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Laudatio
do Dr. Francisco Pinto Balsemão∗
1- Quando a Filosofia era disciplina obrigatória em todo o en-
sino secundário e do programa fazia parte a exposição do idea-
lismo alemão, uma das coisas que todos os estudantes fixavam,
mesmo os mais duros de entendimento, era que um dia o filó-
sofo Hegel, ao ver passar o Imperador Napoleão na sua montada,
afirmara que tinha visto a razão a cavalo. A fenomenologia do
espírito, manifestada dialecticamente no processo histórico, era
reduzida à expressão mais simples e mais caricata. Pois este
episódio, que servia e serve ainda para ridicularizar a filosofia
e os professores de filosofia, tem, desde que bem compreen-
dido filosoficamente, um alto valor jornalístico. Servir-me-ei da
própria filosofia hegeliana para demonstrar esta afirmação.
Nas Lições sobre a Filosofia da História, logo no primeiro
volume, intitulado A Razão na História, escreve Hegel que a
razão, da qual se diz que comanda o mundo, é uma palavra tão
vazia como a palavra destino, que se usa o termo razão sem se
∗
por ocasião da atribuição do Doutoramento honoris causa pela Universidade da Beira
Interior em 11 de Outubro de 2010
2 António Fidalgo
indicar qual o verdadeiro significado e conteúdo ...Por isso,
Hegel adianta que a razão, entendida concretamente, é a própria
coisa. Se nos ficarmos pela concepção genérica, então ficamo-
nos apenas pelas palavras. Ora é justamente este o princípio
jornalístico. Só as coisas, os casos concretos, conseguem dar
corpo a uma notícia. Um jornalista que faça uma notícia sobre
o desemprego terá de retratar casos concretos, deste e daquele
desempregado, a fim de tornar patente ao seu público o drama
e a angústia que a palavra desemprego é incapaz de mostrar.
Napoleão a cavalo na cidade de Jena corporizava aos olhos
de Hegel o triunfo da razão, da unidade do Estado burguês
sobre a irracionalidade dos mini-estados feudais –de princípes,
duques e condes– em que a Alemanha de então se encontrava
espartilhada.
Feita a distinção entre as palavras e as coisas, entre os princí-
pios e os casos concretos, há a dizer que a liberdade de expres-
são e a liberdade de imprensa são princípios hoje estabelecidos,
plasmados no texto das constituições nacionais, mesmo declara-
dos universalmente direitos do homem. Eles marcam a distinção
entre a civilização e a barbárie, e não há pois ninguém que os
conteste, em princípio. Mas quanto à sua concretização real,
como são esses princípios cumpridos e vividos no dia a dia?
como são as coisas? A resposta obtém-se jornalisticamente,
mediante casos concretos. É nos detalhes da vida real que se ob-
tém uma compreensão plena dos princípios. Se o próprio Hegel
declarou que a leitura do jornal é a oração da manhã do filósofo,
Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 3
é porque o pensamento tem de partir da realidade quotidiana
para não se perder em exercícios fúteis e vazios sobre “supostas
realidades” de cenários imaginados.
Francisco Pinto Balsemão encarna, nas contingências e vicis-
situdes da realidade social, política e económica, os princípios
da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Contin-
gências e vicissitudes que compreendem a ditadura e a censura
antes do 25 de Abril de 1974, e ainda as derivas revolucioná-
rias do PREC que levaram à nacionalização de grande parte
da imprensa portuguesa, à morte do jornal A República, à to-
mada da Rádio Renascença e a rotular de “pasquim” o Expresso.
2- Pinto Balsemão é sobejamente conhecido como o fundador
do Expresso, como um dos 3 fundadores do PPD, hoje PSD,
como ex-primeiro-ministro de Portugal nos inícios da década
de 80, como o patrão da SIC e grande magnata dos meios de
comunicação social, ou, dito na versão inglesa, como media
tycoon. É, sem dúvida, um empresário de enorme sucesso no
campo dos média e um dos mais respeitados senadores da
democracia portuguesa. Seria redundante, e por isso fastidioso,
enumerar aqui os feitos, os cargos, as posições, as distinções e
as honras que compõem o seu currículo. Muito mais importante
é realçar o impulso de base, inicial e constante, que caracteriza o
seu percurso tanto de homem da comunicação como de político
e o singulariza como uma das figuras mais notáveis da história
recente de Portugal. O próprio, no discurso em que agradeceu a
4 António Fidalgo
atribuição do doutoramento honoris causa pela Universidade
Nova de Lisboa, o identifica claramente:
Do que fiz na vida, colocaria como fio condutor e como ob-
jectivo cimeiro, exercido e conseguido de diversas maneiras,
consoante as épocas e as responsabilidades, a luta pela li-
berdade de expressão em geral e, em especial, pelo direito a
informar e a ser informado.1
(fim de citação)
Essa luta pela liberdade da expressão materializa-se primei-
ramente, ainda na década de sessenta, nos esforços de uma
liberalização da sociedade portuguesa e, em particular, na luta
contra a censura da imprensa. Francisco Pinto Balsemão é um
dos muitos que acreditam na possibilidade e na vontade de Mar-
celo Caetano reformar o regime político herdado de Oliveira
Salazar. É o intuito de contribuir para essa reforma que o leva a
integrar como independente a lista da União Nacional pelo dis-
trito da Guarda às eleições legislativas de Outubro de 1969. Tem
32 anos, conhece bem os países ricos além Pirenéus, e ambici-
ona para Portugal o mesmo desenvolvimento e o mesmo tipo
de regime político. Nos 4 discursos que fez na campanha, na
Guarda, em Pinhel, em Seia e em Gouveia, e de que resultou um
livrinho, publicado logo a seguir às eleições e intitulado Menta-
lização para a Eficiência, não esconde o propósito reformador,
liberalizador e democrático da sua candidatura. No discurso de
Seia, de 23 de Outubro, justifica porque é candidato:
1
Em 21 de Abril de 2010
Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 5
Sou candidato porque renunciei à cómoda posição de absten-
ção e renúncia em que até agora, por entender não estarem
criadas as condições para uma revitalização e institucionali-
zação da vida política normal em Portugal, me mantive. Sou
candidato porque, embora numa posição de não dependência,
quero auxiliar Marcello Caetano a realizar as reformas de
que a Sociedade Portuguesa carece, para que acabem de vez
as injustiças, os preconceitos, as prepotências. Sou candidato
porque desejo participar no ressurgimento do meu país e
entendo que a Assembleia Nacional pode nele desempenhar
um papel que até agora, por não querer, não saber ou não
poder, não tem desempenhado. (fim de citação)
Seria impossível ser mais claro. Pinto Balsemão luta por um re-
gime democrático em Portugal. No discurso da Guarda, enuncia
entre as “tarefas de grande importância” que os novos deputados
terão pela frente o problema da efectiva aplicação dos direitos,
liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses; e
a possível instauração de partidos políticos.
Mas não é só nos objectivos que Pinto Balsemão é um liberal
e democrata, é-o também no tipo de campanha eleitoral. O
famoso “fair play”, que lhe ficaria para sempre como imagem
de marca, é a negação total do estilo dogmático e caceteiro dos
ultras do regime. Logo no início do discurso com que inicia a
campanha explica as regras do jogo democrático.
Nós partimos da dúvida. Queremos lutar pela vitória, tra-
balhar para a merecer. Queremos demonstrar a nossa ra-
6 António Fidalgo
zão, sem necessidade de a impor. Queremos obter votos sem
pressões, sem tráfico de influências, apenas pela força dos
nossos argumentos. ...Esta atitude de incerteza, este reco-
nhecimento de que é indispensável trabalhar, devemo-los não
apenas a nós próprios, mas também aos nossos adversários.
