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Ficha de Trabalho
Língua Portuguesa
Prof.ª Paula Marçal

O homem

José Manuel dos Santos (www.expresso.pt)
1

Apanhou o autocarro. Durante a viagem, achou que as pessoas o olhavam, se ele não as
olhava, e não o olhavam, se ele as olhava. Isso incomodou-o. Quando o autocarro estava a chegar
à paragem onde queria sair, tocou a campainha.

Na madrugada tão escura que parecia continuar a noite, o homem saiu de casa com a
5 gabardina vestida e o chapéu de chuva na mão gelada. Morava num daqueles sítios onde moram
aqueles que não podem morar noutro sítio. Quando pôs o pé na rua molhada, o frio de fora
juntou-se ao frio de dentro. Andou algum tempo e veio-lhe a vontade de beber qualquer coisa
quente. Passou por um café, mas estava tão lúgubre e deserto que, só de o olhar, se arrepiou.
Continuou a andar e a tossir a sua tosse seca e nervosa. A certa altura, viu uma pastelaria que lhe
10 pareceu quente, iluminada e confortável. Entrou nela como num abrigo. Caminhou até ao balcão,
onde, atarefados, três empregados andavam de um lado para o outro. Dirigiu-se a um deles,
murmurando "bom dia", e pediu, com uma voz que despertava, um galão e uma torrada. Ao fazer
o pedido, esfregou, com rapidez e repetição, as mãos uma na outra. O empregado olhou-o,
continuando a fazer o que estava a fazer. O tempo passava e, em frente do homem que esperava,
15 o balcão permanecia vazio. Pensou: "Há gente à minha frente..." E fez da sua espera paciência. O
tempo continuava a passar e nada lhe era servido. Tentava justificar o que acontecia: "Se calhar, é
a torrada que demora." E aguardava. Mas a espera tornou-se inaceitável e ele disse ao
empregado: "Faz favor! Esqueceu-se de mim. É uma torrada e um galão escuro bem quente." O
empregado olhou-o com um olhar que significava que o ouvia e falou baixinho com a cozinheira
20 que estava na copa. Pensou: "Foi ver o que se passa com a torrada." Mas o tempo corria e não
aparecia nada à sua frente. Primeiro, o homem ficou irritado; depois, ficou embaraçado. Olhava o
empregado, o empregado olhava-o - e nada acontecia. A certa altura, confuso e envergonhado,
desistiu. Saiu, foi de uma rua a outra rua e entrou noutra pastelaria. Ao balcão, uma mulher
agarrava em copos e pratos. Deu-lhe os "bons dias" e pediu-lhe o galão e a torrada com pouca
25 manteiga. Ela olhou-o e ele ficou à espera. O tempo passava e nada se passava. A pastelaria tinha
pouca gente e nada lhe era servido. Enervado, disse: "Já lhe pedi, há mais de um quarto de hora,
um galão e uma torrada! Se a torrada custa a sair, dê-me um croissant com fiambre." A mulher
fitou-o com os olhos claros e continuou a arrumar a loiça. Vexado, o homem tossiu - e foi-se
embora.
30

Já estava atrasado: desistiu de tomar o pequeno-almoço ("Quando chegar ao escritório, vou à
máquina e tiro um bolo"). Apanhou o autocarro. Durante a viagem, achou que as pessoas o
olhavam, se ele não as olhava, e não o olhavam, se ele as olhava. Isso incomodou-o. Quando o
autocarro estava a chegar à paragem onde queria sair, tocou a campainha. Ouviu-se o som
metálico, mas o autocarro não diminuiu a velocidade e passou pela paragem como se ela não

35 existisse. Por isso, teve de sair na paragem seguinte, onde havia passageiros para entrar que
mandaram parar o autocarro. Na rua cheia de gente, o homem percorreu, num passo apressado,
o quarteirão que o separava do edifício onde trabalhava. Chegou ofegante. No átrio, acenou ao
porteiro e encaminhou-se para o elevador. Entrou na cabina vazia e carregou no botão do andar
para aonde queria ir: o quinto. O elevador não se mexeu. Voltou a carregar e o elevador
40 permaneceu parado. Já se preparava para desistir e ir pelas escadas quando entrou um rapaz que
carregou no botão ao lado do qual estava escrito o número 5 - e prontamente o elevador iniciou a
sua subida. Abriu-se a porta, ele saiu e seguiu pelo corredor até à sala onde trabalhava. Tirou a
gabardina, pendurou-a num cabide e sentou-se à secretária. Olhou os papéis que a cobriam, ligou
o computador e verificou que havia uma avaria, embora os computadores dos colegas estivessem
45 a funcionar. Agarrou no telefone e começou a marcar números de gente a quem tinha de falar.
Marcava, ouvia o sinal de chamada e ninguém atendia. Passou a outro número e continuaram a
não atender. Tentou ainda outro e outro e outro - o resultado foi sempre igual. Virou-se então
para um colega e perguntou-lhe: "Sabes se o Freitas já chegou?" O colega olhou-o, mas o olhar
não lhe desfez a mudez.
50

