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Sexta-feira da Paixão

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Sexta-feira da Paixão

Espremida entre a serra e o oceano existe uma cidade que o leitor poderá considerar como
fantasia nascida na cabeça desta contadora de história, ou não. Prefiro deixar que este assunto fique na
preferência de quem está lendo. Mas, a verdade nua e crua, é que esta contadora de história se inspirou
num aprazível lugar que conheceu durante suas andanças. Contudo, para levar a história adiante,
vamos fazer de conta que ele existe mesmo, cravado no litoral norte do Estado de São Paulo, uma
progressista cidade litorânea, verdadeiro paraíso tropical.
Duas magníficas rodovias levam o viajante até ela, uma vinda pelo litoral, a outra descendo a
serra e caindo bem no meio dela. Vindo pela via litorânea, o viajante encontra magníficos
condomínios, alguns com casas de veraneio de alto padrão, outros mais modestos, mas ainda assim
dignos de admiração, marinas, hotéis, restaurantes. Num dos mais belos condomínios, destacam-se,
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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

visíveis da rodovia, as faraônicas mansões do Dr. Danilo Guimarães, importante magnata paulista, a do
Dr. Haroldo Penteado, vitorioso empreiteiro de obras públicas, a do combativo Deputado Estadual
Carlos Vieira, antigo prefeito da cidade, emérito cidadão que fala grosso na política.
Também nesta região se encontra o Cemitério Municipal, mais para o lado da Serra, com
acesso por rodovia secundária porem asfaltada, onde há um túmulo muito visitado por turistas e
caiçaras da região. A lápide de mármore rosa, generoso presente da Associação Comercial, tem o
inusitado formato de um coração, e abriga sob ela os ossos de uma freira considerada santa e
milagreira, para quem velas, flores e pedidos são ali diariamente depositados por devotos, agradecidos
e necessitados.
Para chegar ao centro comercial da cidade atravessa-se uma ponte de concreto sobre o Rio
Feio, mas não tão feio como seu nome proclama, pois é ladeado por gramados, flores e plantas
tropicais, obra de afamado paisagista paulistano. Muito pelo contrário, uma beleza de rio, de águas
muito escuras, margeado por jardins. E logo depois da ponte, atravessa-se um enorme portal,
arquitetura moderna, com os dizeres “BEM-VINDO AMIGO VISITANTE”. O grande portal dá inicio
a uma rotatória que ostenta bem no meio uma estátua de mulher em bronze, recém-inaugurada com
discursos e foguetório. Uma placa com inscrição identifica a notável personagem: "Homenagem a
Dona Ana Gallo, nossa prefeita por três mandatos".
A rua principal, assim como todas as outras da cidade, é arborizada e cheia de canteiros com
flores diversas — azaleias, tarjetes, gerânios, maria-sem-vergonha, tornando o caminho colorido e
agradável. Pela construção dos prédios e pelo comércio nota-se a pujança econômica do lugar. Um
shopping center de bom tamanho, com lojas de souvenires, butiques, cafés e sorveterias, um
hipermercado com um feérico letreiro luminoso "Eufrásio e Filhos", a igreja matriz branca e azul,
estilo colonial no meio de uma praça florida e sombreada por chapéus-de-sol, o hospital moderno
capitaneado pela Dra. Zezé Peres, o calçadão salpicado de mesinhas, com bares e restaurantes
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oferecendo serviço de garçom, os hotéis modernos em prédios com elevadores e valetes fardados na
porta. E a cadeia de motéis que levam o nome "Império Romano", I, II, III, IV, construções com altos
muros, amarelos, ostentando a cada dois metros a estatueta de um fauno em mármore branco.
Não há em todo território nacional lugar mais seguro para viver ou veranear. A lei se faz
presente nas figuras do Dr. Ubirajara Guedes de Oliveira, idoso delegado à beira da aposentadoria
compulsória e do capitão da PM, Nivaldo de Jesus. Ambos mantêm, com o auxílio do destacamento da
PM local, a cidade em ordem. Com mãos de ferro não permitem o estabelecimento de traficantes e o
comércio de drogas qualquer que seja, nem drogados são tolerados. Mas bebedeiras e porres
monumentais que sempre acontecem não são levados em conta, o que não é de se estranhar pois uma
das maiores marcas de caninha do pais é ali fabricada por honrada família iguatubense.
Ah! Não foi ainda mencionado o seleto clube Lady's Home, fundado pelas beneméritas
senhoras Alice Mendes e Áurea Pacheco, setentonas com aparência de quarenta, devido a portentosa
ajuda do bisturi de afamado cirurgião paulistano. O Lady's Home é dedicado às mulheres da terceira
idade, palacete finamente decorado, com professor de hidroginástica, massagistas importadas peritas
em massagem linfática, cabeleireiras e esteticistas, lugar frequentado por donas de alto coturno da
sociedade local, que recendem a perfume francês e com conta bancária de vulto.
Como todo lugar que se preze, Igaratuba tem seus mitos, seus folclores, seus personagens
típicos. Há uma casa velha, hoje museu da cidade e antiga sede da destilaria, que todo habitante jura de
pé junto ser assombrada. Ainda há a assombração de duas figuras molambentas que dizem vagar na
madrugada pela avenida beira-mar, por sinal magnífica, arborizada com palmeiras e coqueiros em toda
sua extensão. E a figura folclórica de um habitante lelé-da-cuca, um mentecapto que se diz atrás de um
tesouro, um mulato de cabeça quase branca que faz buracos, dando trabalho aos jardineiros, escavando
o parque municipal, terreno antes pertencente ao emérito e exemplar cidadão Dionísio Lugão, doado
para recreação e deleite do povo iguatubense.
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Sexta-feira da Paixão

Há também a figura viva, em carne e osso, de Tonico de Abreu que, com seus noventa anos ainda é
ai Jesus do mulherio cuia fama de garanhão tinha ultrapassado fronteiras, herói cultuado e reverenciado por
vasta coorte de machos Igatubenses, com seus gloriosos feitos cantados em verso e prosa, invejado pelos
varões dos 13 aos 90 anos; herói sem nunca ter lutado numa batalha, sem nunca ter mostrado heroísmo
salvando um vivente em perigo, sem nunca ter fundando meritória instituição de ajuda ao próximo, herói
cujo único magnífico feito era manter uma ereção diária de quase vinte quatro horas, fato este inexplicado
pela ciência, admirado pelos médicos e digno de ser incluído no Guiness.
Esta é a Igaratuba de hoje, moderna, progressista, que tem a sua florescente economia baseada
em turismo, numa grande indústria pesqueira, dos sócios milionários Gabril Mazzini e Antonio da
Silva, mais conhecido como Antônio-sem-calça e na lucrativa indústria da cachaça. Contudo, quero
dizer ao leitor que não vale a pena contar a história deste lugar como ele é atualmente, seria muito sem
graça. Nem contar como Igaratuba surgiu no mapa do estado. Prefiro falar do lugar pacato que era,
quando não tinha o esplendor necessário para ser colocada entre os balneários
de luxo, embora, naquele tempo, fosse frequentada por ricaços que preferiam
veranear em lugares menos badalados. Era uma cidade que lutava para
sobreviver com as temporadas de verão, época das vacas gordas, quando ela
inchava e o dinheiro entrava a rodo, pois no Brasil inteiro sempre foi assim, do
Oiapoque ao Chuí; toda cidade beira mar que se preze tem vocação para o
turismo. O intuito de quem escreve é contar, sem tirar nem por, sem exageros
nos detalhes mas também, não deixando de lado as minúcias, um pedaço da
história deste lugar e de alguns viventes, não poderia contar a de toda a
população, é claro, faltaria tempo, competência e papel. Mas contarei a de
alguns residentes e uns outros passantes e como tudo o que aconteceu mudou suas vidas e a vida da
cidade para sempre.
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I

Segunda-feira

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Segunda-feira

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O

verão

daquele começo dos
anos 70 estava no
fim.

Já

agonizava

calmo e lento, mas o
calor ainda não tinha
fugido para esquentar outras paragens. As noites, porém, eram frescas e agradáveis, noites apropriadas
para se dormir com um cobertor leve e com venezianas fechadas.
A brisa do mar soprando leve provocava um arrepio gostoso nos que saiam sem agasalho
depois que o sol morria. Durante o dia, quando não chovia e quando não se acumulavam nuvens
densas no céu unindo a linha do mar à serra, o sol dourado queimava os banhistas amontoados na
areia, escurecia em tons de marrom os moleques soltos pelas ruas e acariciava a pele dos que não
procurava uma sombra fresca. Um sol quente iluminava toda a região, um sol que anulava a aragem
marítima, um sol que provocava uma sede danada e aumentava o consumo de chopes, de cervejas e de
refrigerantes. Quando o inverno chegasse, ele ainda estaria brilhando, embora mais suavemente, ainda
estaria queimando alguns poucos turistas renitentes, casais em lua-de-mel, os moleques e a criançada,
soltos na vagabundagem das ruas, mas a animação da cidade, a vida e a balbúrdia da temporada de
verão só voltariam no ano seguinte com um outro novo verão. Fora da temporada de férias, o mundo
ali era pacato e diferente, a vida ficava adormecida e calma, a pasmaceira sem fim tomando conta de
tudo e de todos.