Por mais que discordemos das suas opiniões, por mais que
nos inquietem os seus nem sempre bem disfarçados propó-
sitos ..., não devemos desprezar ou achincalhar os nossos
opositores. Só respeitando os seus direitos e as suas posições
poderemos, depois do dia 26, falar aberta e honestamente de
vitória. (fim de citação)
Boas intenções, excelentes propósitos. Mas, como sabemos, a
primavera marcelista foi sol de pouca duração. Os deputados
independentes eleitos, Miller Guerra, Pinto Leite, Mota Amaral,
Sá Carneiro, Pinto Balsemão, não foram levedura suficiente
para, dentro da Assembleia Nacional, operar a ambicionada
transição reformadora do regime. Todas as propostas de lei que
apresentaram, nomeadamente o Projecto da Lei de Imprensa,
subscrito por Sá Carneiro e Pinto Balsemão, onde se abolia
o exame prévio ou censura, foram chumbadas pela maioria
situacionista. Mais grave ainda, confrontado com as críticas
dos independentes, designados entretanto por Ala Liberal, o
regime endureceu. Só que a guerra colonial tornava a situação
insustentável. Os cabeças duras do regime e a tibieza de Marcelo
Caetano não deixaram outra saída que não fosse a revolução e
Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 7
os subsequentes desvarios políticos, sociais e económicos do
PREC.
No livro Informar ou Depender?, publicado no Verão de
1971, Pinto Balsemão oferece uma ampla justificação do re-
ferido Projecto da Lei de Imprensa. Apesar de constituir uma
clara rotura com o regime, o livro assume ainda assim uma
atitude pedagógica, mostrando a inevitabilidade das reformas.
Era absurdo e mesmo ridículo manter a censura na era espacial,
com os satélites de comunicação girando à volta da terra, capa-
zes de emitir a breve trecho rádio e televisão directamente para
cada lar. Cito agora directamente do livro:
As consequências políticas, económicas, jurídicas, urbanísti-
cas, educacionais, etc., dos satélites artificiais, no campo das
comunicações são assim incalculáveis. ...O globo encurtou-
se pela rapidez vertiginosa dos transportes e pela instanta-
neidade das comunicações. As nações não podem continuar
a viver no seu esplêndido isolamento.
O lema que atravessa todo o livro de 330 páginas é de que uma
informação livre e independente é a outra face da moeda de
uma sociedade desenvolvida. Passo a citar:
Depende em boa parte da independência da informação face
aos poderes político e económico a construção de uma socie-
dade livre em que desapareça ou diminua a diferença entre
ricos e pobres; em que a força não esteja concentrada nas
mãos de um número cada vez mais reduzido de pessoas, ...em
que todos tenham idênticas oportunidades de instrução. p. 20
8 António Fidalgo
A segunda parte do livro, dedicada ao caso português, começa
por registar o falhanço da informação portuguesa na moderni-
zação do país. Por falta de independência e por falta de capaci-
dade. A RTP e a Emissora Nacional, órgãos públicos, estavam
subordinadas às directivas do Governo e, as rádios e os jornais
privados, eram atrofiados pela censura prévia:
A censura prévia impede os jornais de publicarem o que
desejam e obriga-os a uma dependência rotineira do poder
político (quando não, também, do poder económico). O fan-
tasma da censura prévia causa inibições, trava iniciativas
(não apenas jornalística, mas também no sector dos inves-
timentos) e diminui a aptidão das pessoas para produzirem
uma informação tão satisfatória quanto o poderiam fazer.
Mais uma vez, o círculo vicioso da falta de independência e
da falta de capacidade. p.176
Mas a lucidez da análise e os bons argumentos aduzidos não
convenceram quem não queria ser convencido. Por dentro o
regime era irreformável.
Todavia, o livro, que na primeira parte é uma exposição
geral sobre a comunicação em geral, tem o mérito de definir os
princípios que presidiriam à criação do Expresso. Com efeito,
um ano e meio antes no primeiro número do semanário, Pinto
Balsemão no capítulo nono, “Conteúdo e forma do produto”,
coloca a hipótese de:
um grupo de pessoas, dotadas de preparação profissional
jornalística, administrativa e técnica e não ligadas a gru-
Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 9
pos políticos ou económicos, pretenderem fundar um jornal
de informação num país menos desenvolvido. A empresa a
constituir deseja que o investimento seja lucrativo, de modo
a não de vir a enfeudar-se a subsídios ou a empréstimos
condicionados. Tem, contudo, plena consciência de que a
empresa jornalística não deve servir apenas para ganhar di-
nheiro e quer contribuir para o progresso da sua comunidade.
Que tipo de jornal deve produzir? A que regras fundamentais
devem obedecer a sua forma e sobretudo o seu conteúdo?
Depois de distinguir entre jornais de qualidade, dirigidos às
élites, e dedicados sobretudo à política nacional e internacio-
nal, aos problemas técnicos culturais, financeiros e económico-
sociais, e jornais populares ou de sensação, dirigidos ao grande
público, Pinto Balsemão define um jornal de meio termo, con-
ciliando os aspectos positivos de um e outro tipo e, assim,
obter uma venda considerável e um prestígio sem máculas.
...estabelecer um equilíbrio entre a leitura superficial dos ar-
tigos sensacionais e a leitura profunda de artigos de opinião.
. . .Para isso, emprega redactores e colaboradores qualifica-
dos capazes de abordar, de um modo ao mesmo tempo leve
e sério, quer a informação política, económica, científica e
artístico-literária, quer os temas que servem apenas para
distrair o público. O jornal de termo médio esforça-se por
ligar os dois extremos, informando e formando, ajudando e
distraindo. p. 123
10 António Fidalgo
O lançamento do Expresso em 6 de Janeiro de 1973 é um su-
cesso. Segue um modelo anglo-saxónico, aposta num formato
broad-sheet, e, sem descurar temas que possam interessar ao
grande público dos jornais populares, dá especial relevo à polí-
tica e à opinião. Torna-se leitura obrigatória de todos os que em
Portugal sentem o imperativo e a urgência da reforma política.
Reconhecidamente, o Expresso desempenhou um papel funda-
mental na consciencialização política da sociedade portuguesa
em geral e, em particular, de alguns capitães da revolução de
Abril de 1974.
Ironia do destino, ou talvez não, porque a independência da
informação é tão incómoda à direita como à esquerda de cariz
totalitário, o Expresso que era um jornal tido como um jornal
avançado e progressista antes da Revolução, e por isso criticado
e censurado, passa a ser visto e atacado como um jornal burguês
e anti-revolucionário quando os sectores militares ligados ao
Partido Comunista Português iniciam, sobretudo após o 28 de
Setembro de 1974 e o 11 de Março de 1975, um processo
revolucionário da sociedade portuguesa. O Verão quente de
1975 é um período de tremenda luta política, de conspirações,
de golpes e contra-golpes, reais e imaginados, de manifestações
a favor e contra. E se o poder não andava pela rua, andava
pelos quartéis, com os reformadores à volta do Grupo dos Nove,
e os revolucionários, apoiantes do Primeiro-Ministro Vasco
Gonçalves, contando as espingardas. O Expresso torna-se um
dos principais obstáculos à sovietização do país e, por isso
Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 11
mesmo, um alvo a abater. É directa e violentamente visado
no famigerado discurso de Vasco Gonçalves em Almada, em
18 de Agosto de1975, apelidado de “pasquim” e acusado de
libertinagem informativa ao serviço das forças reaccionárias.
Se a loucura que percorreu Portugal durante o PREC não
teve consequências ainda mais nefastas, isso também se deve
em muito ao baluarte de independência informativa do Expresso.
A independência e a coerência que manteve face aos totalita-
rismos de direita e esquerda granjeou-lhe um estatuto único na
imprensa portuguesa.
Os começos do Expresso foram caldeados na luta contra
autoritarismos Dessa luta pela defesa da liberdade de informar
podemos retirar um corolário importante: a liberdade de ex-
pressão e a liberdade de imprensa são a parte mais exposta
das liberdades e direitos individuais e colectivos. Começa-se
por censurar e encerrar meios de comunicação e, de seguida,
prendem-se as pessoas. A melhor garantia de direitos e liberda-
des dos cidadãos são justamente as liberdades de expressão e
de imprensa.
