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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE MÚSICA E ARTES VISUAIS
MÁRIO EDUARDO DE ARAÚJO RODRIGUES
HIBRIDAÇÕES MUSICAIS DE NARGUILÉ HIDROMECÂNICO: Um
estudo sobre a canção Remédio Caseiro
Teresina
2014
MÁRIO EDUARDO DE ARAÚJO RODRIGUES
HIBRIDAÇÕES MUSICAIS DE NARGUILÉ HIDROMECÂNICO: Um
estudo sobre a canção Remédio Caseiro
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao curso de Licenciatura em
Música da Universidade Federal do Piauí,
como requisito parcial para a obtenção do
grau de Licenciado em Música.
Orientador: Prof. Ms. Juliana Carla Bastos
Teresina
2014
Dedico este trabalho a minha mãe, Eliete,
por todo seu apoio, esforço, dedicação e
amor.
E a Beatriz, por todo amor, apoio e por
sempre acreditar em mim.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a minha família, meus irmãos Júnior e Samuel, e minha mãe,
Eliete por todo o amor, apoio incondicional, ensinamentos e bons momentos vividos
ao longo desta jornada. Além de “Mocinha” e “Neguinha” por todas as alegrias e a
companhia atenta nas madrugadas.
A Beatriz por ser minha companheira e conselheira em todos os momentos
importantes, ao seu amor e principalmente sua paciência! Obrigado por estar ao
meu lado.
A todos os professores da UFPI com quem convivi durante esses anos, em
especial Joaquim Ribeiro, Francisco Williams, e minha orientadora neste trabalho
Juliana Carla Bastos. Obrigado por todos os ensinamentos, todos os debates e
direcionamentos, por me fazer sentir que cada aula valeria a pena, e por serem
referência de bons profissionais na minha formação.
A todos os colegas músicos, professores, e alunos.
E por último, e claro, não menos importante a todos meus caros colegas e
amigos de curso, em especial João Paulo, Júlio César, Paulo Dantas, Gilberto
Ribeiro e Ellain Jarlon, por ajudar a passar por todas aquelas dificuldades e
problemas as quais nos deparávamos vez ou outra no decorrer do curso, e nos fazer
rir das mesmas, seja nas mesas da “PA” ou nas do “FIDI”. Parabéns galera!
“Foi o tempo que dedicastes à tua rosa que a fez tão
importante”
(Antoine de Saint-Exupéry)
“A música é o tipo de arte mais perfeita: nunca
revela o seu último segredo”
(Oscar Wilde)
RESUMO
Esta pesquisa visa investigar e analisar a formação de estruturas musicais híbridas
provenientes do diálogo entre influências de aspectos sonoros locais e globais na
canção Remédio Caseiro da banda Narguilé Hidromecânico O objetivo principal
desta pesquisa é partir em busca de uma resposta para a seguinte indagação: Que
elementos musicais de diferentes procedências estão presentes e de que forma
estes dialogam e se mesclam na canção Remédio Caseiro? Utilizando os conceitos
de hibridação cultural desenvolvidos por Canclini (2009), Oliveira (2007) e Vargas
(2007) e o método analítico desenvolvido por Phillip Tagg (2003; 2011).
Palavras-chave: Canção, Hibridismo musical, Narguilé Hidromecânico, Musemas,
Análise da música popular.
ABSTRACT
This research aims to investigate and analyze the formation of hybrid musical
structures from the dialogue between local and global influences in the song
“Remédio Caseiro” from the band “Narguilé Hidromecânico”. The main objective of
this research is find an answer to the following question: What musical elements from
different origins are present and how they converse and mingle in the song “Remédio
Caseiro”? To this goal, we use the concepts of cultural hybridization developed by
Canclini (2009), Oliveira (2007) and Vargas (2007) and the analytical method
developed by Phillip Tagg (2003, 2011).
Keywords: Song, Musical hybridity, Narguilé Hidromecânico , Musemes, Analysis of
popular music.
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1. Escala de Mi Mixolidio ..................................................................... 37
FIGURA 2. Riff principal de Remédio Caseiro (mG1) ........................................ 37
FIGURA 3. Ocorrências do musema mG1 ......................................................... 40
FIGURA 4. Variação sobre o riff original (mB1).................................................. 41
FIGURA 5. Reforço do bumbo e zabumba (mB2).............................................. 41
FIGURA 6. Modo Lídio (mL)............................................................................... 42
FIGURA 7. Melodia da Guitarra Limpa............................................................... 42
FIGURA 8. Ritmo Básico do Rock (STARR, 2009, p.61) ................................... 45
FIGURA 9. Ritmo básico do baião na zabumba................................................. 45
FIGURA 10. Bateria de Remédio Caseiro.......................................................... 45
FIGURA 11. Xaxado (ROCHA, s/d apud CAMPOS, 2006, p.38) ....................... 46
FIGURA 12. Levada de Zabumba de Remédio Caseiro .................................... 46
FIGURA 13. Groove de Remédio Caseiro ......................................................... 47
FIGURA 14. Toque de agogô............................................................................. 48
FIGURA 15. Melodia vocal Remédio Caseiro .................................................... 52
FIGURA 16. Primeira estrofe de Remédio Caseiro ............................................ 53
FIGURA 17.“Tamanquêro eu quero um pa” (coco-embolada) por Sebastião Alves
Feitosa e José Alves Silva (ULHÔA, 2003, p.59)............................................... 53
FIGURA 18. “Eu nunca posso perder” (coco) por Frank e Nazah (ULHÔA, 2003,
p.59)................................................................................................................... 53
LISTA DE TABELAS
TABELA 1. Tabela De Eventos Sonoros............................................................ 33
TABELA 2. Vinhetas........................................................................................... 35
TABELA 3. Musemas Guitarra e Baixo .............................................................. 43
TABELA 4. Ocorrências do musema mA ........................................................... 49
TABELA 5. Ocorrências do musema mBT ......................................................... 50
LISTA DE SIGLAS
OA Objeto De Análise
CeO Comparação Entre Objetos
MCeO Material de Comparação entre Objetos
ICM Itens de Código Musical
mV Musema Vinheta
mG1 Musema da estrutura composta por salto ascendente a partir da tônica
seguido de movimento descendente por grau conjunto sincopado.
mT Musema referente ao timbre de guitarra distorcida
mB1 Musema de variação do mG1 executada pelo baixo
mB2 Musema do reforço rítmico de bateria e zabumba executado pelo baixo
mT2 Musema referente ao timbre de guitarra limpa
mE Musema do modo mixolidio
mL Musema do modo lídio
mA Musema que compõe-se por batidas sincopadas de percussão e/ou
bateria na introdução da música marcando os riffs iniciais
mBT Musema referente a soma de bateria mais instrumentos de percussão
diversos executando fusões entre elementos rítmicos de procedências
distintas
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO................................................................................................ 12
2. CAPÍTULO I: AS NOÇÕES DE HIBRIDISMO CULTURAL E MUSEMAS.... 14
2.1. HIBRIDISMO CULTURAL............................................................................ 14
2.2. O MÉTODO ANALÍTICO DE TAGG.............................................................17
2.2.1 Poiésis vs. Estésis......................................................................................19
2.2.2. Procedimento de Comparação entre Objetos........................................... 20
3. CAPÍTULO II: “BÁSICO, SIMPLES... NARGUILÉ”....................................... 23
3.1. NARGUILÉ HIDROMECÂNICO................................................................... 23
4. CAPÍTULO III: ANALISANDO A CANÇÃO....................................................30
4.1. “REMÉDIO CASEIRO”................................................................................. 30
4.1.2. A Vinheta................................................................................................... 34
4.1.3. As Guitarras e o Baixo.............................................................................. 36
4.1.4. Bateria e Percussões................................................................................ 43
4.1.5. Um pouco sobre a Voz.............................................................................. 50
4.2. DELINEAMENTO DE HIBRIDISMOS DE REMÉDIO CASEIRO................. 53
5. CONSIDERAÇÕES.........................................................................................58
6. REFERÊNCIAS...............................................................................................60
ANEXO A.............................................................................................................63
12
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho situa-se no campo de pesquisas sobre a música popular, o
qual está em crescente desenvolvimento no Brasil tanto no âmbito acadêmico em
número de monografias, teses e dissertações sobre o tema como em outras
publicações editoriais diversas (BAIA, 2007). Em Teresina, e em todo o estado do
Piauí, percebe-se que ainda há uma carência em relação a este tipo de publicação
principalmente no que se refere à música popular urbana sua memória e as
implicações socioculturais que a circulam.
A cidade de Teresina no fim da década de 90 e inicio dos anos 2000 viveu
uma fase de grande efervescência cultural e principalmente musical, gerando
bandas como Nando Chá e os Piula Contra, Os Caipora, Eucapiau, Roque Moreira,
Eita Piula, Casca Verde e Narguilé Hidromecânico, todas com uma característica em
comum: as experimentações e mesclagens entre ritmos tidos como regionais,
folclóricos ou tradicionais com o reggae, funk, rock, hip-hop, punk rock e tudo mais o
que pudesse agradar aos ouvidos destes “alquimistas do som”. Foi também durante
a década de 90 que o nordeste vivenciou toda a energia e a revolução sonora de
Chico Science e Nação Zumbi, grupo recifense que se tornou um marco do
movimento Manguebeat e referência nas fusões entre a música de Recife e a
música do mundo.
Termos como transculturação, globalização, mestiçagem, sincretismo e
hibridismo surgem no afã das ciências sociais para explicar estas práticas, frutos da
complexa dinâmica das sociedades onde a coexistência de culturas estrangeiras
diversas criou diferentes estruturas e especificidades, refletindo essas interações e
trocas também, é claro, nas obras de seus artistas e músicos. Desta forma esta
pesquisa visa investigar e analisar a formação de estruturas musicais híbridas
provenientes do diálogo entre influências de aspectos sonoros locais e globais na
canção “Remédio Caseiro” canção do segundo disco da banda Narguilé
Hidromecânico, uma da mais expressivas e bem sucedidas bandas teresinenses do
fim da década de 90. O objetivo principal desta pesquisa é partir em busca de uma
resposta para a seguinte indagação: Que elementos musicais de diferentes
procedências estão presentes e de que forma estes dialogam e se mesclam na
canção “Remédio Caseiro”? Buscamos descrever e listar estes elementos quanto a
sua origem, local ou globalizada.
13
No primeiro capítulo desenvolve-se uma maior discussão acerca do conceito
de hibridismo cultural desenvolvido por Canclini (2009) e seus aspectos na América-
latina, usando também as ideias de Vargas (2007) e Oliveira (2011) para compor o
debate, em seguida temos o referencial teórico acerca da metodologia aplicada na
análise, que se trata do método semiológico-hermenêutico proposto por Philip Tagg
(2003; 2011), abordando seus aspectos gerais e principais ferramentas
metodológicas. No segundo capítulo temos um breve histórico a respeito da carreira
da banda Narguilé Hidromecânico, o contexto em que essa surge e as suas
principais produções. No terceiro e último capítulo tecemos a análise propriamente
dita da canção “Remédio Caseiro”, utilizando o instrumental metodológico de Tagg
em busca de seus elementos significativos, além de alguns comentários a partir dos
resultados obtidos fazendo um paralelo com as teorias do hibridismo e as
considerações do autor.
Desta forma, apresentaremos nas páginas seguintes as principais ideias de
hibridação cultural que norteiam este trabalho e a metodologia utilizada para a
realização do mesmo.
14
2. CAPÍTULO I
AS NOÇÕES DE HIBRIDISMO CULTURAL E MUSEMAS
2.1. HIBRIDISMO CULTURAL
É comum ouvirmos falar que o Brasil, e outros países latino-americanos são
frutos da junção de três povos: o índio habitante original, o negro africano
escravizado e o branco europeu "descobridor" e conquistador das novas terras.
Palavras e expressões como diversidade, multiculturalidade, hibridismo, sincretismo,
pluralidade, mestiçagem etc. costumam ampliar esse tipo de raciocínio. "Tais
terminologias desenvolveram-se no afã de designar os novos processos e produtos
resultantes das ordens simbólicas, que, desde o final do século XV, concorreram
para a formação dos países latino-americanos” (BARBOSA & GAGLIETTI, 2007, p.
2).
De fato, as dinâmicas e interações entre estas três personagens acima
citadas (personificações das suas culturas de origem) formaram uma trama de
relações complexas principalmente no que se refere às culturas e identidades
formadas a partir deste processo na América latina. Este ambiente dinâmico e fértil
levou a um estado de constantes apropriações, ressignificações, diálogos e misturas
formando assim culturas híbridas, termo este que remete á noção "de que está em
jogo um processo de misturas que rompe a identificação com algum referencial
teórico imediato, seja estético ou histórico, ou modelo único de análise." (VARGAS,
2007 p.19) onde a modernidade é sinônimo de pluralidade, fundindo e recriando
relações até entre conceitos antagônicos como tradicional e moderno, urbano e
rural, hegemônico e subalterno, culto, popular e massivo.
Segundo Nestor Garcia Canclini1
, um dos maiores pesquisadores latino-
americanos nesta área, “[...] hibridação [são os] processos socioculturais nos quais
estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para
gerar novas estruturas, objetivos e práticas” (CANCLINI, 2008, p.19 apud OLIVEIRA,
1
Néstor Garcia Canclini nasceu na Argentina em 1939, mas foi radicado no México desde 1976. É
doutor pela Universidade de Paris e já foi professor-pesquisador nas Universidades de
Stanford,Austin, Barcelona, Buenos Aires e São Paulo. Festas populares, artesanato, arte,
globalização, consumo e políticas culturais despontam como algumas das linhas de pesquisa
recorrentes de sua obra (FAMECOS, 2006, p.7).
15
2011 p.22)2
. Estas "práticas discretas" anteriores não devem ser entendidas como a
"raiz" de uma tradição ou como uma espécie de fonte de originalidade, em outras
palavras, uma prática original, pura e verdadeira. No caso do Brasil, por exemplo, o
hibridismo cultural à época da colonização se configura como um fruto da
aglutinação de outras culturas já com elementos híbridos, como afirma Vargas:
As imputações históricas e culturais fizeram do Brasil um território de
instabilidade, espaço de contato entre tradições estranhas e sínteses
plurais: índios de diversos locais, africanos e ibéricos (estes já
sincretizados na complexa junção entre ocidente cristão e oriente
muçulmano) (2007, p.24).
Um pensamento ou visão linear da história não se aplica adequadamente ao
se tratar de culturas híbridas, pois por se configurar como um estado dinâmico que
opera com diversas temporalidades, formas, aglutinações, pontos de partida e
chegada não há uma relação hierárquica entre um passado considerado verdadeiro
e original com outras temporalidades que insistem em se expressar e intercruzar.
Canclini identifica na América latina a presença deste jogo entre tempos históricos
que existem simultaneamente num presente e o dá o nome de “heterogeneidade
multitemporal”, uma das especificidades da hibridação nesta região do planeta.
Todas as sociedades complexas são híbridas de alguma maneira e em
algum grau, dado o seu constante contato com elementos culturais diferentes dos
seus através de migrações, a transnacionalização de empresas, serviços e produtos,
os meios de comunicação globalizados, a internet e etc. a diferença é que na
América Latina o grau dessa mestiçagem étnica, material e simbólica é profunda.
Além da já citada heterogeneidade multitemporal, Canclini trabalha com os conceitos
de desterritorialização e descolecionamento para explicar o hibridismo da América
Latina, conceitos diferenciados, porém, complementares. A desterritorialização seria,
como o próprio nome sugere, a migração de bens simbólicos e produtos culturais de
um determinado território geográfico e social para outro. Este processo implica
também em “certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas
produções simbólicas” (CANCLINI, 2008, p.309 apud OLIVEIRA, 2011, p. 21) o autor
menciona ainda a transnacionalização dos mercados simbólicos e as migrações
como peças do fenômeno da desterritorialização.
2
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hibridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: Edusp. 2008.
16
Já o descolecionamento seria a diminuição da produção de bens culturais
colecionáveis, possibilitado pelo uso de recursos tecnológicos como a fotocopiadora,
o videocassete, videogame, e mais recentemente a internet. Eles permitem que um
bem cultural seja mais facilmente reproduzido e disponibilizado para todos. “A
formação de coleções especializadas de arte culta e folclore foi na Europa, e mais
tarde na América Latina, um dispositivo para organizar os bens simbólicos em
grupos separados e organizados (CANCLINI, 2008, p.302 apud OLIVEIRA, 2011,
p.21). O descolecionamento causa a quebra destas coleções organizadas pelos
sistemas culturais anteriormente bem definidos, o que leva a uma reinterpretação de
conceitos do que deveria vir a ser culto, popular ou massivo.
Estes processos da hibridação cultural são pertinentes quando tratamos de
suas influências no campo das expressões artísticas e mais especificamente do
trabalho no campo da música popular, como podemos observar, por exemplo, nos
trabalhos de Oliveira (2011), Vargas (2007) e Linhares (2007). As peculiaridades
destas músicas residem justamente no fato de, no passado, terem sido produto das
migrações e interações de diferentes povos desterritorializados e, mais
recentemente, da influência de músicas de ampla circulação internacional graças
aos modernos meios de distribuição e consumo de música (descolecionamento). As
novas tecnologias ampliaram ainda mais a dinâmica destes processos, agilizando a
maneira como as músicas de diversas procedências se relacionam e se recriam:
As tecnologias de reprodução disponibilizam a cada usuário a
possibilidade de acesso a repertórios que podem ser mobilizados e
organizados em novas combinações. Alguns artistas fazem isso na
estrutura de suas obras (CANCLINI, 2008 apud OLIVEIRA, 2011,
p.22)
No Brasil há um histórico de manifestações artísticas que constatam possuir
um caráter híbrido. Na modinha e no lundu se configuram a coexistência das
culturas europeias e negras nos primeiros anos do país, mais adiante temos o
Manifesto Antropofágico propondo "deglutir" as influências do legado cultural
europeu e "digeri-lo" sob a forma de uma arte brasileira, a Bossa Nova derivada do
samba e com influências do jazz norte-americano, o Tropicalismo que misturou
manifestações tradicionais com inovações estéticas da vanguarda e cultura pop
como o concretismo e o rock, e mais recentemente e mais importante para essa
17
pesquisa por se situar histórica e esteticamente próximo ao objeto de estudo, temos
o movimento Manguebeat. Sandroni diz que:
O manguebeat é um movimento artístico e, sobretudo, musical
desencadeado no Recife no início da década de 1990. Pode ser
caracterizado por uma intensificação das fusões e combinações
entre tradições musicais locais e músicas anglófonas de ampla
circulação internacional (sobretudo punk, rock e hip-hop) (2009,
p.64).
Percebe-se também na produção de bandas autorais teresinenses que
iniciaram suas atividades mais ou menos por esta época (1990) a presença
marcante dessas fusões. Dentre as bandas que trabalharam em cima desta
mesclagem na capital podemos citar, para efeito de exemplo, algumas como: Os
Caipora, Eucapiau, Roque Moreira, Sapucaia e Narguilé Hidromecânico, principal
banda a ser utilizada neste trabalho devido a sua projeção no cenário musical
independente dentro e fora do estado tendo participado de diversos eventos como
Rumos Musicais (Itaú Cultural / SP), Carnaval na Lapa (Arcos da Lapa / RJ), Festival
Nordestes (SESC Pompéia / SP), Mostra Piauí (Dragão do Mar / CE), Escalada do
Rock (Rock in Rio Café), Festival Internacional de São Luís (MA), Recbeat (Recife /
PE), Estrela da Lapa (RJ), FNAC (SP), Lona Sandra De Sá (RJ) Piauí Sampa (SP)
entre outros, além de ser uma das poucas que continua em atividade (ainda que
esporádica) na cidade atualmente.
2.2. O MÉTODO ANALÍTICO DE TAGG
O desenvolvimento deste trabalho está fundamentado principalmente em
ferramentas metodológicas para análise da música popular desenvolvidas pelo
musicólogo britânico Philip Tagg. Seu método surge durante a década de 80 e as
razões que o levam a esta contribuição se relacionam ao fato de que a música
popular e massiva, até aquele momento, não havia sido tratada como objeto de
estudo sistemático do ponto de vista musical, levando “teóricos de estudos culturais
[...] a clamarem por instrumentais adequados” (OLIVEIRA, 2011, p.36). Essa
insuficiência metodológica pode ser explicada pelo fato de que na musicologia
tradicional, aos olhos do autor, haveria um maior enfoque sobre os processos
intramusicais; aspectos ligados à notação musical formal, excluindo-se determinados
aspectos subjetivos, desta forma o método de Tagg visa trazer contribuições tanto a
18
musicologia como aos estudos culturais.
Tagg entende a música massiva como um sistema simbólico e parte do
pressuposto de que esta faz relações com demais práticas historicamente definidas,
sejam elas musicais, sociais ou culturais. Ao ouvir uma música o ouvinte faz, mesmo
que de maneira inconsciente, associações com diversas outras canções com as
quais já teve contato, estabelecendo assim semelhanças entre diferentes materiais
de expressão musical; estas são associações de enfoque interobjetivo. Além disso,
o ouvinte relaciona esta música e/ou seus elementos estruturais a práticas, cenas,
locais, sensações, imagens, períodos históricos dentre outros elementos, que
aludem à sua memória musical/afetiva. Estas são designadas de associações
intersubjetivas e englobam todo elemento de expressão paramusical associado ao
discurso. “Paramusical” é o termo utilizado para definir “um elemento
semiologicamente relacionado a um discurso musical especifico sem ser
estruturalmente intrínseco aquele discurso.” (BORÉM, 2011, p.15)3
, dentro da
análise estes tipos de associação podem ser agrupados em dois conjuntos:
IOCM: Abreviatura de Material de Comparação Interobjetiva
(Interobjective Comparison Material), um neologismo criado por Philip
Tagg em 1979 para descrever intertextos musicais, ou seja, trechos
de outras obras musicais nos quais pode se demonstrar semelhança
com a obra musical que é objeto de análise
PMFC: Abreviatura de Campo Paramusical de Conotação
(Paramusical Field of Connotation), um neologismo criado por Philip
Tagg em 1991 para descrever um campo semântico conotativamente
identificável que se relaciona com estruturas musicais (ou um
conjunto delas). De 1979 a 1990, foi denominando de EMFA
(Extramusical Field of Comparison) (BORÉM, 2011, p.15).
O IOCM engloba elementos diretamente ligados ao discurso musical em si e
podem ser identificados a partir de uma “lista de parâmetros de expressão musical”.
Parâmetros como timbres, texturas, ritmos, andamentos, acentuações,
deslocamentos, contorno melódico, escalas, instrumentação, articulação,
tratamentos acústicos, efeitos como reverb, phasing, fade in ou fade out dentre
diversos outros aspectos observáveis4
. Esta lista de parâmetros pode também ser
útil na descrição detalhada dos “musemas”, unidades mínimas de expressão musical
em qualquer estilo dado, e podem ser estabelecidos através do procedimento de
3
Texto retirado de Glossário do artigo de Tagg (2011), estruturado e traduzido por Fausto Borém.
4
Para mais aspectos ver TAGG, 2003. p.20
19
comparação entre objetos do qual falaremos mais adiante.
Já o PMFC abarca as significações conotativas do discurso musical,
sentimentos, imagens, gestos, contextos e demais associações ligadas ao objeto
sônico. Tagg dá exemplos de expressões usadas por seus alunos que se referem a
cada um destes campos de associação:
Os alunos são […] capazes de sugerir descritores estésicos5
bastante relevantes, seja com base em gestos, tato, movimento,
sons paramusicais e conotações (por exemplo, “avassalador”,
“pontiagudo”, “áspero”, “delicado”, “louco”, “tenso”, “bem anos 80”,
“tipo detetive”, ou seja, PMFCs) ou em relação as músicas que eles
já conhecem (por exemplo, “sons como Bach”, “bem Per Shop Boys”
[sic], “como o tema de James Bond”, “meio industrial”, ou seja,
IOCMs). (2011, p.13).