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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

Naquele dia de fim de temporada, Igaratuba despertou alegre, espreguiçando-se molemente
entre a montanha e o mar. Já na fímbria da manhã a luz de um sol promissor substituiu a fraca luz
elétrica das ruas e foi tingindo pouco a pouco o horizonte sobre o mar de tons de vermelho vivo. As
águas escuras foram clareando, passando por um cinza chumbo, depois, um cinza claro, até tornaremse esverdeadas e cintilantes. Aos poucos, uma a uma, as janelas foram se abrindo, as venezianas
chocando-se contra as paredes, e as chaminés começaram a vomitar a fumaça dos fogões de lenha,
ainda em uso em muitas casas. O aroma do café quentinho, do café feito na hora, café ralinho ou café
bem preto, deixava as casas e invadia as ruas para ir se desmanchar na brisa da manhã.
Do lado oposto do mar, o sol começava a colorir de tons vivos os picos dos morros, fazendo
renascer os tons verdes das matas, neutralizando os tons azulados e violetas que desapareciam
lentamente até que, finalmente, toda a serra resplandeceu glorioso, na sua majestade. As folhas das
mangueiras brilhavam, ainda molhadas de orvalho, num verde escuro e profundo, pintadas de
pontinhos refulgentes enquanto que as amendoeiras das ruas refletiam o dourado das copas alegres e
acolhedoras, debruçando-se sobre o muro das casas, balançando suas folhas em frente das portas ainda
fechadas dos bares e armazéns.
Pouca gente andava pelas ruas. O padeiro ia de casa em casa entregando os últimos pães para a
freguesia. Ia vagaroso, arrastando-se na carrocinha velha de um só cavalo também velho. Contornou a
igreja, entrou pela Rua Sete de Setembro sacolejando os cestos com pães e broas quentes num balanço
perigoso, e sumiu da vista de Seu Teodoro que atravessava o largo da matriz em direção aos seu bar. O
dono da sorveteria e bar "Ponto Chic" passou pelo último banco da praça, atravessou a rua e preparouse para abrir, limpar, varrer e lavar o melhor estabelecimento da cidade, o primeiro a abrir todos os
dias suas portas para acolher os fregueses viciados em levantar cedo.
Embora quase ninguém transitasse pelas ruas e pela praça principal, todos os cães da cidade já
tinham tomado conta das calçadas. Podia-se ver a cada cem passos uns vira-latas, ou refestelado no
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passei, ou fuçando uma lata de lixo esquecida, na esperança de uma refeição matinal, ou rodeando um
poste. Aos bandos, ou solitários, os vira-latas eram, naquela hora, os donos da cidade, e tomariam
conta dela até que a vida e o movimento se instalassem definitivamente nas ruas, na praça e nas casas
comerciais, trazendo gente que andava à toa e gente que trabalhava.
Já passava das sete e meia quando um grupo de jovens atravessou o largo da matriz, em direção
a Rua Quinze de Novembro onde funcionava o Colégio Estadual e Escola Normal de Igaratuba. Agora
a cidade já tinha o movimento usual da manhã, o comércio se abrindo, gente indo em direção da
escola, das lojas, ou andando sem destino certo. Caminhões e automóveis, não muitos, mas já o
suficiente para causar certo barulho, cruzavam a rua principal, uns para parar mais adiante no posto e
abastecer os tanques, outros dobrando as esquinas, outros passando reto em direção a São Damião. A
praia porém, ainda estava vazia de gente, as areias brancas brilhando ao sol, convidativas e macias.
As moças atravessaram a praça alegremente e entraram na Rua Quinze de Novembro. Um
bando de homens já a postos na porta do Ponto Chic, interrompem a discussão que se iniciava a
respeito do governo, para olhar as jovens que passavam.
— Que safra boa essa! Comentou Tônico de Abreu que tinha fama de mulherengo e se
considerava o maior olho clínico para classificar uma fêmea.
Os comentários se sucederam os olhos gulosos a medir e a conferir.
— Boa pra burro. Gostosona. Olha pra ela. A menina vai longe.
— Tá virando um pedaço de mulher! Que bundão!
— Deixa o pai dela ouvir isso que ele te quebra a cara e a boca!
— É a melhor delas, apetitosa! Dizem que vai ficar noiva daquele rapaz de São Paulo. Aquele
que a família tem casa na Enseada dos Coqueiros.
— Que tá no ponto para casar, lá isso é verdade. Um tesão!
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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

— Pra uns cinco daqui eu sei que ela já deu.
Alheia ao que sobre ela comentavam, Rute Pacheco da Silva, bambaleava-se junto das amigas
em direção à escola. Fazia um cartaz enorme junto das outras, porque era a única que namorava firme,
compromisso sério, e que ficaria noiva naquela semana, noiva de aliança no dedo, enxoval
encomendado e casamento quase que marcado. Era uma morena vistosa, bonita, dourada nas praias de
Igaratuba e temperada com o sal do oceano, cabeleira farta, rolando nos ombros, o corpo apertado na
blusa branca do uniforme, a cintura fina, olhos esverdeados orlados por cílios enormes, cílios de
boneca. E também uma jovem cheia de vida, moderninha, filha de gente rica e da melhor sociedade
local. Os Pachecos da Silva, já estavam por aquelas bandas há muitos anos. Aos poucos foram
consolidando uma sólida fortuna em terras, loteamentos, propriedades imensas na região e terrenos
bem localizados dentro da área urbana. Inácio Pacheco da Silva era o concorrente dos bancos, o
banqueiro da região, emprestando a juros para quem precisava e não conseguia com os
estabelecimentos bancários, negociando títulos e hipotecas, financiando empreendimentos. Era, além
disso, dono do maior e melhor hotel da região para onde convergia o grosso da granfinada da capital e
das cidades maiores, aqueles que não queriam se dar ao luxo e trabalho de manter uma casa na Enseada
dos Coqueiros. O Hotel dos Golfinhos era um tanto retirado de Igaratuba e ficava na beira de uma praia
particular, cercado por uma sebe sempre verde que, durante quase todo o ano, ficava pontilhada de flores
coloridas, onde a molecada fazia posto para espionar a exibição de coxas e barrigas, bundas e umbigos
de mulheres metidas em biquínis coloridos e reduzidos, e que circulavam em volta da piscina e nos
jardins bem cuidados.
Rute tinha estudado em São Paulo por alguns anos, aluna do Sacré-Coeur, e tinha voltado para
terminar o último ano do curso e se preparar para o casamento. Considerava-se viajada, pois, estivera
numas férias em excursão pela Europa com as colegas do colégio, sozinha, sem pai e sem mãe para
vigiar-lhe os passos, tentando conquistar Paris nos três dias que por lá passou. Era considerada pelas
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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

amigas como experiente, vivida, avançada, o máximo em elegância. As jovens imitavam o seu
penteado, suas roupas, seu comportamento, desejando desesperadamente serem iguais a ela. Já os
homens viam nela outras qualidades menos perceptíveis pelo sexo feminino, parando os olhos gulosos
nos quadris arredondados, nas pernas bem torneadas e bronzeadas, no busto cheio e na bunda
empinada.
As jovens conversavam animadas comentando com Rute o seu próximo noivado. Eram todas
amigas, colegas de estudo, moradoras da cidade, sonhando em encontrar um bom casamento. Corina, a
melhor amiga e confidente, caminhava ao lado dela, era a mais calada.
— Você vai dar festa? perguntou Helena Santiago, magrela, de pernas finas.
— Vou dar um festão. Toda a família de Haroldo vem para Semana Santa e o noivado. Vem
muita gente. Os que não puderem ficar em casa e na Enseada com Haroldo, vão ficar nos Golfinhos.
Vocês estão todas convidadas!
— Puxa! Que bárbaro! Exclamaram as garotas em coro, com exceção de Corina.
— Você também vai, Corina? perguntou Helena Santiago maldosamente.
— Não sei. Depende...
Corina Perez era pobre, de uma pobreza aviltante. Todas sabia que vestia as sobras de Rute.
Seus irmãos vivam esfarrapados e ela mesma, se não fosse a ajuda da amiga, nem poderia estudar.
Rute, mesmo quando estava estudando fora, se correspondia com ela, ajudava-a à distancia. Corina
trabalhava no Hotel da Donana, propriedade da prefeita da cidade, no período da tarde e parte da noite,
arrumando quartos, limpando banheiros, atendendo hóspedes para ganhar o salário com que ajudava
em casa e comprava os livros e cadernos que precisava para estudar. Morava longe, num barraco aos
pedaços, pendurado no morro, lugar escuro como breu a noite, infestado de borrachudos durante o dia.

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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

O velho Juan Perez, pai de Corina, tinha vindo da Espanha, era um espanhol que não progredira
na vida como tinham progredido os Santiagos. Era um velho orgulhoso e ferido na sua dignidade pelo
comportamento da mulher, a mulher de todos os homens da cidade. Era o bode expiatório de
Igaratuba, o maior cornudo da região e alvo de chacotas e piadas. Corina era filha de seu primeiro
casamento com uma conterrânea, bigoduda e trabalhadora. A primeira mulher lhe dera dois filhos,
Corina e um rapaz, Álvaro, que servia o exército em Quitaúna, perto de São Paulo. A vida naquela
época não era tão ruim, e Juan Perez até progredira, chegara a ter carroça para transporte de lenha,
mas, assim que enviuvara teve a má sorte de se engraçar com uma jovem, quase menina, que
engarrafava pinga na destilaria do Mendonça e se casara com ela, primeiro, porque tinha dois filhos
pequenos, depois, porque precisava de uma mulher para lhe esquentar as costelas nas noites ais frias.
Dinheiro, ele não tinha para sustentar as putas da cidade e, segundo o seu parecer, mulher legítima era
mais barato, comia quando tinha, vestia o que podia, além de trabalhar no barraco e para ele ter sua
cama todas as noites. Assim pensara Juan Perez quando resolveu pedir Maria Penha em casamento,
tudo nos conformes, dentro da lei. Ela era menor, precisava do consentimento da mãe dela, mesmo
sendo uma mulher desclassificada, sem muita honra.
Mas Juan Perez não sabia, nem sonhava e não podia adivinhar que Maria Penha era louca por homem
e ele, já maduro não aguentava o repuxo. Mais moça, ela tinha mais energia que dez potrancas no cio, ávida
de homem e de pinga, vício adquirido nos anos de trabalho engarrafando caninha.
As colegas eram cruéis com Corina. E Corina, tímida demais, envergonhada pelo
comportamento da madrasta, nunca argumentava, passando por tola. Contudo, a mocinha tinha
dignidade, uma altivez andaluza que transparecia no seu porte, no seu andar seguro e no seu olhar
firme. Era bonita, agradável de se ver, charmosa, era levemente rechonchuda, de uma gordura sem
banhas, tinha o brilho da juventude no corpo e no rosto e, talvez, acabasse com o decorrer dos anos,

