Machado, roberto danação da norma medicina social e constituição da psiquia...
O uso da etnografia no marketing
1. O uso que se tem feito da etnografia, uma técnica de pesquisa
da antropologia, para investigar o consumidor no Brasil pode
induzir a erros, pois ela vem sendo aplicada como se fosse um
trabalho de campo qualquer. Conheça a abordagem que
congrega exigências metodológicas específicas e o princípio
teórico de mapear todo o sistema de consumo em que um
produto se insere. Por Lívia Barbosa e Eugenio Giglio
esde a década de 80, a pesquisa em marketing, no mundo e no Brasil, vem
D passando por profunda modificação metodológica que pode ser resumida
no gradual afastamento dos dados agregados, áridos e quantitativos em
direção aos dados qualitativos e mais particularizados. Essa mudança
baseia-se na crescente evidência dos limites da abordagem econômica para explicar o
consumo e o comportamento do consumidor em um mundo interconectado e cada
dia mais complexo.
O uso de dados qualitativos não é novidade para o marketing. A inovação está no
interesse crescente pela etnografia, a metodologia antropológica tradicional, que
consiste em observar, participar e entrevistar o quot;nativoquot; em seu próprio ambiente,
tentando compreender e revelar sua existência como um todo.
Embora a etnografia já tenha se tornado conhecida como ferramenta
metodológica, são necessários conhecimentos e posturas metodológicas específicas
para se obterem dela os resultados que ela potencialmente pode produzir. O que nossa
experiência como pesquisadores e consultores tem indicado é que o uso que se tem
feito da etnografia para pesquisas com o consumidor ou mesmo em branding no Brasil
está longe de atender a essas exigências teóricas e metodológicas específicas. E é para
esse aspecto que nosso estudo pretende contribuir.
Como a etnografia é usada pela antropologia
Para entender o potencial da etnografia para o marketing é interessante tentar
responder o que é etnografia, por que os antropólogos a usam no trabalho de campo,
que tipo de informação ela produz e qual sua aplicabilidade no marketing e nos
negócios em geral.
A realidade social tem uma dupla natureza: uma é composta pelo mundo
material que nos envolve; a outra, pelos meios simbólicos por meio dos quais os seres
humanos tomam consciência desse mundo material. Pessoas, objetos, relações, fatos
HSM Management Update nº19 - Abril 2005
2. que são parte da vida diária e do mundo material que nos cerca só têm sua existência
Lívia Barbosa, antropóloga, é
professora da Universidade considerada como parte de nossa realidade quando são inseridas dentro de um sistema
Federal Fluminense (UFF) e
de valores e significados. Valores e significados que não emergem a partir das
pode ser contatada pelo e-mail
propriedades físicas e biológicas das pessoas e dos objetos, mas que lhes são atribuídos
livia@visualnet.com.br.
Eugenio Giglio é professor da pelos sistemas classificatórios que operam na mente humana.
Escola Superior de
Os antropólogos usam a etnografia porque essa metodologia os ajuda a
Propaganda e Marketing do
apreender os modos lógicos e significativos pelos quais as pessoas organizam a
Rio de Janeiro (ESPM-RJ) e
quot;realidadequot;. Quando a observação direta é combinada com entrevistas em
pode ser contatado pelo e-mail
eugenio@espm.br. Giglio profundidade, como normalmente ocorre, a informação visual é enriquecida com os
agradece o apoio institucional
pontos de vista dos próprios quot;nativosquot; sobre suas práticas, valores e significados e do
do Núcleo de Pesquisas da
grupo social ao qual pertence. Isso dá aos antropólogos a oportunidade de olhar a
ESPM-RJ.
realidade de um grupo ou de uma sociedade por meio das categorias deles, evitando,
assim, a armadilha do etnocentrismo.