Desta forma o autor trabalha a música como um processo de comunicação,
música esta repleta de sentidos musicais e paramusicais, onde cabe à interpretação
do ouvinte a conotação de seus significados, pois entende-se que um elemento ou
feixe de elementos musicais podem conotar diferentes significados para diferentes
grupos em diferentes contextos, assim o método de Tagg é então chamado de
hermenêutico-semiológico.
2.2.1. Poiésis vs. Estésis
O autor também aborda a música como forma de conhecimento e aponta
duas competências: a poiética e a estésica. A competência poiética é aquela que
“qualifica termos que denotam elementos estruturais do ponto de vista de sua
construção (poiésis)” (TAGG, 2011, p.08) estão associadas a habilidades
específicas de músicos (ou, na terminologia de Tagg, “musos”) como por exemplo:
compor, tocar, reger, ler e escrever música. A competência estésica “por outro lado,
qualifica termos que denotam elementos estruturais basicamente do ponto de vista
do efeito de sua percepção (estésis)” (TAGG, 2011, p.08), a esta se associam
habilidades como perceber, compreender, lembrar, associar, distinguir sons musicais
e suas conotações. O modelo analítico de Tagg, ao trabalhar com elementos de
expressão musical e paramusical (que podem ser delineadas tanto de maneira
poiética por “musos” ou estésica por “não-musos” cada um com suas
5
Termos ou expressões que descrevem elementos estruturais da música do ponto de vista de suas
conotações subjetivas a partir das percepções do receptor.
20
especificidades) põe em contato estas duas formas de conhecimento que, em se
tratando de música e outras frentes artísticas como as artes visuais, foram
separadas e hierarquizadas. Por exemplo, a capacidade de compreender a palavra
escrita e falada (habilidades estésicas) é considerada tão importante quanto falar e
escrever (habilidades poiéticas) entretanto, na música e nas artes visuais é possível
perceber que existe certa tendência a inferiorizar ou simplesmente ignorar as
habilidades de competência estésica:
Adolescentes capazes de compreender referências visuais
intertextuais bastante sofisticadas em vídeos de música, não são
considerados artísticos, nem recebem créditos pela cultura visual que
claramente possuem. Da mesma forma, a habilidade amplamente
difundida e verificável empiricamente de distinguir entre, vamos dizer,
entre dois tipos diferentes de estórias de detetive após ouvir não
mais do que dois segundos de um trecho de música instrumental,
aparentemente não nos permite qualificar a maioria da população
como musical. De fato, “artístico”, na esfera das artes visuais,
geralmente parece qualificar apenas as habilidades poïéticas e
“musicalidade” parece se aplicar somente àqueles que se
apresentam como cantores ou que tocam um instrumento, ou podem
decifrar a notação musical. (TAGG, 2011, p.08)
Desta maneira fica claro que há uma visão parcialmente tolhida na
abordagem tradicional deste tema, como se a competência musical estésica da
maioria da população “não-musa” não fosse válida. O modelo analítico de Tagg
procura transpassar essa dicotomia tomando o conhecimento estésico como válido e
de suma importância para a compreensão musical plena sem desmerecer o
conhecimento poiético o entendendo como uma ferramenta eficaz no estudo das
expressões musicais de enfoque interobjetivo, mas não única, até porque as
ferramentas do conhecimento poiético (mais ligadas a musicologia tradicional) não
são capazes de abordar os aspectos sociais e culturais de enfoque intersubjetivo da
música em questão sendo necessárias outras ferramentas e abordagens mais
amplas.
2.2.2. Procedimento de Comparação entre Objetos
Como dito anteriormente, o material usado nesta pesquisa é o CD Poeirão
(2001), da banda Narguilé Hidromecânico, de grande atuação na cena alternativa da
cidade de Teresina no fim da década de 1990 e inicio dos anos 2000. A partir deste
disco, foi feita a coleta da canção que constituirá o objeto de análise (daqui em
21
diante OA) deste trabalho: “uma obra musical, que tenha campos extramusicais
relativamente claros de associação” (OLIVEIRA, 2011, p.39) no caso, a canção
“Remédio Caseiro”. O procedimento de Comparação entre Objetos (CeO) consiste
basicamente numa descrição de música através da própria música, comparando e
relacionando o OA com outras obras que possuam certa relevância em relação ao
mesmo. O caráter inerentemente não verbal da música é a principal justificativa de
Tagg para o uso da CeO pois, segundo o autor, “O eterno dilema do musicólogo é a
necessidade de usar palavras para uma arte não verbal e não denotativa” (2003,
p.20), porém, tem-se consciência de que o texto da canção também se constitui
como um importante fator significativo e algo de fato indissociável da música
comercial atual.
O primeiro passo do procedimento é estabelecer semelhanças de estrutura
musical entre o OA e outras músicas, formando o chamado Material de Comparação
entre Objetos (MCeO). As músicas que formam o MCeO devem se restringir a
gêneros musicais, estilos e funções relevantes ao OA, desta maneira evitam-se
eventuais armadilhas ou enganos no decorrer da análise e nos resultados obtidos,
além do fato de que músicas que possuem pouco ou nenhum tipo de envolvimento
com o OA não apresentarão semelhanças significativas para o desenvolvimento da
análise. Por exemplo, se torna de certo modo inviável comparar elementos do punk
rock da banda inglesa Sex Pistols com o baião de Luiz Gonzaga, pois estes se
diferem em diversos pontos importantes dentre os quais podemos citar: a
localização geográfica, o ano de criação, o contexto político-sócio-cultural que as
envolve, a formação instrumental, os padrões estéticos adotados, suas funções,
elementos de expressão musical como escalas usadas, compasso, sincopas,
timbres, etc.
Por este motivo as músicas selecionadas para constituir o MCeO da análise
de “Remédio Caseiro” foram coletadas em CDs de bandas nordestinas que mantém
proximidade com o OA em certos aspectos como: a influência de manifestações
musicais locais e globalizadas, faixa etária do público, formação instrumental, época
de atuação, temática de letras, performance, e demais aspectos musicais, chegando
aos discos completos Vamonabaia (2003) e Sintonia da Mata (2006) das bandas Os
Caipora e Roque Moreira respectivamente, além de outras gravações de bandas
diversas que não chegaram a lançar um álbum completo, como por exemplo a
banda Sapucaia, e algumas outras bandas da região que preservam as
22
características acima citadas como forma de aumentar o número de exemplos
musicais e assim respaldar as estruturas encontradas como musemas, chegando as
bandas Dr. Raiz (CE), Lampirônicos (BA), e Chico Science e Nação Zumbi (PE)
Em seguida é realizada uma busca no MCeO por elementos musicais ou
Itens de Código Musical (ICM) semelhantes aos encontrados no OA, desta forma
identificam-se as menores partes de expressão musical significativa destas canções,
os chamados musemas, que envolvem aspectos da lista de parâmetros de
expressão musical feita anteriormente como, orquestração, tonalidade, andamento,
textura, dinâmica, efeitos etc.
Para algumas informações específicas acerca da canção estudada foram
contatados via internet Júnior B. e Fábio Crazy, respectivamente baixista e vocalista
do Narguilé Hidromecânico desde a formação original e Arnaldo Oliveira, ex-
percussionista. Para a descrição estésica dos musemas encontrados foram
utilizados os comentários de diversas pessoas colhidos no decorrer da escrita do
trabalho, por meio de testes de escuta informais onde o voluntário ouvia algum dos
musemas e falava suas impressões acerca do mesmo, além das impressões do
próprio pesquisador.
Desta forma, após a apresentação dos principais fundamentos do método
analítico utilizado neste trabalho, podemos afirmar que foco desta pesquisa está
sobre a análise musemática do OA, remetendo predominantemente às questões
interobjetivas do discurso musical, mas sem de qualquer forma abandonar
totalmente as nuances e associações subjetivas inerentes ao método e ao discurso
musical.
23
3. CAPÍTULO II
“BÁSICO, SIMPLES... NARGUILÉ”.
3.1. NARGUILÉ HIDROMECÂNICO
Formado em 1998 na cidade de Teresina, entre as idas e vindas do “Quintal
dos Galvão” nas proximidades dos bairros Mafuá e Marquês, o grupo Narguilé
Hidromecânico é um conjunto que se propõe6
a fundir e fazer experimentações com
gêneros musicais de diversas procedências. Podemos citar entre as influências de
gêneros “estrangeiros” o punk rock, o reggae, rap e funk, e dentre as influências
locais, o boi, o forró e o samba. Para tanto a banda utilizasse de uma formação
instrumental tão diversa quanto são suas influências, ao tradicional “guitarra-baixo-
bateria” do rock e suas ramificações são acrescidos instrumentos característicos da
música local: zabumba, pandeiro, berimbau, caxixi, triângulo, etc. passando pelas
pick-ups e os beats eletrônicos do hip-hop. Em suas letras o Narguilé Hidromecânico
trata de situações cotidianas e simples da vida de milhares de piauienses e
demonstra também uma ponte entre o espaço urbano e o rural fazendo um paralelo
entre tradição e modernidade. Com isso, tornou-se uma referência na música
piauiense conquistando espaço nacionalmente através de participações em projetos,
festivais e concursos em diversos estados como os citados anteriormente.
A banda surge no ambiente de um tradicional reduto cultural da cidade de
Teresina: O “Quintal dos Galvão”, a partir dos encontros diários e psicodélicos de
Fábio Cristian “Crazy” (Fábio Crazy) com os irmãos Alex e Júnior Galvão. Destes
encontros saíram diversas composições, muitas das quais vieram a integrar o
repertório não só do Narguilé como também de diversas outras bandas, algumas se
tornaram “clássicos” como “Maluco Regulão”, “Forró do Mulambo” e “Maquetes
Loucas”. Duas bandas “embrionárias” foram importantes para a formação do grupo,
a Calango Gringo que não passou da fase dos ensaios, mas foi responsável por
alguns dos já citados hits da banda, “Maluco Regulão” e “Forró do Mulambo” e a
banda Tequila formada logo em seguida mas agora com a proposta de fazer shows
cover, o que também não deu muito certo pois, o espírito criativo dos integrantes
falava mais alto. Sendo assim:
6
Nos últimos anos a banda tem demonstrado em suas performances ao vivo um certo distanciamento
destas referências locais, se mantendo essencialmente como uma banda de rock.
24
Dos sobreviventes da ressaca do Tequila surge o Narguilé. A
primeira apresentação do grupo foi na sala Torquato Neto (Clube dos
Diários, Centro) com o baterista da banda Cobra Criada (baile)
Ribamar. Ele que acabou recebendo apelido de Ribatera, não duraria
muito tempo na banda. No primeiro show “pra valer” do “Narguilé
Hidromecânico”, no projeto Boca da Noite, também no Clube dos
Diários, mas no espaço Osório Jr, quem toca bateria é Alexandre
Naka. A apresentação acontece no dia 11 de fevereiro de 1998.
(LEONEL, 2007, p.46)
Durante os seus anos de atuação, vários músicos passaram pelo Narguilé,
dentre alguns podemos citar Fábio Crazy, Hernane Felipe, Nando Chá, Jr. B,
Cláudio Hammer, Alexandre Naka, Márcio Bigly, André de Sousa, dentre outros.
Quanto às discussões acerca das experiências e fusões musicais do grupo
com seus passeios pelo baião, rock e hip-hop, fica clara a tendência de associar o
estilo da banda ao das bandas recifenses do Movimento Manguebeat. Essa
tendência é aceitável e justificável pelo fato de que em ambos os contextos a
mistura de elementos regionais com elementos globalizados tornou-se a sua
característica mais importante, o eixo central da produção e da estética do Mangue,
além do fato de que na década de 1990 o Manguebeat se encontrava em seu auge
servindo então como provável influência de muitas outras bandas novas. A banda
Narguilé Hidromecânico defende a originalidade de sua obra e se vê não como
produto do movimento de Chico Science e sim como uma iniciativa paralela ao
movimento, que mantém certos aspectos em comum e que por mera coincidência
passaram a produzir música em épocas próximas. Para eles essa mistura de sons e
influências já era algo comum no espaço do “Quintal dos Galvão”:
A mistura de sonoridades já vinha de antes, desde o quintal. Para
Galvão Jr., era algo bem natural que já vinha acontecendo em sua
casa há algum tempo. A ideia da existência de uma banda que
misturasse um forró ao estilo Genival Lacerda com hardcore até
então nem passava pela cabeça deles. A primeira vez que viu a
banda Raimundos na TV, Alex vira para o irmão e fala: “– Jr., eu
acho que esses caras tão imitando a gente! (risos)”.(LEONEL,2007
p.47)
Ainda sobre as prováveis influências do Mangue no som da Narguilé, Fábio
Crazy comenta:
“Dentro do conceito todo, não tem uma coisa exatamente mensurada,
pensada estrategicamente de como é que seria. Essa ligação (com o
Mangue Beat) era justamente as influências e não que uma coisa
tenha nascido da outra porque em 93 a gente já fazia música lá no
25
quintal do seu Galvão, cara. Em 89, a gente já via nêgo tocando punk
rock no quintal da moçada, já ouvia música eletrônica. Sempre ouviu
Luiz Gonzaga porque tua mãe gosta, a minha gosta, o meu avô... Na
verdade, não existe só uma pessoa tendo as idéias. Elas
simplesmente existem e circulam e tem um momento em que elas
afloram.” [...] Eu não tô querendo dizer que eu sou um cara foda que
nem o Chico Science, não é isso, porque o som dele é muito
importante, mas só mais tarde passou a influenciar mais, a princípio
não. Quando existe um cara com a linguagem artística semelhante à
sua, obviamente você começa a estabelecer uma conexão com
aquilo. É natural.” (Fábio Crazy apud LEONEL, 2007. p.48).
O primeiro registro fonográfico da banda ocorre quando em 1999, o
antropólogo Hermano Viana e os engenheiros de som R. C. Varela e Beto Vilares
assistem a um show do Narguilé Hidromecânico e da banda de hardcore Obtus no
Bar Elis Regina, em Teresina. Hermano naquela ocasião estava a procura de novas
bandas para o projeto MBR (Música do Brasil) e seguia “mapeando novas
sonoridades pelo país inteiro.O MBR foi uma série de 15 programas apresentados
por Gilberto Gil na MTV” (LEONEL, 2007, p.49), e o Narguilé era justamente o que o
produtor/antropólogo procurava. O registro foi realizado com os equipamentos de
gravação dos engenheiros de áudio no estúdio de ensaio de Cláudio Hammer, as
músicas “Forró do Molambo” e “In Memorian” que já haviam sido gravadas
anteriormente também foram adicionadas ao CD que foi batizado com o mesmo
nome da banda “Narguilé Hidromecânico”. O Narguilé acabou ficando fora do
programa de TV mas manteve contato com Hermano Viana e Beto Vilares o que
viria a trazer boas oportunidades no futuro. O CD de 11 faixas ficou entre os mais
vendidos em Teresina no ano de 1999.
Mais adiante no ano de 2001 o grupo lança seu segundo álbum intitulado de
“Poeirão” pelo selo “Cuia Records”. Este disco já conta com um maior rebuscamento
técnico resultando numa melhor produção e qualidade de gravação, além de conter
hits como “Maquetes Loucas” e “Jumento Bom” que renderam dois clipes de ampla
circulação, além de “Presentim”, “Folia de Longe” e a canção núcleo desta pesquisa,
“Remédio Caseiro”. É um disco que retrata uma banda mais madura e a consolida
como um expoente no cenário musical nordestino e nacional. Sobre esse disco cabe
aqui uma longa mas importante citação retirada do blog da banda:
“A história desse disco começa em 2000, no Rock in Rio Café da
Barra da Tijuca/RJ, na seletiva do concurso ESCALADA DO ROCK.
Enganação exposta, burlamos todos as regras do tal concurso
aquela noite. Simplificando: anarquisamos o negócio. Fomos cínicos
26
e ácidos na entrevista com a TV, tocamos mais do que o tempo
estipulado fazendo os caras desligarem o som do P.A. e o
Bernardinho meteu um chutão na batera. E foi naquela noite que
perdemos o tal concurso mas conhecemos aquela que viria ser a
produtora do segundo disco do Narguilé, o POEIRÃO. Elza Cohen já
havia lançado naquela época, através do projeto super demo,
bandas como Planet Hemp, Jorge Cabeleira e outras algumas. O
disco foi gravado no estúdio do Flávio Canecci, dos Funk Fuckers.
Foi época de doideira entre as sessões de gravações em
Copacabana, noitadas hardcore na zoeira no Sinuca da Lapa e farras
com a gangue dos C.L.O.V.E.R. na Barra da Tijuca. Isso tudo
resultou num disco pensado na sua feitura, diferente do primeiro. O
conceito do disco gira em torno da relação entre o urbano e o rural
sertanejo através de um ônibus de linha que levava o apelido de
poeirão, que fazia rota pra Cacimba Velha, localização do sítio onde
o repertório do disco foi criado e ensaiado.” (FEDENDO..., 2011).
O músico ainda faz uma descrição de cada faixa do disco:
A vinheta de abertura do disco, a gravação de um telefonema a
cobrar. Síntese do Narguilé naquela altura. Fazia a coisa acontecer
mesmo que fosse debitado na conta do próximo!
MAQUETES LOUCAS
Um rockão básico de 2 acordes com letra redudante, concreta, sem
sentido...circular como é a música. Usamos um beat funk na intro e
sample de Luiz Gonzaga. Muito boa de tocar ao vivo.
REMÉDIO CASEIRO
Uma evocação à insurreição sertaneja do cangaço, composta nas
farras extremas dos CAIPORA. Pro Narguilé, tomou direção de um
porradão punk em escala sertaneja e de dinâmicas e arranjo
elaborado. Faz um permeio ingênuo nas brincadeiras de infância de
crianças que tem o sertão e sua aridez como playground.
CROA
A que foi mais longe nesse disco em termos de experimentações e
outras maneiras de entender e produzir música. Um bumba meu boi
de matraca sampleado sobre uma base de mpc criada pelo Dj
Negralha... uma espécie de mantra de evocações de um candomblé
eletrônico na coroa do rio Parnaíba.
MURIÇOCA
Hardcorezinho 100 por hora do tempo dos PIORES que fala de
maconha. Criamos essa intro ainda em estúdio com o Flipper
cantando um boizinho. A idéia era dar mais impacto quando entra o
27
hardcore.
JUMENTO BOM
Essa é um míssil. Baião sujo, de letra brutalmente ingênua, que
depois vira uma metralhadora hardcore. Essa só dá pra tocar com
raiva!!
NOME AOS BOYS
Essa música é a mais antiga de todo nosso repertório. Foi composta
em 1989, ainda nos tempos do power trio punk SEM IDENTIDADE
(nome fuleiro esse!). Na versão do Narguilé assumimos em seus riffs
a influência RAGE AGAINST THE MACHINE. Há nela também
muitos espaços pra experimentações de música nordestina.
PRESENTIN
Baião + hardcore. Básico, simples...Narguilé. A letra, em estrutura
formal de quadras poéticas nordestinas tem um estilo Zé Limeira.
Misturando farinha com mandacaru e Bruce Lee. Essa música foi
uma festa em estúdio, com participações nos backing vocals de Josh
S. e Daniel Hulk.
FOLIA DE LONGE
Essa eu não sei o que rolou no estúdio. Não é eficiente como é a
musica por si só. Uma metáfora através do homem que está entre o
urbano e o rural. Tem referências locais na letra. Raimundo Soldado,
Maria da Inglaterra, Praça da Bandeira, Quiosque do Dario e Luis do
Óleo.
PERSEVERANÇA DE CAATINGA
Foi composta e produzida totalmente no Rio de Janeiro na época da
gravação do disco. Parceria entre mim e Dj Negralha, foi resultado de
experiências feitas no mpc dele. Eu fiz a letra e o Negralha sampleou
a harmonia de uma gravação tosca dos CAIPORA. Entrou no disco
na última hora.
MAQUETES LOUCAS (macaco mix)
Versão eletro viajandona do Josh Satan. Neurótica, fecha o disco
com outro extremento [sic] musical sem descosturar a colcha. Tem
samples do Narguilé tentando derrubar um elevador de porta
pantográfica num edifício em Copacabana. (FEDENDO..., 2011).
Em uma rápida e informal análise do texto de Fábio podemos reunir algumas
expressões que facilmente se associam a ideia de hibridismo: “O conceito do disco
28
gira em torno da relação entre o urbano e o rural sertanejo”, “Usamos um beat funk
na intro e sample de Luiz Gonzaga”, “Pro Narguilé, tomou direção de um porradão
punk em escala sertaneja”, “Uma metáfora através do homem que está entre o
urbano e o rural.”, “Baião + hardcore. Básico, simples... Narguilé”. Desta maneira fica
evidente que na obra do Narguilé Hidromecânico existem diálogos e interações entre
músicas de diferentes contextos e procedências, músicas estas que se aglutinando,
se reorganizando e se reinventando, acabam por também produzirem novos
significados e vivências, fazendo desta um material relevante para estudos sobre o
tema do hibridismo cultural/musical e por isso se justifica o uso da mesma como
ponto central da discussão que se desenvolverá nos capítulos seguintes. Para tanto,
escolhemos a canção “Remédio Caseiro” segunda faixa do álbum “Poeirão” como
música-núcleo da análise que irá se seguir mais adiante, por entender que esta
possui perceptíveis campos de associação musical de fácil identificação e análise,
esta última fundamentada nas ferramentas teóricas de Philip Tagg.
A partir do capítulo a seguir daremos início à análise dos musemas que
constroem a canção “Remédio Caseiro”. Antes de mais nada, fez-se necessária uma
escuta atenta da canção por diversas vezes em busca de seus elementos
significativos procedendo assim a análise, em um primeiro momento, a partir de
habilidades e ferramentas próprias da competência estésica como perceber,
compreender, lembrar, reconhecer, distinguir sons musicais e suas conotações.
Estes elementos foram listados e logo após agrupados em uma linha cronológica de
eventos sonoros/musicais. Oliveira aponta para a importância da grafia exata destes
eventos sobre a linha cronológica principal:
Para que o sincronismo entre estes eventos sonoros seja analítico,
seus registros seguem a linha mestra da canção, ou seja, uma
“disposição cronológica inequívoca” para que revelem o diálogo entre
os elementos que soam simultaneamente ou sua posição no
conjunto. (2011, p.40)
Assim se montou um quadro de representação gráfica das ocorrências
sonoras e musemáticas que basicamente consiste em um painel onde cada
ocorrência sonora significativa é grafada exatamente sobre a linha cronológica da
canção formando uma espécie de partitura gráfica da obra. De acordo com Tagg:
A apresentação gráfica deve incluir as seguintes linhas paralelas: (i)
uma Linha do Tempo; (ii) uma Linha da Forma; (iii) uma Linha de
29
Eventos Paramusicais (se for o caso); (iv) uma Linha de Ocorrências
Musemáticas. Idealmente, esta partitura gráfica deve ser
proporcionalmente cronométrica, de forma que durações iguais de
tempo ocupem quantidades iguais do espaço horizontal (2011, p.13)
Em seguida foi feita a análise individual dos eventos sonoros encontrados,
relacionando estes por anafonia 7
a exemplos similares encontrados em outras
canções do MCeO embasando assim a estrutura básica em questão como musema.