Nos anos de brasa de 1974 e 1975, Pinto Balsemão encarnou
como ninguém a liberdade de expressão. Se Hegel tivesse vindo
cobrir a transição política de Portugal para o jornal de que foi
chefe de redacção, o Bamberger Zeitung , quem sabe se não
teria reportado que vira em Portugal a liberdade de imprensa
guiando um Porsche.
12 António Fidalgo
3- A liberdade de imprensa tem como correlato necessário a
aceitação do escrutínio, da crítica e da divergência por parte de
todos os que assumem posições e cargos públicos. Sob pena de
se tornar propaganda, a imprensa segue uma lógica diferente
da lógica da governação. Enquanto a governação ambiciona a
unanimidade, no peito da imprensa bate sempre um coração
de Cassandra, uma voz dissonante. A convivência, que não a
conciliação, destas lógicas exige dos políticos poder de encaixe
face à imprensa. Os políticos têm de conviver com notícias que
eles próprios acham erradas ou distorcidas e com críticas que
acham injustas. Mal vai a liberdade de imprensa quando os
políticos são useiros e vezeiros em recorrer à via judicial para
“meter a imprensa na ordem”.
Dito de uma forma mais crua. A liberdade de expressão e
a liberdade de imprensa têm como pedra de toque o direito a
dizer mal. E é aqui que estão os espinhos e os ossos dessas
liberdades, que em princípio todos aceitam, mas que na prática,
tão difíceis se tornam na sua realização. É que, desde que seja
para apoiar e dizer bem, os regimes totalitários são paladinos
das mais amplas liberdades de informação.
Francisco Pinto Balsemão foi ministro e primeiro-ministro
quando a Aliança Democrática esteve no poder e foi criticado
no Expresso. É um dos episódios mais conhecidos da sua tra-
jectória de político. Ele próprio se lhe referiu ainda este ano:
É sabido, também, que, quando fui Primeiro Ministro de Por-
tugal, durante dois anos e meio ...o Expresso me atacou.
Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 13
... Mas, para além de, nalguns casos, me sentir injustiçado
ou mal tratado, e isso pouco interessa, o que me parece im-
portante assinalar é que, não só nesses anos difíceis do início
da década de 80, como antes e depois, procurei sempre ser
coerente com um princípio que não basta proclamar, porque
é preciso praticá-lo no dia a dia: a defesa intransigente da
liberdade de informação perante o poder político e o poder
económico, e outros tipos de poder...
Pinto Balsemão não confundiu planos, não demitiu o director,
não fez do Expresso um porta voz dos seus Governos. Soube
respeitar como político a autonomia editorial do jornal, de que
era dono. Não conheço maior exemplo de fair play nas rela-
ções entre poder político e imprensa, de absoluto respeito da
autonomia editorial.
Não fazendo nunca carreira política, Pinto Balsemão tem
um dos percursos políticos mais marcantes da democracia por-
tuguesa, sendo um dos seus founding fathers. Lutou pela de-
mocracia quando não a havia, e, uma vez instalado o regime
democrático, é um dos seus principais intervenientes: com Sá
Carneiro e Magalhães Mota fundou o PPD/PSD, um dos par-
tidos políticos charneira na democracia portuguesa, integrou a
Assembleia Constituinte de que foi Vice-Presidente, foi minis-
tro e primeiro ministro, deputado várias vezes à Assembleia da
República. No livro Estabilizar a Política para Criar a Con-
fiança de 1985 presta contas sobre a sua governação. Foram
tempos difíceis, externos e internos. Mas Pinto Balsemão soube
14 António Fidalgo
concentrar-se no essencial: rever a Constituição da República.
Foi tarefa ingente, mas indispensável para criar em Portugal
uma democracia plena, abolindo o Conselho da Revolução e
submetendo as Forças Armadas ao poder político. A revisão
constitucional foi um passo decisivo e necessário no processo
de adesão de Portugal à Comunidade Europeia.
Afastado hoje do combate político quotidiano, não deixa
de participar e intervir na vida política nacional, desde logo
como membro do Conselho de Estado e depois assumindo com
“orgulho e empenho” o estatuto de militante no
1 do Partido que
fundou.
4- Por fim, é sabido que a principal actividade do Dr. Pinto
Balsemão é hoje a administração do Grupo Impresa, de que é
sócio maioritário. Podemos perguntar: como é que a luta pela
liberdade de expressão se concretiza na gestão de uma em-
presa cotada em bolsa, sujeita às exigências do mercado? Não
constitui porventura a valorização da empresa o seu principal
objectivo e, sendo assim, não serão quaisquer princípios, por
mais nobres que sejam, sacrificados à racionalidade económica?
Por um breve momento voltemos a Hegel para nos lembrarmos
que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa só na
sua realização histórica e concreta encontram a sua verdade.
A materialização desses princípios ocorre num determinado
contexto social, cultural e económico. Não é preciso ser mar-
xista para reconhecer que a economia condiciona o agir humano
Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 15
em todas as suas vertentes. Não há liberdade de imprensa sem
jornais e televisões em que possa ser exercida. E os jornais e
as televisões têm de ser economicamente viáveis, para serem
editorialmente independentes.
A liberdade de imprensa tem como primeira condição o rea-
lismo económico. E isso é competência de um bom empresário
da comunicação. No livro de 1971, Informar ou Depender?,
Pinto Balsemão é muito realista na formulação do problema:
O jornal – ou qualquer dos outros media – é, e tem de ser,
para salvaguardar a sua autonomia, um empreendimento co-
mercial e não uma instituição de caridade. ...Eis a razão
pela qual os dirigentes das empresas de Informação se vêem
muitas vezes na obrigação de resolver problemas delicados.
Estes resumem-se à resposta a dar à pergunta seguinte: ga-
nhar mais ou informar melhor? p. 159
E a questão não se restringe à opção entre artigos de sensa-
ção e informação séria, ela abarca também os casos em que
o aumento da qualidade jornalística não é acompanhado por
uma“correlativa melhoria das receitas”. O realismo de Pinto
Balsemão vem ao de cima na equilíbrio salomónico com que
responde à questão:
Verificamos, em conclusão, que a luta árdua, por vezes de-
sesperada, dos meios de Informação para manterem a sua
independência financeira pode levar à transigência perante
os gostos dos leitores, dos consumidores, não compatíveis
16 António Fidalgo
com a independência da Informação no sentido em que até
aqui a temos defendido, ou seja: serem os media a influenciar
a massa, e não a massa a influenciar os media.
Pinto Balsemão escreveu estas palavras em 1971, dois anos
antes de o Expresso vir a lume, e mais de vinte antes da primeira
emissão em 6 de Outubro de 1992 da Sociedade Independente
de Comunicação, a SIC.
Na verdade, o dilema atrás enunciado agudiza-se sobrema-
neira na Televisão, quando a lógica do entretenimento se torna
uma ameaça à informação na forma de infotainment. As audên-
cias são cruéis e mais cruel ainda é o share. Entre o que se diz
que se gosta de ver e o que efectivamente se vê há um abismo
em que soçobram os melhores projectos de programação. Essa
dicotomia entre o desejo e a acção é algo que nunca foi estranho
ao cristianismo, pois que São Paulo escreve na Carta aos Ro-
manos: "Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero".
Sabemos, todavia, que até a Igreja Católica em Portugal não
teve em atenção este aviso quando lançou a TVI.
Pinto Balsemão foi criticado – e imagino que continue a sê-
lo – por alguma da programação dos vários canais da SIC, e por
conteúdos dos jornais e revistas que integram o Grupo Impresa.