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bigoduda e corpulenta como fora sua mãe. Mas era preciso analisá-la muito para descobrir que não era
uma beleza deslumbrante, pois impressionava a todos.
Rute, encontrando ouvintes ávidas, falava sem parar, enquanto caminhavam em direção à
escola.
— Eu não pensava em casamento tão cedo. Vocês sabem, na Europa a moça demora para se
casar, nem se casa, vive junto, não é assim como aqui, onde as garotas vivem só para isso. Na
realidade eu pretendia ter uma porção de casos amorosos em vez de me amarrar de cara.
Ela usava e abusava dos conhecimentos adquiridos com a curta viagem pela Europa e
constantemente procurava escandalizar as amigas com opinião sobre a conduta da mulher europeia,
modernismo e sexo.
— Credo Rute, você teria coragem?
— Ora, meninas, a virgindade é propriedade particular de Igaratuba. Lá em São Paulo, que não
é Europa, as coisas são diferentes. Pode-se contar nos dedos as virgens de mais de dezesseis anos. Foi
por isso que papai me trouxe para cá... Coitado, mal sabe ele...
— Bem, argumentou Helena, as moças que vem passar as férias aqui não parecem diferentes de
nós...
— E desde quando arrombamento aparece na cara?
A turma riu da saída de Rute. Era sempre assim, ela dava a última palavra, a última piada, a
última sentença, as colegas adorando e invejando seus gestos, sua ousadia, sua riqueza, beleza e boa
sorte. E enquanto ela falava, o grupo foi engrossando, já perto da escola. Bandos de escolares
uniformizados, saia ou calça azul marinho e blusa branca com as iniciais C.E.E.N.I. bordadas no
bolsinho, livros debaixo dos braço ou malas pretas na mão, encaminhavam-se em direção do prédio
amarelo que tomava todo um quarteirão da Rua Quinze. O grosso da juventude de Igaratuba passava
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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

por aquele prédio durante o ginásio e grande parte das jovens cursava a Escola Normal para obter um
diploma enquanto o casamento não aparecia. Era a única escola secundária da região. Mesmo em São
Damião, cidade quase do mesmo tamanho, não havia ainda ginásio, só grupo escolar. Todos os dias a
prefeitura de São Damião mandava um ônibus cheio de alunos para o colégio de Igaratuba. Ele
chegava alegre e ruidoso, bufando de velhice e despejava as sete e vinte e cinco uma turma de jovens
barulhentos que se unia aos não menos barulhentos jovens de Igaratuba para assistir às aulas matinais.
O sinal de entrada para as aulas soou assim que as moças cruzaram o portão da escola.
Centenas de estudantes se agruparam em filas para entrar em aula. A balbúrdia natural dos jovens foi
cessando a media em que eles entravam no prédio de portas escancaradas para engolir as filas que se
movimentavam ziguezagueando pelo pátio. De repente o galpão ficou deserto e vazio de vida, um
lugar silencioso onde momentos antes imperavam os gritos, as vozes e o riso. Mas uma hora depois, na
hora do recreio, ele se encheria outra vez de juventude e de vida. Às vezes a turma de São Damião se
pegava com a turma de Igaratuba. Nessas horas era preciso a intervenção do diretor e dos professores
que corriam aflitos procurando impedir um conflito de maiores consequências. Mas isso acontecia
quase que exclusivamente quando, na véspera, os times de futebol das duas cidades haviam se pegado
num amistoso onde já haviam apanhado o juiz e os jogadores e muitos dos torcedores. No mais,
imperava a amizade entre os jovens das duas cidades. E tinha que ser assim porque sempre havia um
rapaz namorando uma moça de lá ou um rapaz de lá namorando uma moça de Igaratuba. Mas,
economicamente, as duas cidades eram rivais. Rivais na disputa de turistas que deixavam durante as
férias, feriados e fins de semana, os cruzeiros preciosos para que as cidades continuassem vivas,
comendo e prosperando.

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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

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Igaratuba e São Damião distam uma da outra, trinta e seis quilômetros, ligadas por uma estrada
de rodagem asfaltada que ora segue o recortado de costa, ora penetra pela serra subindo em curvas
fechadas e perigosas para deixar o mar e a praia uns cem metros abaixo. Quem viaja de uma cidade
para outra fica encantado com a beleza desta parte do litoral. Todo recortado, cheio de enseadas, belas
baias. É a costa mais procurada para pesca submarina e esquiagem. O mar visto de cima da serra, tem
tonalidades diversas, às vezes inacreditáveis, variando do verde esmeralda ao verde escuro, passando
por todos os tons de azul ao violeta profundo até chegar ao cinza. Transparente, cristalino, é na maior
parte das vezes, tranquilo e calmo, convidativo e repousante, qual imenso e majestoso lago a rodear a
praia. A areia é branca, muito branca. Alva mesmo. Além disso, é fina e macia, chamando a gente para
deitar, descansar e dourar debaixo de um sol sempre acariciante. Durante o verão as praias de
Igaratuba e São Damião são procuradas por estudantes em férias, turistas de todo o estado. Ficam
cheias, alegres e barulhentas, o mar pontilhado de cabeças, barcos e esquis. Já no inverno, embora o
sol seja quente e macio, um vento irritante sopra do mar, arrepiando as peles nuas, afastando o grosso
dos turistas e diminuindo a arrecadação da região. Quando chove muito durante o verão, o vento vem
mais frio e mais forte e, com muita frequência, os dias são cinzentos, escuros e desagradáveis.
Aquele ano o inverno prometia ser desse tipo, pois, as chuvas haviam castigado todo o litoral,
perturbando os turistas. Sempre chovia à tarde. Mal acabava o almoço nos hotéis, o céu escurecia e
nuvens vindo da serra ensombreavam a cidade e a alegria dos hóspedes. E chovia até o dia seguinte, a
jogatina forte aumentava cada vez mais dentro das salas do hotel de luxo, os rapazes e moças jogando
pingue-pongue, lendo para passar o tempo. Os que tinham namorados ou namoradas, achavam no que
passar as tardes facilmente. Deixavam os hotéis e as vistas maternas nos carros paternos e iam
estacionar na encosta do morro, onde terminavam as ruas ou praias desertas, para explorar os mistérios
do amor. Os que não tinham namorados ou namoradas, ficavam amolando os gerentes até que
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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

colocassem um som, a fim de dançarem e conseguirem arrumar um namorado ou namorada. E assim
passava o dia para a turma de turistas. Mas nos dias em que o sol não se escondia atrás das nuvens, e
que a serra não mandava as chuvas para banhar o litoral, as praias ficavam cheias até anoitecer,
revezando as turmas, não dando sossego ao mar e à areia.
E à noite um futingue animado tomava conta do largo da matriz, da rua principal e da porta do
cinema, que ficavam lotados de turistas e de moças e rapazes da cidade. O parque de diversões
faturava a rodo, todo mundo, grandes e pequenos, andando de roda gigante e de trem fantasma,
comendo algodão doce ou tomando sorvete. O bar de Seu Teodoro, vendia além de todo o sorvete,
toda a cerveja e todo o chope em estoque, precisando no dia seguinte ter fortalecido seu suprimento. E
o verão estava no fim e com ele a temporada alegre e lucrativa. Mas havia ainda uma última etapa a
explorar e as cidades se preparavam para ela. Igaratuba e São Damião se preparavam para os feriados
da Semana Santa, quando outra vez as cidades ficariam cheias e o dinheiro entraria grosso, para depois
parar com a chegada do inverno. Esperava-se a lotação completa dos hotéis, tudo já reservado. Os
bares e restaurantes tinham seus estoques já prontos, bebida e comida a rodo, esperando a boca voraz
do turista faminto e sedento. Esperava-se a lotação total das cidades; esperava-se faturar o máximo
para depois, com o fim da estação, poder aguentar os meses não produtivos e preparar condignamente
a chegada de mais um verão.

—3—
A estrada que liga São Paulo a Igaratuba é sinuosa como uma mulher bonita. Cheia de curvas e
lisa como a pele de uma garota estendida sobre uma esteira de praia. O motorista precisa ser hábil para
vencer a distância em menos de quatro horas. Mesmo com um carro potente, as curvas são fechadas e
poucos conseguem fazê-las com segurança em alta velocidade.

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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

Rui Mendes, já havia vencido mais da metade do caminho quando percebeu que corria muito, e
que nunca fizera aquele trajeto tão rapidamente. Olhou para a companheira de viagem e sentiu-a tensa,
quieta, as mãos apertadas ao colo.
Poucas

palavras

tinham

sido

pronunciadas desde que saíra de São
Paulo.
— Não precisa ficar nervosa,
Alice. Vou diminuir a velocidade.
Não se preocupe. Conheço a estrada
de cor.
Ela não respondeu logo. Parecia que meditava, que escolhia as palavras para não falar além do
necessário. Depois de uns instantes de silêncio, em que se ouvia somente o ruído do motor em
movimento, ela falou:
— Não é a velocidade, Rui, você sabe. Você também parece nervoso. É o que estamos fazendo,
toda a enormidade de nosso ato.
— Ainda não fizemos nada, querida. Já arrependida?
— Não. Nem um pouco, mas penso que poderemos encontrar alguém conhecido. O mundo é
pequeno quando queremos nos esconder do resto da humanidade.
— Não se preocupe quanto a isso. Ficaremos meio isolados, fora da cidade, numa casinha ao pé do
morro, com rio entrando quase na cozinha. Tem praia no rio. É o lugar mais lindo do mundo.
Alice não respondeu e olhou pela janela. Serra e mais serra. As viagens com muita curva,
deixavam-na levemente enjoada e amolecida, com vontade de dormir. Mas não tirou os olhos da
estrada e da paisagem até o mirante. De lá podiam avistar toda a baía cheia de sol e luz num magnífico

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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

dia. Rui não parou o carro como de costume para gozar a vista do mirante. Conhecia-a de cor, pois
muitas vezes havia passado por ali em direção ao seu chalé.
Quem olha lá do mirante pode divisar toda a topografia da região. A cidade de Igaratuba se
estende por toda a baia do mesmo nome. Logo na estrada, assim que acaba o contraforte da Serra, a
estrada atravessa a ponte do Rio Feio, estreito, mas profundo e perigoso. O rio vem de mansinho,
saindo de repente da serra, todo margeado de samambaias, folhagens e copos de leite, para atravessar a
areia branca e se jogar dentro do mar. Tudo isso sossegadamente, sem se cansar, sem grandes
correrias, arrastando molemente suas águas escuras e tristes. No verão refresca a margem e o casario
pobre e tão feio como suas águas, e que com ele segue o curso, invadindo pomares e quintais, servindo
de tanque, de banheiro e de privada. Mas o rio preguiçoso e molenga torna-se violento e malvado
quando na época das chuvas, pois recebe as águas da serra inteira transformando-se num caudal
impetuoso, transbordando, até invadir as casinhas que o margeiam. Mas o mar, a grande bacia, engole
rapidamente toda a água excedente, e num fechar de olhos, lá fica ele outra vez, preguiçoso e moleirão
a arrastar suas águas tristes e escuras.
Atravessando a ponte, a estrada termina logo dentro da rua principal, cruzando toda a cidade para, na
outra extremidade, transformar-se outra vez em rodovia estadual. Igaratuba fica apertada entre a serra e o mar,
numa faixa de uns três quilômetros. Fora a Avenida Central que é a principal e atravessa a cidade de ponta a
ponta, duas outras ruas apresentam um movimento mais intenso. O restante delas é sossegado, quase sem
tráfego, a não ser na temporada de verão, em janeiro e fevereiro, quando toda Igaratuba se transforma num
formigueiro humano. Mesmo a Avenida Beira Mar é tranquila quando fora de temporada. Um ou outro
habitante que passa, um ou outro casal de namorados, que sentados nos bancos passam o tempo a sonhar e a
se beijar e se esfregar. Os hotéis, quase vazios, abrigam ocasionais casais em lua de mel ou casais de fim de
semana.