Logo após, realizou-se a transcrição destes musemas para a notação musical
tradicional e a análise estrutural dos mesmos, fazendo uso da competência poiética
necessária para este segundo momento que se aproxima mais de uma análise
formal. À vista disto, foram obtidos os resultados que serão apresentados a seguir.
7
Analogia em termos sonoros. Neste caso descreve semelhanças entre eventos musicais distintos e
suas conotações. Neologismo criado por Philip Tagg.
30
4. CAPÍTULO III
ANALISANDO A CANÇÃO
4.1. “REMÉDIO CASEIRO”
Nosso objeto de análise é uma canção simples em compasso quaternário,
de uso comum na maioria das canções populares atuais. Dividida em três principais
sessões (A-B-C), cada uma com suas subdivisões e peculiaridades, mas sem
nenhuma grande mudança em termos de tonalidade ou métrica e sim em timbres e
conotações subjetivas, e que a um andamento de aproximadamente 130 bpm8
preenche 3'45''9
do CD “Poeirão” com harmonia e melodias construídas sobretudo a
partir do modo Mi mixolídio.
A instrumentação utilizada consiste em uma peculiar adição de dois trios
instrumentais de grande representação simbólica, estética, visual e sonora: o
primeiro é o power trio formação clássica e mais simples do rock e seus subgêneros,
popularizada em meados da década de 60, consiste na tradicional tríade guitarra,
baixo e bateria, podendo haver ou não um quarto integrante como vocalista
principal. Bandas como The Jimi Hendrix Experience, The Police, Nirvana, Rush,
The Who, Black Sabbath e Led Zeppelin são exemplos de power trio que ajudaram a
popularização desta formação.
Por outro lado vemos o também tradicional trio nordestino (LINHARES, 2007
p.09) formado por sanfona, zabumba e triângulo. Ainda mais simples que o power
trio do rock o trio de instrumentos típicos do nordeste conta com apenas um
instrumento harmônico/melódico e dois de percussão, a sua estrutura remonta as
bandas de pífanos e grupos instrumentais menores do sertão brasileiro. Diversos
grupos se utilizam desta formação instrumental básica as vezes incluindo outros
instrumentos de percussão como o pandeiro, agogô, flauta (quem remete aos
pífanos) e demais instrumentos apropriados a cada situação. Dentre alguns
exemplos podemos citar o Trio Nordestino, Jackson do Pandeiro, Zé do Norte,
Marinês, Trio Mossoró, Dominguinhos, e claro Luiz Gonzaga, como artistas e grupos
que se utilizaram desta formação instrumental em diversas músicas e discos, além
8
Batidas por minuto.
9
Notação para minutagem da música. Neste caso, representa três minutos e quarenta e cinco
segundos.
31
da enorme quantidade de “Trios” que pode ser encontrada numa rápida pesquisa,
por exemplo, na internet.
Sendo assim a instrumentação completa usada na música é formada por
guitarra, baixo e bateria representando do rock e a música globalizada de ampla
circulação, além de zabumba e triângulo como os representantes do trio nordestino
do forró e das manifestações musicais locais que, dialogando com influências de
origens diversas, foram ressignificadas e se transformaram em uma nova
manifestação musical híbrida. Ainda sobre os instrumentos, vale ressaltar que os
timbres característicos como guitarra distorcida, baixo com reforço de graves e
bateria com pegada firme e caixa ligeiramente mais aguda e “seca” (sem muito
reverb10
), também remete a estilos estrangeiros como o já citado rock e
principalmente a funk/soul music.
Para Fábio Crazy em síntese “Remédio Caseiro” se trata de “um porradão
punk em escala sertaneja” com letra ingênua que trata das diversas brincadeiras e
traquinagens “de crianças que tem o sertão e sua aridez como playground” além de
também fazer citações diretas a Virgulino Ferreira Lampião e ao cangaço, incluindo
ai uma clara referência a toada “Mulher Rendeira”, música que foi adaptada ao ritmo
do baião urbano por Zé do Norte e foi trilha do filme “O Cangaceiro” de 1953, filme
que ganhou a palma de ouro no Festival de Cannes e uma menção especial á esta
música (TINHORÃO, 1986 p.226). Abaixo podemos ter uma visão geral destes
aspectos a partir da transcrição da letra e da TAB.1 com a Linha de eventos
sonoros, acompanhados logo em seguida da discussão acerca dos musemas e
partes significativas da música.
10
Efeito de eco de curta duração que pode simular a ambiência natural de diferentes locais, como
pequenas salas ou grandes auditórios.
32
“Remédio Caseiro” – Letra:
Da vez melhor que eu nadei foi a vez que
engoli a piaba que descia viva na minha
garganta
Da vez melhor que eu voei foi a vez que
engoli o coração do passarinho que eu
matei com minha baladeira
Da vez melhor que eu vi foi da vez que bebi
do pus do olho podre de Lampião
Virgulino Ferreira, Virgulino Ferreira, Lampião.
Olê mulher rendeira, olê mulher rendá
Tu me ensina a namorar
que eu te carrego no emborná
Olê mulher rendeira, olê mulher rendá
era a cantiga de vitória
que Lampião costumava cantar
Virgulino Ferreira, Virgulino Ferreira, Lampião.
33
34
4.1.2. A Vinheta
Logo nos primeiros instantes de música somos recepcionados pelo som de
uma velha vitrola tocando uma música provavelmente tão velha quanto a própria, e
rapidamente somos transportados para o cenário árido do sertão brasileiro, e
podemos associar este pequeno recorte de música com tudo mais o que temos de
impressão sobre esta região do país, com suas cores, roupas, pessoas, paisagens,
etc.
A vinheta de abertura da canção é um elemento de importante valor
expressivo pois se configura como uma citação direta a um determinado tipo de
região e de música, neste caso àquela das bandas de pífanos e forrós do nordeste
brasileiro e que carregada de diversos sentidos paramusicais que ao longo das
décadas foram associados a esse lugar, serve para “preparar o terreno” e dizer o
que está por vir. É como se afirmasse “nós somos daqui, esse é nosso som e é por
aqui que nossa música vai caminhar”.
O corte súbito da vinheta e a entrada da guitarra distorcida demonstra uma
característica das culturas híbridas que é o diálogo entre conceitos antagônicos:
tradição e modernidade, local e global, rural e urbano ou acústico e elétrico,
conceitos estes que longe de serem totalmente dicotomizados se intercruzam,
interseccionam, justapõem e convivem numa mesma heterogeneidade temporal. A
guitarra distorcida apesar de não ser elemento de uma tradição musical nordestina
se apropria de suas especificidades, o seu “sotaque”, e emprega em seus riffs11
escalas características dos cantos e melodias sertanejas, ao mesmo tempo em que
a tradição transformada em sample12
e mesmo antes disso, em registro fonográfico,
penetra na modernidade.
Além de “Remédio Caseiro”, foram selecionados mais seis exemplos de
vinhetas que tem conotações similares. São elas as das canções “Magia Nordestina”
e “Animal Animado” ambas do Conjunto Roque Moreira e “Saragateia” da banda Os
Caipora como representantes Teresinenses, além de “Caldeirão de Santa Cruz do
Deserto” e “Bendito Seja” da banda cearense Dr. Raiz. A TAB. 2 apresenta-as mais
11
Frase musical de curta duração e repetição contínua que se constitui como a principal estrutura
reconhecível de uma canção. Ex: Os riffs introdutórios de Smoke on The Water, e Satisfaction, das
bandas de rock Deep Purple e Rolling Stones respectivamente.
12
“Amostra” em inglês, em música se refere a pequenos trechos sonoros recortados de obras ou
gravações pontuais para posterior reutilização noutra obra musical, não necessariamente no
mesmo contexto do original.
35
especificamente:
TABELA 2: Vinhetas (mV)
13
MÚSICA/BANDA
DESCRIÇÃO DA
VINHETA
PFMC'S
“Remédio Caseiro” –
Narguilé Hidromecânico
Banda de Pífanos tocando
tema alegre com sanfona
triângulo e zabumba,
ruídos de agulha de
vitrola.
Zona rural, dança,
poeira, terra, festejo,
vida simples, alegria,
diversão.
“Magia Nordestina” –
Roque Moreira
Trecho de toque de
rabeca, com ruído
semelhante à de agulha
de vitrola.
Toque solene de cortejo
religioso, lamparinas,
canto sertanejo de
lamento, fim de tarde,
igreja, procissão.
“Animal Animado”–
Roque Moreira
Som de sapos, insetos,
pássaros e outros
pequenos animais
Água, lagoa, riacho,
floresta, lama, noite,
grama, ambiente
natural, zona rural.
“Saragateia” – Os
Caipora
Xote instrumental, com
sanfona, zabumba,
triângulo mais guitarra
com delay14
e baixo
elétrico
Baile rural, festejos,
tranquilidade, vida
simples, alegria,
diversão.
“Caldeirão de Santa Cruz
do Deserto” – Dr. Raiz
Cantoria religiosa (Hino de
São Sebastião) em vozes
masculinas a capella e
toque de sinos.
Zona rural,
religiosidade, procissão,
velas, imagens
religiosas, idosos,
tradição.
“Bendito Seja” – Dr.Raiz
Cantoria religiosa (Bendito
de Padre Cícero) em
vozes de
crianças/adolescentes a
capella
Zona rural,
religiosidade, tradição,
missa, velas, imagens
religiosas, tradição.
Percebemos que em todas as vinhetas existe a conotação de “algo rural”,
“do campo” ou “natural” procedendo assim com os locais de origem dos registros, as
conotações de cunho religioso, “da igreja”, “missa” e etc. também são recorrentes
nos exemplos analisados, o que pode ser considerado natural tendo em vista que a
região nordeste até o ano de 2010 era considerada a região mais católica do país
13
Todas as músicas utilizadas neste trabalho estão disponíveis em CD anexo e podem ser
consultadas através da lista de faixas na página 63.
14
Efeito de áudio que consiste na repetição de um som com um determinado tempo de atraso em
relação ao original, como o eco.
36
com 72,2% de adeptos (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E
ESTATÍSTICA, 2010), ou seja, as vinhetas são verdadeiros recortes dos ambientes
e épocas nas quais a música deseja situar o ouvinte, que através de sua experiência
e vivências produz uma série de associações musicais e paramusicais em torno de
suas impressões acerca daquela música, do local de onde ela vem, sobre as
pessoas que a fazem, as situações em que a ouvem e etc. Constituindo-se assim
como um importante material de conotação subjetiva.
Infelizmente, apesar da busca feita em diversos discos e de toda a ajuda dos
integrantes da banda, até o momento não foi possível definir a que conjunto
pertence a música que compõe a vinheta, e nem o nome da mesma. Em conversa
num site de relacionamentos sociais, Arnaldo Oliveira ex-percussionista da banda,
indicou algumas pistas sobre a obra, segundo o músico se trata de “alguma banda
de pífanos do caruaru” cujo nome “tem algo relacionado a Lampião”, informações
importantes mas que lamentavelmente ainda não foram o suficiente para a nossa
busca.
4.1.3. As Guitarras e o Baixo
Após a recepção do ouvinte às impressões iniciais da vinheta de abertura,
ocorre uma súbita mudança de cenário com a entrada do riff principal da música
(mG1), executado na guitarra com o som distorcido (mT1), mostrando o outro lado
do que está em jogo na canção: a articulação de diversos códigos culturais de
procedências distintas. O som da guitarra distorcida está ligado sobretudo a
marcadores estilísticos do rock e suas variações, apesar de ser popularmente
difundido entre guitarristas de todas as vertentes principalmente em momentos de
solos e riffs, graças a instrumentistas como Jimi Hendrix grande expoente e
popularizador do uso de efeitos. Vargas afirma que “Nos anos 1960, esse músico
incorporou à guitarra os mais estranhos sons, retirou dela e da aparelhagem de
amplificação todo um arsenal de possibilidades timbrísticas e de ruídos.” (2007,
p.126).
Com o passar do tempo as distorções foram se tornando cada vez mais
“pesadas”15
, através de estilos como hard rock, punk rock, o heavy metal e todas as
15
Exemplo de descritor estésico comumente utilizado para se referir ao som de guitarra com uma
distorção muito saturada e grave.
37
suas variantes, e ao mesmo tempo graças a evolução tecnológica na área da
música as distorções também se tornaram mais fáceis de controlar e modificar,
através de pedais específicos para este efeito com diversos controles de regulagem
e demais funções expandido assim o leque de possibilidades timbrísticas do
instrumento, isso sem levar em consideração os diversos outros periféricos utilizados
na aparelhagem da maior parte dos guitarristas.
No rock a guitarra distorcida se constitui como um elemento estético
fundamental que se remete a própria música bem como a rebeldia e agressividade a
ela atribuídas, existindo também a figura mítica do guitarrista enquanto o “porta-voz”
ou “dominador” de toda essa energia e agressividade. A imagem do instrumentista
empunhando sua guitarra em meio as grandes multidões é também um elemento
estético visual do rock, atingindo nos solos o ápice de sua performance e fruição do
público. Assim, “esse instrumento e seu executante tornaram-se índices diretos da
estética do rock” (VARGAS, 2007 p.126).
Retornando a canção analisada, notamos que o riff principal de “Remédio
Caseiro” foi construído sobre a escala de Mi mixolídio (FIG.1), uma das variadas
escalas de comum uso na música do nordeste (LINHARES, 2007) (CAMPOS, 2006)
e que tem como principal característica o sétimo grau abaixado formando um
intervalo de sétima menor (7°m) em relação a tônica. A escala utilizada revela a
intenção modal do riff (FIG.2) e se trata de mais uma referência à música nordestina,
“o caráter modal das melodias, predominantemente em mixolídio, está presente nas
toadas dos violeiros, na sonoridade característica dos pifes” (CAMPOS, 2006, p.37)
bem como em composições de Luiz Gonzaga, percussor e popularizador do baião
como o conhecemos.
FIGURA 1 – Escala de Mi Mixolídio (mE)
FIGURA 2 – Riff principal de “Remédio Caseiro” (mG1)
38
Iremos agora nos focar no musema denominado mG1 deste riff que engloba
a figura rítmica e a linha melódica característica dos primeiros tempos do seu
compasso.
Melodicamente o musema original consiste no movimento de 7° menor
ascendente, ou seja, o intervalo característico do modo em que foi construído, a
partir da nota Mi (sexta corda solta) realizando logo em seguida um movimento
descendente por grau conjunto (neste caso a 6° maior). De maneira literal, se trata
do movimento da nota Mi até a nota Ré uma oitava acima terminando em Dó
sustenido. Este movimento melódico ascendente seguido de um descendente por
grau conjunto, pôde ser também percebido em diversos outros fragmentos no
MCeO, como demonstram as figuras que iremos ver adiante.
A estrutura rítmica tem na síncope16
sua característica principal entendendo
sua importância tanto para os ritmos brasileiros como aos demais ritmos afro-
americanos, que neste caso, são as matrizes de origem dos ritmos e tradições que
dialogam e convergem na composição em questão. A figura rítmica básica consiste
na colcheia pontuada mais uma semicolcheia ligada a uma figura de igual ou maior
duração ( ) formando um dos principais padrões rítmicos do baião (GIFFONI,
1997, p.34), porém, apesar da especificidade deste padrão o que se percebe é que
há na verdade uma intenção funk no contexto geral do riff. O funk é um dos gêneros
derivados da soul music “forma surgida no início dos anos 1960 no sul dos EUA,
derivada também do rythm and blues e do gospel” (VARGAS, 2007, p. 128) e
consiste em uma das variações mais dançantes deste estilo. Um de seus principais
traços é a forma percussiva de tocar o instrumento desenvolvida por guitarristas e
baixistas, através de técnicas como o slap17
, o scratch guitar18
e as muted notes e
ghost notes19
, além da presença marcante e proeminente de linhas de baixo que
sustentam toda a música. Na verdade, o baixo está para o funk assim como a
16
Caracteriza-se pelo prolongamento do tempo forte, ou parte forte de tempo até o tempo fraco, ou
parte fraca do tempo do pulso seguinte, criando um deslocamento na acentuação rítmica.
17
Técnica de efeito percussivo, “Consiste em bater a lateral do dedão da mão direita nas cordas
superiores e “estilingar” com o dedo indicador as inferiores, substituindo o tradicional pizzicato”
(VARGAS, 2007, p. 129)
18
Técnica da guitarra também de efeito percussivo que consiste em tocar acordes formados nas três
cordas mais agudas do instrumento pressionando-as rapidamente com pouca ou nenhuma
sustentação abafando as cordas logo em seguida, enquanto a mão direita prossegue no seu padrão
rítmico ou “batida”
19
“Notas abafadas” e “Notas fantasmas” respectivamente. Tratam-se de notas ou cordas abafadas
com a mão esquerda ou direita do instrumentista novamente com a intenção de criar efeitos
percussivos.
39
guitarra está para o rock, em níveis de expressão e importância, assim se no rock
temos na imagem do guitarrista e no som distorcido da guitarra seus principais
campos de associação visual e sonoro, é no funk que contrabaixo e contrabaixista
encontram-se como os responsáveis pela condução de toda a banda e como
símbolos de um movimento musical. Ainda sobre o funk e a soul music, Vargas diz
que estes estilos:
Enquadrados em compassos quaternários, têm uma batida pulsante
e, normalmente, o ritmo é dinamizado por síncopes feitas pelo baixo.
Na bateria, a métrica é regular, porém com leves alterações sentidas
por toques de bumbo em contratempo ou síncope. (2007, p.129)
E sobre os aspectos rítmicos das levadas sincopadas do baixo Savaglia, se
referindo aos músicos da banda de James Brown, afirma que os baixistas:
[…] valorizavam as síncopas e o uso de contratempos, tão comuns
na soul music. Além disso apostaram em uma batida muito mais
pesada, não raro, repetindo a figura rítmica de um único compasso
durante toda uma música, com o objetivo de tornar os grooves20
de
baixo e bateria hipnóticos (s.d., p.18).
Assim a guitarra de “Remédio Caseiro” em seu riff inicial se apropria das
síncopes e dos efeitos percussivos das levadas de baixo da funk music através de
muted notes para produzir seu próprio groove, tanto que dentre os exemplos
equivalentes encontrados no MCeO dois se localizam nas linhas de baixo de
músicas que tem uma maior intenção funk. São elas “Animal Animado” do Conjunto
Roque Moreira e “Banditismo por uma questão de classe” de Chico Science e Nação
Zumbi além de “Morro do Querosene” da banda teresinense Sapucaia e novamente
no baixo em “Caldeirão da Santa Cruz do Deserto” da banda cearense Dr.Raiz. A
seguir temos a transcrição destes elementos como forma de facilitar a visualização
destas ocorrências musemáticas (FIG.4):
20
Groove: termo da língua inglesa que literalmente significa “sulco”. Em música é uma expressão
sem tradução exata para o português e pode significar dentre outras coisas “levada”, “swing”,
“balanço”, “condução”, “gingado” etc.
40
FIGURA 3 – Ocorrências do Musema mG1
A linha de baixo de “Remédio Caseiro” é uma variação ainda mais
sincopada do riff principal da música (FIG. 4), criando assim mais movimento e
mantendo o baixo em seu posto de condutor da levada. Começa a se desenvolver a
partir dos 0'39'' quando a guitarra passa a executar repetidas vezes apenas o
musema mG1 abrindo espaço para o baixo aparecer em destaque, característica
esta que novamente remonta ao funk como afirma Vargas quando diz que os
acompanhamentos de guitarra deste estilo:
[…] não são simplesmente encadeamentos de acordes que formam a
estrutura harmônica da canção, mas séries de riffs, fraseados de
aspecto rítmico sem ter única e necessariamente a finalidade
harmônica. (2007, p.125)
41
FIGURA 4 – Variação sobre o riff original (mB1)
Em outro momento (2'17'') o baixo funciona como reforço da figura rítmica
(FIG. 5) base do baião, já citada anteriormente, reforçando os toques graves da
zambumba e do bumbo da bateria, aspecto este conhecido como “the lock” ou
traduzindo ao pé da letra “cadeado”, e se refere “a sincronização do baixo com o
bumbo da bateria, criando assim um efeito dançante […] No funk, este recurso virou
uma verdadeira obsessão” (SAVAGLIA, s.d., p.07).
FIGURA 5 – Reforço do bumbo e zabumba (mB2)
Por último, temos o musema mT2 referente ao timbre de guitarra limpa, ou
seja, sem distorção, que se inicia aos 2‟15”. O uso da guitarra limpa nesta seção
está adequado em relação aos outros elementos musicais utilizados e à sonoridade
geral, tendo em vista que é neste trecho que há a maior presença de referências e
marcadores estilísticos do baião, assim, junto à melodia da guitarra a bateria se
reduz apenas a marcação do tempo, o baixo se apropria das síncopes executadas
pela zabumba, e o agogô entra em cena. O timbre limpo também funciona como
elemento contrastante à seção posterior que se caracteriza como um punk rock,
estilo que surgiu em meados da década de 70 e que tem como característica
músicas rápidas e geralmente com letras de protesto. Sobre o punk rock Teixeira
diz:
A primeira manifestação punk se deu nos Estados Unidos nos
subúrbios da parte leste de Nova York e foi absorvida pouco tempo
depois na Inglaterra, onde obteve proporções radicais e complexas.
O punk rock é um revivalismo da cultura rock’ n roll, posta-se como
um tipo de música curta, rápida, de poucos acordes, simples e
dançante, contrapondo com o rock tradicional que, submetido à
indústria fonográfica, havia se transformado numa enorme fonte de
empreendimentos comerciais e lucrativos. (2007, pag. 04)
42
A melodia executada pelo instrumento é novamente modal, porém agora na
escala de Mi Lídio (FIG.6), cujo aspecto principal é a presença do intervalo de quarta
aumentada a partir da tônica (4°A), e se configura como mais uma das escalas
modais de comum uso na música brasileira e nordestina (LINHARES, 2007). É neste
trecho também que ocorre a referência à canção “Mulher Rendeira”. Abaixo, a
transcrição do trecho (FIG.7).
FIGURA 6 – Modo Lídio (mL)
1
FIGURA 7 – Melodia da Guitarra Limpa
Podemos perceber que a linha melódica é composta basicamente por duas
estruturas principais dispostas nos dois primeiros compassos. A primeira (compasso
1) é um fragmento que se repete por todo o decorrer do tema como podemos
claramente perceber na visualização da partitura, e se trata de um motivo simples
com poucas notas que se movimentam por graus conjuntos sem ultrapassar uma
oitava, conduzindo à segunda estrutura, um salto ascendente num intervalo de
décima primeira justa (11°J) que varia de nota de partida para se adequar ao
contexto da harmonia em cada momento. A seguir podemos observar na TAB.3 um
43
apanhado geral dos musemas de guitarra e baixo.
TABELA 3 – Musemas Guitarra e Baixo
MUSEMA DESCRIÇÃO PFMC'S
mG1
Salto ascendente a partir
da tônica seguido de
movimento descendente
por grau conjunto.
Síncope.
Movimento, funk, soul,
discoteca, dança, festa,
globo de luz, quente, pra
cima.
mT1
Refere-se ao timbre de
guitarra distorcida
Força, agressividade,
ruído, ronco de motor,
atitude, poder, cidade
grande, sujeira, peso.
mT2
Refere-se ao timbre de
guitarra limpa
Brilho, semelhante ao
violão, mais calmo, limpo,
leve, cidade.
mE e mL
Modo Mixolídio – T 2M 3M
4J 5J 6M 7m
Modo Lídio – T 2M 3M 4ª
5J 6M 7M
Nordeste, pífanos,
cantador, forró, sanfona,
quadrilha, festa.
mB1
Variação do mG1, mais
sincopada.