No entanto, sempre recusou, aberta e declaradamente, enquanto
administrador desses órgãos, o papel de padre, de educador ou
de professor. O facto de reconhecer realisticamente os gostos
das audiências não significa uma caução a esses gostos, mas a
necessária aceitação da pluralidade e diversidade de consumos
Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 17
e preferências numa relação que é também comercial. Conhecer
essas preferências é crucial para sobreviver no mercado da
comunicação. E volto a citar do mesmo livro.
Se as funções da Imprensa são informar, orientar, interpre-
tar e entreter, é justo que se procure conhecer os anseios
profundos do público, as suas necessidades, os problemas
prementes que a comunidade deseja ver tratados no seu jor-
nal e no seu programa de Rádio ou de TV. É justo ainda que
se averigúe o que mais entretém, o que mais atrai, o modo
mais persuasivo, mais directo, de interpretar e de orientar. É
justo – por permitir à Informação um melhor cumprimento
da sua missão – e necessário, em virtude das dificuldades
económicas das empresas de Informação, sombra principal
que ameaça a respectiva independência. p. 158
Lembro que são palavras de há quase 40 anos e que mantêm
hoje a mesma pertinência. Mas o mais importante todavia é que
mesmo assim, mesmo reconhecendo a legitimidade de conhecer
as preferências dos públicos e de, em princípio as satisfazer, há
um limite, sendo este o interesse da própria comunidade:
Mas afigura-se que há que parar nesse momento: há que
não submeter a orientação do jornal à vontade dos leito-
res. .. .Impõe-se que fundadores-proprientários-orientadores,
não vendam qualquer informação, mas a que mais interessa
à comunidade. p. 159
A informação, sendo, além de um serviço, um negócio, não
é um negócio qualquer. A distinção clássica da retórica grega
18 António Fidalgo
entre ethos e pathos, sendo o ethos, a autoridade e a credibili-
dade de quem informa e o pathos a inclinação ou preferência de
quem escuta, ilustra as forças distintas que interagem no acto
informativo e que devem ser tidas em máxima conta numa em-
presa de comunicação. Na informação não se valoriza apenas a
satisfação das preferências (o saciar da curiosidade), valoriza-se
sobretudo a credibilidade da fonte da informação. Um jornal ou
qualquer órgão de informação que tivesse como critério único a
satisfação do pathos das suas audiências, agiria como um dema-
gogo, indo e vindo de cá para lá, arrastado pela volubilidade de
interesses momentâneos. Ao invés, a informação séria, credível,
tem um rumo próprio, independente dos gostos das audiências.
Mas a credibilidade é um capital, algo que se vai juntando, ame-
alhando com o tempo. Decorre do respeito pelos princípios que
valem nos bons e maus momentos, nomeadamente de isenção,
objectividade e apuramento das notícias.
Podemos então dizer que a luta que hoje o Dr. Pinto Bal-
semão trava pela liberdade de informar e ser informado passa
pelo realismo económico e credibilidade informativa do Grupo
Impresa. É um tipo de luta menos visível que a de jornalista,
chefe de redacção ou director de informação, mas, decerto, não
menos importante e exigente e de muito maior responsabili-
dade. No contexto de grande turbulência económico-financeira,
iniciado há uma década com o rebentamento da bolha bolsista
dot-com e reavivado com o crash do sub-prime em 2008 e a
crise do endividamento das economias periféricas da União Eu-
Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 19
ropeia já este ano, é necessário muita cabeça fria e nervos de aço
para enfrentar os problemas e os desafios postos às empresas
de comunicação. A descida brutal das receitas de publicidade
e a quebra de vendas obrigaram ou ao fecho de jornais ou a
profundas e vezes dolorosas re-estruturações de redacções. Não
obstante isso, o Grupo Impresa cresceu e fortaleceu-se nestes
últimos dez anos. Adquiriu primeiro a maioria do capital da SIC
e depois, em 2005, a totalidade. Lançou os canais temáticos por
cabo onde se destaca a SIC Notícias, comprou em 2003 os 50%
da Edimpresa detidos pelos suiços Edipress, fundiu o sector das
revistas com o dos jornais, e hoje a Impresa Publishing detém
32 títulos de imprensa, onde se destacam o Expresso, a Visão, o
Jornal de Letras, a Exame, entre outros. Confirmando de algum
modo a imagem de poupado do principal accionista, a Impresa
nunca distribuiu dividendos, usando os lucros para crescer e se
fortalecer.
Por outro lado, é sabido como as TIC, em particular a In-
ternet, vieram revolucionar e colocar desafios à comunicação
social. A imprensa, em particular, vive com uma morte anunci-
ada, seja pelas versões online, muitas delas gratuitas, seja pelas
versões para dispositivos portáteis, como e-readers e telemóveis.
Os canais generalistas de televisão vão perdendo paulatina-
mente audiências para os canais temáticos, para a Internet e
para os video-jogos. As angústias de um administrador no sec-
tor serão do tamanho das incertezas. Que fazer? Investir nas
novas tecnologias que é o futuro, mas de onde não vêm receitas,
20 António Fidalgo
ou continuar a investir nos sectores tradicionais, os de morte
anunciada, mas que são ainda os que vão pagando as contas,
nomeadamente os salários dos jornalistas? É verdade que a
euforia e o colapso das dot-com no último lustro do século pas-
sado mostraram que quem vai depressa demais queima-se, mas,
por outro lado, encontramo-nos numa era em que o primeiro
fica com tudo –the winner takes it all–, como o mostra bem
o domínio da Amazon no comércio online de livros. Assim,
de um administrador requer-se ao mesmo tempo, e quase que
paradoxalmente, prudência e audácia. Acredito que aos 73 anos
de idade o Dr. Pinto Balsemão atingiu o equilíbrio perfeito entre
essas duas qualidades.
Por fim, a luta pela liberdade de informar e ser informado
continua a ser uma luta pela independência face ao poder polí-
tico e aos muitos outros poderes, económicos, sociais e culturais,
alguns de cariz oculto. A credibilidade de um grupo prestigiado
de comunicação é um capital precioso, muitíssimo valioso, e,
portanto, algo extremamente cobiçado por quem pretende influ-
enciar de uma ou outra forma a opinião pública. Saber que o
maior grupo de comunicação em Portugal tem como accionista
maioritário e como administrador um jornalista de provas dadas,
um democrata de longa data, um cidadão que tem servido o país
e o Estado ao longo de décadas, constitui um enorme factor de
confiança na informação que nos é dada.
Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 21
5- Caro Dr. Pinto Balsemão.
O percurso que trilhou, e continua a trilhar, como jornalista,
empresário da comunicação e como político honra-o. Hoje vi-
vemos num país de expressão livre e num país muito melhor
do que aquele de 1969 quando se candidatou pelo círculo da
Guarda à Assembleia Nacional. Há quem se esqueça, ou quem
não saiba, que na década de sessenta se vivia aqui no Portu-
gal profundo como na Idade Média, com muitas das aldeias
sem electricidade e água canalizada, com concelhos sem ensino
médio, com horários de trabalho no campo de sol a sol, sem
segurança social mínima e sem cuidados de saúde. As dificul-
dades económico-financeiras que presentemente atravessamos
não se comparam àqueles anos de anquilosamento político e
sufoco social, à indigência cultural, ao desespero de uma guerra
colonial sem saída, à miséria que levou a que centenas de milha-
res de homens saíssem das suas aldeias pela calada da noite para
darem o salto para a França e aí encontrarem o trabalho com
que pudessem alimentar as mulheres e os filhos que deixavam
para trás. É nosso timbre queixarmo-nos, mas a verdade é que
Portugal foi dos países do mundo que nos últimos 40 anos mais
se desenvolveram e é hoje um país livre e muito mais justo.
Muito obrigado por essa luta pelas liberdades e pelo bem estar
social e económico que elas nos proporcionaram.