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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

O Aero Willis vermelho de Rui acabou de atravessar a Avenida Central e retornou à estrada,
rodando mais alguns quilômetros. Parou numa variante e entrou por ela adentro, sacolejando-se na
estradinha vagabunda e esburacada, sobre cascalho e areia. No fim dela por entre coqueiros e
bananeiras podia-se perceber o chalé maltratado de Rui. Mal ele desligou o motor um velho barbudo
de pé no chão abriu o portão. Rui deu de novo na partida e colocou o carro debaixo das árvores
enquanto o velho fechava o portão de madeira, isolando o chalé da estradinha.
— Lugar velho e feio, pensou Alice. Esperava outra coisa, uma casa mais bonita e menos
assustadora.
A voz do companheiro chegou até ela interrompendo os pensamentos.
— Vamos descer? Aqui estamos. Lar, doce lar! Este é o Florêncio, disse mostrando o velho.
Trabalha para mim há mais de 20 anos.
Alice desceu e ajudou o velho com as malas enquanto Rui transportava as provisões para
dentro. Quando sentou na sala de estar esperando por Rui que providenciava o almoço com o velho,
pensou pela primeira vez na sua casa e nos seus filhos. Pensou também em seu marido e o ódio que
sentia por ele aumentou, fazendo-a estremecer involuntariamente. Para Alice aquele passeio com Rui
representava uma fuga, uma renovação. Deixara os filhos para trás, com a mãe, enquanto o marido
estava fora do país, e seguira um homem quase estranho a quem não sabia sequer se amava realmente,
para uns dias de aventura e romance. Tudo isto porque sabia que o marido tinha uma amante por ele
mantida, que zombava dela, em altos brados, nas rodas que frequentavam.
Quando Alice casou-se com Fernando Camargo Ribeiro, o doutor Fernando, era uma moça tola
e ingênua. Dessas moças antigas de colégio de freiras, que liam Delli e Coleção Rosa para Moças, que
achava que o ato sexual era exclusivamente para gerar filhos. Sonhava em ter três filhos, dois meninos
e uma menina, todos loiros, rosados e perfeitos.
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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

Mal saiu do colégio, com dezessete anos, encantou-se com Fernando, amigo da casa, rico e boa
pinta. Daí para o casamento foi uma questão de meses, pois Alice também convinha ao médico em
ascensão. Depois do casamento custou muito a se acostumar com o marido. Pretendia ter apenas três
filhos e já havia discutido isto com Fernando quando noivos e achava absurda aquela fome por sexo
que descobriu haver entre os homens. Em lágrimas, abriu-se com a mãe, chorando a sua situação e
pediu-lhe que fosse falar com seu marido. E suas lágrimas não secaram quando a mãe, pela primeira
vez na vida, foi franca com ela, contando-lhe a realidade da vida conjugal e aconselhando-a que fosse
paciente pois mulher nascia para sofrer e suportar a nojeira dos homens. Com o tempo as lágrimas
foram secando, rareando, e ela foi se acostumando as exigências sexuais do marido. Aconselhada por
amigas procurou ler sobre a fisiologia humana. Ficou abismada ao descobrir o pouco que sabia sobre o
assunto, mesmo já sendo mãe. E nas suas leituras aqui e ali, também descobriu que não fora despertada
sexualmente pelo marido grosseiro, que se atirava e cima dela como se ela fosse um pedaço de pudim
ou um bom-bocado, saboreando-a sem sequer se importar com o que ela pudesse estar sentindo ou
deixando de sentir. Suas amigas mais íntimas também eram unânimes em afirmar que nada sentiam.
"Você precisa fingir, aconselhavam, mesmo que nada sinta, revirar os olhos, gemer, como se estivesse
gozando".
Fingir, uma ova, pensava. Não fingiria como uma puta, não daria ao animal do marido o prazer
de pensar que poderia despertar nela qualquer coisa. Mas, assim mesmo, procurava, socialmente,
parecer feliz mulher casada, esposa amantíssima de um homem de sucesso. Pelo menos não se negava
a ele, já se acostumara com o marido e até achava-o um homem que poderia ser suportado até o fim de
sua vida. Nunca teve coragem de procurar um médico especialista, morria de vergonha de seu
ginecologista. Mas não havia desistido de ler tudo sobre o assunto, era perita na teoria, conhecia tudo
sobre sexo, tanto em forma de ciências, como o de sacanagem.

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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

Quando descobriu, por acaso, e depois confirmado por uma amiga íntima, que o marido
mantinha uma amante requintada e bonita e que esta mulher gozava a situação chamando-a de
geladeira, não fazendo segredo para ninguém de suas relações com Fernando, Alice se acabou. Um
ódio intenso pelo marido foi tomando conta dela e ela procurava justificar este ódio. Primeiro, dizia a
si mesma, porque se submetia as suas exigências sexuais sem nenhuma queixa, sem recusa,
passivamente; segundo, porque o marido contara a outra mulher os problemas íntimos do casal, coisa
que ela não poderia perdoar. Desabafando-se com as amigas, todas foram da mesma opinião. Ela
precisava se arrumar por fora, e talvez tivesse uma chance de encontrar alguém que a levasse até o fim
e fizesse dela uma mulher perita no assunto, o chifre que estava usando merecia um retorno adequado.
Levando os conselhos ao pé da letra, não foi muito difícil encontrar Rui, dar em cima dele, interessálo, coisa que achou um pouco mais difícil, pois, com os anos de casamento e de fidelidade havia
perdido um pouco a prática destes assuntos. Mansamente ela esperou que Fernando viajasse para os
Estados Unidos, o que fazia regularmente para participar de congressos, levando a amante a tiracolo e
discretamente partiu com Rui para uma semana de férias extraconjugais, ao encontro da aventura e do
desconhecido sexo.
Estava decidida ir até o fim, naqueles dias de experiência. Estava com medo de falhar, muito
nervosa, receosa de que as portas do prazer não se abririam para ela. Não sabia se amava Rui, mas pela
primeira vez sentia por um homem forte, atração física. Achava-o bonitão, gostava de seus cabelos
tingidos de branco nas têmporas, da sombra escura de sua barba sempre bem escanhoada, gostava de
seu físico forte, embora não esportivo. Sentia-se levemente perturbada quando o via, mesmo de longe,
e seu coração acelerava quando ele chegava perto dela. Quando lhe tomava as mãos e a beijava, o
perfume dos cabelos dele, da pele, o roçar áspero da barba cerrada, faziam-na tremer, agitando seus
pensamentos, esticando seus nervos e quase fazendo seu juízo sumir nos ares.

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Sexta-feira da Paixão

O que a intrigava, era que, nestes arroubos amorosos que pela primeira vez sentia realmente
com grande intensidade, o cheiro de Rui, o calor que dele emanava, não faziam com que ela recordasse
o marido, mas faziam-na sentir uma vaga sensação de já ter sentido antes o mesmo calor, o mesmo
perfume masculino. Ah! O cheiro do Rui! Como era diferente! Como entrava pelas suas narinas de
uma maneira deliciosa fazendo-a respirar fundo para não perder uma só nuança dele! Jurou para si
mesma que tiraria daqueles dias o máximo que pudesse e voltaria para casa confiante e senhora de si,
dando a Fernando uns belos chifres, os mesmos que ela usava sem protestar. Prometeu a si mesma que
o marido haveria de conhecer a verdade, que não seria o último a saber, mas, um dos primeiros, e já de
antemão gozava a vitória que obteria com sua vingança, a de trair a quem a traía e a de tornar-se uma
verdadeira mulher, uma fêmea e toda a sua plenitude, por intermédio de outro homem, já que o
legítimo e sacramentado não despertava a fêmea escondida dentro dela.
Foi nesta disposição de espírito que Rui a encontrou, sentada, fumando, na saleta do chalé.
Tomou-a pela mão e levou-a para mostrar a casa. O chalé não era bonito. Mal tratado, mostrando a
falta de mãos femininas, era menos que uma casa, um pouso de homem solteirão. A única peça mais
cuidada era o quarto, com uma imensa cama de casal de ferro batido, mas, levemente enferrujado nos
cantinhos por causa do ar marinho, uma cama que não deveria estar ali, como julgou Alice. Não
parecia uma cama de beira de praia. Contudo era uma cama sólida, majestosa, com colchões altos e
fofos, coberta por uma antiga colcha amarela de crochê num trabalho intrincado de rosinhas e
folhinhas entrelaçadas.
— Trabalho de minha mãe, muito antigo, explicou Rui, vendo os olhos dela examinando
cuidadosamente a cama.
— Bonito, falou baixinho, passando a mão sobre as flores salientes, a espessura do crochê
causando-lhe um arrepio gostoso.
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Sexta-feira da Paixão

A janela do quarto era baixinha, mais baixa que sua cintura e estava aberta para um quintal de
árvores. Chegando à janela, não muito longe, podia-se ver um rio, um braço de mar parecendo
caminhar para as montanhas, seguido, lado a lado, por uma estreita faixa de areia branca. Rui chegouse até Alice, passando o braço em volta dos ombros dela.
— Ele varia conforme a maré. Às vezes mais alto, mais cheio, às vezes rasinho, aumentando a
prainha. É um rio mesmo. Nasce lá na serra. Nós vamos até lá uma hora qualquer ver a nascente. Lá
adiante, beirando o mar, muitas vezes a areia se acumula e fecha o caminho dele, transformando-o
num lago. Então é uma delícia nadar ali; a água fica gelada e transparente como cristal...
— Há muito tempo você tem esta casa?
— Foi de meus pais. Minha mãe passava as férias comigo aqui, quando eu era moleque.
Naquele tempo a casa era diferente, bem tratada, vivia cheia de amigos. Agora só venho aqui
ocasionalmente...
— Quando vem trazer uma mulher... emendou Alice, quase sem querer.
— Nem sempre. Mas não nego que já trouxe algumas...
Ela se afastou dele, como que magoada. A franqueza de Rui a deixava muitas vezes
constrangida, muitas vezes triste. Sabia que um homem solteiro, rico e atraente tinha os seus casos,
mas não esperava ele confirmasse tão simplesmente e tinha a secreta vontade de ser primeira aventura
na vida dele, como ele era a primeira de sua vida. Sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos,
procurando por de lado as ideias que agora chamava de tolas e românticas. Este tipo de pensamento
infalivelmente lhe ocorria, como se ela ainda fosse uma donzela que esperava o seu cavaleiro andante
para salvá-la das garras da realidade e levá-la com ele para o país dos sonhos. Sabia que estava
tentando transformar-se em outra mulher, e para isso precisava abolir para sempre de sua mente as
ideias rançosas tão diferentes da vida real, que nela persistiam, para poder formar uma nova
personalidade.
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Sexta-feira da Paixão