Movimento, dança, pra
frente, gingado, festa.
mB2
Figura rítmica própria do
baião.
Forró, dança, nordeste,
festa, animação,
movimento.
4.1.4. Bateria e Percussões
Como citado anteriormente, em “Remédio Caseiro” são utilizados quatro
instrumentos de percussão, são eles: bateria, zabumba, triângulo e agogô,
instrumentos estes que juntos formam uma intricada e interessante estrutura rítmica
que transita entre o rock e ritmos nordestinos conduzindo o desenvolvimento da
música. As percussões entram em cena a partir dos 0‟17‟‟ acompanhadas da
guitarra principal, o contrabaixo e uma guitarra secundária, que tocam juntas o
mesmo ritmo, pontuando o riff principal com a figura rítmica característica do baião, a
colcheia pontuada–semicolcheia prolongada ( ) (GIFFONI, 1997) (CAMPOS,
2006) e a síncope semicolcheia–colcheia–semicolcheia ( ), ambas figuras
rítmicas de grande relevância para a nossa música:
44
“Como explica Sandroni, desde o século XIX, a síncope aparece
como uma marca registrada da música brasileira. Ela aparece
também como uma característica que define a música popular
brasileira nos estudos de Mário de Andrade [...]” (CAMPOS, 2006,
p.29)
Na bateria o uso do tambor mais grave remete sonoramente ao toque das
alfaias, grandes tambores de madeira usados nos desfiles de maracatu21
e também
nas canções do grupo pernambucano Chico Science e Nação Zumbi, referência nas
experimentações e fusões musicais entre ritmos locais e globais. Também pode ser
associado aos toques da zabumba, instrumento que geralmente se encarrega da
execução das síncopes citadas acima nas levadas do baião e demais ritmos
nordestinos, dividindo estas síncopes entre a membrana superior que possui uma
pele mais grossa e é tocada por uma baqueta com abafador chamada de “boneco”,
e que, portanto, produz um som mais grave e a membrana inferior, com uma pele
mais fina, tocada com uma baqueta que se assemelha a uma vareta chamada de
“bacalhau”, produzindo um som mais agudo (CAMPOS, 2006). Percebeu-se que
este evento sonoro, descrito adiante como musema, mA, é bastante recorrente em
aberturas de diversas outras canções do MCeO, a qual poderemos visualizar mais
adiante.
Prosseguindo, aos 0‟39‟‟, temos a entrada da bateria na levada principal da
música, que consiste numa adaptação da célula básica do baião tocada pela
zabumba, subdividindo-a entre o bumbo (como a pele grave da zabumba) e a caixa
da bateria (como a pele aguda), porém com uma peculiaridade: a batida da pele
mais aguda, que originalmente cairia sobre a parte fraca do segundo tempo, dado o
prolongamento característico do primeiro, é deslocada para a parte forte. Em outras
palavras, a caixa da bateria abandona o contratempo típico executado pelo toque
agudo da zabumba, levando assim a “acentuações de caixa “aberta” no 2º e 4º
tempos (típicas tanto do soul quanto da música pop).” (GONÇALVES, 2009, p.323).
Segundo Starr:
A maioria das batidas de rock baseiam-se, de uma forma ou de
outra, neste ritmo. De certo modo, você poderia considerar este ritmo
como a pedra angular da bateria rock. [...] o bumbo tocando nos
21
“[...] folguedo pernambucano, muito vinculado a cidade de Recife, mas também presente de
maneira tênue em Alagoas e na Paraíba. São agremiações e blocos que, desde meados do século
XIX, saem no Carnaval comemorando a coroação do Rei e Rainha negros, embalados por uma
música de forte ritmo sincopado e com marcante presença de instrumentos de percussão.”
(VARGAS, 2007, p. 116)
45
tempos um e três e a caixa nos tempos dois e quatro. Dezenas de
milhares de canções de rock usam isto como o suporte rítmico
principal, apesar de que variações podem ser usadas para apimentar
este padrão.22
(2009, tradução nossa).
Assim a figura básica do baião perde o seu prolongamento natural na
segunda metade de seu primeiro tempo para ceder lugar a acentuação do rock no
segundo e no quarto tempo, o que também implica numa mudança métrica,
transformando o tradicional 2/4 de diversas manifestações musicais locais (samba,
frevo, maracatu, etc.) (GIFFONI, 1997) em um 4/4, métrica regular da maioria das
canções pop atuais. Abaixo, as figuras FIG. 9, FIG. 10 e FIG.11 ajudam a visualizar
esta fusão:
FIGURA 8 – Ritmo Básico do Rock (STARR, 2009).
FIGURA 9 – Ritmo básico do baião na zabumba
FIGURA 10 – Bateria de “Remédio Caseiro”.
22
“Most rock beats are based, one way or another, on this beat. In a sense, you could consider this
beat to be the cornerstone of rock drumming. (…) the bass drum playing on beats one and three
and the snare drum playing on beats two and four. Tens of thousands of rock songs use this as its
rhythmical backbone, even though variations may be used to spice up this pattern.”
46
À levada de bateria ainda se misturam zabumba e triângulo, tornando a
seção rítmica ainda mais complexa com a adição do xaxado:
Originalmente, o xaxado era uma dança executada apenas por
“cabra macho”, no sertão de Pernambuco, sua disseminação por
todo o nordeste é atribuída ao bando de Lampião [...] Era dança
individual, em círculos, o arrastado das sandálias (xá-xá)
caracterizando o nome xaxado. Mas, pela voz do próprio [Luiz]
Gonzaga, Jackson do Pandeiro e outros compositores, o xaxado
também se incorporou ao universo do forró, transformando-se em
“xaxado urbano”, dança de salão com presença feminina, de par
enlaçado. O ritmo assemelha-se ao do baião, mas apresenta
andamento um pouco mais rápido e mais variações rítmicas.
(CAMPOS, 2006, p.38)
Dada esta ligação histórica entre a dança e o bando de Lampião o xaxado
se constitui como mais uma referência ao cangaço, tema que também permeia a
letra da canção. Abaixo seguem as transcrições do ritmo de xaxado (FIG.11) e a
comparação com a levada de zabumba de “Remédio Caseiro” (FIG.12).
FIGURA 11 – Xaxado
23
(ROCHA, s.d. apud CAMPOS, 2006, p.38)
24
FIGURA 12 – Levada de Zabumba de “Remédio Caseiro”
Adiante temos a transcrição de zabumba, bateria e triângulo juntos, o que
nos oferece uma visão geral de como estes instrumentos convergem
simultaneamente no groove de “Remédio Caseiro” (FIG.13).
23
Optou-se por adaptar a grafia da transcrição original feita por Rocha à grafia já utilizada neste texto
por questões de normatização do trabalho e como forma de facilitar a leitura e o entendimento dos
exemplos. Para mais informações sobre a grafia original consultar Campos, 2006, p. 36.
24
ROCHA, Eder “o”. s.d. Zabumba moderno. Pernambuco: Funcultura.
47
FIGURA 13 – Groove de “Remédio Caseiro”.
É interessante perceber como estes padrões distintos dialogam, se
complementam e se entrelaçam formando um rico contraponto rítmico. No início do
compasso (primeiro tempo) zabumba e bumbo - perdão pela cacofonia – tocam
juntos a fatigada figura colcheia pontuada-semicolcheia, acompanhados pelo
triângulo em seu ostinato25
de semicolcheias, com as duas primeiras abafadas e as
duas últimas soltas, efeito que causa a acentuação do contratempo. Da mesma
forma no fim do compasso (quarto tempo) zabumba e bateria caminham lado a lado,
compartilhando duas colcheias, sendo a primeira acentuada pela bateria com o
toque da caixa.
É no meio do compasso (tempos dois e três) que ocorrem os contrapontos
mais interessantes, principalmente entre zambumba e bateria. No segundo tempo
caixa e pele aguda tocam juntas uma colcheia em cima da parte forte do tempo,
caminhando logo em seguida, a bateria, para uma segunda colcheia no bumbo, já a
zabumba subdivide esta segunda colcheia a bipartindo em duas semicolcheias,
sendo uma ocupada novamente pelo toque agudo e a outra pelo toque grave. O
toque grave da zabumba neste trecho pode ser entendido como uma apojatura do
toque do bumbo que vem logo em seguida no início do terceiro tempo. Em seguida
(terceiro tempo) o bumbo regressa a figura do baião enquanto a zabumba se
25
Em música, ostinato é um termo que se refere a qualquer padrão, melódico ou rítmico, que é
repetido persistentemente.
48
encarrega da síncope semicolcheia-colcheia-semicolcheia o que acaba fazendo com
que o toque grave do instrumento coincida com o do bumbo e o agudo dê mais
movimento ao groove com seu deslocamento.
Outra particularidade relevante se encontra no fato de que no ritmo do
xaxado também não há o prolongamento característico, o que faz com que as
batidas agudas da zabumba coincidam com as acentuações da caixa da bateria, e
as graves com os toques de bumbo, possibilitando assim um maior “entrosamento”
entre os dois instrumentos e a fluência da condução, que somadas ao baixo
possibilitam o efeito “the lock” coeso e dançante da funk music como descrito na
página 41.
Na parte “B” a bateria perde espaço para as percussões, e o agogô entra em
cena prolongando a parte fraca dos tempos um e três (FIG.14).
FIGURA 14 – Toque de agogô
À bateria fica designada a função de marcar os tempos do compasso com o
chimbal, soando como os pratos das bandas de pífanos que se reservam a mesma
função. Após o interlúdio uma virada de bateria marca a transição para a parte “C”
da música, momento em que as percussões perdem espaço e a bateria comanda a
levada do punk rock que se trata de uma variação do rock comum, mas num
andamento mais acelerado. Uma das características deste estilo musical é a sua
simplicidade técnica fazendo com que a levada seja “crua” e direta, também é
bastante comum o uso de andamentos extremamente acelerados principalmente no
hardcore, uma variação do punk ainda mais rápida e agressiva, cujo ritmo básico é
aquele de rock já apresentado acima.
Na TAB.4, referente ao musema mA, temos uma lista de músicas do
material de comparação que possuem eventos sonoros similares ao da descrição do
musema: “Batidas sincopadas de percussão e/ou bateria na introdução da música
marcando os riffs “, junto com a transcrição destes eventos. Já a TAB.5 refere-se ao
musema “mBT”, que engloba todas as interações e o jogo rítmico entre bateria e
percussão, abrangendo padrões e toques de diferentes proveniências. Apesar de
49
entender que nem sempre estas interações e diálogos se darão exatamente como
ocorre em “Remédio Caseiro” (no caso, envolvendo xaxado e rock) foi necessário
aglutinar em um único musema a ideia geral em questão, que é a da confluência
entre ritmos distintos resultando em um novo tipo de levada rítmica, tendo em vista
que a análise minuciosa de cada esquema encontrado levaria a uma longa pesquisa
acerca de todos os seus aspectos, o que não compete ao trabalho em questão, já
que este se concentra em seu objeto de análise, a canção “Remédio Caseiro”. Como
forma de manter o material de comparação mais próximo do objeto de análise,
optou-se por tratar apenas de canções que possuíssem pelo menos zabumba e
bateria no instrumental.
Tabela 4- Ocorrências do musema mA
MUSEMA DESCRIÇÃO TRANSCRIÇÃO
mA
Batidas
sincopadas de
percussão e/ou
bateria na
introdução da
música marcando
os riffs
MÚSICA TRANSCRIÇÃO
“Crepúsculo” -
Roque Moreira
“Boi de Pancadaria”
- Roque Moreira
“Precisando ganhar
dinheiro” - Os
Caipora
“Presentim”–Os
Caipora
“Pulo do Gato” -
Sapucaia
50
Tabela 5 – Ocorrências do musema mBT
MUSEMA DESCRIÇÃO
mBT
Refere-se a soma de bateria mais
instrumentos de percussão diversos
executando fusões entre elementos
rítmicos de procedências distintas
MÚSICA RITMOS
“Musico a Música - Roque Moreira” Xote / Reggae
“Curupira – Lampirônicos” Xaxado / Rock
“Ligou pra me Dizer – Lampirônicos” Xote / Rock
“Malafronte – Sapucaia” Xaxado / Rock
4.1.5. Um pouco sobre a Voz
A voz sem dúvida é um aspecto válido para esta análise, por se tratar de um
relevante elemento de construção de significados e associações musicais e também,
é claro, paramusicais. Buscou-se neste pequeno recorte, uma análise dos elementos
estruturais da melodia cantada - escalas, ritmos, contorno melódico e conotações
paramusicais observando como esta voz se desdobra pelas seções da música,
ajudando a compor as sonoridades e os cenários que cada uma deseja transmitir,
excluindo-se alguns outros parâmetros de importância para uma futura análise mais
aprofundada como, a entonação, prosódia, impostação, extensão e o sotaque que
neste caso poderia se configurar como musema.
Analisando em um primeiro momento através da escuta podemos perceber
que o canto em “Remédio Caseiro” trás consigo nuances da embolada:
Gênero musical que teve origem no Nordeste brasileiro, aparecendo
mais frequentemente na zona litorânea e mais raramente na zona
rural, suas características principais incluem uma melodia mais ou
menos declamatória, em valores rápidos e intervalos curtos.
(EMBOLADA, s.d.)
Os descritores musicais “melodia mais ou menos declamatória”, “valores
rápidos” e “intervalos curtos” citados acima, se aplicam adequadamente quando
contrapostos ao contorno da voz no decorrer da canção estudada. A melodia
declamada transita por volta do modo mixolídio, o qual já se abordou previamente no
tópico acerca da guitarra e baixo, se movendo na maior parte do tempo por
51
intervalos curtos e num ritmo constante, ritmo este que chama a atenção por ser
formado principalmente por tercinas, quiálteras formadas por três colcheias,
entrando em conflito com a divisão tradicional binária de cada tempo estabelecida
pelo compasso, que neste caso, seria de apenas duas colcheias.
A melodia começa “escorregando” pela 7° menor (Ré), nota característica do
modo, e persiste na nota Mi até o fim do verso onde segue descendentemente para
a nota Si. No trecho em que a harmonia cromática e descendente de guitarra e baixo
entram em cena a voz acompanha o movimento cantando a tônica ou terça dos
acordes G - F# - F e E respectivamente, todos maiores, passando pela nota Lá #,
típica de outro modo estudado, o Mi Lídio. Percebe-se também a presença de duas
vozes que cantam simultaneamente em uníssono durante toda a seção “A”, se trata
da própria voz de Fábio Crazy duplicada em uma sobreposição de dois takes
(tomadas de gravação) diferentes.
Na parte “B” da música, apenas uma das vozes permanece, e soa de uma
forma mais “preguiçosa”, mais contida e grave em relação ao trecho anterior, como
alguém que murmura uma velha canção sobre o modo lídio. De certa forma, a
escolha deste caráter vocal é semelhante à decisão de utilizar nesta mesma
passagem apenas o timbre limpo da guitarra e manter a bateria apenas marcando o
tempo, medidas que tem como propósito criar uma atmosfera contrastante à seção
explosiva e movimentada que vem logo em seguida. Assim como a guitarra perde
sua distorção, a voz “abaixa o tom” e se contem como se guardasse suas forças
para a seção seguinte.
Enfim a parte “C”, um punk rock onde a voz pode enfim liberar toda a
energia contida há alguns instantes atrás. O punk e sua versão ainda mais rápida, o
hardcore, tem no vocal mais agressivo e por vezes gritado um de seus traços
estéticos, reflexo de suas músicas de protesto e da insatisfação exposta em seus
versos. A vocalização mais agressiva também entra de acordo com a sonoridade
geral da banda, por vezes bastante ruidosa por conta de distorções e o uso
constante de pratos de ataque e chimbal aberto na bateria. O mais importante para
este estilo é transmitir a energia, a intensidade e a mensagem de suas músicas, em
detrimento da afinação vocal, ou execução perfeita dos instrumentos, que
geralmente são aqueles do power trio, guitarra, baixo e bateria. A seguir a FIG.15
apresenta a melodia principal, da parte “A”, da música.
52
FIGURA 15 – Melodia vocal “Remédio Caseiro”, Parte “A”.
53
Abaixo, para efeito ilustrativo do uso de notas repetidas na embolada, temos
uma comparação entre a linha melódica de “Remédio Caseiro” (FIG.16) e trechos de
emboladas coletados por Ulhôa (FIG.17 e FIG.18):
FIGURA 16 – Primeira estrofe de “Remédio Caseiro”
FIGURA – 17 “Tamanquêro eu quero um pa” (coco-embolada) por Sebastião Alves Feitosa e José
Alves Silva (ULHÔA, 2003, p.59)
FIGURA 18 – “Eu nunca posso perder” (coco) por Frank e Nazah (ULHÔA, 2003, p.59)
Expostas as caracterizações e comparações, passaremos agora a uma
breve argumentação acerca dos elementos híbridos encontrados, com o intuito de
contextualizar os exemplos com o conceito de hibridismo cultural.
4.2. DELINEAMENTO DE HIBRIDISMOS DE REMÉDIO CASEIRO
Após a minuciosa análise dos eventos sonoros significativos da canção e a
designação de seus musemas, podemos neste capítulo tecer alguns comentários
sobre como se dá esta confluência de ritmos e elementos estéticos de gêneros
musicais distintos, e as suas relações entre o local e o global. Como visto as
estruturas musicais e o processo composicional de Remédio Caseiro engloba uma
série de apropriações e ressignficações de determinados elementos estéticos de
gêneros como o rock, o funk, o baião e o xaxado, produzindo um novo gênero
54
híbrido que conta com algumas das especificidades de seus gêneros base. Vale
ressaltar que “os dados não estão colocados no processo de hibridação de forma
“pura” e substancial, mas já são ou foram objetos de outras misturas” (VARGAS,
2007, p. 24), ou seja, esta aglutinação de influências não advém de gêneros
originais ou totalmente puros, os estilos que se fundem na nova composição
também são hibridizados em diferentes níveis e diferentes formas, como o rock, por
exemplo, que surge a partir das interações entre o blues, country e o rythm and
blues.
Através da análise podemos perceber certas particularidades deste processo
de hibridação musical como a apropriação de escalas, instrumentos, ritmos e
síncopes características dos gêneros locais, e de timbres, acentos métricos, efeitos
de áudio e certas particularidades idiomáticas de guitarra e baixo (como as muted
notes) dos gêneros globalizados. Acerca desta globalização de determinadas
músicas e gêneros, é pertinente abrir um parênteses para compreendermos que a
influência da indústria fonográfica de grandes potências comerciais como os E.U.A.
é a peça chave para compreender este fenômeno. Como explica Vargas quando
afirma que:
[...] as músicas que alcançaram o mercado fonográfico norte-americano
tornaram-se globalizadas pela força da dinâmica dessa indústria cultural
contemporânea. Não à toa, essa mesma indústria criou o termo world music
para definir e rotular “gêneros étnicos” de vários países encampados por ela
para o mercado consumidor (VARGAS, 2007, p. 28).
Desta maneira, podemos entender que a desterritorialização destas práticas
musicais através do crescimento, produção e difusão em larga escala da indústria
fonográfica moderna, é ferramenta essencial para que a hibridação ocorra. Esta
mesma indústria também pôde se apropriar de práticas comumente chamadas de
tradicionais ou folclóricas e expandir sua circulação, tanto em âmbito global na
denominada world music, como em âmbito local. Foi o que fez Luiz Gonzaga ao
trazer o ritmo do baião ao rádio e aos grandes centros nacionais, pois:
Até então, o baião era restrito ao interior do nordeste e só chegaria à
música popular brasileira urbana com Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. A
dupla grava em 1946 seu primeiro baião, intitulado Baião, de grande
sucesso nacional, divulgando o gênero para além das fronteiras do nordeste
brasileiro. (LINHARES, 2007, p. 08)
55
Estas conclusões apontam para a multiplicidade de caminhos traçados pela
hibridação, onde uma visão simplista, dicotômica e linear da história não é capaz de
abarcar todas as possibilidades e percursos exequíveis, onde até mesmo o que se
tinha dicotomicamente bem definido como tradicional/original ou moderno/derivado
já não tem mais um delineamento bem claro, e não pode ser definido (numa visão
linear) apenas por sua localização cronológica, “como se um dos „passados‟ fosse
mais importante e verdadeiro (original e essencial) que os „outros‟” (VARGAS, 2007,
p.20), pois sendo o híbrido um estado de heterogeneidade multitemporal, os outros
passados “não desaparecem em definitivo; ao contrário, a todo instante teimam em
se expressar, cruzar, sobrepor, e desviar daquilo que as teorias lineares evolutivas
tendem a ordenar.” (GRUZINSKI26
, 2001, p.58 apud VARGAS, 2007, p.20)
Assim os conceitos de tradicional e moderno, segundo Vargas, não se
aplicam mais, pois só podem ser entendidos pelo critério cronológico linear da atual
música pop. O autor problematiza e aponta uma solução:
O que gêneros como o rock e o rap teriam de “moderno” em relação ao
maracatu ou ao coco? Na verdade, ambos são produtos de tradições
distintas, de processos históricos e musicais ocorridos em locais diferentes
e com sentidos também diversos [...] minha tendência não é definir as
músicas como “tradicionais” ou “modernas”, termos mais vinculados ao
enfoque racional-evolucionista ocidental, mas como produtos de tradições
distintas, sejam as formas mais locais, sejam as que ganharam as
estruturas globalizadas. (VARGAS, 2007, p.28)
Então podemos chegar à conclusão de que em Remédio Caseiro ocorre
uma fusão entre práticas musicais de tradições distintas, entendo que o termo
“tradições” neste caso não configura a ideia de manifestações originais, “puras” e
“verdadeiras” do fenômeno em questão, e sim de que há em determinado contexto e
local, uma marcante continuidade ou permanência daquele modo de fazer e se
pensar a música.
Na análise de Tagg ao levar em consideração a recepção do ouvinte e os
significados ou impressões do mesmo acerca daquela música, teremos em uma
canção híbrida, um quantidade de associações musicais e paramusicais tão diversas
quanto são as músicas que dialogam na composição, pois entendendo que cada
elemento musical carrega consigo um significado ou um conjunto de associações
diretas e indiretas, cada elemento estrutural, textual, rítmico, melódico, textural,
timbrístico, instrumental, etc. se apresenta como todo um universo de possibilidades
26
GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
56
e caminhos a seguir, cada qual com suas peculiaridades a partir da percepção de
quem a ouve, em síntese “o híbrido não é resultado de nenhum aspecto e nem se
reduz ao que é único, tende a se mostrar por várias facetas, cada uma de origens
distintas” (VARGAS, 2007, p.)
Quanto ao valor ou caráter destas fusões, não cabe a nós definir se estas
mesclagens, num discurso conservador, são “boas” ou “más” para a preservação e
manutenção de nossa cultura e identidades tradicionais. “Más” por “contaminar” a
manifestação popular tradicional com a influência estrangeira da cultura de massa
deturpando assim seu sentido original, ou “boas” por ressignificar estas tradições,
inserindo-as no contexto da modernidade, remodelando seus sentidos e aplicações
de acordo com a visão de mundo da sociedade em que estas se incluem. Para
Canclini, “a noção de hibridação (...) é uma noção descritiva, caracteriza processos
sociais em que se dão cruzamentos, intersecções, sem nos permitir estabelecer o
caráter dessas intersecções ou dessas hibridações” (CANCLINI, 2009, p.9). Desta
maneira, a pergunta que se faz quanto a esses processos não é “por que
acontecem?” e sim “quando, onde e de que forma acontecem?”.