O momento que vivemos aqui e agora, aqui neste anfiteatro
em 11 de Outubro de 2010, na cidade da Covilhã, na Universi-
dade da Beira Interior, celebrando a abertura solene das aulas,
22 António Fidalgo
de cursos universitários que vão da Psicologia à Engenharia
Aeronáutica, do Cinema à Medicina, e a própria cerimónia da
outorga deste doutoramento honoris causa, é prova provada de
que muito mudou, e de que valeu a pena esse percurso de luta
pelas liberdades de expressão e de informação.
Magnífico Reitor, em nome da Faculdade de Artes e Letras,
peço as insígnias de Doutor Honoris Causa para o Dr. Francisco
Pinto Balsemão.

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Balsemao laudatio (2)

  • 1. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão∗ 1- Quando a Filosofia era disciplina obrigatória em todo o en- sino secundário e do programa fazia parte a exposição do idea- lismo alemão, uma das coisas que todos os estudantes fixavam, mesmo os mais duros de entendimento, era que um dia o filó- sofo Hegel, ao ver passar o Imperador Napoleão na sua montada, afirmara que tinha visto a razão a cavalo. A fenomenologia do espírito, manifestada dialecticamente no processo histórico, era reduzida à expressão mais simples e mais caricata. Pois este episódio, que servia e serve ainda para ridicularizar a filosofia e os professores de filosofia, tem, desde que bem compreen- dido filosoficamente, um alto valor jornalístico. Servir-me-ei da própria filosofia hegeliana para demonstrar esta afirmação. Nas Lições sobre a Filosofia da História, logo no primeiro volume, intitulado A Razão na História, escreve Hegel que a razão, da qual se diz que comanda o mundo, é uma palavra tão vazia como a palavra destino, que se usa o termo razão sem se ∗ por ocasião da atribuição do Doutoramento honoris causa pela Universidade da Beira Interior em 11 de Outubro de 2010
  • 2. 2 António Fidalgo indicar qual o verdadeiro significado e conteúdo ...Por isso, Hegel adianta que a razão, entendida concretamente, é a própria coisa. Se nos ficarmos pela concepção genérica, então ficamo- nos apenas pelas palavras. Ora é justamente este o princípio jornalístico. Só as coisas, os casos concretos, conseguem dar corpo a uma notícia. Um jornalista que faça uma notícia sobre o desemprego terá de retratar casos concretos, deste e daquele desempregado, a fim de tornar patente ao seu público o drama e a angústia que a palavra desemprego é incapaz de mostrar. Napoleão a cavalo na cidade de Jena corporizava aos olhos de Hegel o triunfo da razão, da unidade do Estado burguês sobre a irracionalidade dos mini-estados feudais –de princípes, duques e condes– em que a Alemanha de então se encontrava espartilhada. Feita a distinção entre as palavras e as coisas, entre os princí- pios e os casos concretos, há a dizer que a liberdade de expres- são e a liberdade de imprensa são princípios hoje estabelecidos, plasmados no texto das constituições nacionais, mesmo declara- dos universalmente direitos do homem. Eles marcam a distinção entre a civilização e a barbárie, e não há pois ninguém que os conteste, em princípio. Mas quanto à sua concretização real, como são esses princípios cumpridos e vividos no dia a dia? como são as coisas? A resposta obtém-se jornalisticamente, mediante casos concretos. É nos detalhes da vida real que se ob- tém uma compreensão plena dos princípios. Se o próprio Hegel declarou que a leitura do jornal é a oração da manhã do filósofo,
  • 3. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 3 é porque o pensamento tem de partir da realidade quotidiana para não se perder em exercícios fúteis e vazios sobre “supostas realidades” de cenários imaginados. Francisco Pinto Balsemão encarna, nas contingências e vicis- situdes da realidade social, política e económica, os princípios da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa. Contin- gências e vicissitudes que compreendem a ditadura e a censura antes do 25 de Abril de 1974, e ainda as derivas revolucioná- rias do PREC que levaram à nacionalização de grande parte da imprensa portuguesa, à morte do jornal A República, à to- mada da Rádio Renascença e a rotular de “pasquim” o Expresso. 2- Pinto Balsemão é sobejamente conhecido como o fundador do Expresso, como um dos 3 fundadores do PPD, hoje PSD, como ex-primeiro-ministro de Portugal nos inícios da década de 80, como o patrão da SIC e grande magnata dos meios de comunicação social, ou, dito na versão inglesa, como media tycoon. É, sem dúvida, um empresário de enorme sucesso no campo dos média e um dos mais respeitados senadores da democracia portuguesa. Seria redundante, e por isso fastidioso, enumerar aqui os feitos, os cargos, as posições, as distinções e as honras que compõem o seu currículo. Muito mais importante é realçar o impulso de base, inicial e constante, que caracteriza o seu percurso tanto de homem da comunicação como de político e o singulariza como uma das figuras mais notáveis da história recente de Portugal. O próprio, no discurso em que agradeceu a
  • 4. 4 António Fidalgo atribuição do doutoramento honoris causa pela Universidade Nova de Lisboa, o identifica claramente: Do que fiz na vida, colocaria como fio condutor e como ob- jectivo cimeiro, exercido e conseguido de diversas maneiras, consoante as épocas e as responsabilidades, a luta pela li- berdade de expressão em geral e, em especial, pelo direito a informar e a ser informado.1 (fim de citação) Essa luta pela liberdade da expressão materializa-se primei- ramente, ainda na década de sessenta, nos esforços de uma liberalização da sociedade portuguesa e, em particular, na luta contra a censura da imprensa. Francisco Pinto Balsemão é um dos muitos que acreditam na possibilidade e na vontade de Mar- celo Caetano reformar o regime político herdado de Oliveira Salazar. É o intuito de contribuir para essa reforma que o leva a integrar como independente a lista da União Nacional pelo dis- trito da Guarda às eleições legislativas de Outubro de 1969. Tem 32 anos, conhece bem os países ricos além Pirenéus, e ambici- ona para Portugal o mesmo desenvolvimento e o mesmo tipo de regime político. Nos 4 discursos que fez na campanha, na Guarda, em Pinhel, em Seia e em Gouveia, e de que resultou um livrinho, publicado logo a seguir às eleições e intitulado Menta- lização para a Eficiência, não esconde o propósito reformador, liberalizador e democrático da sua candidatura. No discurso de Seia, de 23 de Outubro, justifica porque é candidato: 1 Em 21 de Abril de 2010
  • 5. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 5 Sou candidato porque renunciei à cómoda posição de absten- ção e renúncia em que até agora, por entender não estarem criadas as condições para uma revitalização e institucionali- zação da vida política normal em Portugal, me mantive. Sou candidato porque, embora numa posição de não dependência, quero auxiliar Marcello Caetano a realizar as reformas de que a Sociedade Portuguesa carece, para que acabem de vez as injustiças, os preconceitos, as prepotências. Sou candidato porque desejo participar no ressurgimento do meu país e entendo que a Assembleia Nacional pode nele desempenhar um papel que até agora, por não querer, não saber ou não poder, não tem desempenhado. (fim de citação) Seria impossível ser mais claro. Pinto Balsemão luta por um re- gime democrático em Portugal. No discurso da Guarda, enuncia entre as “tarefas de grande importância” que os novos deputados terão pela frente o problema da efectiva aplicação dos direitos, liberdades e garantias individuais dos cidadãos portugueses; e a possível instauração de partidos políticos. Mas não é só nos objectivos que Pinto Balsemão é um liberal e democrata, é-o também no tipo de campanha eleitoral. O famoso “fair play”, que lhe ficaria para sempre como imagem de marca, é a negação total do estilo dogmático e caceteiro dos ultras do regime. Logo no início do discurso com que inicia a campanha explica as regras do jogo democrático. Nós partimos da dúvida. Queremos lutar pela vitória, tra- balhar para a merecer. Queremos demonstrar a nossa ra-