— Vamos ver o rio de perto antes do almoço? convidou Rui.
Alice segurou fortemente as mãos dele e atravessou o limiar da porta da cozinha para o ar livre,
respirando forte o ar do mar com gosto de sal e cheiro de peixe, e caminhou com ele em direção à
prainha branca que se estendia no fundo do quintal.
— Pensei que ele fosse me jogar logo em cima da cama, disse para si mesma. Por que será que
não fez isto?
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Carlos Vieira Filho, professor de sociologia, falava animado explicando para a turma do
terceiro normal a integração da teoria e pesquisa: "A ciência é uma estruturação dos fatos. A sociologia
é uma ciência que procura a estruturação teórico-sistemática dos dados...".
Corina não ouvia uma palavra do que ele dizia. Mas seus olhos negros e inquietos não
despregavam da figura que se movimentava de um lado para o outro da classe silenciosa. Mal sentiu a
mão que punha um bilhete no seu colo. Corou quando leu o que estava escrito: "Cuidado que você
engole o Carlinhos com os olhos".
Rute olhava para ela divertida. Sabia, como amiga íntima da moça, da paixão secreta de Corina
pelo professor de sociologia. Já havia um ano que ela suspirava e sonhava com ele, mas não havia
oportunidade para ela. Carlos parecia não notar que ela existia. Mesmo quando se esforçava
barbaramente num trabalho de pesquisa, para mostrar a ele interesse pela matéria, ele parecia não notála. Procurava esconder o seu amor frustrado, com medo da caçoada das colegas, desesperadamente,
mas às vezes se distraia e seu rosto estampava todo o enlevo que sentia pelo jovem professor.
Carlos Vieira chegara a Igaratuba no ano anterior. Formado em ciências sociais, prestava o
concurso para o preenchimento do cargo de Professor de Sociologia no ensino público do estado e se
mandara para Igaratuba seguindo o seu primeiro impulso, o de ensinar. Mas o ardor, a vontade
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Sexta-feira da Paixão

idealista de dedicar-se àquela tarefa considerada por muitos como um sacerdócio, durou muito pouco.
Primeiramente, porque o salário era desanimador. Carlos Vieira era filho de um professor de Português
e se entusiasmara pela profissão do pai desde pequeno. Na época de sua infância e mesmo em parte de
sua juventude, o cargo de professor público era muito vantajoso. Além de ser muito bem remunerado,
era um emprego sólido, desde que o candidato passasse no difícil concurso para preencher a vaga, e
também garantido mesmo depois da morte, dando pensão integral à família do defunto. Contudo, as
coisas haviam mudado e Carlos ingressara no magistério público no início da degradação da profissão
— os proventos já não eram como ele esperava e ele estava ficando ambicioso. Começava a sonhar
com uma cátedra universitária, quem sabe algum dia se transformaria num eminente intelectual
colaborando para o desenvolvimento das ciências sociais e humanas, seria citado pela imprensa,
aplaudido e admirado pelos eruditos, quem sabe até algum dia poderia ser diretor honoris causa pela
gloriosa Universidade de Columbia.
Seus devaneios, seus sonhos de cátedra e fama intelectual tivera seus dias contados em
Igaratuba. Longe dos meios culturais, ilhado numa cidade onde poucos liam um simples jornal, onde
não existia uma única livraria, Carlos temia terminar seus dias como um modesto professor
concursado, fadado a se tornar um chatíssimo mestre desfiando baboseiras para alunas de Curso
Normal, pouco interessadas no que ele ensinava, nunca conseguindo os aplausos e o reconhecimento
que almejara.
Uma urgente avidez de progresso material substituiu os seus sonhos de glória. Seus planos
mudaram da água para o vinho. Pensava em obter uma remoção para uma cidade maior onde pudesse
cursar uma faculdade de direito noturna e mudar-se para a área mais rendosa da advocacia, talvez até
tornar-se um juiz, depois desembargador, ou mesmo aventurar-se na política.
Se suas palavras ensinando a árida sociologia entravam por um dos ouvidos de suas alunas, e,
quase que imediatamente saiam pelo outro, demorando-se os sábios ensinamentos apenas alguns
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Sexta-feira da Paixão

instantes nos cérebros das ouvintes pouco interessadas neles, seu porte atlético, sua aparência máscula,
sua voz quente, faziam dele o objeto de mais legítima adoração. Era venerado pelas moças que viam
nele um provável candidato a marido. Para o desespero das suas fãs Carlos parecia inacessível à
qualquer abordagem. Não frequentava os bailes, sumia durante as férias e feriados, quando ia à praia
se afastava de todos, se entregando ao prazer de nadar sozinho, o que, segundo as mulheres, fazia
magistralmente. O povo mexeriqueiro achava que ele era um tipo esquisito, as línguas compridas
comentavam que talvez ele fosse um daqueles que não gostava de mulher. Os homens conjeturavam
numa possível impotência, pois ninguém podia afirmar tê-lo visto marcar presença na zona, nem na
pensão da Dora Rabo Quente nem nas outras casas de putas existentes pela periferia da cidade. Tão
pouco tinha notícia dele na putaria de São Damião, localidade um pouco mais progressista neste setor
comercial, pois tinha até um cabaré com música ao vivo, frequentado por marinheiros. Carlos sabia do
falatório, já tinha sido interpelado, sem nenhum pudor, por um sujeito frequentador do seu barbeiro, se
ele era um veado ou se não dava no couro. Na ocasião, se não fosse conceituado mestre local, teria
pulado para cima do descarado e lhe metido a mão na fuça. Mas se controlara e achou melhor não dar
importância ao fuxico e às más línguas, pois não pretendia ficar muito tempo em Igaratuba. O que
realmente acontecia, é que, por puro milagre,
nenhum vivente da cidade sabia que ele era
assíduo frequentador da casa de Dona Zuleica
Paiva, respeitadíssima dama, quarentona, mas
ainda em excelente estado, dada como viúva
recatada e moradora há três anos em Igaratuba.
Carlos conhecia a respeitada Dona Zuleica desde
os tempos da faculdade, quando se chamava Zuzu

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Sexta-feira da Paixão

Amorzinho e mantinha movimentado e requintado randevu na Rua Maria Antônia, em frente ao
Mackenzie e ao lado da Faculdade de Filosofia da USP, lugar muito conhecido de ilustres catedráticos,
professores assistentes e alunos, entre outros fregueses, alugando quarto para casais, fornecendo
meninas lindíssimas e ela mesmo exercendo o ofício. O randevu da Zuzu Amorzinho, um completo
lugar de lazer, onde além de acolhedor e sofisticado retiro para sacanagens, era uma ágora onde se
discutia política e se maquinava a queda da ditadura militar.
Visada pelas sentinelas vigilantes do poder, Zuzu viu-se na contingência de vender seu rendoso
estabelecimento e sumir do mapa, escondendo-se em Igaratuba onde não recebia mais as visitas
indesejáveis de milicos e agentes policiais.
Zuzu Amorzinho aposentara-se temporariamente e escolhera Igaratuba como pouso e mocó.
Estudara o local como um provável estabelecimento onde poderia exercer seu ofício, quando as coisas
se esfriassem. A localidade era propícia a um randevu semelhante ao que tinha em São Paulo, mas sem
a freguesia de alto gabarito intelectual, freguesia de comerciantes, veranistas endinheirados, pois, ela
filosofava, o contato com os ilustres mestres do saber só havia trazido problemas para ela. Portanto, a
mudança do perfil de sua futura clientela só poderia ser benéfica e segura. Já com este pensamento ela
havia comprado uma propriedade, uma pequena chácara junto ao mar. A casa era acolhedora,
suficiente para o começo de um randevu, podendo, se necessário, ser ampliada a contento. Era um
lugar discreto e bonito, com acesso para a praia, não muito retirado do centro, rodeada de árvores, a
maioria delas frondosas amendoeiras. Refestelada na sua propriedade, Zuzu apenas dava tempo para
ser esquecida pela famigerada autoridade policial a serviço da ditadura, para poder abrir de novo e
exercer o seu ofício com extrema competência, no capricho, como era de seu feitio, com casa cheia e
muita animação. Enquanto o tempo passava ela se fazia passar por viúva abastada, rodando pela
cidade no seu Fusca azul, assídua na igreja para as novenas, vestida sempre nos trinques seguindo
os ditames da moda, amiga das senhoras distintas, santas esposas de seus futuros clientes. Zuzu
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Amorzinho já havia assuntado a praça — a concorrência era pouca, alguns bordeis mal cheirosos,
com camas cheias de percevejos, na periferia, frequentado por pobres coitados sem eira nem beira,
algumas putas de casa aberta depois da ponte sobre o Rio Feio. A casa melhor da praça, a de Dora
Rabo Quente era limpa, mas modesta, sem o refinamento que ela pretendia dar ao seu
estabelecimento.
Carlos Vieira Filho ia uma ou duas vezes por semana visitar a respeitável Dona Zuleica como
seu único e exclusivo cliente, onde ficava até tarde da noite, jantava e se deitava nos lençóis alvos e
cheirosos , se regalava com os prazeres de sua preferência, pagava e saia satisfeito para o hotel onde
morava, Hotel da Donana.
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Corina trabalhava no hotel onde o Professor Carlos morava, mas ele nunca havia notado os
olhares da moça. Ela o vigiava discretamente. Quando sabia que ele estava almoçando ou jantando,
entrava no quarto do rapaz e fuçava gavetas e armários, cheirando e apalpando tudo que encontrava.
Corina sabia que ele usava cuecas de malha de Santa Catarina, conhecia o número de seus sapatos e
quantos pares ele tinha, que não tinha pijamas nas gavetas e portanto dormia nu. Sabia a marca de seu
creme dental, do perfume da sua loção de barba, a cor de seu roupão de banho. Lia as cartas que ele
recebia e deixava esquecida por cima da cômoda, guardando na memória os endereços de seus amigos
e parentes. Procurava saber tudo o que podia sobre Carlos Vieira Filho, guardando avaramente estes
segredos, não compartilhando com ninguém estas preciosidades que tinha a ventura de conhecer. Até o
lixo do quarto de Carlos era escarafunchado, procurando encontrar nele algum indício de amor que ele
poderia sentir por ela, ou alguma coisa mais que pudesse ajudá-la a conquistá-lo. Mesmo Rute
Pacheco, sua melhor amiga, desconhecia o que ela fazia no hotel, tinha vergonha de contar suas
espionagens, não queria ser motivo de riso e troça.