Desta maneira, os aspectos que se intercruzam e convergem em Remédio
Caseiro podem ser, em síntese, assim listados:
 Formação instrumental que mescla o power trio, formado por guitarra, baixo e
bateria com o “trio nordestino” composto por zabumba, triângulo e sanfona.
 Uso do timbre de guitarra distorcida, marcador estilístico do rock e suas
vertentes.
 Modalismo na composição das linhas melódicas com o uso de modos
característicos da música nordestina como o lídio e mixolídio.
 Levada “funkeada” no riff de guitarra e na condução do baixo com uso do
efeito percussivo de muted notes.
 Adequação do ritmo do baião executado pela bateria para a acentuação
característica do rock, nos tempos dois e quatro.
 Uso do ritmo de xaxado na zabumba se mesclando à condução rítmica mista
da bateria
 Canto que se aproxima dos padrões rítmicos e melódicos da embolada.
 Referências ao punk rock e sua variação mais acelerada o hardcore.
57
Basicamente seriam estes os elementos que mesclados e sobrepostos se
transformam na canção Remédio Caseiro, envolvendo, entre os ritmos globalizados,
elementos do funk e do rock, e entre os ritmos locais o baião e o xaxado.
Análise da canção Remédio Caseiro do Narguilé Hidromecânico
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Análise da canção Remédio Caseiro do Narguilé Hidromecânico

  • 1. UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE MÚSICA E ARTES VISUAIS MÁRIO EDUARDO DE ARAÚJO RODRIGUES HIBRIDAÇÕES MUSICAIS DE NARGUILÉ HIDROMECÂNICO: Um estudo sobre a canção Remédio Caseiro Teresina 2014
  • 2. MÁRIO EDUARDO DE ARAÚJO RODRIGUES HIBRIDAÇÕES MUSICAIS DE NARGUILÉ HIDROMECÂNICO: Um estudo sobre a canção Remédio Caseiro Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal do Piauí, como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciado em Música. Orientador: Prof. Ms. Juliana Carla Bastos Teresina 2014
  • 3. Dedico este trabalho a minha mãe, Eliete, por todo seu apoio, esforço, dedicação e amor. E a Beatriz, por todo amor, apoio e por sempre acreditar em mim.
  • 4. AGRADECIMENTOS Agradeço a minha família, meus irmãos Júnior e Samuel, e minha mãe, Eliete por todo o amor, apoio incondicional, ensinamentos e bons momentos vividos ao longo desta jornada. Além de “Mocinha” e “Neguinha” por todas as alegrias e a companhia atenta nas madrugadas. A Beatriz por ser minha companheira e conselheira em todos os momentos importantes, ao seu amor e principalmente sua paciência! Obrigado por estar ao meu lado. A todos os professores da UFPI com quem convivi durante esses anos, em especial Joaquim Ribeiro, Francisco Williams, e minha orientadora neste trabalho Juliana Carla Bastos. Obrigado por todos os ensinamentos, todos os debates e direcionamentos, por me fazer sentir que cada aula valeria a pena, e por serem referência de bons profissionais na minha formação. A todos os colegas músicos, professores, e alunos. E por último, e claro, não menos importante a todos meus caros colegas e amigos de curso, em especial João Paulo, Júlio César, Paulo Dantas, Gilberto Ribeiro e Ellain Jarlon, por ajudar a passar por todas aquelas dificuldades e problemas as quais nos deparávamos vez ou outra no decorrer do curso, e nos fazer rir das mesmas, seja nas mesas da “PA” ou nas do “FIDI”. Parabéns galera!
  • 5. “Foi o tempo que dedicastes à tua rosa que a fez tão importante” (Antoine de Saint-Exupéry) “A música é o tipo de arte mais perfeita: nunca revela o seu último segredo” (Oscar Wilde)
  • 6. RESUMO Esta pesquisa visa investigar e analisar a formação de estruturas musicais híbridas provenientes do diálogo entre influências de aspectos sonoros locais e globais na canção Remédio Caseiro da banda Narguilé Hidromecânico O objetivo principal desta pesquisa é partir em busca de uma resposta para a seguinte indagação: Que elementos musicais de diferentes procedências estão presentes e de que forma estes dialogam e se mesclam na canção Remédio Caseiro? Utilizando os conceitos de hibridação cultural desenvolvidos por Canclini (2009), Oliveira (2007) e Vargas (2007) e o método analítico desenvolvido por Phillip Tagg (2003; 2011). Palavras-chave: Canção, Hibridismo musical, Narguilé Hidromecânico, Musemas, Análise da música popular.
  • 7. ABSTRACT This research aims to investigate and analyze the formation of hybrid musical structures from the dialogue between local and global influences in the song “Remédio Caseiro” from the band “Narguilé Hidromecânico”. The main objective of this research is find an answer to the following question: What musical elements from different origins are present and how they converse and mingle in the song “Remédio Caseiro”? To this goal, we use the concepts of cultural hybridization developed by Canclini (2009), Oliveira (2007) and Vargas (2007) and the analytical method developed by Phillip Tagg (2003, 2011). Keywords: Song, Musical hybridity, Narguilé Hidromecânico , Musemes, Analysis of popular music.
  • 8. LISTA DE FIGURAS FIGURA 1. Escala de Mi Mixolidio ..................................................................... 37 FIGURA 2. Riff principal de Remédio Caseiro (mG1) ........................................ 37 FIGURA 3. Ocorrências do musema mG1 ......................................................... 40 FIGURA 4. Variação sobre o riff original (mB1).................................................. 41 FIGURA 5. Reforço do bumbo e zabumba (mB2).............................................. 41 FIGURA 6. Modo Lídio (mL)............................................................................... 42 FIGURA 7. Melodia da Guitarra Limpa............................................................... 42 FIGURA 8. Ritmo Básico do Rock (STARR, 2009, p.61) ................................... 45 FIGURA 9. Ritmo básico do baião na zabumba................................................. 45 FIGURA 10. Bateria de Remédio Caseiro.......................................................... 45 FIGURA 11. Xaxado (ROCHA, s/d apud CAMPOS, 2006, p.38) ....................... 46 FIGURA 12. Levada de Zabumba de Remédio Caseiro .................................... 46 FIGURA 13. Groove de Remédio Caseiro ......................................................... 47 FIGURA 14. Toque de agogô............................................................................. 48 FIGURA 15. Melodia vocal Remédio Caseiro .................................................... 52 FIGURA 16. Primeira estrofe de Remédio Caseiro ............................................ 53 FIGURA 17.“Tamanquêro eu quero um pa” (coco-embolada) por Sebastião Alves Feitosa e José Alves Silva (ULHÔA, 2003, p.59)............................................... 53 FIGURA 18. “Eu nunca posso perder” (coco) por Frank e Nazah (ULHÔA, 2003, p.59)................................................................................................................... 53
  • 9. LISTA DE TABELAS TABELA 1. Tabela De Eventos Sonoros............................................................ 33 TABELA 2. Vinhetas........................................................................................... 35 TABELA 3. Musemas Guitarra e Baixo .............................................................. 43 TABELA 4. Ocorrências do musema mA ........................................................... 49 TABELA 5. Ocorrências do musema mBT ......................................................... 50
  • 10. LISTA DE SIGLAS OA Objeto De Análise CeO Comparação Entre Objetos MCeO Material de Comparação entre Objetos ICM Itens de Código Musical mV Musema Vinheta mG1 Musema da estrutura composta por salto ascendente a partir da tônica seguido de movimento descendente por grau conjunto sincopado. mT Musema referente ao timbre de guitarra distorcida mB1 Musema de variação do mG1 executada pelo baixo mB2 Musema do reforço rítmico de bateria e zabumba executado pelo baixo mT2 Musema referente ao timbre de guitarra limpa mE Musema do modo mixolidio mL Musema do modo lídio mA Musema que compõe-se por batidas sincopadas de percussão e/ou bateria na introdução da música marcando os riffs iniciais mBT Musema referente a soma de bateria mais instrumentos de percussão diversos executando fusões entre elementos rítmicos de procedências distintas
  • 11. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO................................................................................................ 12 2. CAPÍTULO I: AS NOÇÕES DE HIBRIDISMO CULTURAL E MUSEMAS.... 14 2.1. HIBRIDISMO CULTURAL............................................................................ 14 2.2. O MÉTODO ANALÍTICO DE TAGG.............................................................17 2.2.1 Poiésis vs. Estésis......................................................................................19 2.2.2. Procedimento de Comparação entre Objetos........................................... 20 3. CAPÍTULO II: “BÁSICO, SIMPLES... NARGUILÉ”....................................... 23 3.1. NARGUILÉ HIDROMECÂNICO................................................................... 23 4. CAPÍTULO III: ANALISANDO A CANÇÃO....................................................30 4.1. “REMÉDIO CASEIRO”................................................................................. 30 4.1.2. A Vinheta................................................................................................... 34 4.1.3. As Guitarras e o Baixo.............................................................................. 36 4.1.4. Bateria e Percussões................................................................................ 43 4.1.5. Um pouco sobre a Voz.............................................................................. 50 4.2. DELINEAMENTO DE HIBRIDISMOS DE REMÉDIO CASEIRO................. 53 5. CONSIDERAÇÕES.........................................................................................58 6. REFERÊNCIAS...............................................................................................60 ANEXO A.............................................................................................................63
  • 12. 12 1. INTRODUÇÃO Este trabalho situa-se no campo de pesquisas sobre a música popular, o qual está em crescente desenvolvimento no Brasil tanto no âmbito acadêmico em número de monografias, teses e dissertações sobre o tema como em outras publicações editoriais diversas (BAIA, 2007). Em Teresina, e em todo o estado do Piauí, percebe-se que ainda há uma carência em relação a este tipo de publicação principalmente no que se refere à música popular urbana sua memória e as implicações socioculturais que a circulam. A cidade de Teresina no fim da década de 90 e inicio dos anos 2000 viveu uma fase de grande efervescência cultural e principalmente musical, gerando bandas como Nando Chá e os Piula Contra, Os Caipora, Eucapiau, Roque Moreira, Eita Piula, Casca Verde e Narguilé Hidromecânico, todas com uma característica em comum: as experimentações e mesclagens entre ritmos tidos como regionais, folclóricos ou tradicionais com o reggae, funk, rock, hip-hop, punk rock e tudo mais o que pudesse agradar aos ouvidos destes “alquimistas do som”. Foi também durante a década de 90 que o nordeste vivenciou toda a energia e a revolução sonora de Chico Science e Nação Zumbi, grupo recifense que se tornou um marco do movimento Manguebeat e referência nas fusões entre a música de Recife e a música do mundo. Termos como transculturação, globalização, mestiçagem, sincretismo e hibridismo surgem no afã das ciências sociais para explicar estas práticas, frutos da complexa dinâmica das sociedades onde a coexistência de culturas estrangeiras diversas criou diferentes estruturas e especificidades, refletindo essas interações e trocas também, é claro, nas obras de seus artistas e músicos. Desta forma esta pesquisa visa investigar e analisar a formação de estruturas musicais híbridas provenientes do diálogo entre influências de aspectos sonoros locais e globais na canção “Remédio Caseiro” canção do segundo disco da banda Narguilé Hidromecânico, uma da mais expressivas e bem sucedidas bandas teresinenses do fim da década de 90. O objetivo principal desta pesquisa é partir em busca de uma resposta para a seguinte indagação: Que elementos musicais de diferentes procedências estão presentes e de que forma estes dialogam e se mesclam na canção “Remédio Caseiro”? Buscamos descrever e listar estes elementos quanto a sua origem, local ou globalizada.
  • 13. 13 No primeiro capítulo desenvolve-se uma maior discussão acerca do conceito de hibridismo cultural desenvolvido por Canclini (2009) e seus aspectos na América- latina, usando também as ideias de Vargas (2007) e Oliveira (2011) para compor o debate, em seguida temos o referencial teórico acerca da metodologia aplicada na análise, que se trata do método semiológico-hermenêutico proposto por Philip Tagg (2003; 2011), abordando seus aspectos gerais e principais ferramentas metodológicas. No segundo capítulo temos um breve histórico a respeito da carreira da banda Narguilé Hidromecânico, o contexto em que essa surge e as suas principais produções. No terceiro e último capítulo tecemos a análise propriamente dita da canção “Remédio Caseiro”, utilizando o instrumental metodológico de Tagg em busca de seus elementos significativos, além de alguns comentários a partir dos resultados obtidos fazendo um paralelo com as teorias do hibridismo e as considerações do autor. Desta forma, apresentaremos nas páginas seguintes as principais ideias de hibridação cultural que norteiam este trabalho e a metodologia utilizada para a realização do mesmo.
  • 14. 14 2. CAPÍTULO I AS NOÇÕES DE HIBRIDISMO CULTURAL E MUSEMAS 2.1. HIBRIDISMO CULTURAL É comum ouvirmos falar que o Brasil, e outros países latino-americanos são frutos da junção de três povos: o índio habitante original, o negro africano escravizado e o branco europeu "descobridor" e conquistador das novas terras. Palavras e expressões como diversidade, multiculturalidade, hibridismo, sincretismo, pluralidade, mestiçagem etc. costumam ampliar esse tipo de raciocínio. "Tais terminologias desenvolveram-se no afã de designar os novos processos e produtos resultantes das ordens simbólicas, que, desde o final do século XV, concorreram para a formação dos países latino-americanos” (BARBOSA & GAGLIETTI, 2007, p. 2). De fato, as dinâmicas e interações entre estas três personagens acima citadas (personificações das suas culturas de origem) formaram uma trama de relações complexas principalmente no que se refere às culturas e identidades formadas a partir deste processo na América latina. Este ambiente dinâmico e fértil levou a um estado de constantes apropriações, ressignificações, diálogos e misturas formando assim culturas híbridas, termo este que remete á noção "de que está em jogo um processo de misturas que rompe a identificação com algum referencial teórico imediato, seja estético ou histórico, ou modelo único de análise." (VARGAS, 2007 p.19) onde a modernidade é sinônimo de pluralidade, fundindo e recriando relações até entre conceitos antagônicos como tradicional e moderno, urbano e rural, hegemônico e subalterno, culto, popular e massivo. Segundo Nestor Garcia Canclini1 , um dos maiores pesquisadores latino- americanos nesta área, “[...] hibridação [são os] processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetivos e práticas” (CANCLINI, 2008, p.19 apud OLIVEIRA, 1 Néstor Garcia Canclini nasceu na Argentina em 1939, mas foi radicado no México desde 1976. É doutor pela Universidade de Paris e já foi professor-pesquisador nas Universidades de Stanford,Austin, Barcelona, Buenos Aires e São Paulo. Festas populares, artesanato, arte, globalização, consumo e políticas culturais despontam como algumas das linhas de pesquisa recorrentes de sua obra (FAMECOS, 2006, p.7).
  • 15. 15 2011 p.22)2 . Estas "práticas discretas" anteriores não devem ser entendidas como a "raiz" de uma tradição ou como uma espécie de fonte de originalidade, em outras palavras, uma prática original, pura e verdadeira. No caso do Brasil, por exemplo, o hibridismo cultural à época da colonização se configura como um fruto da aglutinação de outras culturas já com elementos híbridos, como afirma Vargas: As imputações históricas e culturais fizeram do Brasil um território de instabilidade, espaço de contato entre tradições estranhas e sínteses plurais: índios de diversos locais, africanos e ibéricos (estes já sincretizados na complexa junção entre ocidente cristão e oriente muçulmano) (2007, p.24). Um pensamento ou visão linear da história não se aplica adequadamente ao se tratar de culturas híbridas, pois por se configurar como um estado dinâmico que opera com diversas temporalidades, formas, aglutinações, pontos de partida e chegada não há uma relação hierárquica entre um passado considerado verdadeiro e original com outras temporalidades que insistem em se expressar e intercruzar. Canclini identifica na América latina a presença deste jogo entre tempos históricos que existem simultaneamente num presente e o dá o nome de “heterogeneidade multitemporal”, uma das especificidades da hibridação nesta região do planeta. Todas as sociedades complexas são híbridas de alguma maneira e em algum grau, dado o seu constante contato com elementos culturais diferentes dos seus através de migrações, a transnacionalização de empresas, serviços e produtos, os meios de comunicação globalizados, a internet e etc. a diferença é que na América Latina o grau dessa mestiçagem étnica, material e simbólica é profunda. Além da já citada heterogeneidade multitemporal, Canclini trabalha com os conceitos de desterritorialização e descolecionamento para explicar o hibridismo da América Latina, conceitos diferenciados, porém, complementares. A desterritorialização seria, como o próprio nome sugere, a migração de bens simbólicos e produtos culturais de um determinado território geográfico e social para outro. Este processo implica também em “certas relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas e novas produções simbólicas” (CANCLINI, 2008, p.309 apud OLIVEIRA, 2011, p. 21) o autor menciona ainda a transnacionalização dos mercados simbólicos e as migrações como peças do fenômeno da desterritorialização. 2 CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Hibridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp. 2008.
  • 16. 16 Já o descolecionamento seria a diminuição da produção de bens culturais colecionáveis, possibilitado pelo uso de recursos tecnológicos como a fotocopiadora, o videocassete, videogame, e mais recentemente a internet. Eles permitem que um bem cultural seja mais facilmente reproduzido e disponibilizado para todos. “A formação de coleções especializadas de arte culta e folclore foi na Europa, e mais tarde na América Latina, um dispositivo para organizar os bens simbólicos em grupos separados e organizados (CANCLINI, 2008, p.302 apud OLIVEIRA, 2011, p.21). O descolecionamento causa a quebra destas coleções organizadas pelos sistemas culturais anteriormente bem definidos, o que leva a uma reinterpretação de conceitos do que deveria vir a ser culto, popular ou massivo. Estes processos da hibridação cultural são pertinentes quando tratamos de suas influências no campo das expressões artísticas e mais especificamente do trabalho no campo da música popular, como podemos observar, por exemplo, nos trabalhos de Oliveira (2011), Vargas (2007) e Linhares (2007). As peculiaridades destas músicas residem justamente no fato de, no passado, terem sido produto das migrações e interações de diferentes povos desterritorializados e, mais recentemente, da influência de músicas de ampla circulação internacional graças aos modernos meios de distribuição e consumo de música (descolecionamento). As novas tecnologias ampliaram ainda mais a dinâmica destes processos, agilizando a maneira como as músicas de diversas procedências se relacionam e se recriam: As tecnologias de reprodução disponibilizam a cada usuário a possibilidade de acesso a repertórios que podem ser mobilizados e organizados em novas combinações. Alguns artistas fazem isso na estrutura de suas obras (CANCLINI, 2008 apud OLIVEIRA, 2011, p.22) No Brasil há um histórico de manifestações artísticas que constatam possuir um caráter híbrido. Na modinha e no lundu se configuram a coexistência das culturas europeias e negras nos primeiros anos do país, mais adiante temos o Manifesto Antropofágico propondo "deglutir" as influências do legado cultural europeu e "digeri-lo" sob a forma de uma arte brasileira, a Bossa Nova derivada do samba e com influências do jazz norte-americano, o Tropicalismo que misturou manifestações tradicionais com inovações estéticas da vanguarda e cultura pop como o concretismo e o rock, e mais recentemente e mais importante para essa
  • 17. 17 pesquisa por se situar histórica e esteticamente próximo ao objeto de estudo, temos o movimento Manguebeat. Sandroni diz que: O manguebeat é um movimento artístico e, sobretudo, musical desencadeado no Recife no início da década de 1990. Pode ser caracterizado por uma intensificação das fusões e combinações entre tradições musicais locais e músicas anglófonas de ampla circulação internacional (sobretudo punk, rock e hip-hop) (2009, p.64). Percebe-se também na produção de bandas autorais teresinenses que iniciaram suas atividades mais ou menos por esta época (1990) a presença marcante dessas fusões. Dentre as bandas que trabalharam em cima desta mesclagem na capital podemos citar, para efeito de exemplo, algumas como: Os Caipora, Eucapiau, Roque Moreira, Sapucaia e Narguilé Hidromecânico, principal banda a ser utilizada neste trabalho devido a sua projeção no cenário musical independente dentro e fora do estado tendo participado de diversos eventos como Rumos Musicais (Itaú Cultural / SP), Carnaval na Lapa (Arcos da Lapa / RJ), Festival Nordestes (SESC Pompéia / SP), Mostra Piauí (Dragão do Mar / CE), Escalada do Rock (Rock in Rio Café), Festival Internacional de São Luís (MA), Recbeat (Recife / PE), Estrela da Lapa (RJ), FNAC (SP), Lona Sandra De Sá (RJ) Piauí Sampa (SP) entre outros, além de ser uma das poucas que continua em atividade (ainda que esporádica) na cidade atualmente. 2.2. O MÉTODO ANALÍTICO DE TAGG O desenvolvimento deste trabalho está fundamentado principalmente em ferramentas metodológicas para análise da música popular desenvolvidas pelo musicólogo britânico Philip Tagg. Seu método surge durante a década de 80 e as razões que o levam a esta contribuição se relacionam ao fato de que a música popular e massiva, até aquele momento, não havia sido tratada como objeto de estudo sistemático do ponto de vista musical, levando “teóricos de estudos culturais [...] a clamarem por instrumentais adequados” (OLIVEIRA, 2011, p.36). Essa insuficiência metodológica pode ser explicada pelo fato de que na musicologia tradicional, aos olhos do autor, haveria um maior enfoque sobre os processos intramusicais; aspectos ligados à notação musical formal, excluindo-se determinados aspectos subjetivos, desta forma o método de Tagg visa trazer contribuições tanto a
  • 18. 18 musicologia como aos estudos culturais. Tagg entende a música massiva como um sistema simbólico e parte do pressuposto de que esta faz relações com demais práticas historicamente definidas, sejam elas musicais, sociais ou culturais. Ao ouvir uma música o ouvinte faz, mesmo que de maneira inconsciente, associações com diversas outras canções com as quais já teve contato, estabelecendo assim semelhanças entre diferentes materiais de expressão musical; estas são associações de enfoque interobjetivo. Além disso, o ouvinte relaciona esta música e/ou seus elementos estruturais a práticas, cenas, locais, sensações, imagens, períodos históricos dentre outros elementos, que aludem à sua memória musical/afetiva. Estas são designadas de associações intersubjetivas e englobam todo elemento de expressão paramusical associado ao discurso. “Paramusical” é o termo utilizado para definir “um elemento semiologicamente relacionado a um discurso musical especifico sem ser estruturalmente intrínseco aquele discurso.” (BORÉM, 2011, p.15)3 , dentro da análise estes tipos de associação podem ser agrupados em dois conjuntos: IOCM: Abreviatura de Material de Comparação Interobjetiva (Interobjective Comparison Material), um neologismo criado por Philip Tagg em 1979 para descrever intertextos musicais, ou seja, trechos de outras obras musicais nos quais pode se demonstrar semelhança com a obra musical que é objeto de análise PMFC: Abreviatura de Campo Paramusical de Conotação (Paramusical Field of Connotation), um neologismo criado por Philip Tagg em 1991 para descrever um campo semântico conotativamente identificável que se relaciona com estruturas musicais (ou um conjunto delas). De 1979 a 1990, foi denominando de EMFA (Extramusical Field of Comparison) (BORÉM, 2011, p.15). O IOCM engloba elementos diretamente ligados ao discurso musical em si e podem ser identificados a partir de uma “lista de parâmetros de expressão musical”. Parâmetros como timbres, texturas, ritmos, andamentos, acentuações, deslocamentos, contorno melódico, escalas, instrumentação, articulação, tratamentos acústicos, efeitos como reverb, phasing, fade in ou fade out dentre diversos outros aspectos observáveis4 . Esta lista de parâmetros pode também ser útil na descrição detalhada dos “musemas”, unidades mínimas de expressão musical em qualquer estilo dado, e podem ser estabelecidos através do procedimento de 3 Texto retirado de Glossário do artigo de Tagg (2011), estruturado e traduzido por Fausto Borém. 4 Para mais aspectos ver TAGG, 2003. p.20
  • 19. 19 comparação entre objetos do qual falaremos mais adiante. Já o PMFC abarca as significações conotativas do discurso musical, sentimentos, imagens, gestos, contextos e demais associações ligadas ao objeto sônico. Tagg dá exemplos de expressões usadas por seus alunos que se referem a cada um destes campos de associação: Os alunos são […] capazes de sugerir descritores estésicos5 bastante relevantes, seja com base em gestos, tato, movimento, sons paramusicais e conotações (por exemplo, “avassalador”, “pontiagudo”, “áspero”, “delicado”, “louco”, “tenso”, “bem anos 80”, “tipo detetive”, ou seja, PMFCs) ou em relação as músicas que eles já conhecem (por exemplo, “sons como Bach”, “bem Per Shop Boys” [sic], “como o tema de James Bond”, “meio industrial”, ou seja, IOCMs). (2011, p.13). Desta forma o autor trabalha a música como um processo de comunicação, música esta repleta de sentidos musicais e paramusicais, onde cabe à interpretação do ouvinte a conotação de seus significados, pois entende-se que um elemento ou feixe de elementos musicais podem conotar diferentes significados para diferentes grupos em diferentes contextos, assim o método de Tagg é então chamado de hermenêutico-semiológico. 2.2.1. Poiésis vs. Estésis O autor também aborda a música como forma de conhecimento e aponta duas competências: a poiética e a estésica. A competência poiética é aquela que “qualifica termos que denotam elementos estruturais do ponto de vista de sua construção (poiésis)” (TAGG, 2011, p.08) estão associadas a habilidades específicas de músicos (ou, na terminologia de Tagg, “musos”) como por exemplo: compor, tocar, reger, ler e escrever música. A competência estésica “por outro lado, qualifica termos que denotam elementos estruturais basicamente do ponto de vista do efeito de sua percepção (estésis)” (TAGG, 2011, p.08), a esta se associam habilidades como perceber, compreender, lembrar, associar, distinguir sons musicais e suas conotações. O modelo analítico de Tagg, ao trabalhar com elementos de expressão musical e paramusical (que podem ser delineadas tanto de maneira poiética por “musos” ou estésica por “não-musos” cada um com suas 5 Termos ou expressões que descrevem elementos estruturais da música do ponto de vista de suas conotações subjetivas a partir das percepções do receptor.