Portanto, uma das atividades básicas do trabalho de campo da etnografia é
identificar as principais categorias que são usadas por um grupo de pessoas para
classificarem a si mesmas, o mundo social a sua volta, os diferentes tipos de pessoas e as
relações entre elas, o mundo material no qual vivem e suas relações com objetos que o
compõem. Assim, qualquer trabalho de campo e de observação direta precisa começar
com os pesquisadores evitando qualquer espécie de classificação a priori sobre o grupo,
caso contrário o antropólogo estará investigando seu próprio modo de pensar sobre o
mundo e não o pensamento dos quot;nativosquot; sobre o mundo deles.
Como a etnografia vem sendo usada pelo marketing -a pesquisa com as mulheres
nordestinas
No universo do marketing, a quot;visão do consumidorquot; pode ser considerada o
equivalente estrutural das quot;categorias nativasquot; do antropólogo. Mas outras exigências
metodológicas se fazem necessárias quando se trabalha dentro de nossa própria
sociedade, onde tudo nos parece tão familiar. Isso porque estar familiarizado com
quot;algoquot; não significa conhecer quot;algoquot;.
Assim, uma atitude de distância e estranhamento deve ser adotada para
transformar o supostamente conhecido em algo quot;exóticoquot;, como nos ensina o
antropólogo Roberto DaMatta. Estranhar algo significa olhá-lo com novos olhos,
colocar quot;por quêsquot; para coisas tidas como sabidas e pesquisar a lógica e o significado
por trás de procedimentos automáticos. Em resumo, olhar coisas familiares como se
elas pertencessem a outros mundos e pessoas.
Um dos melhores exemplos de abordagem errada de etnografia no marketing
que presenciamos foi a imposição etnocêntrica da classificação de pobre a um grupo
de mulheres nordestinas por pesquisadores de uma multinacional de pesquisa
oriundos de São Paulo.
Pobreza é um conceito relativo, não absoluto. Depende do contexto e pode ainda
ser definida de várias maneiras. Embora o grupo de mulheres entrevistadas estivesse na
base da pirâmide de renda dos brasileiros, elas não atribuíam a si mesmas a
classificação de quot;pobresquot;. Todavia, para a equipe de pesquisa a quot;pobrezaquot; era a
característica definidora dessas mulheres. Em conseqüência, durante todo o tempo foi
possível perceber o choque entre a classificação dos pesquisadores e a reação das
mulheres a ela. Essas mulheres só se referiam a si mesmas como pobres ou reconheciam
sua carência material explicitamente, quando isso estava vinculado -e era
compensado- por uma posição superior em um sistema de classificação social ou
moral. quot;Sou pobre, mas honestaquot;. quot;Sou pobre, mas limpaquot; ou quot;Sou pobre, mas
abençoada por Deusquot;.
HSM Management Update nº19 - Abril 2005
3. Até que ponto essa incapacidade de perceber como o grupo se classificava afetou
a coleta de dados? É difícil dizer ou avaliar, mas por certo a equipe de pesquisadores
perdeu boas oportunidades de entender aspectos básicos da vida daquelas mulheres.
Algumas dessas perdas são evidentes, por exemplo, a diferença entre a concepção do
pesquisador e das mulheres quanto ao significado de privação material e de seu
impacto na vida de cada um.
Para os pesquisadores o critério principal para classificar aquelas pessoas era a
condição material delas, mas para elas, qual seria o principal critério para classificarem
a si mesmas e aos pesquisadores? Se recusavam o rótulo geral de quot;pobrequot; e só o
aceitavam em certos contextos, como a pobreza poderia ser interpretada? Como a
privação material era entendida e como isso afetava suas hierarquias de compras e
consumo?
A abordagem correta do marketing etnográfico
Temos de estar conscientes de que as armadilhas metodológicas como as
observadas no caso citado surgiram e continuarão a aparecer em outros trabalhos de
campo, uma vez que a maioria dos pesquisadores empregados nos projetos ignora os
pressupostos metodológicos da etnografia e o que ela busca.