O homem sentia-se como se houvesse na sua frente um vidro grosso que lhe impedisse o
acesso ao mundo. Perplexo, olhava o mundo e olhava a sua ansiedade. De repente, sentiu uma
vontade nervosa de mijar. Avançou pelo corredor até à casa de banho e deu com ela ocupada.
Regressou à secretária. Deixou passar algum tempo e voltou à casa de banho. Já estava livre.
Entrou. Dirigiu-se à sanita, mas a urina não saía. Aflito, olhou o espelho. Olhou-o e não viu nele a

55 sua imagem. Não sabia se era ele que não se via no espelho, se era o espelho que não o via a ele...
Este homem existe. Sou eu. És tu. Às vezes, em certos dias, a certas horas...

1.
2.
3.
4.

Indica o tema da crónica.
Indica três marcas da subjetividade do autor, exemplificando.
Explora a expressividade do último parágrafo do texto.
Identifica três características que permitem classificar este texto como sendo uma crónica.

5. Classifica as seguintes orações:
a. “que parecia continuar a noite” (l. 4)
b. “que havia uma avaria” (l. 44)
c. “a quem tinha de falar” (l. 45)
d. “que lhe impedisse o acesso ao mundo” (ll. 50-51)
6. Indica a classe e subclasse das seguintes palavras:
a. “metálico” (l. 34)
b. “ansiedade” (l.51)
c. “certos” (l. 56)
7. Identifica a função sintática desempenhada pelas seguintes expressões:
a. “de casa” (l. 4)
b. “num daqueles sítios onde moram aqueles que não podem morar noutro sítio” (ll. 5 e 6)
c. “o frio de fora” (l. 6)
d. “a um deles” (l. 11)
e. “o quarteirão que o separava do edifício onde trabalhava” (l. 37)
f. “à secretária” (l. 53)