  • 20. 20 especificidades) põe em contato estas duas formas de conhecimento que, em se tratando de música e outras frentes artísticas como as artes visuais, foram separadas e hierarquizadas. Por exemplo, a capacidade de compreender a palavra escrita e falada (habilidades estésicas) é considerada tão importante quanto falar e escrever (habilidades poiéticas) entretanto, na música e nas artes visuais é possível perceber que existe certa tendência a inferiorizar ou simplesmente ignorar as habilidades de competência estésica: Adolescentes capazes de compreender referências visuais intertextuais bastante sofisticadas em vídeos de música, não são considerados artísticos, nem recebem créditos pela cultura visual que claramente possuem. Da mesma forma, a habilidade amplamente difundida e verificável empiricamente de distinguir entre, vamos dizer, entre dois tipos diferentes de estórias de detetive após ouvir não mais do que dois segundos de um trecho de música instrumental, aparentemente não nos permite qualificar a maioria da população como musical. De fato, “artístico”, na esfera das artes visuais, geralmente parece qualificar apenas as habilidades poïéticas e “musicalidade” parece se aplicar somente àqueles que se apresentam como cantores ou que tocam um instrumento, ou podem decifrar a notação musical. (TAGG, 2011, p.08) Desta maneira fica claro que há uma visão parcialmente tolhida na abordagem tradicional deste tema, como se a competência musical estésica da maioria da população “não-musa” não fosse válida. O modelo analítico de Tagg procura transpassar essa dicotomia tomando o conhecimento estésico como válido e de suma importância para a compreensão musical plena sem desmerecer o conhecimento poiético o entendendo como uma ferramenta eficaz no estudo das expressões musicais de enfoque interobjetivo, mas não única, até porque as ferramentas do conhecimento poiético (mais ligadas a musicologia tradicional) não são capazes de abordar os aspectos sociais e culturais de enfoque intersubjetivo da música em questão sendo necessárias outras ferramentas e abordagens mais amplas. 2.2.2. Procedimento de Comparação entre Objetos Como dito anteriormente, o material usado nesta pesquisa é o CD Poeirão (2001), da banda Narguilé Hidromecânico, de grande atuação na cena alternativa da cidade de Teresina no fim da década de 1990 e inicio dos anos 2000. A partir deste disco, foi feita a coleta da canção que constituirá o objeto de análise (daqui em
  • 21. 21 diante OA) deste trabalho: “uma obra musical, que tenha campos extramusicais relativamente claros de associação” (OLIVEIRA, 2011, p.39) no caso, a canção “Remédio Caseiro”. O procedimento de Comparação entre Objetos (CeO) consiste basicamente numa descrição de música através da própria música, comparando e relacionando o OA com outras obras que possuam certa relevância em relação ao mesmo. O caráter inerentemente não verbal da música é a principal justificativa de Tagg para o uso da CeO pois, segundo o autor, “O eterno dilema do musicólogo é a necessidade de usar palavras para uma arte não verbal e não denotativa” (2003, p.20), porém, tem-se consciência de que o texto da canção também se constitui como um importante fator significativo e algo de fato indissociável da música comercial atual. O primeiro passo do procedimento é estabelecer semelhanças de estrutura musical entre o OA e outras músicas, formando o chamado Material de Comparação entre Objetos (MCeO). As músicas que formam o MCeO devem se restringir a gêneros musicais, estilos e funções relevantes ao OA, desta maneira evitam-se eventuais armadilhas ou enganos no decorrer da análise e nos resultados obtidos, além do fato de que músicas que possuem pouco ou nenhum tipo de envolvimento com o OA não apresentarão semelhanças significativas para o desenvolvimento da análise. Por exemplo, se torna de certo modo inviável comparar elementos do punk rock da banda inglesa Sex Pistols com o baião de Luiz Gonzaga, pois estes se diferem em diversos pontos importantes dentre os quais podemos citar: a localização geográfica, o ano de criação, o contexto político-sócio-cultural que as envolve, a formação instrumental, os padrões estéticos adotados, suas funções, elementos de expressão musical como escalas usadas, compasso, sincopas, timbres, etc. Por este motivo as músicas selecionadas para constituir o MCeO da análise de “Remédio Caseiro” foram coletadas em CDs de bandas nordestinas que mantém proximidade com o OA em certos aspectos como: a influência de manifestações musicais locais e globalizadas, faixa etária do público, formação instrumental, época de atuação, temática de letras, performance, e demais aspectos musicais, chegando aos discos completos Vamonabaia (2003) e Sintonia da Mata (2006) das bandas Os Caipora e Roque Moreira respectivamente, além de outras gravações de bandas diversas que não chegaram a lançar um álbum completo, como por exemplo a banda Sapucaia, e algumas outras bandas da região que preservam as
  • 22. 22 características acima citadas como forma de aumentar o número de exemplos musicais e assim respaldar as estruturas encontradas como musemas, chegando as bandas Dr. Raiz (CE), Lampirônicos (BA), e Chico Science e Nação Zumbi (PE) Em seguida é realizada uma busca no MCeO por elementos musicais ou Itens de Código Musical (ICM) semelhantes aos encontrados no OA, desta forma identificam-se as menores partes de expressão musical significativa destas canções, os chamados musemas, que envolvem aspectos da lista de parâmetros de expressão musical feita anteriormente como, orquestração, tonalidade, andamento, textura, dinâmica, efeitos etc. Para algumas informações específicas acerca da canção estudada foram contatados via internet Júnior B. e Fábio Crazy, respectivamente baixista e vocalista do Narguilé Hidromecânico desde a formação original e Arnaldo Oliveira, ex- percussionista. Para a descrição estésica dos musemas encontrados foram utilizados os comentários de diversas pessoas colhidos no decorrer da escrita do trabalho, por meio de testes de escuta informais onde o voluntário ouvia algum dos musemas e falava suas impressões acerca do mesmo, além das impressões do próprio pesquisador. Desta forma, após a apresentação dos principais fundamentos do método analítico utilizado neste trabalho, podemos afirmar que foco desta pesquisa está sobre a análise musemática do OA, remetendo predominantemente às questões interobjetivas do discurso musical, mas sem de qualquer forma abandonar totalmente as nuances e associações subjetivas inerentes ao método e ao discurso musical.
  • 23. 23 3. CAPÍTULO II “BÁSICO, SIMPLES... NARGUILÉ”. 3.1. NARGUILÉ HIDROMECÂNICO Formado em 1998 na cidade de Teresina, entre as idas e vindas do “Quintal dos Galvão” nas proximidades dos bairros Mafuá e Marquês, o grupo Narguilé Hidromecânico é um conjunto que se propõe6 a fundir e fazer experimentações com gêneros musicais de diversas procedências. Podemos citar entre as influências de gêneros “estrangeiros” o punk rock, o reggae, rap e funk, e dentre as influências locais, o boi, o forró e o samba. Para tanto a banda utilizasse de uma formação instrumental tão diversa quanto são suas influências, ao tradicional “guitarra-baixo- bateria” do rock e suas ramificações são acrescidos instrumentos característicos da música local: zabumba, pandeiro, berimbau, caxixi, triângulo, etc. passando pelas pick-ups e os beats eletrônicos do hip-hop. Em suas letras o Narguilé Hidromecânico trata de situações cotidianas e simples da vida de milhares de piauienses e demonstra também uma ponte entre o espaço urbano e o rural fazendo um paralelo entre tradição e modernidade. Com isso, tornou-se uma referência na música piauiense conquistando espaço nacionalmente através de participações em projetos, festivais e concursos em diversos estados como os citados anteriormente. A banda surge no ambiente de um tradicional reduto cultural da cidade de Teresina: O “Quintal dos Galvão”, a partir dos encontros diários e psicodélicos de Fábio Cristian “Crazy” (Fábio Crazy) com os irmãos Alex e Júnior Galvão. Destes encontros saíram diversas composições, muitas das quais vieram a integrar o repertório não só do Narguilé como também de diversas outras bandas, algumas se tornaram “clássicos” como “Maluco Regulão”, “Forró do Mulambo” e “Maquetes Loucas”. Duas bandas “embrionárias” foram importantes para a formação do grupo, a Calango Gringo que não passou da fase dos ensaios, mas foi responsável por alguns dos já citados hits da banda, “Maluco Regulão” e “Forró do Mulambo” e a banda Tequila formada logo em seguida mas agora com a proposta de fazer shows cover, o que também não deu muito certo pois, o espírito criativo dos integrantes falava mais alto. Sendo assim: 6 Nos últimos anos a banda tem demonstrado em suas performances ao vivo um certo distanciamento destas referências locais, se mantendo essencialmente como uma banda de rock.
  • 24. 24 Dos sobreviventes da ressaca do Tequila surge o Narguilé. A primeira apresentação do grupo foi na sala Torquato Neto (Clube dos Diários, Centro) com o baterista da banda Cobra Criada (baile) Ribamar. Ele que acabou recebendo apelido de Ribatera, não duraria muito tempo na banda. No primeiro show “pra valer” do “Narguilé Hidromecânico”, no projeto Boca da Noite, também no Clube dos Diários, mas no espaço Osório Jr, quem toca bateria é Alexandre Naka. A apresentação acontece no dia 11 de fevereiro de 1998. (LEONEL, 2007, p.46) Durante os seus anos de atuação, vários músicos passaram pelo Narguilé, dentre alguns podemos citar Fábio Crazy, Hernane Felipe, Nando Chá, Jr. B, Cláudio Hammer, Alexandre Naka, Márcio Bigly, André de Sousa, dentre outros. Quanto às discussões acerca das experiências e fusões musicais do grupo com seus passeios pelo baião, rock e hip-hop, fica clara a tendência de associar o estilo da banda ao das bandas recifenses do Movimento Manguebeat. Essa tendência é aceitável e justificável pelo fato de que em ambos os contextos a mistura de elementos regionais com elementos globalizados tornou-se a sua característica mais importante, o eixo central da produção e da estética do Mangue, além do fato de que na década de 1990 o Manguebeat se encontrava em seu auge servindo então como provável influência de muitas outras bandas novas. A banda Narguilé Hidromecânico defende a originalidade de sua obra e se vê não como produto do movimento de Chico Science e sim como uma iniciativa paralela ao movimento, que mantém certos aspectos em comum e que por mera coincidência passaram a produzir música em épocas próximas. Para eles essa mistura de sons e influências já era algo comum no espaço do “Quintal dos Galvão”: A mistura de sonoridades já vinha de antes, desde o quintal. Para Galvão Jr., era algo bem natural que já vinha acontecendo em sua casa há algum tempo. A ideia da existência de uma banda que misturasse um forró ao estilo Genival Lacerda com hardcore até então nem passava pela cabeça deles. A primeira vez que viu a banda Raimundos na TV, Alex vira para o irmão e fala: “– Jr., eu acho que esses caras tão imitando a gente! (risos)”.(LEONEL,2007 p.47) Ainda sobre as prováveis influências do Mangue no som da Narguilé, Fábio Crazy comenta: “Dentro do conceito todo, não tem uma coisa exatamente mensurada, pensada estrategicamente de como é que seria. Essa ligação (com o Mangue Beat) era justamente as influências e não que uma coisa tenha nascido da outra porque em 93 a gente já fazia música lá no
  • 25. 25 quintal do seu Galvão, cara. Em 89, a gente já via nêgo tocando punk rock no quintal da moçada, já ouvia música eletrônica. Sempre ouviu Luiz Gonzaga porque tua mãe gosta, a minha gosta, o meu avô... Na verdade, não existe só uma pessoa tendo as idéias. Elas simplesmente existem e circulam e tem um momento em que elas afloram.” [...] Eu não tô querendo dizer que eu sou um cara foda que nem o Chico Science, não é isso, porque o som dele é muito importante, mas só mais tarde passou a influenciar mais, a princípio não. Quando existe um cara com a linguagem artística semelhante à sua, obviamente você começa a estabelecer uma conexão com aquilo. É natural.” (Fábio Crazy apud LEONEL, 2007. p.48). O primeiro registro fonográfico da banda ocorre quando em 1999, o antropólogo Hermano Viana e os engenheiros de som R. C. Varela e Beto Vilares assistem a um show do Narguilé Hidromecânico e da banda de hardcore Obtus no Bar Elis Regina, em Teresina. Hermano naquela ocasião estava a procura de novas bandas para o projeto MBR (Música do Brasil) e seguia “mapeando novas sonoridades pelo país inteiro.O MBR foi uma série de 15 programas apresentados por Gilberto Gil na MTV” (LEONEL, 2007, p.49), e o Narguilé era justamente o que o produtor/antropólogo procurava. O registro foi realizado com os equipamentos de gravação dos engenheiros de áudio no estúdio de ensaio de Cláudio Hammer, as músicas “Forró do Molambo” e “In Memorian” que já haviam sido gravadas anteriormente também foram adicionadas ao CD que foi batizado com o mesmo nome da banda “Narguilé Hidromecânico”. O Narguilé acabou ficando fora do programa de TV mas manteve contato com Hermano Viana e Beto Vilares o que viria a trazer boas oportunidades no futuro. O CD de 11 faixas ficou entre os mais vendidos em Teresina no ano de 1999. Mais adiante no ano de 2001 o grupo lança seu segundo álbum intitulado de “Poeirão” pelo selo “Cuia Records”. Este disco já conta com um maior rebuscamento técnico resultando numa melhor produção e qualidade de gravação, além de conter hits como “Maquetes Loucas” e “Jumento Bom” que renderam dois clipes de ampla circulação, além de “Presentim”, “Folia de Longe” e a canção núcleo desta pesquisa, “Remédio Caseiro”. É um disco que retrata uma banda mais madura e a consolida como um expoente no cenário musical nordestino e nacional. Sobre esse disco cabe aqui uma longa mas importante citação retirada do blog da banda: “A história desse disco começa em 2000, no Rock in Rio Café da Barra da Tijuca/RJ, na seletiva do concurso ESCALADA DO ROCK. Enganação exposta, burlamos todos as regras do tal concurso aquela noite. Simplificando: anarquisamos o negócio. Fomos cínicos
  • 26. 26 e ácidos na entrevista com a TV, tocamos mais do que o tempo estipulado fazendo os caras desligarem o som do P.A. e o Bernardinho meteu um chutão na batera. E foi naquela noite que perdemos o tal concurso mas conhecemos aquela que viria ser a produtora do segundo disco do Narguilé, o POEIRÃO. Elza Cohen já havia lançado naquela época, através do projeto super demo, bandas como Planet Hemp, Jorge Cabeleira e outras algumas. O disco foi gravado no estúdio do Flávio Canecci, dos Funk Fuckers. Foi época de doideira entre as sessões de gravações em Copacabana, noitadas hardcore na zoeira no Sinuca da Lapa e farras com a gangue dos C.L.O.V.E.R. na Barra da Tijuca. Isso tudo resultou num disco pensado na sua feitura, diferente do primeiro. O conceito do disco gira em torno da relação entre o urbano e o rural sertanejo através de um ônibus de linha que levava o apelido de poeirão, que fazia rota pra Cacimba Velha, localização do sítio onde o repertório do disco foi criado e ensaiado.” (FEDENDO..., 2011). O músico ainda faz uma descrição de cada faixa do disco: A vinheta de abertura do disco, a gravação de um telefonema a cobrar. Síntese do Narguilé naquela altura. Fazia a coisa acontecer mesmo que fosse debitado na conta do próximo! MAQUETES LOUCAS Um rockão básico de 2 acordes com letra redudante, concreta, sem sentido...circular como é a música. Usamos um beat funk na intro e sample de Luiz Gonzaga. Muito boa de tocar ao vivo. REMÉDIO CASEIRO Uma evocação à insurreição sertaneja do cangaço, composta nas farras extremas dos CAIPORA. Pro Narguilé, tomou direção de um porradão punk em escala sertaneja e de dinâmicas e arranjo elaborado. Faz um permeio ingênuo nas brincadeiras de infância de crianças que tem o sertão e sua aridez como playground. CROA A que foi mais longe nesse disco em termos de experimentações e outras maneiras de entender e produzir música. Um bumba meu boi de matraca sampleado sobre uma base de mpc criada pelo Dj Negralha... uma espécie de mantra de evocações de um candomblé eletrônico na coroa do rio Parnaíba. MURIÇOCA Hardcorezinho 100 por hora do tempo dos PIORES que fala de maconha. Criamos essa intro ainda em estúdio com o Flipper cantando um boizinho. A idéia era dar mais impacto quando entra o
  • 27. 27 hardcore. JUMENTO BOM Essa é um míssil. Baião sujo, de letra brutalmente ingênua, que depois vira uma metralhadora hardcore. Essa só dá pra tocar com raiva!! NOME AOS BOYS Essa música é a mais antiga de todo nosso repertório. Foi composta em 1989, ainda nos tempos do power trio punk SEM IDENTIDADE (nome fuleiro esse!). Na versão do Narguilé assumimos em seus riffs a influência RAGE AGAINST THE MACHINE. Há nela também muitos espaços pra experimentações de música nordestina. PRESENTIN Baião + hardcore. Básico, simples...Narguilé. A letra, em estrutura formal de quadras poéticas nordestinas tem um estilo Zé Limeira. Misturando farinha com mandacaru e Bruce Lee. Essa música foi uma festa em estúdio, com participações nos backing vocals de Josh S. e Daniel Hulk. FOLIA DE LONGE Essa eu não sei o que rolou no estúdio. Não é eficiente como é a musica por si só. Uma metáfora através do homem que está entre o urbano e o rural. Tem referências locais na letra. Raimundo Soldado, Maria da Inglaterra, Praça da Bandeira, Quiosque do Dario e Luis do Óleo. PERSEVERANÇA DE CAATINGA Foi composta e produzida totalmente no Rio de Janeiro na época da gravação do disco. Parceria entre mim e Dj Negralha, foi resultado de experiências feitas no mpc dele. Eu fiz a letra e o Negralha sampleou a harmonia de uma gravação tosca dos CAIPORA. Entrou no disco na última hora. MAQUETES LOUCAS (macaco mix) Versão eletro viajandona do Josh Satan. Neurótica, fecha o disco com outro extremento [sic] musical sem descosturar a colcha. Tem samples do Narguilé tentando derrubar um elevador de porta pantográfica num edifício em Copacabana. (FEDENDO..., 2011). Em uma rápida e informal análise do texto de Fábio podemos reunir algumas expressões que facilmente se associam a ideia de hibridismo: “O conceito do disco
  • 28. 28 gira em torno da relação entre o urbano e o rural sertanejo”, “Usamos um beat funk na intro e sample de Luiz Gonzaga”, “Pro Narguilé, tomou direção de um porradão punk em escala sertaneja”, “Uma metáfora através do homem que está entre o urbano e o rural.”, “Baião + hardcore. Básico, simples... Narguilé”. Desta maneira fica evidente que na obra do Narguilé Hidromecânico existem diálogos e interações entre músicas de diferentes contextos e procedências, músicas estas que se aglutinando, se reorganizando e se reinventando, acabam por também produzirem novos significados e vivências, fazendo desta um material relevante para estudos sobre o tema do hibridismo cultural/musical e por isso se justifica o uso da mesma como ponto central da discussão que se desenvolverá nos capítulos seguintes. Para tanto, escolhemos a canção “Remédio Caseiro” segunda faixa do álbum “Poeirão” como música-núcleo da análise que irá se seguir mais adiante, por entender que esta possui perceptíveis campos de associação musical de fácil identificação e análise, esta última fundamentada nas ferramentas teóricas de Philip Tagg. A partir do capítulo a seguir daremos início à análise dos musemas que constroem a canção “Remédio Caseiro”. Antes de mais nada, fez-se necessária uma escuta atenta da canção por diversas vezes em busca de seus elementos significativos procedendo assim a análise, em um primeiro momento, a partir de habilidades e ferramentas próprias da competência estésica como perceber, compreender, lembrar, reconhecer, distinguir sons musicais e suas conotações. Estes elementos foram listados e logo após agrupados em uma linha cronológica de eventos sonoros/musicais. Oliveira aponta para a importância da grafia exata destes eventos sobre a linha cronológica principal: Para que o sincronismo entre estes eventos sonoros seja analítico, seus registros seguem a linha mestra da canção, ou seja, uma “disposição cronológica inequívoca” para que revelem o diálogo entre os elementos que soam simultaneamente ou sua posição no conjunto. (2011, p.40) Assim se montou um quadro de representação gráfica das ocorrências sonoras e musemáticas que basicamente consiste em um painel onde cada ocorrência sonora significativa é grafada exatamente sobre a linha cronológica da canção formando uma espécie de partitura gráfica da obra. De acordo com Tagg: A apresentação gráfica deve incluir as seguintes linhas paralelas: (i) uma Linha do Tempo; (ii) uma Linha da Forma; (iii) uma Linha de
  • 29. 29 Eventos Paramusicais (se for o caso); (iv) uma Linha de Ocorrências Musemáticas. Idealmente, esta partitura gráfica deve ser proporcionalmente cronométrica, de forma que durações iguais de tempo ocupem quantidades iguais do espaço horizontal (2011, p.13) Em seguida foi feita a análise individual dos eventos sonoros encontrados, relacionando estes por anafonia 7 a exemplos similares encontrados em outras canções do MCeO embasando assim a estrutura básica em questão como musema. Logo após, realizou-se a transcrição destes musemas para a notação musical tradicional e a análise estrutural dos mesmos, fazendo uso da competência poiética necessária para este segundo momento que se aproxima mais de uma análise formal. À vista disto, foram obtidos os resultados que serão apresentados a seguir. 7 Analogia em termos sonoros. Neste caso descreve semelhanças entre eventos musicais distintos e suas conotações. Neologismo criado por Philip Tagg.