  • 6. 6 António Fidalgo zão, sem necessidade de a impor. Queremos obter votos sem pressões, sem tráfico de influências, apenas pela força dos nossos argumentos. ...Esta atitude de incerteza, este reco- nhecimento de que é indispensável trabalhar, devemo-los não apenas a nós próprios, mas também aos nossos adversários. Por mais que discordemos das suas opiniões, por mais que nos inquietem os seus nem sempre bem disfarçados propó- sitos ..., não devemos desprezar ou achincalhar os nossos opositores. Só respeitando os seus direitos e as suas posições poderemos, depois do dia 26, falar aberta e honestamente de vitória. (fim de citação) Boas intenções, excelentes propósitos. Mas, como sabemos, a primavera marcelista foi sol de pouca duração. Os deputados independentes eleitos, Miller Guerra, Pinto Leite, Mota Amaral, Sá Carneiro, Pinto Balsemão, não foram levedura suficiente para, dentro da Assembleia Nacional, operar a ambicionada transição reformadora do regime. Todas as propostas de lei que apresentaram, nomeadamente o Projecto da Lei de Imprensa, subscrito por Sá Carneiro e Pinto Balsemão, onde se abolia o exame prévio ou censura, foram chumbadas pela maioria situacionista. Mais grave ainda, confrontado com as críticas dos independentes, designados entretanto por Ala Liberal, o regime endureceu. Só que a guerra colonial tornava a situação insustentável. Os cabeças duras do regime e a tibieza de Marcelo Caetano não deixaram outra saída que não fosse a revolução e
  • 7. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 7 os subsequentes desvarios políticos, sociais e económicos do PREC. No livro Informar ou Depender?, publicado no Verão de 1971, Pinto Balsemão oferece uma ampla justificação do re- ferido Projecto da Lei de Imprensa. Apesar de constituir uma clara rotura com o regime, o livro assume ainda assim uma atitude pedagógica, mostrando a inevitabilidade das reformas. Era absurdo e mesmo ridículo manter a censura na era espacial, com os satélites de comunicação girando à volta da terra, capa- zes de emitir a breve trecho rádio e televisão directamente para cada lar. Cito agora directamente do livro: As consequências políticas, económicas, jurídicas, urbanísti- cas, educacionais, etc., dos satélites artificiais, no campo das comunicações são assim incalculáveis. ...O globo encurtou- se pela rapidez vertiginosa dos transportes e pela instanta- neidade das comunicações. As nações não podem continuar a viver no seu esplêndido isolamento. O lema que atravessa todo o livro de 330 páginas é de que uma informação livre e independente é a outra face da moeda de uma sociedade desenvolvida. Passo a citar: Depende em boa parte da independência da informação face aos poderes político e económico a construção de uma socie- dade livre em que desapareça ou diminua a diferença entre ricos e pobres; em que a força não esteja concentrada nas mãos de um número cada vez mais reduzido de pessoas, ...em que todos tenham idênticas oportunidades de instrução. p. 20
  • 8. 8 António Fidalgo A segunda parte do livro, dedicada ao caso português, começa por registar o falhanço da informação portuguesa na moderni- zação do país. Por falta de independência e por falta de capaci- dade. A RTP e a Emissora Nacional, órgãos públicos, estavam subordinadas às directivas do Governo e, as rádios e os jornais privados, eram atrofiados pela censura prévia: A censura prévia impede os jornais de publicarem o que desejam e obriga-os a uma dependência rotineira do poder político (quando não, também, do poder económico). O fan- tasma da censura prévia causa inibições, trava iniciativas (não apenas jornalística, mas também no sector dos inves- timentos) e diminui a aptidão das pessoas para produzirem uma informação tão satisfatória quanto o poderiam fazer. Mais uma vez, o círculo vicioso da falta de independência e da falta de capacidade. p.176 Mas a lucidez da análise e os bons argumentos aduzidos não convenceram quem não queria ser convencido. Por dentro o regime era irreformável. Todavia, o livro, que na primeira parte é uma exposição geral sobre a comunicação em geral, tem o mérito de definir os princípios que presidiriam à criação do Expresso. Com efeito, um ano e meio antes no primeiro número do semanário, Pinto Balsemão no capítulo nono, “Conteúdo e forma do produto”, coloca a hipótese de: um grupo de pessoas, dotadas de preparação profissional jornalística, administrativa e técnica e não ligadas a gru-
  • 9. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 9 pos políticos ou económicos, pretenderem fundar um jornal de informação num país menos desenvolvido. A empresa a constituir deseja que o investimento seja lucrativo, de modo a não de vir a enfeudar-se a subsídios ou a empréstimos condicionados. Tem, contudo, plena consciência de que a empresa jornalística não deve servir apenas para ganhar di- nheiro e quer contribuir para o progresso da sua comunidade. Que tipo de jornal deve produzir? A que regras fundamentais devem obedecer a sua forma e sobretudo o seu conteúdo? Depois de distinguir entre jornais de qualidade, dirigidos às élites, e dedicados sobretudo à política nacional e internacio- nal, aos problemas técnicos culturais, financeiros e económico- sociais, e jornais populares ou de sensação, dirigidos ao grande público, Pinto Balsemão define um jornal de meio termo, con- ciliando os aspectos positivos de um e outro tipo e, assim, obter uma venda considerável e um prestígio sem máculas. ...estabelecer um equilíbrio entre a leitura superficial dos ar- tigos sensacionais e a leitura profunda de artigos de opinião. . . .Para isso, emprega redactores e colaboradores qualifica- dos capazes de abordar, de um modo ao mesmo tempo leve e sério, quer a informação política, económica, científica e artístico-literária, quer os temas que servem apenas para distrair o público. O jornal de termo médio esforça-se por ligar os dois extremos, informando e formando, ajudando e distraindo. p. 123
  • 10. 10 António Fidalgo O lançamento do Expresso em 6 de Janeiro de 1973 é um su- cesso. Segue um modelo anglo-saxónico, aposta num formato broad-sheet, e, sem descurar temas que possam interessar ao grande público dos jornais populares, dá especial relevo à polí- tica e à opinião. Torna-se leitura obrigatória de todos os que em Portugal sentem o imperativo e a urgência da reforma política. Reconhecidamente, o Expresso desempenhou um papel funda- mental na consciencialização política da sociedade portuguesa em geral e, em particular, de alguns capitães da revolução de Abril de 1974. Ironia do destino, ou talvez não, porque a independência da informação é tão incómoda à direita como à esquerda de cariz totalitário, o Expresso que era um jornal tido como um jornal avançado e progressista antes da Revolução, e por isso criticado e censurado, passa a ser visto e atacado como um jornal burguês e anti-revolucionário quando os sectores militares ligados ao Partido Comunista Português iniciam, sobretudo após o 28 de Setembro de 1974 e o 11 de Março de 1975, um processo revolucionário da sociedade portuguesa. O Verão quente de 1975 é um período de tremenda luta política, de conspirações, de golpes e contra-golpes, reais e imaginados, de manifestações a favor e contra. E se o poder não andava pela rua, andava pelos quartéis, com os reformadores à volta do Grupo dos Nove, e os revolucionários, apoiantes do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves, contando as espingardas. O Expresso torna-se um dos principais obstáculos à sovietização do país e, por isso
  • 11. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 11 mesmo, um alvo a abater. É directa e violentamente visado no famigerado discurso de Vasco Gonçalves em Almada, em 18 de Agosto de1975, apelidado de “pasquim” e acusado de libertinagem informativa ao serviço das forças reaccionárias. Se a loucura que percorreu Portugal durante o PREC não teve consequências ainda mais nefastas, isso também se deve em muito ao baluarte de independência informativa do Expresso. A independência e a coerência que manteve face aos totalita- rismos de direita e esquerda granjeou-lhe um estatuto único na imprensa portuguesa. Os começos do Expresso foram caldeados na luta contra autoritarismos Dessa luta pela defesa da liberdade de informar podemos retirar um corolário importante: a liberdade de ex- pressão e a liberdade de imprensa são a parte mais exposta das liberdades e direitos individuais e colectivos. Começa-se por censurar e encerrar meios de comunicação e, de seguida, prendem-se as pessoas. A melhor garantia de direitos e liberda- des dos cidadãos são justamente as liberdades de expressão e de imprensa. Nos anos de brasa de 1974 e 1975, Pinto Balsemão encarnou como ninguém a liberdade de expressão. Se Hegel tivesse vindo cobrir a transição política de Portugal para o jornal de que foi chefe de redacção, o Bamberger Zeitung , quem sabe se não teria reportado que vira em Portugal a liberdade de imprensa guiando um Porsche.
