei n. 12.594/2012 veio a regulamentar a execução das medidas
socioeducativas, instituindo o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo –
SINAME, o qual, segundo definição da própria Lei, no seu art. 1.º, parágrafo único, é
"o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de
medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais,
distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de
atendimento ao adolescente em conflito com a lei".
Em verdade, referida norma veio a prever, assim, o novo sistema de
cumprimento de medidas socioeducativas, com o objetivo de instituir uma verdadeira
política pública destinada ao atendimento de adolescentes.
A questão que se põe, destarte, é saber se houve ou não desrespeito
aos prazos estabelecidos na Lei n. 12.594/2012. A discussão, ver-se-á, perdeu sua
utilidade. De todo modo, fazendo breve digressão, é cediço que as medidas em tela
têm origem no Estatuto da Criança e do Adolescente, de forma que a existência de
programas para a sua execução já era obrigação do Poder Público desde a edição do
ECA, ao passo que a Lei n. 12.594/2012 somente veio estabelecer um novo sistema,
substituindo antigas práticas utilizadas para a execução das medidas. Isto é, o prazo
estabelecido pelo artigo citado refere-se à elaboração do Plano Municipal de
Atendimento Socioeducativo, relacionado ao SINAME, e não propriamente à
instituição de programas de execução daquelas medidas, já que estas deveriam
existir desde a edição do ECA. Nesse sentido, aliás, dispõe o art. 118, da Lei n.
8.069/90:
Art. 118. A liberdade assistida será adotada sempre que se afigurar a medida
mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente.
§ 1º A autoridade designará pessoa capacitada para acompanhar o caso, a
qual poderá ser recomendada por entidade ou programa de atendimento.
§ 2º A liberdade assistida será fixada pelo prazo mínimo de seis meses,
podendo a qualquer tempo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra
medida, ouvido o orientador, o Ministério Público e o defensor.
Contudo, o debate acerca desse prazo, como antes afirmado, não colhe
lugar no presente feito, uma vez que, às fls. 92/93, a municipalidade compareceu aos
autos para noticiar a implantação do Plano Municipal de Atendimento Socioeducativo,
conforme determinado na medida liminar, confirmada por sentença.
O cumprimento da medida esvazia o debate acerca do prazo aplicável à
obrigação legal em tela, mas não afeta o dever de confirmar a sentença no tocante ao
reconhecimento da omissão municipal e da obrigação de manter o programa em de
atendimento de adolescentes sob cumprimento de medidas socioeducativas.
Em face do exposto, nega-se provimento ao apelo.
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7. Este é o voto.
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