  • 30. 30 4. CAPÍTULO III ANALISANDO A CANÇÃO 4.1. “REMÉDIO CASEIRO” Nosso objeto de análise é uma canção simples em compasso quaternário, de uso comum na maioria das canções populares atuais. Dividida em três principais sessões (A-B-C), cada uma com suas subdivisões e peculiaridades, mas sem nenhuma grande mudança em termos de tonalidade ou métrica e sim em timbres e conotações subjetivas, e que a um andamento de aproximadamente 130 bpm8 preenche 3'45''9 do CD “Poeirão” com harmonia e melodias construídas sobretudo a partir do modo Mi mixolídio. A instrumentação utilizada consiste em uma peculiar adição de dois trios instrumentais de grande representação simbólica, estética, visual e sonora: o primeiro é o power trio formação clássica e mais simples do rock e seus subgêneros, popularizada em meados da década de 60, consiste na tradicional tríade guitarra, baixo e bateria, podendo haver ou não um quarto integrante como vocalista principal. Bandas como The Jimi Hendrix Experience, The Police, Nirvana, Rush, The Who, Black Sabbath e Led Zeppelin são exemplos de power trio que ajudaram a popularização desta formação. Por outro lado vemos o também tradicional trio nordestino (LINHARES, 2007 p.09) formado por sanfona, zabumba e triângulo. Ainda mais simples que o power trio do rock o trio de instrumentos típicos do nordeste conta com apenas um instrumento harmônico/melódico e dois de percussão, a sua estrutura remonta as bandas de pífanos e grupos instrumentais menores do sertão brasileiro. Diversos grupos se utilizam desta formação instrumental básica as vezes incluindo outros instrumentos de percussão como o pandeiro, agogô, flauta (quem remete aos pífanos) e demais instrumentos apropriados a cada situação. Dentre alguns exemplos podemos citar o Trio Nordestino, Jackson do Pandeiro, Zé do Norte, Marinês, Trio Mossoró, Dominguinhos, e claro Luiz Gonzaga, como artistas e grupos que se utilizaram desta formação instrumental em diversas músicas e discos, além 8 Batidas por minuto. 9 Notação para minutagem da música. Neste caso, representa três minutos e quarenta e cinco segundos.
  • 31. 31 da enorme quantidade de “Trios” que pode ser encontrada numa rápida pesquisa, por exemplo, na internet. Sendo assim a instrumentação completa usada na música é formada por guitarra, baixo e bateria representando do rock e a música globalizada de ampla circulação, além de zabumba e triângulo como os representantes do trio nordestino do forró e das manifestações musicais locais que, dialogando com influências de origens diversas, foram ressignificadas e se transformaram em uma nova manifestação musical híbrida. Ainda sobre os instrumentos, vale ressaltar que os timbres característicos como guitarra distorcida, baixo com reforço de graves e bateria com pegada firme e caixa ligeiramente mais aguda e “seca” (sem muito reverb10 ), também remete a estilos estrangeiros como o já citado rock e principalmente a funk/soul music. Para Fábio Crazy em síntese “Remédio Caseiro” se trata de “um porradão punk em escala sertaneja” com letra ingênua que trata das diversas brincadeiras e traquinagens “de crianças que tem o sertão e sua aridez como playground” além de também fazer citações diretas a Virgulino Ferreira Lampião e ao cangaço, incluindo ai uma clara referência a toada “Mulher Rendeira”, música que foi adaptada ao ritmo do baião urbano por Zé do Norte e foi trilha do filme “O Cangaceiro” de 1953, filme que ganhou a palma de ouro no Festival de Cannes e uma menção especial á esta música (TINHORÃO, 1986 p.226). Abaixo podemos ter uma visão geral destes aspectos a partir da transcrição da letra e da TAB.1 com a Linha de eventos sonoros, acompanhados logo em seguida da discussão acerca dos musemas e partes significativas da música. 10 Efeito de eco de curta duração que pode simular a ambiência natural de diferentes locais, como pequenas salas ou grandes auditórios.
  • 32. 32 “Remédio Caseiro” – Letra: Da vez melhor que eu nadei foi a vez que engoli a piaba que descia viva na minha garganta Da vez melhor que eu voei foi a vez que engoli o coração do passarinho que eu matei com minha baladeira Da vez melhor que eu vi foi da vez que bebi do pus do olho podre de Lampião Virgulino Ferreira, Virgulino Ferreira, Lampião. Olê mulher rendeira, olê mulher rendá Tu me ensina a namorar que eu te carrego no emborná Olê mulher rendeira, olê mulher rendá era a cantiga de vitória que Lampião costumava cantar Virgulino Ferreira, Virgulino Ferreira, Lampião.
  • 33. 33
  • 34. 34 4.1.2. A Vinheta Logo nos primeiros instantes de música somos recepcionados pelo som de uma velha vitrola tocando uma música provavelmente tão velha quanto a própria, e rapidamente somos transportados para o cenário árido do sertão brasileiro, e podemos associar este pequeno recorte de música com tudo mais o que temos de impressão sobre esta região do país, com suas cores, roupas, pessoas, paisagens, etc. A vinheta de abertura da canção é um elemento de importante valor expressivo pois se configura como uma citação direta a um determinado tipo de região e de música, neste caso àquela das bandas de pífanos e forrós do nordeste brasileiro e que carregada de diversos sentidos paramusicais que ao longo das décadas foram associados a esse lugar, serve para “preparar o terreno” e dizer o que está por vir. É como se afirmasse “nós somos daqui, esse é nosso som e é por aqui que nossa música vai caminhar”. O corte súbito da vinheta e a entrada da guitarra distorcida demonstra uma característica das culturas híbridas que é o diálogo entre conceitos antagônicos: tradição e modernidade, local e global, rural e urbano ou acústico e elétrico, conceitos estes que longe de serem totalmente dicotomizados se intercruzam, interseccionam, justapõem e convivem numa mesma heterogeneidade temporal. A guitarra distorcida apesar de não ser elemento de uma tradição musical nordestina se apropria de suas especificidades, o seu “sotaque”, e emprega em seus riffs11 escalas características dos cantos e melodias sertanejas, ao mesmo tempo em que a tradição transformada em sample12 e mesmo antes disso, em registro fonográfico, penetra na modernidade. Além de “Remédio Caseiro”, foram selecionados mais seis exemplos de vinhetas que tem conotações similares. São elas as das canções “Magia Nordestina” e “Animal Animado” ambas do Conjunto Roque Moreira e “Saragateia” da banda Os Caipora como representantes Teresinenses, além de “Caldeirão de Santa Cruz do Deserto” e “Bendito Seja” da banda cearense Dr. Raiz. A TAB. 2 apresenta-as mais 11 Frase musical de curta duração e repetição contínua que se constitui como a principal estrutura reconhecível de uma canção. Ex: Os riffs introdutórios de Smoke on The Water, e Satisfaction, das bandas de rock Deep Purple e Rolling Stones respectivamente. 12 “Amostra” em inglês, em música se refere a pequenos trechos sonoros recortados de obras ou gravações pontuais para posterior reutilização noutra obra musical, não necessariamente no mesmo contexto do original.
  • 35. 35 especificamente: TABELA 2: Vinhetas (mV) 13 MÚSICA/BANDA DESCRIÇÃO DA VINHETA PFMC'S “Remédio Caseiro” – Narguilé Hidromecânico Banda de Pífanos tocando tema alegre com sanfona triângulo e zabumba, ruídos de agulha de vitrola. Zona rural, dança, poeira, terra, festejo, vida simples, alegria, diversão. “Magia Nordestina” – Roque Moreira Trecho de toque de rabeca, com ruído semelhante à de agulha de vitrola. Toque solene de cortejo religioso, lamparinas, canto sertanejo de lamento, fim de tarde, igreja, procissão. “Animal Animado”– Roque Moreira Som de sapos, insetos, pássaros e outros pequenos animais Água, lagoa, riacho, floresta, lama, noite, grama, ambiente natural, zona rural. “Saragateia” – Os Caipora Xote instrumental, com sanfona, zabumba, triângulo mais guitarra com delay14 e baixo elétrico Baile rural, festejos, tranquilidade, vida simples, alegria, diversão. “Caldeirão de Santa Cruz do Deserto” – Dr. Raiz Cantoria religiosa (Hino de São Sebastião) em vozes masculinas a capella e toque de sinos. Zona rural, religiosidade, procissão, velas, imagens religiosas, idosos, tradição. “Bendito Seja” – Dr.Raiz Cantoria religiosa (Bendito de Padre Cícero) em vozes de crianças/adolescentes a capella Zona rural, religiosidade, tradição, missa, velas, imagens religiosas, tradição. Percebemos que em todas as vinhetas existe a conotação de “algo rural”, “do campo” ou “natural” procedendo assim com os locais de origem dos registros, as conotações de cunho religioso, “da igreja”, “missa” e etc. também são recorrentes nos exemplos analisados, o que pode ser considerado natural tendo em vista que a região nordeste até o ano de 2010 era considerada a região mais católica do país 13 Todas as músicas utilizadas neste trabalho estão disponíveis em CD anexo e podem ser consultadas através da lista de faixas na página 63. 14 Efeito de áudio que consiste na repetição de um som com um determinado tempo de atraso em relação ao original, como o eco.
  • 36. 36 com 72,2% de adeptos (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2010), ou seja, as vinhetas são verdadeiros recortes dos ambientes e épocas nas quais a música deseja situar o ouvinte, que através de sua experiência e vivências produz uma série de associações musicais e paramusicais em torno de suas impressões acerca daquela música, do local de onde ela vem, sobre as pessoas que a fazem, as situações em que a ouvem e etc. Constituindo-se assim como um importante material de conotação subjetiva. Infelizmente, apesar da busca feita em diversos discos e de toda a ajuda dos integrantes da banda, até o momento não foi possível definir a que conjunto pertence a música que compõe a vinheta, e nem o nome da mesma. Em conversa num site de relacionamentos sociais, Arnaldo Oliveira ex-percussionista da banda, indicou algumas pistas sobre a obra, segundo o músico se trata de “alguma banda de pífanos do caruaru” cujo nome “tem algo relacionado a Lampião”, informações importantes mas que lamentavelmente ainda não foram o suficiente para a nossa busca. 4.1.3. As Guitarras e o Baixo Após a recepção do ouvinte às impressões iniciais da vinheta de abertura, ocorre uma súbita mudança de cenário com a entrada do riff principal da música (mG1), executado na guitarra com o som distorcido (mT1), mostrando o outro lado do que está em jogo na canção: a articulação de diversos códigos culturais de procedências distintas. O som da guitarra distorcida está ligado sobretudo a marcadores estilísticos do rock e suas variações, apesar de ser popularmente difundido entre guitarristas de todas as vertentes principalmente em momentos de solos e riffs, graças a instrumentistas como Jimi Hendrix grande expoente e popularizador do uso de efeitos. Vargas afirma que “Nos anos 1960, esse músico incorporou à guitarra os mais estranhos sons, retirou dela e da aparelhagem de amplificação todo um arsenal de possibilidades timbrísticas e de ruídos.” (2007, p.126). Com o passar do tempo as distorções foram se tornando cada vez mais “pesadas”15 , através de estilos como hard rock, punk rock, o heavy metal e todas as 15 Exemplo de descritor estésico comumente utilizado para se referir ao som de guitarra com uma distorção muito saturada e grave.
  • 37. 37 suas variantes, e ao mesmo tempo graças a evolução tecnológica na área da música as distorções também se tornaram mais fáceis de controlar e modificar, através de pedais específicos para este efeito com diversos controles de regulagem e demais funções expandido assim o leque de possibilidades timbrísticas do instrumento, isso sem levar em consideração os diversos outros periféricos utilizados na aparelhagem da maior parte dos guitarristas. No rock a guitarra distorcida se constitui como um elemento estético fundamental que se remete a própria música bem como a rebeldia e agressividade a ela atribuídas, existindo também a figura mítica do guitarrista enquanto o “porta-voz” ou “dominador” de toda essa energia e agressividade. A imagem do instrumentista empunhando sua guitarra em meio as grandes multidões é também um elemento estético visual do rock, atingindo nos solos o ápice de sua performance e fruição do público. Assim, “esse instrumento e seu executante tornaram-se índices diretos da estética do rock” (VARGAS, 2007 p.126). Retornando a canção analisada, notamos que o riff principal de “Remédio Caseiro” foi construído sobre a escala de Mi mixolídio (FIG.1), uma das variadas escalas de comum uso na música do nordeste (LINHARES, 2007) (CAMPOS, 2006) e que tem como principal característica o sétimo grau abaixado formando um intervalo de sétima menor (7°m) em relação a tônica. A escala utilizada revela a intenção modal do riff (FIG.2) e se trata de mais uma referência à música nordestina, “o caráter modal das melodias, predominantemente em mixolídio, está presente nas toadas dos violeiros, na sonoridade característica dos pifes” (CAMPOS, 2006, p.37) bem como em composições de Luiz Gonzaga, percussor e popularizador do baião como o conhecemos. FIGURA 1 – Escala de Mi Mixolídio (mE) FIGURA 2 – Riff principal de “Remédio Caseiro” (mG1)
  • 38. 38 Iremos agora nos focar no musema denominado mG1 deste riff que engloba a figura rítmica e a linha melódica característica dos primeiros tempos do seu compasso. Melodicamente o musema original consiste no movimento de 7° menor ascendente, ou seja, o intervalo característico do modo em que foi construído, a partir da nota Mi (sexta corda solta) realizando logo em seguida um movimento descendente por grau conjunto (neste caso a 6° maior). De maneira literal, se trata do movimento da nota Mi até a nota Ré uma oitava acima terminando em Dó sustenido. Este movimento melódico ascendente seguido de um descendente por grau conjunto, pôde ser também percebido em diversos outros fragmentos no MCeO, como demonstram as figuras que iremos ver adiante. A estrutura rítmica tem na síncope16 sua característica principal entendendo sua importância tanto para os ritmos brasileiros como aos demais ritmos afro- americanos, que neste caso, são as matrizes de origem dos ritmos e tradições que dialogam e convergem na composição em questão. A figura rítmica básica consiste na colcheia pontuada mais uma semicolcheia ligada a uma figura de igual ou maior duração ( ) formando um dos principais padrões rítmicos do baião (GIFFONI, 1997, p.34), porém, apesar da especificidade deste padrão o que se percebe é que há na verdade uma intenção funk no contexto geral do riff. O funk é um dos gêneros derivados da soul music “forma surgida no início dos anos 1960 no sul dos EUA, derivada também do rythm and blues e do gospel” (VARGAS, 2007, p. 128) e consiste em uma das variações mais dançantes deste estilo. Um de seus principais traços é a forma percussiva de tocar o instrumento desenvolvida por guitarristas e baixistas, através de técnicas como o slap17 , o scratch guitar18 e as muted notes e ghost notes19 , além da presença marcante e proeminente de linhas de baixo que sustentam toda a música. Na verdade, o baixo está para o funk assim como a 16 Caracteriza-se pelo prolongamento do tempo forte, ou parte forte de tempo até o tempo fraco, ou parte fraca do tempo do pulso seguinte, criando um deslocamento na acentuação rítmica. 17 Técnica de efeito percussivo, “Consiste em bater a lateral do dedão da mão direita nas cordas superiores e “estilingar” com o dedo indicador as inferiores, substituindo o tradicional pizzicato” (VARGAS, 2007, p. 129) 18 Técnica da guitarra também de efeito percussivo que consiste em tocar acordes formados nas três cordas mais agudas do instrumento pressionando-as rapidamente com pouca ou nenhuma sustentação abafando as cordas logo em seguida, enquanto a mão direita prossegue no seu padrão rítmico ou “batida” 19 “Notas abafadas” e “Notas fantasmas” respectivamente. Tratam-se de notas ou cordas abafadas com a mão esquerda ou direita do instrumentista novamente com a intenção de criar efeitos percussivos.
  • 39. 39 guitarra está para o rock, em níveis de expressão e importância, assim se no rock temos na imagem do guitarrista e no som distorcido da guitarra seus principais campos de associação visual e sonoro, é no funk que contrabaixo e contrabaixista encontram-se como os responsáveis pela condução de toda a banda e como símbolos de um movimento musical. Ainda sobre o funk e a soul music, Vargas diz que estes estilos: Enquadrados em compassos quaternários, têm uma batida pulsante e, normalmente, o ritmo é dinamizado por síncopes feitas pelo baixo. Na bateria, a métrica é regular, porém com leves alterações sentidas por toques de bumbo em contratempo ou síncope. (2007, p.129) E sobre os aspectos rítmicos das levadas sincopadas do baixo Savaglia, se referindo aos músicos da banda de James Brown, afirma que os baixistas: […] valorizavam as síncopas e o uso de contratempos, tão comuns na soul music. Além disso apostaram em uma batida muito mais pesada, não raro, repetindo a figura rítmica de um único compasso durante toda uma música, com o objetivo de tornar os grooves20 de baixo e bateria hipnóticos (s.d., p.18). Assim a guitarra de “Remédio Caseiro” em seu riff inicial se apropria das síncopes e dos efeitos percussivos das levadas de baixo da funk music através de muted notes para produzir seu próprio groove, tanto que dentre os exemplos equivalentes encontrados no MCeO dois se localizam nas linhas de baixo de músicas que tem uma maior intenção funk. São elas “Animal Animado” do Conjunto Roque Moreira e “Banditismo por uma questão de classe” de Chico Science e Nação Zumbi além de “Morro do Querosene” da banda teresinense Sapucaia e novamente no baixo em “Caldeirão da Santa Cruz do Deserto” da banda cearense Dr.Raiz. A seguir temos a transcrição destes elementos como forma de facilitar a visualização destas ocorrências musemáticas (FIG.4): 20 Groove: termo da língua inglesa que literalmente significa “sulco”. Em música é uma expressão sem tradução exata para o português e pode significar dentre outras coisas “levada”, “swing”, “balanço”, “condução”, “gingado” etc.
  • 40. 40 FIGURA 3 – Ocorrências do Musema mG1 A linha de baixo de “Remédio Caseiro” é uma variação ainda mais sincopada do riff principal da música (FIG. 4), criando assim mais movimento e mantendo o baixo em seu posto de condutor da levada. Começa a se desenvolver a partir dos 0'39'' quando a guitarra passa a executar repetidas vezes apenas o musema mG1 abrindo espaço para o baixo aparecer em destaque, característica esta que novamente remonta ao funk como afirma Vargas quando diz que os acompanhamentos de guitarra deste estilo: […] não são simplesmente encadeamentos de acordes que formam a estrutura harmônica da canção, mas séries de riffs, fraseados de aspecto rítmico sem ter única e necessariamente a finalidade harmônica. (2007, p.125)
  • 41. 41 FIGURA 4 – Variação sobre o riff original (mB1) Em outro momento (2'17'') o baixo funciona como reforço da figura rítmica (FIG. 5) base do baião, já citada anteriormente, reforçando os toques graves da zambumba e do bumbo da bateria, aspecto este conhecido como “the lock” ou traduzindo ao pé da letra “cadeado”, e se refere “a sincronização do baixo com o bumbo da bateria, criando assim um efeito dançante […] No funk, este recurso virou uma verdadeira obsessão” (SAVAGLIA, s.d., p.07). FIGURA 5 – Reforço do bumbo e zabumba (mB2) Por último, temos o musema mT2 referente ao timbre de guitarra limpa, ou seja, sem distorção, que se inicia aos 2‟15”. O uso da guitarra limpa nesta seção está adequado em relação aos outros elementos musicais utilizados e à sonoridade geral, tendo em vista que é neste trecho que há a maior presença de referências e marcadores estilísticos do baião, assim, junto à melodia da guitarra a bateria se reduz apenas a marcação do tempo, o baixo se apropria das síncopes executadas pela zabumba, e o agogô entra em cena. O timbre limpo também funciona como elemento contrastante à seção posterior que se caracteriza como um punk rock, estilo que surgiu em meados da década de 70 e que tem como característica músicas rápidas e geralmente com letras de protesto. Sobre o punk rock Teixeira diz: A primeira manifestação punk se deu nos Estados Unidos nos subúrbios da parte leste de Nova York e foi absorvida pouco tempo depois na Inglaterra, onde obteve proporções radicais e complexas. O punk rock é um revivalismo da cultura rock’ n roll, posta-se como um tipo de música curta, rápida, de poucos acordes, simples e dançante, contrapondo com o rock tradicional que, submetido à indústria fonográfica, havia se transformado numa enorme fonte de empreendimentos comerciais e lucrativos. (2007, pag. 04)
  • 42. 42 A melodia executada pelo instrumento é novamente modal, porém agora na escala de Mi Lídio (FIG.6), cujo aspecto principal é a presença do intervalo de quarta aumentada a partir da tônica (4°A), e se configura como mais uma das escalas modais de comum uso na música brasileira e nordestina (LINHARES, 2007). É neste trecho também que ocorre a referência à canção “Mulher Rendeira”. Abaixo, a transcrição do trecho (FIG.7). FIGURA 6 – Modo Lídio (mL) 1 FIGURA 7 – Melodia da Guitarra Limpa Podemos perceber que a linha melódica é composta basicamente por duas estruturas principais dispostas nos dois primeiros compassos. A primeira (compasso 1) é um fragmento que se repete por todo o decorrer do tema como podemos claramente perceber na visualização da partitura, e se trata de um motivo simples com poucas notas que se movimentam por graus conjuntos sem ultrapassar uma oitava, conduzindo à segunda estrutura, um salto ascendente num intervalo de décima primeira justa (11°J) que varia de nota de partida para se adequar ao contexto da harmonia em cada momento. A seguir podemos observar na TAB.3 um
  • 43. 43 apanhado geral dos musemas de guitarra e baixo. TABELA 3 – Musemas Guitarra e Baixo MUSEMA DESCRIÇÃO PFMC'S mG1 Salto ascendente a partir da tônica seguido de movimento descendente por grau conjunto. Síncope. Movimento, funk, soul, discoteca, dança, festa, globo de luz, quente, pra cima. mT1 Refere-se ao timbre de guitarra distorcida Força, agressividade, ruído, ronco de motor, atitude, poder, cidade grande, sujeira, peso. mT2 Refere-se ao timbre de guitarra limpa Brilho, semelhante ao violão, mais calmo, limpo, leve, cidade. mE e mL Modo Mixolídio – T 2M 3M 4J 5J 6M 7m Modo Lídio – T 2M 3M 4ª 5J 6M 7M Nordeste, pífanos, cantador, forró, sanfona, quadrilha, festa. mB1 Variação do mG1, mais sincopada. Movimento, dança, pra frente, gingado, festa. mB2 Figura rítmica própria do baião. Forró, dança, nordeste, festa, animação, movimento. 4.1.4. Bateria e Percussões Como citado anteriormente, em “Remédio Caseiro” são utilizados quatro instrumentos de percussão, são eles: bateria, zabumba, triângulo e agogô, instrumentos estes que juntos formam uma intricada e interessante estrutura rítmica que transita entre o rock e ritmos nordestinos conduzindo o desenvolvimento da música. As percussões entram em cena a partir dos 0‟17‟‟ acompanhadas da guitarra principal, o contrabaixo e uma guitarra secundária, que tocam juntas o mesmo ritmo, pontuando o riff principal com a figura rítmica característica do baião, a colcheia pontuada–semicolcheia prolongada ( ) (GIFFONI, 1997) (CAMPOS, 2006) e a síncope semicolcheia–colcheia–semicolcheia ( ), ambas figuras rítmicas de grande relevância para a nossa música:
  • 44. 44 “Como explica Sandroni, desde o século XIX, a síncope aparece como uma marca registrada da música brasileira. Ela aparece também como uma característica que define a música popular brasileira nos estudos de Mário de Andrade [...]” (CAMPOS, 2006, p.29) Na bateria o uso do tambor mais grave remete sonoramente ao toque das alfaias, grandes tambores de madeira usados nos desfiles de maracatu21 e também nas canções do grupo pernambucano Chico Science e Nação Zumbi, referência nas experimentações e fusões musicais entre ritmos locais e globais. Também pode ser associado aos toques da zabumba, instrumento que geralmente se encarrega da execução das síncopes citadas acima nas levadas do baião e demais ritmos nordestinos, dividindo estas síncopes entre a membrana superior que possui uma pele mais grossa e é tocada por uma baqueta com abafador chamada de “boneco”, e que, portanto, produz um som mais grave e a membrana inferior, com uma pele mais fina, tocada com uma baqueta que se assemelha a uma vareta chamada de “bacalhau”, produzindo um som mais agudo (CAMPOS, 2006). Percebeu-se que este evento sonoro, descrito adiante como musema, mA, é bastante recorrente em aberturas de diversas outras canções do MCeO, a qual poderemos visualizar mais adiante. Prosseguindo, aos 0‟39‟‟, temos a entrada da bateria na levada principal da música, que consiste numa adaptação da célula básica do baião tocada pela zabumba, subdividindo-a entre o bumbo (como a pele grave da zabumba) e a caixa da bateria (como a pele aguda), porém com uma peculiaridade: a batida da pele mais aguda, que originalmente cairia sobre a parte fraca do segundo tempo, dado o prolongamento característico do primeiro, é deslocada para a parte forte. Em outras palavras, a caixa da bateria abandona o contratempo típico executado pelo toque agudo da zabumba, levando assim a “acentuações de caixa “aberta” no 2º e 4º tempos (típicas tanto do soul quanto da música pop).” (GONÇALVES, 2009, p.323). Segundo Starr: A maioria das batidas de rock baseiam-se, de uma forma ou de outra, neste ritmo. De certo modo, você poderia considerar este ritmo como a pedra angular da bateria rock. [...] o bumbo tocando nos 21 “[...] folguedo pernambucano, muito vinculado a cidade de Recife, mas também presente de maneira tênue em Alagoas e na Paraíba. São agremiações e blocos que, desde meados do século XIX, saem no Carnaval comemorando a coroação do Rei e Rainha negros, embalados por uma música de forte ritmo sincopado e com marcante presença de instrumentos de percussão.” (VARGAS, 2007, p. 116)
  • 45. 45 tempos um e três e a caixa nos tempos dois e quatro. Dezenas de milhares de canções de rock usam isto como o suporte rítmico principal, apesar de que variações podem ser usadas para apimentar este padrão.22 (2009, tradução nossa). Assim a figura básica do baião perde o seu prolongamento natural na segunda metade de seu primeiro tempo para ceder lugar a acentuação do rock no segundo e no quarto tempo, o que também implica numa mudança métrica, transformando o tradicional 2/4 de diversas manifestações musicais locais (samba, frevo, maracatu, etc.) (GIFFONI, 1997) em um 4/4, métrica regular da maioria das canções pop atuais. Abaixo, as figuras FIG. 9, FIG. 10 e FIG.11 ajudam a visualizar esta fusão: FIGURA 8 – Ritmo Básico do Rock (STARR, 2009). FIGURA 9 – Ritmo básico do baião na zabumba FIGURA 10 – Bateria de “Remédio Caseiro”. 22 “Most rock beats are based, one way or another, on this beat. In a sense, you could consider this beat to be the cornerstone of rock drumming. (…) the bass drum playing on beats one and three and the snare drum playing on beats two and four. Tens of thousands of rock songs use this as its rhythmical backbone, even though variations may be used to spice up this pattern.”