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O sinal do término das aulas soou forte na sala, e a balbúrdia tomou conta do lugar, todo mundo
querendo sair, Corina saiu ao lado de Rute.
— Você precisa deixar de ser transparente, menina. Daqui a pouco a cidade inteira vai
comentar que você gosta dele, cochichou Rute no ouvido da amiga. Além do mais, dizem que ele é
maricas.
Corina corou, sentindo o calor subindo no rosto.
— Eu sei, é tudo mentira, disse baixinho, maldizendo aquela sua mania de corar à toa, sem
motivo nenhum, deixando transparecer no rosto o seu embaraço.
As duas seguiram lentamente em direção ao largo da matriz. Já estava bem quente o sol
naquela hora do dia, convidando a um banho de mar. Rute olhou para o relógio da igreja.
— Onze e meia. Ainda dá para pegar uma praia. Vamos?
Corina pensou, tinha vontade de ir, conversar com a amiga, mas precisava estar no emprego a
uma.
— Não dá tempo de eu ir até em casa.
— Não precisa ir até lá. Você põe um maiô meu. Depois você almoça comigo e vai para o
emprego. Que tal a ideia?
— Ótima, aceitou Corina. Eu topo.
As duas praticamente correram até chegar à casa de Rute. Os Pacheco da Silva moravam na
mais bela e maior casa da cidade, Igaratuba inteira se orgulhava dela, considerada como casa de capital
pelos moradores que já tinham estado pelo Jardim América e pelo Morumbi. Era um dos poucos
sobrados que a cidade possuía. Residencial, era o único. E dizer que conviviam com a família Pacheco
da Silva, que comiam em sua bela sala de jantar de jacarandá da Bahia, que se sentavam nos estofados
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Sexta-feira da Paixão

de veludo do salão era o máximo que podiam espirar os frequentadores da sociedade local. É bem
verdade que todo mundo na cidade já havia, uma vez ou outra estado na casa; mas de um modo
geral as visitas locais eram recebidas num imenso alpendre do lado da casa, todo mobiliado com
cana da Índia, com bar e geladeira sortida, cheio de batidas gostosas, especialidade de D. Áurea,
vasos de antúrios espalhados e xaxins de samambaias balançando no ar.
Inácio Pacheco da Silva tinha construído aquela casa quando os filhos eram bem pequenos.
Importara tudo de São Paulo, a começar pelo arquiteto famoso. De fato a casa era linda, bem entrosada
na paisagem litorânea. Ao lado da praia, abrangendo meio quarteirão, ficava no meio de um jardim de
pitangueiras e mangueiras rodeado por um gramado escuro, margeado por roseiras. Uma imensa
varanda a rodeava, para onde saiam as janelas francesas, que acompanhavam toda a extensão dela. O
arquiteto quisera uma casa térrea, mas D. Áurea batera pé e fizera questão de sobrado. Queria poder se
debruçar na janela de cima, ver a sua rua do alto, de poder enxergar o mar de seu quarto de dormir. E a
vontade da dona da casa fora feita e o sobrado lá estava, dominando as demais casas e sem sair da
linha imposta pelo arquiteto.
Rute e Corina passaram pelo portão como um jato e atravessaram o gramado em direção ao
fundo da casa. Não se passaram dez minutos quando atravessaram de volta o arvoredo e cinco minutos
depois estavam estendidas na areia da praia. Deixaram-se ficar na modorra, quietas, recebendo a
carícia morna do sol, dourando a pele já morena. Foi Corina quem quebrou o silêncio:
— Você gosta mesmo dele?
— Gosto. Não deixo ninguém perceber isto, mas gosto.
— Pensei que não gostasse. Você é tão evoluída, tão diferente das outras moças que eu
conheço, que muitas vezes fiquei imaginando se você gostava mesmo do Haroldo.

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Rute virou-se na areia e chegou mais perto da amiga, falando mais baixo, como que em
segredo:
— Sabe, perto dele eu me sinto uma boba, uma ignorante e inexperiente, mesmo com tudo o
que eu já fiz. Ele me faz sentir uma criança que precisa de proteção, um ser pequenino e imaturo. Você
vai gostar dele quando o conhecer.
— Já conheço. Há muito tempo que vejo ele por aqui nas temporadas.
— Não. Não conhece. Você só conhece Haroldo depois de conviver com ele. Ele é muito bom,
Corina.
— Engraçado você ficar noiva pra casar. Sempre você falou em esperar uns tempos, viver
sozinha, ter muitos amantes.
— Você sabe, ele se forma no ano que vem e vai para os Estados Unidos fazer especialização.
Se ele for sozinho, ele arruma uma americana por lá. Estas moças americanas trepam com qualquer
um. É costume lá. Imagine se ele trepa com uma americana bonita, loirona, fica gostando e casa. Não.
Eu vou com ele pra dormir com ele lá, casada, assim ele estará seguro.
Corina pensou um pouco e acabou concordando com a amiga que realmente era um perigo
deixar um noivo solto pelos Estados Unidos. E, convidando a amiga para segui-la, levantou-se e
encaminhou-se para o mar.
O mar da baia de Igaratuba é manso e liso como um lago. Ele só vem se quebrar na beiradinha
da praia e, apenas quando o vento é mais forte ele ondula a superfície esverdeada em marolas
dançantes e embaladoras. As mães costumam largar as crianças à vontade pois não há perigo de ondas
bravias ou de buracos perigosos. Pode-se andar muito tempo dentro dele até chegar a um lugar onde se
possa nadar livremente. Então o nadador olha a costa ao longe, sentindo-se forte, uma sensação de
poder, misturado com o temor de estar muito longe da praia. Mas não oferece perigo algum. Basta

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Sexta-feira da Paixão

nadar um pouco para fluir levemente sobre as marolas que ondulam de leve a superfície. Já em São
Damião, o mar é perigoso, apresentando declives rápidos e peraus que deixa o banhista sem pé num
instante, com ondas altas, fortes, ameaçadoras quando o vento sopra.
Rute e Corina entraram no mar adentro andando devagar, ganhando terreno aos poucos,
afundando devagarinho.
— Quando mesmo chega Haroldo com a família? perguntou Corina.
— Acho que quinta-feira. Vão telefonar hoje à noite para confirmar. Daqui a cinco dias fico
noiva.
— E sua irmã, vem?
— Chega amanhã. Por isso não sei se poderei ir com você até a ilha...
Com um mergulho perfeito Rute desapareceu na água para surgir bem adiante em braçadas
vagarosas paralelamente à praia. Corina seguiu-a, no mesmo ritmo.
—6—
Irmã Coração de Jesus abriu a porta do quarto para
deixar passar o paciente. O homem na sala do médico todo
encolhido, humilde e ficou de pé esperando o Dr. Paulo
atendê-lo. A freira deixou a sala e fechou a porta antes que o
médico levantasse a cabeça para falar com o paciente. Depois,
subiu as escadas em direção ao segundo andar, galgando os
degraus rapidamente até alcançar o topo da escada. De lá
dirigiu-se para o longo do corredor, até a última porta,
abrindo-a e penetrando na saleta semiescurecida onde se sentou pesadamente numa cadeira giratória. O
hábito pesava-lhe nos ombros, umedecido pelo calor provocado pela correria do sobe-desce de escada.
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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

Abriu as pernas e levantou os pés para o ar, esperando que o sangue fluísse para cima aliviando o
cansaço delas e o ardor das varizes. Quando fazia muito calor, suas pernas inchavam e doíam e nada
podia aliviá-las. Mas ela não se importava e nas horas de muito trabalho esquecia as suas varizes e os
pés doloridos para se dedicar de corpo e alma a seus doentes e a sua Santa Casa.
Irmã Coração de Jesus, Irmã Coração, como era chamada, já estava em Igaratuba há muito
tempo. Desde pequenina quisera ser médica ou irmã de caridade e dedicar sua vida ao tratamento de
enfermos. Menina, descalça e pobre, cuidava dos gatos e cachorros enfermos da redondeza. Quando
deixavam-na, fazia curativo nas feridas dos moleques vizinhos, mostrando uma inclinação natural para
a medicina e uma vocação decidida para samaritana. Contudo, não pudera ser médica, pois a pobreza
da família não permitiu que estudasse, mas logo que possível ingressou na Irmandade a que pertencia
para dedicar-se a apaziguar o sofrimento alheio. O povo doente da redondeza, que tinha passado pela
Santa Casa, não podia deixar de adorar aquela freira de meia idade, pequenina e feia, mas grande de
alma e de bondade, bela interiormente no seu amor à humanidade de Deus. A Santa Casa era sua vida
e, a certeza disto, fazia que ela lutasse pela melhoria necessária e ampliação do pavilhão das crianças.
A Santa Casa de Igaratuba fica perto do Rio Feio, na entrada da cidade para quem vem de São
Paulo. É um prédio quadrado e feio, sempre precisando de reparos e ampliações. A ala paga é melhor,
mais ajeitada, embora a ala gratuita e do INAMPS que abrange quase a totalidade do prédio, seja limpa
e bem cuidada. Irmã Coração, como chefe responsável pela enfermagem e pela limpeza do hospital,
não poupava esforços e broncas para conseguir a mais perfeita higiene e assepsia da casa. Desde o
asseio dos pacientes, ao brilho dos imensos caldeirões, tudo passava pelos olhos insatisfeitos da
pequenina freira que vigiava seus subordinados com feroz obstinação, sem esmorecer jamais, mesmo
quando não encontrava a colaboração dos deficientes empregados locais.
A freira descansava um pouco, de pernas para o ar. Olhava para a própria vestimenta branca,
hábito surrado e amarfanhado, os olhos parados e o pensamento longe. Naquele dia recusara duas
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S. F. Arsky