  • 12. 12 António Fidalgo 3- A liberdade de imprensa tem como correlato necessário a aceitação do escrutínio, da crítica e da divergência por parte de todos os que assumem posições e cargos públicos. Sob pena de se tornar propaganda, a imprensa segue uma lógica diferente da lógica da governação. Enquanto a governação ambiciona a unanimidade, no peito da imprensa bate sempre um coração de Cassandra, uma voz dissonante. A convivência, que não a conciliação, destas lógicas exige dos políticos poder de encaixe face à imprensa. Os políticos têm de conviver com notícias que eles próprios acham erradas ou distorcidas e com críticas que acham injustas. Mal vai a liberdade de imprensa quando os políticos são useiros e vezeiros em recorrer à via judicial para “meter a imprensa na ordem”. Dito de uma forma mais crua. A liberdade de expressão e a liberdade de imprensa têm como pedra de toque o direito a dizer mal. E é aqui que estão os espinhos e os ossos dessas liberdades, que em princípio todos aceitam, mas que na prática, tão difíceis se tornam na sua realização. É que, desde que seja para apoiar e dizer bem, os regimes totalitários são paladinos das mais amplas liberdades de informação. Francisco Pinto Balsemão foi ministro e primeiro-ministro quando a Aliança Democrática esteve no poder e foi criticado no Expresso. É um dos episódios mais conhecidos da sua tra- jectória de político. Ele próprio se lhe referiu ainda este ano: É sabido, também, que, quando fui Primeiro Ministro de Por- tugal, durante dois anos e meio ...o Expresso me atacou.
  • 13. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 13 ... Mas, para além de, nalguns casos, me sentir injustiçado ou mal tratado, e isso pouco interessa, o que me parece im- portante assinalar é que, não só nesses anos difíceis do início da década de 80, como antes e depois, procurei sempre ser coerente com um princípio que não basta proclamar, porque é preciso praticá-lo no dia a dia: a defesa intransigente da liberdade de informação perante o poder político e o poder económico, e outros tipos de poder... Pinto Balsemão não confundiu planos, não demitiu o director, não fez do Expresso um porta voz dos seus Governos. Soube respeitar como político a autonomia editorial do jornal, de que era dono. Não conheço maior exemplo de fair play nas rela- ções entre poder político e imprensa, de absoluto respeito da autonomia editorial. Não fazendo nunca carreira política, Pinto Balsemão tem um dos percursos políticos mais marcantes da democracia por- tuguesa, sendo um dos seus founding fathers. Lutou pela de- mocracia quando não a havia, e, uma vez instalado o regime democrático, é um dos seus principais intervenientes: com Sá Carneiro e Magalhães Mota fundou o PPD/PSD, um dos par- tidos políticos charneira na democracia portuguesa, integrou a Assembleia Constituinte de que foi Vice-Presidente, foi minis- tro e primeiro ministro, deputado várias vezes à Assembleia da República. No livro Estabilizar a Política para Criar a Con- fiança de 1985 presta contas sobre a sua governação. Foram tempos difíceis, externos e internos. Mas Pinto Balsemão soube
  • 14. 14 António Fidalgo concentrar-se no essencial: rever a Constituição da República. Foi tarefa ingente, mas indispensável para criar em Portugal uma democracia plena, abolindo o Conselho da Revolução e submetendo as Forças Armadas ao poder político. A revisão constitucional foi um passo decisivo e necessário no processo de adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Afastado hoje do combate político quotidiano, não deixa de participar e intervir na vida política nacional, desde logo como membro do Conselho de Estado e depois assumindo com “orgulho e empenho” o estatuto de militante no 1 do Partido que fundou. 4- Por fim, é sabido que a principal actividade do Dr. Pinto Balsemão é hoje a administração do Grupo Impresa, de que é sócio maioritário. Podemos perguntar: como é que a luta pela liberdade de expressão se concretiza na gestão de uma em- presa cotada em bolsa, sujeita às exigências do mercado? Não constitui porventura a valorização da empresa o seu principal objectivo e, sendo assim, não serão quaisquer princípios, por mais nobres que sejam, sacrificados à racionalidade económica? Por um breve momento voltemos a Hegel para nos lembrarmos que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa só na sua realização histórica e concreta encontram a sua verdade. A materialização desses princípios ocorre num determinado contexto social, cultural e económico. Não é preciso ser mar- xista para reconhecer que a economia condiciona o agir humano
  • 15. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 15 em todas as suas vertentes. Não há liberdade de imprensa sem jornais e televisões em que possa ser exercida. E os jornais e as televisões têm de ser economicamente viáveis, para serem editorialmente independentes. A liberdade de imprensa tem como primeira condição o rea- lismo económico. E isso é competência de um bom empresário da comunicação. No livro de 1971, Informar ou Depender?, Pinto Balsemão é muito realista na formulação do problema: O jornal – ou qualquer dos outros media – é, e tem de ser, para salvaguardar a sua autonomia, um empreendimento co- mercial e não uma instituição de caridade. ...Eis a razão pela qual os dirigentes das empresas de Informação se vêem muitas vezes na obrigação de resolver problemas delicados. Estes resumem-se à resposta a dar à pergunta seguinte: ga- nhar mais ou informar melhor? p. 159 E a questão não se restringe à opção entre artigos de sensa- ção e informação séria, ela abarca também os casos em que o aumento da qualidade jornalística não é acompanhado por uma“correlativa melhoria das receitas”. O realismo de Pinto Balsemão vem ao de cima na equilíbrio salomónico com que responde à questão: Verificamos, em conclusão, que a luta árdua, por vezes de- sesperada, dos meios de Informação para manterem a sua independência financeira pode levar à transigência perante os gostos dos leitores, dos consumidores, não compatíveis
  • 16. 16 António Fidalgo com a independência da Informação no sentido em que até aqui a temos defendido, ou seja: serem os media a influenciar a massa, e não a massa a influenciar os media. Pinto Balsemão escreveu estas palavras em 1971, dois anos antes de o Expresso vir a lume, e mais de vinte antes da primeira emissão em 6 de Outubro de 1992 da Sociedade Independente de Comunicação, a SIC. Na verdade, o dilema atrás enunciado agudiza-se sobrema- neira na Televisão, quando a lógica do entretenimento se torna uma ameaça à informação na forma de infotainment. As audên- cias são cruéis e mais cruel ainda é o share. Entre o que se diz que se gosta de ver e o que efectivamente se vê há um abismo em que soçobram os melhores projectos de programação. Essa dicotomia entre o desejo e a acção é algo que nunca foi estranho ao cristianismo, pois que São Paulo escreve na Carta aos Ro- manos: "Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero". Sabemos, todavia, que até a Igreja Católica em Portugal não teve em atenção este aviso quando lançou a TVI. Pinto Balsemão foi criticado – e imagino que continue a sê- lo – por alguma da programação dos vários canais da SIC, e por conteúdos dos jornais e revistas que integram o Grupo Impresa. No entanto, sempre recusou, aberta e declaradamente, enquanto administrador desses órgãos, o papel de padre, de educador ou de professor. O facto de reconhecer realisticamente os gostos das audiências não significa uma caução a esses gostos, mas a necessária aceitação da pluralidade e diversidade de consumos