  • 46. 46 À levada de bateria ainda se misturam zabumba e triângulo, tornando a seção rítmica ainda mais complexa com a adição do xaxado: Originalmente, o xaxado era uma dança executada apenas por “cabra macho”, no sertão de Pernambuco, sua disseminação por todo o nordeste é atribuída ao bando de Lampião [...] Era dança individual, em círculos, o arrastado das sandálias (xá-xá) caracterizando o nome xaxado. Mas, pela voz do próprio [Luiz] Gonzaga, Jackson do Pandeiro e outros compositores, o xaxado também se incorporou ao universo do forró, transformando-se em “xaxado urbano”, dança de salão com presença feminina, de par enlaçado. O ritmo assemelha-se ao do baião, mas apresenta andamento um pouco mais rápido e mais variações rítmicas. (CAMPOS, 2006, p.38) Dada esta ligação histórica entre a dança e o bando de Lampião o xaxado se constitui como mais uma referência ao cangaço, tema que também permeia a letra da canção. Abaixo seguem as transcrições do ritmo de xaxado (FIG.11) e a comparação com a levada de zabumba de “Remédio Caseiro” (FIG.12). FIGURA 11 – Xaxado 23 (ROCHA, s.d. apud CAMPOS, 2006, p.38) 24 FIGURA 12 – Levada de Zabumba de “Remédio Caseiro” Adiante temos a transcrição de zabumba, bateria e triângulo juntos, o que nos oferece uma visão geral de como estes instrumentos convergem simultaneamente no groove de “Remédio Caseiro” (FIG.13). 23 Optou-se por adaptar a grafia da transcrição original feita por Rocha à grafia já utilizada neste texto por questões de normatização do trabalho e como forma de facilitar a leitura e o entendimento dos exemplos. Para mais informações sobre a grafia original consultar Campos, 2006, p. 36. 24 ROCHA, Eder “o”. s.d. Zabumba moderno. Pernambuco: Funcultura.
  • 47. 47 FIGURA 13 – Groove de “Remédio Caseiro”. É interessante perceber como estes padrões distintos dialogam, se complementam e se entrelaçam formando um rico contraponto rítmico. No início do compasso (primeiro tempo) zabumba e bumbo - perdão pela cacofonia – tocam juntos a fatigada figura colcheia pontuada-semicolcheia, acompanhados pelo triângulo em seu ostinato25 de semicolcheias, com as duas primeiras abafadas e as duas últimas soltas, efeito que causa a acentuação do contratempo. Da mesma forma no fim do compasso (quarto tempo) zabumba e bateria caminham lado a lado, compartilhando duas colcheias, sendo a primeira acentuada pela bateria com o toque da caixa. É no meio do compasso (tempos dois e três) que ocorrem os contrapontos mais interessantes, principalmente entre zambumba e bateria. No segundo tempo caixa e pele aguda tocam juntas uma colcheia em cima da parte forte do tempo, caminhando logo em seguida, a bateria, para uma segunda colcheia no bumbo, já a zabumba subdivide esta segunda colcheia a bipartindo em duas semicolcheias, sendo uma ocupada novamente pelo toque agudo e a outra pelo toque grave. O toque grave da zabumba neste trecho pode ser entendido como uma apojatura do toque do bumbo que vem logo em seguida no início do terceiro tempo. Em seguida (terceiro tempo) o bumbo regressa a figura do baião enquanto a zabumba se 25 Em música, ostinato é um termo que se refere a qualquer padrão, melódico ou rítmico, que é repetido persistentemente.
  • 48. 48 encarrega da síncope semicolcheia-colcheia-semicolcheia o que acaba fazendo com que o toque grave do instrumento coincida com o do bumbo e o agudo dê mais movimento ao groove com seu deslocamento. Outra particularidade relevante se encontra no fato de que no ritmo do xaxado também não há o prolongamento característico, o que faz com que as batidas agudas da zabumba coincidam com as acentuações da caixa da bateria, e as graves com os toques de bumbo, possibilitando assim um maior “entrosamento” entre os dois instrumentos e a fluência da condução, que somadas ao baixo possibilitam o efeito “the lock” coeso e dançante da funk music como descrito na página 41. Na parte “B” a bateria perde espaço para as percussões, e o agogô entra em cena prolongando a parte fraca dos tempos um e três (FIG.14). FIGURA 14 – Toque de agogô À bateria fica designada a função de marcar os tempos do compasso com o chimbal, soando como os pratos das bandas de pífanos que se reservam a mesma função. Após o interlúdio uma virada de bateria marca a transição para a parte “C” da música, momento em que as percussões perdem espaço e a bateria comanda a levada do punk rock que se trata de uma variação do rock comum, mas num andamento mais acelerado. Uma das características deste estilo musical é a sua simplicidade técnica fazendo com que a levada seja “crua” e direta, também é bastante comum o uso de andamentos extremamente acelerados principalmente no hardcore, uma variação do punk ainda mais rápida e agressiva, cujo ritmo básico é aquele de rock já apresentado acima. Na TAB.4, referente ao musema mA, temos uma lista de músicas do material de comparação que possuem eventos sonoros similares ao da descrição do musema: “Batidas sincopadas de percussão e/ou bateria na introdução da música marcando os riffs “, junto com a transcrição destes eventos. Já a TAB.5 refere-se ao musema “mBT”, que engloba todas as interações e o jogo rítmico entre bateria e percussão, abrangendo padrões e toques de diferentes proveniências. Apesar de
  • 49. 49 entender que nem sempre estas interações e diálogos se darão exatamente como ocorre em “Remédio Caseiro” (no caso, envolvendo xaxado e rock) foi necessário aglutinar em um único musema a ideia geral em questão, que é a da confluência entre ritmos distintos resultando em um novo tipo de levada rítmica, tendo em vista que a análise minuciosa de cada esquema encontrado levaria a uma longa pesquisa acerca de todos os seus aspectos, o que não compete ao trabalho em questão, já que este se concentra em seu objeto de análise, a canção “Remédio Caseiro”. Como forma de manter o material de comparação mais próximo do objeto de análise, optou-se por tratar apenas de canções que possuíssem pelo menos zabumba e bateria no instrumental. Tabela 4- Ocorrências do musema mA MUSEMA DESCRIÇÃO TRANSCRIÇÃO mA Batidas sincopadas de percussão e/ou bateria na introdução da música marcando os riffs MÚSICA TRANSCRIÇÃO “Crepúsculo” - Roque Moreira “Boi de Pancadaria” - Roque Moreira “Precisando ganhar dinheiro” - Os Caipora “Presentim”–Os Caipora “Pulo do Gato” - Sapucaia
  • 50. 50 Tabela 5 – Ocorrências do musema mBT MUSEMA DESCRIÇÃO mBT Refere-se a soma de bateria mais instrumentos de percussão diversos executando fusões entre elementos rítmicos de procedências distintas MÚSICA RITMOS “Musico a Música - Roque Moreira” Xote / Reggae “Curupira – Lampirônicos” Xaxado / Rock “Ligou pra me Dizer – Lampirônicos” Xote / Rock “Malafronte – Sapucaia” Xaxado / Rock 4.1.5. Um pouco sobre a Voz A voz sem dúvida é um aspecto válido para esta análise, por se tratar de um relevante elemento de construção de significados e associações musicais e também, é claro, paramusicais. Buscou-se neste pequeno recorte, uma análise dos elementos estruturais da melodia cantada - escalas, ritmos, contorno melódico e conotações paramusicais observando como esta voz se desdobra pelas seções da música, ajudando a compor as sonoridades e os cenários que cada uma deseja transmitir, excluindo-se alguns outros parâmetros de importância para uma futura análise mais aprofundada como, a entonação, prosódia, impostação, extensão e o sotaque que neste caso poderia se configurar como musema. Analisando em um primeiro momento através da escuta podemos perceber que o canto em “Remédio Caseiro” trás consigo nuances da embolada: Gênero musical que teve origem no Nordeste brasileiro, aparecendo mais frequentemente na zona litorânea e mais raramente na zona rural, suas características principais incluem uma melodia mais ou menos declamatória, em valores rápidos e intervalos curtos. (EMBOLADA, s.d.) Os descritores musicais “melodia mais ou menos declamatória”, “valores rápidos” e “intervalos curtos” citados acima, se aplicam adequadamente quando contrapostos ao contorno da voz no decorrer da canção estudada. A melodia declamada transita por volta do modo mixolídio, o qual já se abordou previamente no tópico acerca da guitarra e baixo, se movendo na maior parte do tempo por
  • 51. 51 intervalos curtos e num ritmo constante, ritmo este que chama a atenção por ser formado principalmente por tercinas, quiálteras formadas por três colcheias, entrando em conflito com a divisão tradicional binária de cada tempo estabelecida pelo compasso, que neste caso, seria de apenas duas colcheias. A melodia começa “escorregando” pela 7° menor (Ré), nota característica do modo, e persiste na nota Mi até o fim do verso onde segue descendentemente para a nota Si. No trecho em que a harmonia cromática e descendente de guitarra e baixo entram em cena a voz acompanha o movimento cantando a tônica ou terça dos acordes G - F# - F e E respectivamente, todos maiores, passando pela nota Lá #, típica de outro modo estudado, o Mi Lídio. Percebe-se também a presença de duas vozes que cantam simultaneamente em uníssono durante toda a seção “A”, se trata da própria voz de Fábio Crazy duplicada em uma sobreposição de dois takes (tomadas de gravação) diferentes. Na parte “B” da música, apenas uma das vozes permanece, e soa de uma forma mais “preguiçosa”, mais contida e grave em relação ao trecho anterior, como alguém que murmura uma velha canção sobre o modo lídio. De certa forma, a escolha deste caráter vocal é semelhante à decisão de utilizar nesta mesma passagem apenas o timbre limpo da guitarra e manter a bateria apenas marcando o tempo, medidas que tem como propósito criar uma atmosfera contrastante à seção explosiva e movimentada que vem logo em seguida. Assim como a guitarra perde sua distorção, a voz “abaixa o tom” e se contem como se guardasse suas forças para a seção seguinte. Enfim a parte “C”, um punk rock onde a voz pode enfim liberar toda a energia contida há alguns instantes atrás. O punk e sua versão ainda mais rápida, o hardcore, tem no vocal mais agressivo e por vezes gritado um de seus traços estéticos, reflexo de suas músicas de protesto e da insatisfação exposta em seus versos. A vocalização mais agressiva também entra de acordo com a sonoridade geral da banda, por vezes bastante ruidosa por conta de distorções e o uso constante de pratos de ataque e chimbal aberto na bateria. O mais importante para este estilo é transmitir a energia, a intensidade e a mensagem de suas músicas, em detrimento da afinação vocal, ou execução perfeita dos instrumentos, que geralmente são aqueles do power trio, guitarra, baixo e bateria. A seguir a FIG.15 apresenta a melodia principal, da parte “A”, da música.
  • 52. 52 FIGURA 15 – Melodia vocal “Remédio Caseiro”, Parte “A”.
  • 53. 53 Abaixo, para efeito ilustrativo do uso de notas repetidas na embolada, temos uma comparação entre a linha melódica de “Remédio Caseiro” (FIG.16) e trechos de emboladas coletados por Ulhôa (FIG.17 e FIG.18): FIGURA 16 – Primeira estrofe de “Remédio Caseiro” FIGURA – 17 “Tamanquêro eu quero um pa” (coco-embolada) por Sebastião Alves Feitosa e José Alves Silva (ULHÔA, 2003, p.59) FIGURA 18 – “Eu nunca posso perder” (coco) por Frank e Nazah (ULHÔA, 2003, p.59) Expostas as caracterizações e comparações, passaremos agora a uma breve argumentação acerca dos elementos híbridos encontrados, com o intuito de contextualizar os exemplos com o conceito de hibridismo cultural. 4.2. DELINEAMENTO DE HIBRIDISMOS DE REMÉDIO CASEIRO Após a minuciosa análise dos eventos sonoros significativos da canção e a designação de seus musemas, podemos neste capítulo tecer alguns comentários sobre como se dá esta confluência de ritmos e elementos estéticos de gêneros musicais distintos, e as suas relações entre o local e o global. Como visto as estruturas musicais e o processo composicional de Remédio Caseiro engloba uma série de apropriações e ressignficações de determinados elementos estéticos de gêneros como o rock, o funk, o baião e o xaxado, produzindo um novo gênero
  • 54. 54 híbrido que conta com algumas das especificidades de seus gêneros base. Vale ressaltar que “os dados não estão colocados no processo de hibridação de forma “pura” e substancial, mas já são ou foram objetos de outras misturas” (VARGAS, 2007, p. 24), ou seja, esta aglutinação de influências não advém de gêneros originais ou totalmente puros, os estilos que se fundem na nova composição também são hibridizados em diferentes níveis e diferentes formas, como o rock, por exemplo, que surge a partir das interações entre o blues, country e o rythm and blues. Através da análise podemos perceber certas particularidades deste processo de hibridação musical como a apropriação de escalas, instrumentos, ritmos e síncopes características dos gêneros locais, e de timbres, acentos métricos, efeitos de áudio e certas particularidades idiomáticas de guitarra e baixo (como as muted notes) dos gêneros globalizados. Acerca desta globalização de determinadas músicas e gêneros, é pertinente abrir um parênteses para compreendermos que a influência da indústria fonográfica de grandes potências comerciais como os E.U.A. é a peça chave para compreender este fenômeno. Como explica Vargas quando afirma que: [...] as músicas que alcançaram o mercado fonográfico norte-americano tornaram-se globalizadas pela força da dinâmica dessa indústria cultural contemporânea. Não à toa, essa mesma indústria criou o termo world music para definir e rotular “gêneros étnicos” de vários países encampados por ela para o mercado consumidor (VARGAS, 2007, p. 28). Desta maneira, podemos entender que a desterritorialização destas práticas musicais através do crescimento, produção e difusão em larga escala da indústria fonográfica moderna, é ferramenta essencial para que a hibridação ocorra. Esta mesma indústria também pôde se apropriar de práticas comumente chamadas de tradicionais ou folclóricas e expandir sua circulação, tanto em âmbito global na denominada world music, como em âmbito local. Foi o que fez Luiz Gonzaga ao trazer o ritmo do baião ao rádio e aos grandes centros nacionais, pois: Até então, o baião era restrito ao interior do nordeste e só chegaria à música popular brasileira urbana com Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. A dupla grava em 1946 seu primeiro baião, intitulado Baião, de grande sucesso nacional, divulgando o gênero para além das fronteiras do nordeste brasileiro. (LINHARES, 2007, p. 08)
  • 55. 55 Estas conclusões apontam para a multiplicidade de caminhos traçados pela hibridação, onde uma visão simplista, dicotômica e linear da história não é capaz de abarcar todas as possibilidades e percursos exequíveis, onde até mesmo o que se tinha dicotomicamente bem definido como tradicional/original ou moderno/derivado já não tem mais um delineamento bem claro, e não pode ser definido (numa visão linear) apenas por sua localização cronológica, “como se um dos „passados‟ fosse mais importante e verdadeiro (original e essencial) que os „outros‟” (VARGAS, 2007, p.20), pois sendo o híbrido um estado de heterogeneidade multitemporal, os outros passados “não desaparecem em definitivo; ao contrário, a todo instante teimam em se expressar, cruzar, sobrepor, e desviar daquilo que as teorias lineares evolutivas tendem a ordenar.” (GRUZINSKI26 , 2001, p.58 apud VARGAS, 2007, p.20) Assim os conceitos de tradicional e moderno, segundo Vargas, não se aplicam mais, pois só podem ser entendidos pelo critério cronológico linear da atual música pop. O autor problematiza e aponta uma solução: O que gêneros como o rock e o rap teriam de “moderno” em relação ao maracatu ou ao coco? Na verdade, ambos são produtos de tradições distintas, de processos históricos e musicais ocorridos em locais diferentes e com sentidos também diversos [...] minha tendência não é definir as músicas como “tradicionais” ou “modernas”, termos mais vinculados ao enfoque racional-evolucionista ocidental, mas como produtos de tradições distintas, sejam as formas mais locais, sejam as que ganharam as estruturas globalizadas. (VARGAS, 2007, p.28) Então podemos chegar à conclusão de que em Remédio Caseiro ocorre uma fusão entre práticas musicais de tradições distintas, entendo que o termo “tradições” neste caso não configura a ideia de manifestações originais, “puras” e “verdadeiras” do fenômeno em questão, e sim de que há em determinado contexto e local, uma marcante continuidade ou permanência daquele modo de fazer e se pensar a música. Na análise de Tagg ao levar em consideração a recepção do ouvinte e os significados ou impressões do mesmo acerca daquela música, teremos em uma canção híbrida, um quantidade de associações musicais e paramusicais tão diversas quanto são as músicas que dialogam na composição, pois entendendo que cada elemento musical carrega consigo um significado ou um conjunto de associações diretas e indiretas, cada elemento estrutural, textual, rítmico, melódico, textural, timbrístico, instrumental, etc. se apresenta como todo um universo de possibilidades 26 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
  • 56. 56 e caminhos a seguir, cada qual com suas peculiaridades a partir da percepção de quem a ouve, em síntese “o híbrido não é resultado de nenhum aspecto e nem se reduz ao que é único, tende a se mostrar por várias facetas, cada uma de origens distintas” (VARGAS, 2007, p.) Quanto ao valor ou caráter destas fusões, não cabe a nós definir se estas mesclagens, num discurso conservador, são “boas” ou “más” para a preservação e manutenção de nossa cultura e identidades tradicionais. “Más” por “contaminar” a manifestação popular tradicional com a influência estrangeira da cultura de massa deturpando assim seu sentido original, ou “boas” por ressignificar estas tradições, inserindo-as no contexto da modernidade, remodelando seus sentidos e aplicações de acordo com a visão de mundo da sociedade em que estas se incluem. Para Canclini, “a noção de hibridação (...) é uma noção descritiva, caracteriza processos sociais em que se dão cruzamentos, intersecções, sem nos permitir estabelecer o caráter dessas intersecções ou dessas hibridações” (CANCLINI, 2009, p.9). Desta maneira, a pergunta que se faz quanto a esses processos não é “por que acontecem?” e sim “quando, onde e de que forma acontecem?”. Desta maneira, os aspectos que se intercruzam e convergem em Remédio Caseiro podem ser, em síntese, assim listados:  Formação instrumental que mescla o power trio, formado por guitarra, baixo e bateria com o “trio nordestino” composto por zabumba, triângulo e sanfona.  Uso do timbre de guitarra distorcida, marcador estilístico do rock e suas vertentes.  Modalismo na composição das linhas melódicas com o uso de modos característicos da música nordestina como o lídio e mixolídio.  Levada “funkeada” no riff de guitarra e na condução do baixo com uso do efeito percussivo de muted notes.  Adequação do ritmo do baião executado pela bateria para a acentuação característica do rock, nos tempos dois e quatro.  Uso do ritmo de xaxado na zabumba se mesclando à condução rítmica mista da bateria  Canto que se aproxima dos padrões rítmicos e melódicos da embolada.  Referências ao punk rock e sua variação mais acelerada o hardcore.
  • 57. 57 Basicamente seriam estes os elementos que mesclados e sobrepostos se transformam na canção Remédio Caseiro, envolvendo, entre os ritmos globalizados, elementos do funk e do rock, e entre os ritmos locais o baião e o xaxado.