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crianças por falta de acomodação. Não havia um só leito desocupado no pavilhão infantil e tinha lhe
doído na alma não ter podido atender as mães dos pequeninos. Os grande olhos dos molecotes, com o
brilho aumentado pela febre, dançavam em frente dela, como um pedido de ajuda. "Bom Deus, o Dr.
Paulo não toma nenhuma providência mesmo. Acho que eu tenho que tomar a iniciativa e fazer
alguma coisa", suspirou alto.
O Dr. Paulo Xavier era um esquisitão. Todo mundo sabia disto, principalmente Irmã Coração
que com ele trabalhava há mais de cinco anos. Caladão, taciturno, arredio, o médico mal se dava com
as pessoas da cidade, desde que para lá viera pra trabalhar na Santa Casa. Trabalhador ele era.
Afundava no trabalho cada vinte e quatro horas do dia, mal parando para comer ou chegar até sua casa,
onde sua esposa criava seus dois filhos. Além de caladão, era mal criado, uma fera, não respeitando
nem as freiras com seus palavrões nos momentos de zanga, o palavreado chulo era frequente e
habitual. No começo as freiras se apavoravam; muitas irmãs acharam mesmo que estavam lidando com
um homem mancomunado com o diabo. Depois foram se acostumando, evitando a presença do
médico, mas falando com ele a não ser o estritamente necessário, deixando nas costas de Irmã
Coração, a superiora, a responsabilidade de tratar com o tinhoso Doutor as questões necessárias para
ordem interna no hospital. E a respeito da tão necessitada ampliação da Santa Casa tinha a freira
conversando com o médico, uma vez mais, na noite anterior. Lembrava-se ela da discussão acalorada,
da vontade dela de conseguir convence-lo a tomar uma atitude para o bem da população.
— Doutor, toda a região procura o hospital. Precisamos ampliar pelo menos a parte das
crianças que é menor.
— Ora bolas! A senhora pensa que eu não vejo isso? Estou farto de saber e os filhos da puta
dos políticos daqui também.
— Doutor, tenho certeza de que, se o senhor falar com a prefeita ela conseguirá um crédito, um
empréstimo. Precisamos disso, Dr. Paulo. É para o bem da comunidade.
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— Não vou arrear as calças e pedir penico para ela que está farta de saber que a cidade dela
precisa. Nunca. Esta prefeita de merda já teria arranjado o crédito, se ela quisesse, mas ela só se
preocupa com a bosta do turismo.
Irmã Coração não havia discutido mais. Sabia que não adiantava gastar o seu latim, que o
homem era cabeçudo, turrão, parecia impermeável a seus argumentos. Benzeu-se, como fazia todas as
vezes que ouvia o palavreado do médico e esforçou-se para esquecer o que tinha ouvido. Agora,
sentada, meditando, resolveu ir pessoalmente tratar do assunto com as autoridades. Sabia que a
abundância dos problemas eram provenientes da falta de dinheiro, onde, meu Deus, encontrá-lo?
— O porcaria do doutor que vá à merda. Nossa Senhora, ajudai-me. Estou ficando como ele...
persignou-se a irmã, levantando-se.
Uma batida forte na porta cortou seus pensamentos. Ruborizada, como se eles estivessem
soando no ar e pudessem ser captados por outrem, abriu a porta e deixou passar Bento Roque.
— Irmã, queria falar com a senhora.
— Pois não Bento. Do que se trata?
A freira sentou-se novamente, convidando o homem para fazer o mesmo com um gesto de mão.
Bento Roque era um mulato asseado, educado, de uns trinta e poucos anos, imaculadamente
branco no seu avental de enfermeiro. Trabalhava ali para mais de dez anos, era inteligente e
interessado em tudo o que fazia, tomando parte ativa na rotina da Santa Casa. Era o auxiliar mais
precioso de Irmã Coração, conhecedor de todos os mistérios da enfermagem masculina, de que ficava
a cargo.
A voz do mulato estava emocionada quando ele falou, devagarinho e baixo:
— Vou ficar aqui só até amanhã, irmã. Na terça tomo o ônibus para São Paulo. Chegou a hora.
— Conseguiu então, heim Bento?
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— Consegui sim, irmã. Vou me matricular num cursinho que começa depois da Semana Santa.
Já está tudo planejado.
Irmã Coração foi sincera quando falou, pois estimava aquele homem lutador, idealista, que
sabia o que queria:
— Fico contente, Bento, embora fique triste de perder a sua colaboração eficiente. Mas um dia
você voltará para ficar, não?
Bento sorriu, de boca aberta, como que antegozando o momento triunfal de sua volta:
— Se Deus quiser irmã, se Deus quiser, volto Doutor.
Todo mundo conhecia a vida de Bento Roque. O que ele era, o que ele fazia, seus anseios não
eram segredo para uma cidade pequena, onde a bisbilhotice e a fofoca são o principal divertimento.
Morava perto do Rio Feio, quase ao lado da Santa Casa, junto de sua mãe preta lavadeira e de seu
inútil pai mulato. O velho Roque era o pé de cana de Igaratuba, uma instituição alcoólica que berrava
aos quatro ventos a excelência da pinga das destilarias locais. Bebia dia e noite, o dinheiro surgindo
milagrosamente em suas mãos para o mata-bicho, embora faltasse para a mesa do casebre. Era raro ver
o velho Roque sóbrio. O seu ponto preferido era na porta do armazém de seu Tovinho, onde ficava
marchando de um lado para o outro da calçada, fazendo continência para o povo que por lá passava.
Seu Tovinho muitas vezes tinha vontade de mandá-lo embora, mas acreditavam que o bêbado lhe dava
sorte. E não era difícil ver o comerciante oferecendo ao velho um trago por conta da casa,
alimentando-lhe o vício.
— O velho Roque não merece o filho que tem, dizia o povo sentenciosamente.
Embora toda a cidade soubesse das adversidades de sua vida particular, o enfermeiro não
comentava nada sobre as dificuldades de sua família. Não se queixava do pai, não falava da mãe,
apenas trabalhava, era um zé-ninguém, um pobretão procurando ganhar o máximo com horas extras e
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com aplicações de injeções em domicílio. É que Bento Roque tinha um sonho e uma meta em sua vida.
Ser médico, estudar para doutor. Para isso vinha guardando há anos o dinheiro suado do hospital,
escondendo cada vintém da garganta sedenta de seu pai. O velho sabia que seu filho mantinha uma
gorda conta na Caixa Econômica e que emprestava a juros a muita gente, mas quando choramingava
alguns trocados para um golezinho, Bento era inflexível, negava seriamente e nada, nem as súplicas,
nem as ameaças do velho, nem o xingatório violento faziam-no mudar de ideia. Gastava apenas o
necessário para manter-se de pé, vivo e limpo, contribuindo com uns miseráveis níqueis para a
alimentação sua e de sua mãe. Mãe Preta, que se defendia mal e mal lavando roupa na beira do rio que
passava no fundo do quintal. Bento dava as costas para o falatório das comadres que achavam o mulato
pretensioso, metido a besta.
— Pretensão e água benta todo mundo tem, diziam os mais comedidos. Mas que ele vive uma
merda de vida, ah, isso vive.
— Fio, às vezes até a mãe reclamava, a gente carece de tanta coisa, as veis até passa fome e
você tem bastante guardado.
Mas ele sempre respondia, sem piedade:
— Calma, mãe. Um dia a senhora vai ser uma dama aqui em Igaratuba. Terá empregada e
nunca mais vai lavar roupa na beira deste maldito rio. Deixa só eu me formar.
— Qual o que! retrucava a mãe. Nunca vi gente preta ser dama!
Bento tinha saído da região uma só vez, quando fora a São Paulo prestar exames supletivos.
Depois disso nunca mais saíra da cidade, trabalhando noite e dia, fazendo crescer o pé de meia,
aumentando o capital que iria possibilitar os anos de estudo e o diploma sonhado. Por isso Irmã
Coração ficou feliz quando ouviu dele a notícia de sua partida. Ela sabia que o mulato conseguiria ir
até o fim, pois possuía uma férrea vontade e uma cabeça firme. Quando ele deixou a saleta, ela sorriu e
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pensou que seria difícil arranjar por ali um outro enfermeiro competente e que teria que colocar uma
freira para cuidar da enfermagem masculina. E também sabia que o Dr. Paulo iria soltar uns palavrões
cabeludos por perder um bom funcionário, pois, o doutor tinha uma latrina no lugar da boca.
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Seu Tovinho era o apelido do negociante Beetoven da Cruz, dono do melhor armazém que se
localizava no coração da cidade, na esquina da rua Quinze com a Avenida Central. Homem
grandalhão, alegre e bem humorado, ele camuflava com seu comportamento o homem que ele
realmente era. Era um pão-duro assumido, sovina com a pobre mulher que morava com ele nos fundos
da loja e que criava suas duas filhas. Não deixava que ela pusesse os pés no armazém, com medo de
que ela se inteirasse do movimento e da féria diária, que pingava sem parar na sua caixa registradora.
Dinheiro pra mulher, só para duas — a Kioko, mulher-dama da casa
da Dora e Maria Penha, a quem chamava de dona e pagava, sempre
que podia, em espécie, com algumas batatas e cigarros.
Fora estas duas privilegiadas senhoras e o Velho Roque, a
quem dava uma vez ou outra um copo de cachaça, Seu Tovinho
levava a sério o seu trabalho de comerciante. Tinha começado o seu
ofício em 1945, quando chegara em Igaratuba, vindo do interior de
Minas Gerais, com uma mão na frente e outra atrás. Naquele tempo, Igaratuba era isolada do resto do
estado, uma estrada sinuosa e sem vergonha descia a serra, uma ponte de madeira caindo aos pedaços
sobre o Rio Feio unindo as duas partes da cidade. Seu Tovinho trocou um relógio de bolso, seu único
bem, por um burro e começou sua vida. Ia a São José, comprava algumas mercadorias fiado, descia a
serra, mercadejava, pagava, comprava mais. Em pouco tempo se estabeleceu numa vendinha
minúscula e miserável perto do Rio Feio. Daí pra frente só progrediu e acabou sendo o proprietário do
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melhor armazém de Igaratuba. Não havia nenhum outro para lhe fazer sombra — apenas vendinhas
com um estoque mínimo nas pontas da cidade. Ali ele tinha tudo, lataria, embutidos, queijos, tamancos
de praia, frutas e verduras para os turistas. Para os nativos, vassoura de piaçava, tachos, carretel de
linha, anzol para pescador, panelas, linguiça que comprava nas sitiocas das redondezas, mantimentos a
granel, guardados em sacos. Tudo se comprava no armazém de Seu Tovinho. O pagamento para a
maioria e para o povo de fora era à vista. Um cartaz em grandes letras negras, trombava com os olhos