  • 17. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 17 e preferências numa relação que é também comercial. Conhecer essas preferências é crucial para sobreviver no mercado da comunicação. E volto a citar do mesmo livro. Se as funções da Imprensa são informar, orientar, interpre- tar e entreter, é justo que se procure conhecer os anseios profundos do público, as suas necessidades, os problemas prementes que a comunidade deseja ver tratados no seu jor- nal e no seu programa de Rádio ou de TV. É justo ainda que se averigúe o que mais entretém, o que mais atrai, o modo mais persuasivo, mais directo, de interpretar e de orientar. É justo – por permitir à Informação um melhor cumprimento da sua missão – e necessário, em virtude das dificuldades económicas das empresas de Informação, sombra principal que ameaça a respectiva independência. p. 158 Lembro que são palavras de há quase 40 anos e que mantêm hoje a mesma pertinência. Mas o mais importante todavia é que mesmo assim, mesmo reconhecendo a legitimidade de conhecer as preferências dos públicos e de, em princípio as satisfazer, há um limite, sendo este o interesse da própria comunidade: Mas afigura-se que há que parar nesse momento: há que não submeter a orientação do jornal à vontade dos leito- res. .. .Impõe-se que fundadores-proprientários-orientadores, não vendam qualquer informação, mas a que mais interessa à comunidade. p. 159 A informação, sendo, além de um serviço, um negócio, não é um negócio qualquer. A distinção clássica da retórica grega
  • 18. 18 António Fidalgo entre ethos e pathos, sendo o ethos, a autoridade e a credibili- dade de quem informa e o pathos a inclinação ou preferência de quem escuta, ilustra as forças distintas que interagem no acto informativo e que devem ser tidas em máxima conta numa em- presa de comunicação. Na informação não se valoriza apenas a satisfação das preferências (o saciar da curiosidade), valoriza-se sobretudo a credibilidade da fonte da informação. Um jornal ou qualquer órgão de informação que tivesse como critério único a satisfação do pathos das suas audiências, agiria como um dema- gogo, indo e vindo de cá para lá, arrastado pela volubilidade de interesses momentâneos. Ao invés, a informação séria, credível, tem um rumo próprio, independente dos gostos das audiências. Mas a credibilidade é um capital, algo que se vai juntando, ame- alhando com o tempo. Decorre do respeito pelos princípios que valem nos bons e maus momentos, nomeadamente de isenção, objectividade e apuramento das notícias. Podemos então dizer que a luta que hoje o Dr. Pinto Bal- semão trava pela liberdade de informar e ser informado passa pelo realismo económico e credibilidade informativa do Grupo Impresa. É um tipo de luta menos visível que a de jornalista, chefe de redacção ou director de informação, mas, decerto, não menos importante e exigente e de muito maior responsabili- dade. No contexto de grande turbulência económico-financeira, iniciado há uma década com o rebentamento da bolha bolsista dot-com e reavivado com o crash do sub-prime em 2008 e a crise do endividamento das economias periféricas da União Eu-
  • 19. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 19 ropeia já este ano, é necessário muita cabeça fria e nervos de aço para enfrentar os problemas e os desafios postos às empresas de comunicação. A descida brutal das receitas de publicidade e a quebra de vendas obrigaram ou ao fecho de jornais ou a profundas e vezes dolorosas re-estruturações de redacções. Não obstante isso, o Grupo Impresa cresceu e fortaleceu-se nestes últimos dez anos. Adquiriu primeiro a maioria do capital da SIC e depois, em 2005, a totalidade. Lançou os canais temáticos por cabo onde se destaca a SIC Notícias, comprou em 2003 os 50% da Edimpresa detidos pelos suiços Edipress, fundiu o sector das revistas com o dos jornais, e hoje a Impresa Publishing detém 32 títulos de imprensa, onde se destacam o Expresso, a Visão, o Jornal de Letras, a Exame, entre outros. Confirmando de algum modo a imagem de poupado do principal accionista, a Impresa nunca distribuiu dividendos, usando os lucros para crescer e se fortalecer. Por outro lado, é sabido como as TIC, em particular a In- ternet, vieram revolucionar e colocar desafios à comunicação social. A imprensa, em particular, vive com uma morte anunci- ada, seja pelas versões online, muitas delas gratuitas, seja pelas versões para dispositivos portáteis, como e-readers e telemóveis. Os canais generalistas de televisão vão perdendo paulatina- mente audiências para os canais temáticos, para a Internet e para os video-jogos. As angústias de um administrador no sec- tor serão do tamanho das incertezas. Que fazer? Investir nas novas tecnologias que é o futuro, mas de onde não vêm receitas,
  • 20. 20 António Fidalgo ou continuar a investir nos sectores tradicionais, os de morte anunciada, mas que são ainda os que vão pagando as contas, nomeadamente os salários dos jornalistas? É verdade que a euforia e o colapso das dot-com no último lustro do século pas- sado mostraram que quem vai depressa demais queima-se, mas, por outro lado, encontramo-nos numa era em que o primeiro fica com tudo –the winner takes it all–, como o mostra bem o domínio da Amazon no comércio online de livros. Assim, de um administrador requer-se ao mesmo tempo, e quase que paradoxalmente, prudência e audácia. Acredito que aos 73 anos de idade o Dr. Pinto Balsemão atingiu o equilíbrio perfeito entre essas duas qualidades. Por fim, a luta pela liberdade de informar e ser informado continua a ser uma luta pela independência face ao poder polí- tico e aos muitos outros poderes, económicos, sociais e culturais, alguns de cariz oculto. A credibilidade de um grupo prestigiado de comunicação é um capital precioso, muitíssimo valioso, e, portanto, algo extremamente cobiçado por quem pretende influ- enciar de uma ou outra forma a opinião pública. Saber que o maior grupo de comunicação em Portugal tem como accionista maioritário e como administrador um jornalista de provas dadas, um democrata de longa data, um cidadão que tem servido o país e o Estado ao longo de décadas, constitui um enorme factor de confiança na informação que nos é dada.
  • 21. Laudatio do Dr. Francisco Pinto Balsemão 21 5- Caro Dr. Pinto Balsemão. O percurso que trilhou, e continua a trilhar, como jornalista, empresário da comunicação e como político honra-o. Hoje vi- vemos num país de expressão livre e num país muito melhor do que aquele de 1969 quando se candidatou pelo círculo da Guarda à Assembleia Nacional. Há quem se esqueça, ou quem não saiba, que na década de sessenta se vivia aqui no Portu- gal profundo como na Idade Média, com muitas das aldeias sem electricidade e água canalizada, com concelhos sem ensino médio, com horários de trabalho no campo de sol a sol, sem segurança social mínima e sem cuidados de saúde. As dificul- dades económico-financeiras que presentemente atravessamos não se comparam àqueles anos de anquilosamento político e sufoco social, à indigência cultural, ao desespero de uma guerra colonial sem saída, à miséria que levou a que centenas de milha- res de homens saíssem das suas aldeias pela calada da noite para darem o salto para a França e aí encontrarem o trabalho com que pudessem alimentar as mulheres e os filhos que deixavam para trás. É nosso timbre queixarmo-nos, mas a verdade é que Portugal foi dos países do mundo que nos últimos 40 anos mais se desenvolveram e é hoje um país livre e muito mais justo. Muito obrigado por essa luta pelas liberdades e pelo bem estar social e económico que elas nos proporcionaram. O momento que vivemos aqui e agora, aqui neste anfiteatro em 11 de Outubro de 2010, na cidade da Covilhã, na Universi- dade da Beira Interior, celebrando a abertura solene das aulas,
  • 22. 22 António Fidalgo de cursos universitários que vão da Psicologia à Engenharia Aeronáutica, do Cinema à Medicina, e a própria cerimónia da outorga deste doutoramento honoris causa, é prova provada de que muito mudou, e de que valeu a pena esse percurso de luta pelas liberdades de expressão e de informação. Magnífico Reitor, em nome da Faculdade de Artes e Letras, peço as insígnias de Doutor Honoris Causa para o Dr. Francisco Pinto Balsemão.