Não basta quot;estar láquot; e observar modos de vida quot;exóticosquot;. Isso, por si só, não
revela a informação que os pesquisadores procuram. É importante saber:
Por que é importante estar lá?
O que a observação direta propicia em termos de dados?
* Por que a observação direta daquela realidade pode trazer conhecimento sobre
padrões de consumo, seus respectivos significados e como eles interagem com outras
partes da vida do consumidor?
Se essas perguntas não forem respondidas, o uso do trabalho de campo se torna
apenas uma experiência exótica para o pessoal de marketing, mas pobre do ponto de
vista do conhecimento sobre o consumo e os consumidores.
Outro aspecto importante diz respeito aos pesquisadores. Embora a etnografia
seja uma metodologia qualitativa, nem todas as metodologias qualitativas e trabalhos
de campo são etnografia. Isso quer dizer que pesquisadores de marketing treinados em
entrevistas de campo não têm o necessário treinamento para observação direta e para o
tipo de entrevista de campo profunda que a etnografia e a antropologia requerem. É
necessária uma distinção dos recursos humanos que vão utilizar a etnografia.
Além dessas observações metodológicas, é importante que os institutos de
pesquisa e mesmo os departamentos de marketing das empresas adquiram uma
perspectiva teórica mais afinada com uma percepção holística e sociológica da vida
social cotidiana. Isso faria maravilhas para o enriquecimento das análises e
interpretações dos dados.
Estudar consumo é analisar, em grande parte, a cultura material de uma
sociedade e o que as pessoas fazem com ela. Em outras palavras, como as pessoas usam
os objetos e os produtos, como os resignificam, onde os inserem em na vida cotidiana,
o peso e o valor que lhes atribuem para a reprodução social de si mesmos, entre outros.
A vida social não é um conjunto de ações aleatórias, mas ordenadas. Por isso é que se
torna possível quot;fazer sentido da ação das pessoasquot;.
Essa constatação nos leva de imediato a um princípio teórico e metodológico que
deveria estar por trás de toda e qualquer pesquisa de marketing: produtos e serviços
não estão quot;boiandoquot; em um vácuo sociocultural: são instrumentos que carregam -e
HSM Management Update nº19 - Abril 2005
4. são utilizados de forma a criar- sentidos na vida das pessoas. Portanto, devem ser
entendidos e pesquisados no interior do sistema a que esse pertence. São as relações no
interior dos sistemas que fornecem o significado cultural de bens e serviços. E esse
significado não é nem estático nem imutável, está permanentemente posto em cheque
pela experiência da vida real.
Por exemplo, quando uma mulher compra sabão em pó para lavar roupa, esse
produto está inserido no interior de um sistema de higiene doméstica que é
organizado a partir de certa lógica que estrutura as práticas cotidianas. Entretanto,
para se apreender essa lógica é preciso ir além da análise do produto específico e
entender seu papel no interior do sistema como um todo.
O mapeamento de um sistema de consumo em sua totalidade fornece uma
ferramenta poderosa para quem quer entender o processo de mudança e a reação à
introdução de inovações. Qualquer novo produto terá sempre de se inserir no interior
de um sistema de consumo preexistente, no qual outros produtos e práticas já têm seus
significados e posições definidos. Portanto, sempre ocorrerá um quot;diálogoquot; entre o que
é novo e o que existia. Conseqüentemente, já ter mapeado o sistema onde meu
produto se inserirá é meio caminho para que eu entenda as novas tendências e
oportunidades que podem surgir.
A antropologia, como indicado antes, e o marketing etnográfico como uma
ferramenta para coletar e interpretar dados podem ajudar o marketing nessa tarefa.
Como tentamos demonstrar, eles ajudam a desdobrar, mapear e relacionar produtos e
práticas dentro de sistemas de significado e então nos conscientizar de como esses
sistemas de significados se relacionam a padrões de consumo e estilos de vida.
HSM Management Update nº19 - Abril 2005