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  • 1. Ficha de Trabalho Língua Portuguesa Prof.ª Paula Marçal O homem José Manuel dos Santos (www.expresso.pt) 1 Apanhou o autocarro. Durante a viagem, achou que as pessoas o olhavam, se ele não as olhava, e não o olhavam, se ele as olhava. Isso incomodou-o. Quando o autocarro estava a chegar à paragem onde queria sair, tocou a campainha. Na madrugada tão escura que parecia continuar a noite, o homem saiu de casa com a 5 gabardina vestida e o chapéu de chuva na mão gelada. Morava num daqueles sítios onde moram aqueles que não podem morar noutro sítio. Quando pôs o pé na rua molhada, o frio de fora juntou-se ao frio de dentro. Andou algum tempo e veio-lhe a vontade de beber qualquer coisa quente. Passou por um café, mas estava tão lúgubre e deserto que, só de o olhar, se arrepiou. Continuou a andar e a tossir a sua tosse seca e nervosa. A certa altura, viu uma pastelaria que lhe 10 pareceu quente, iluminada e confortável. Entrou nela como num abrigo. Caminhou até ao balcão, onde, atarefados, três empregados andavam de um lado para o outro. Dirigiu-se a um deles, murmurando "bom dia", e pediu, com uma voz que despertava, um galão e uma torrada. Ao fazer o pedido, esfregou, com rapidez e repetição, as mãos uma na outra. O empregado olhou-o, continuando a fazer o que estava a fazer. O tempo passava e, em frente do homem que esperava, 15 o balcão permanecia vazio. Pensou: "Há gente à minha frente..." E fez da sua espera paciência. O tempo continuava a passar e nada lhe era servido. Tentava justificar o que acontecia: "Se calhar, é a torrada que demora." E aguardava. Mas a espera tornou-se inaceitável e ele disse ao empregado: "Faz favor! Esqueceu-se de mim. É uma torrada e um galão escuro bem quente." O empregado olhou-o com um olhar que significava que o ouvia e falou baixinho com a cozinheira 20 que estava na copa. Pensou: "Foi ver o que se passa com a torrada." Mas o tempo corria e não aparecia nada à sua frente. Primeiro, o homem ficou irritado; depois, ficou embaraçado. Olhava o empregado, o empregado olhava-o - e nada acontecia. A certa altura, confuso e envergonhado, desistiu. Saiu, foi de uma rua a outra rua e entrou noutra pastelaria. Ao balcão, uma mulher agarrava em copos e pratos. Deu-lhe os "bons dias" e pediu-lhe o galão e a torrada com pouca 25 manteiga. Ela olhou-o e ele ficou à espera. O tempo passava e nada se passava. A pastelaria tinha pouca gente e nada lhe era servido. Enervado, disse: "Já lhe pedi, há mais de um quarto de hora, um galão e uma torrada! Se a torrada custa a sair, dê-me um croissant com fiambre." A mulher fitou-o com os olhos claros e continuou a arrumar a loiça. Vexado, o homem tossiu - e foi-se embora.
  • 2. 30 Já estava atrasado: desistiu de tomar o pequeno-almoço ("Quando chegar ao escritório, vou à máquina e tiro um bolo"). Apanhou o autocarro. Durante a viagem, achou que as pessoas o olhavam, se ele não as olhava, e não o olhavam, se ele as olhava. Isso incomodou-o. Quando o autocarro estava a chegar à paragem onde queria sair, tocou a campainha. Ouviu-se o som metálico, mas o autocarro não diminuiu a velocidade e passou pela paragem como se ela não 35 existisse. Por isso, teve de sair na paragem seguinte, onde havia passageiros para entrar que mandaram parar o autocarro. Na rua cheia de gente, o homem percorreu, num passo apressado, o quarteirão que o separava do edifício onde trabalhava. Chegou ofegante. No átrio, acenou ao porteiro e encaminhou-se para o elevador. Entrou na cabina vazia e carregou no botão do andar para aonde queria ir: o quinto. O elevador não se mexeu. Voltou a carregar e o elevador 40 permaneceu parado. Já se preparava para desistir e ir pelas escadas quando entrou um rapaz que carregou no botão ao lado do qual estava escrito o número 5 - e prontamente o elevador iniciou a sua subida. Abriu-se a porta, ele saiu e seguiu pelo corredor até à sala onde trabalhava. Tirou a gabardina, pendurou-a num cabide e sentou-se à secretária. Olhou os papéis que a cobriam, ligou o computador e verificou que havia uma avaria, embora os computadores dos colegas estivessem 45 a funcionar. Agarrou no telefone e começou a marcar números de gente a quem tinha de falar. Marcava, ouvia o sinal de chamada e ninguém atendia. Passou a outro número e continuaram a não atender. Tentou ainda outro e outro e outro - o resultado foi sempre igual. Virou-se então para um colega e perguntou-lhe: "Sabes se o Freitas já chegou?" O colega olhou-o, mas o olhar não lhe desfez a mudez. 50 O homem sentia-se como se houvesse na sua frente um vidro grosso que lhe impedisse o acesso ao mundo. Perplexo, olhava o mundo e olhava a sua ansiedade. De repente, sentiu uma vontade nervosa de mijar. Avançou pelo corredor até à casa de banho e deu com ela ocupada. Regressou à secretária. Deixou passar algum tempo e voltou à casa de banho. Já estava livre. Entrou. Dirigiu-se à sanita, mas a urina não saía. Aflito, olhou o espelho. Olhou-o e não viu nele a 55 sua imagem. Não sabia se era ele que não se via no espelho, se era o espelho que não o via a ele... Este homem existe. Sou eu. És tu. Às vezes, em certos dias, a certas horas... 1. 2. 3. 4. Indica o tema da crónica. Indica três marcas da subjetividade do autor, exemplificando. Explora a expressividade do último parágrafo do texto. Identifica três características que permitem classificar este texto como sendo uma crónica. 5. Classifica as seguintes orações: a. “que parecia continuar a noite” (l. 4) b. “que havia uma avaria” (l. 44) c. “a quem tinha de falar” (l. 45) d. “que lhe impedisse o acesso ao mundo” (ll. 50-51)
  • 3. 6. Indica a classe e subclasse das seguintes palavras: a. “metálico” (l. 34) b. “ansiedade” (l.51) c. “certos” (l. 56) 7. Identifica a função sintática desempenhada pelas seguintes expressões: a. “de casa” (l. 4) b. “num daqueles sítios onde moram aqueles que não podem morar noutro sítio” (ll. 5 e 6) c. “o frio de fora” (l. 6) d. “a um deles” (l. 11) e. “o quarteirão que o separava do edifício onde trabalhava” (l. 37) f. “à secretária” (l. 53)