dos fregueses, a primeira coisa que viam ao entrar no armazém — Fiado só amanhã — dizia o cartaz.
Apenas alguns privilegiados que ele sabia serem bons pagadores tinham o privilégio de ter caderneta
de compras. O acerto das cadernetas era mensal, ele somava tudo com grande presteza e nunca se
esquecia de acrescentar duas latas de goiabada, uns quilos a mais de arroz, ou garrafas de cerveja,
conforme o perfil do freguês.
Seu Tovinho não confiava em bancos. Transformava seus lucros em casinhas e casebres que
alugava, casas melhores que alugava para temporada, terrenos e sítios espalhados pela região.
Conhecendo sua loja na palma da mão, naquela segunda-feira, ele arrumava, remarcando o
estoque velho e o pondo preço no sortimento recém-chegado para fazer face à invasão de turistas
esperada para o fim de semana. Colocava as latas de conserva, tão a gosto do turista, metodicamente
empilhada, como o rótulo virado para a frente nas prateleiras, a etiqueta com o preço bem à vista. Uma
pilha de pacotes de macarrão, misturados com latas de leite condensado esperava no balcão pelas mãos
ordeiras de Seu Tovinho.
Naquelas épocas a mercearia ficava bem sortida com artigos especiais para as pessoas que
vinham passar a temporada, o preço carregado, sempre remarcado para os visitantes. Fora das
temporadas o movimento era bem menor mas, assim mesmo, ele havia enriquecido. É verdade que
abria cedo, fechava tarde, dava um duro atrás do balcão e nos negócios particulares. Para ajudá-lo,
apenas um mulato de cabelo pixaim, a quem pagava um mísero salário. Seu único divertimento era ir
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às segundas-feiras na pensão da Dora onde visitava a cama da japonesa Kioko, como cliente regular e
assíduo. Lá ele se desforrava da dureza da vida, do trabalho sem fim, procurando não faltar nunca, nem
mesmo nos feriados. Neste dia da semana, sagrado para a diversão, ele fechava o armazém mais cedo.
Depois do jantar saia para a pensão e a mulher sabia para onde ele se dirigia. Seu Tovinho não
escondia da mulher o seu pecado semanal. Para não escandalizar as filhas já grandinhas, dizia que ia
para o armazém botar a escrita em dia. Ele contava rindo para os amigos que faziam ponto na sua
porta.
— No começo, quando comecei com a brincadeira até a patroa acreditava na minha conversa.
Um dia ela descobriu que a escrita era outra e tentou bancar a mulher macho. Mas eu botei as coisas no
lugar com dois bofetões e ela se conformou com a reza. O negócio é não se intimidar. Afinal sou um
homem forte e tenho os meus direitos... Ela sempre pergunta o que é que a Kioko tem que ela não tem.
Eu digo que a japonesa tem a xoxota atravessada e ela acredita...
A turma sempre ria neste pedaço do seu discurso e seu Tovinho ficava satisfeito por se passar
por um sujeito jovial, engraçado, mascarando a sua natureza real e o seu caráter.
Era justamente na visita semanal a sua japonesa que ele pensava, antagonizando os momentos
de saborosa sacanagem nos braços da dita cuja, quando entrou a Maria Penha que, embora um tanto
gasta, era ainda um pedaço de mulher e que vivia tentando Seu Tovinho. Ela entrou, rindo alto,
chamando-o pelo nome, equilibrando-se nos saltos altos e tortos de um sapato velho. Mal vestida, a
boca lambuzada de batom vermelho vivo, um tanto suja e mal cuidada, mesmo assim ela atraia os
homens que passavam por perto. Tinha o corpo bem feito, apesar da penca de filhos, opulento,
sugerindo promessas e prazeres, o olhar franco e direto de um convite quase às claras. Seu Tovinho se
babava pela Penha, os olhos gulosos comiam as partes fartas e baratas que se deixavam aparecer pelo
decote baixo e pela saia curta.
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— Seu Tovinho, larga essa lata e vem me servir, vem? Não quero este moleque. Sua voz
esganiçada e risonha ecoou pela loja.
Não se fazendo de rogado, ele desceu da escada com uma lata de sardinhas na mão, quase que
se curvando numa reverência para a mulher.
— Pois não, dona Penha. O que a senhora quer?
— Um quilo de batatas para o jantar. É pra fazer uma sopinha. Queria também um traguinho.
Tô com sede. Hoje ainda não bebi nadinha.
Sem tirar os olhos dela ele escolheu as batatas, embrulhando tudo numa folha de jornal. Depois
encheu um copo pequeno com uma pinga de cheiro forte.
— Essa é da boa, disse. Pode beber sem susto.
— Tô vendo que é pura. Olha as argolinhas, disse Penha pegando o copo e examinando o
conteúdo.
Seu Tovinho ficou observando a mulher virar o copo devagar, mas num só gole, depois,
estalando a língua.
— Gostou? Perguntou ele.
— Adorei, respondeu Penha baixinho, sem desviar o olhar, colocando o copo manchado de
batom em cima do balcão.
— Só isso? Não precisa mais nada?
— Só isso agora. Posso pagar depois, Seu Tovinho? Hoje tô dura...
Questão de dinheiro era questão de dinheiro, para o comerciante. Nem mais nem menos.
Negócio, negócios, amigos à parte, era seu lema mais citado e preferido, razão do seu tremendo
sucesso financeiro. Fiado só amanhã, não dizia assim na frente do freguês? Ele esperava que a Penha
dissesse as palavras de sempre. Ela sempre dizia. Mas continuou com a farsa.
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— Bem dona Penha, a senhora sabe que eu não fio.
— Sabe Seu Tovinho, de noite vou ter dinheiro. Se o senhor se encontrar comigo na praia, eu
pago o senhor. O senhor até vai ficar me devendo.
Como sempre, os olhos de Seu Tovinho brilhavam, antegozando o que iria acontecer.
Por sua mente passou, como num relâmpago, a ideia, as lembranças, do que sempre acontecia
na praia com a mulher. Mulher de curriculum vastíssimo, sem preconceito, que em matéria de homem,
fazia questão apenas de dois detalhes de suma importância para ela — usar calças e levantar o pau.
Não era puta que exercia o ofício por dinheiro. Aceitava alguns agrados dele é verdade, mas, coisa
mínima, um traguinho, um quilo de arroz, uma lata de sardinha, coisas assim, nada além disso.
Seu Tovinho não podia deixar de lado o convite da mulher de farta carnação e peitaria saliente.
Para ele quem precisava de ossos era coveiro, ele gostava mesmo é de carnes sobrando, lugar onde
pegar e apalpar com gosto.
Por isso não se fez de rogado:
— Bem, só se for muito tarde. Hoje é segunda-feira e eu tenho um serviço a fazer à noite.
— Depois das onze, tá bem? Nesta hora não tem ninguém por lá. Eu espero o senhor no banco
das casas Pernambucanas.
O homem ficou olhando a mulher sair, com o embrulho de batatas nas mãos, equilibrando-se
nos incríveis saltos cambaios, rebolando a bunda redonda, espalhando promessas e um perfume
vagabundo no ar, ante o olhar atônito do empregado que ouvira a conversa, e que deu um assobio de
admiração.
— Hoje é segunda-feira. O senhor aguenta Seu Tovinho?
— Ora, se aguento. E ainda sobra um pouco pra patroa.
E começou a cantarolar um samba antigo que falava de amor, de lua e de carinho.
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Alice deitou-se um pouco depois do almoço, sozinha, na velha cama de ferro batido. Rui ainda
não tinha tocado nela, limitara-se a beijá-la suavemente, parecia que estava procurando acalmá-la e
acostumá-la à situação. Haviam jogado conversa fora, falando sobre vários assuntos, ele procurando
distraí-la com estórias engraçadas sobre sua infância e sobre sua família.
Deitada meio encolhida, ela deixou seus pensamentos vagarem, soltos, procurando pela
primeira vez fazer uma imagem para si, do homem que tentava seduzi-la. Viu diante dela um
cavalheiro, pois não estava ele procedendo como um gentleman? não sendo afoito, muito calmo e
atenciosos, não se atirando faminto em cima dela como um cão em cima de um osso. Além disso era
inteligente e gentil, agradável e interessante, capaz de agradá-la e entretê-la, capaz de fazê-la sentir-se
mulher amada e desejada. Dele emanava um calor humano, e ela percebeu que ele tinha competência
para sufocar suas inquietações e apaziguar seu coração. Haviam falado, sem parar, sobre vários
assuntos. Ele pulava de um tema para outro com a agilidade de uma mente jovem, distraindo-a e
divertindo-a ao mesmo tempo.
Alice esticou-se na cama, em cima da colcha de florezinhas em relevo e passou a mão sobre
elas vagarosamente. Sentiu um formigar nas palmas, um formigar gostoso provocado pelo contato
áspero do crochê, sentiu vontade de se despir, deixar aquela aspereza gostosa fazer cosquinhas em toda
sua pele, em todo o seu corpo. Era uma sensação estranha, absurdos desejos tomando conta dela, ondas
de sentimentos novos escravizando-a, num crescendo, aumentando gradativamente, fazendo-a feliz.
Percebia um sentimento doce em certos momentos, fogo e labaredas queimando suas entranhas, uma
avidez incontrolável de ter o calor de um homem ao seu lado. Sabia que já não era, há muito tempo,
mocinha inexperiente em idade de namoro. Não era uma donzela tola e ignorante dos desejos da carne.
Mas, mesmo sendo mulher feita, não queria cometer os erros muitas vezes perdoáveis em jovenzinhas.
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Ela queria ter a certeza para não cometer um engano, um equívoco que poderia trazer-lhe dor, humilhação e
mágoas. Levantou-se da cama e despiu-se defronte da antiga penteadeira, onde o espelho comprido e alto
refletia todo o seu corpo nu. Dez anos de casamento e três filhos não haviam conseguido destruir os seios, as
coxas e o ventre. Ainda podia se considerar bela, as pernas, colunas bem torneadas estavam muito brancas,
era esguia, cheia de corpo sem ser gorda. Ela se esticou e se contorceu em frente ao espelho procurando
encontrar uma falha, um ponto fraco que precisasse ser escondido, camuflado. Não, não era um corpo feio,
embora nunca experimentado o amor em toda a sua plenitude, um único orgasmo sequer. Alice se
contemplou, passou a mão pelo corpo, parando nos seios ainda firmes, tocando os bicos rosados com a
ponta dos dedos até eles ficarem duros e empinados. Um arrepio percorreu-a dançando na sua pele,
condensando-se no meio de suas coxas. Deitou-se e esperou por Rui. Ele deveria parecer, de qualquer
forma, pois a trouxera até lá para isso.
— Meu Deus, fazei-o vir logo. Cruzes, se é isto o desejo, estou me desmanchando, me
consumindo.
Porém esperou e vão pelo companheiro. Ele não veio e foi ela que, novamente vestida, saiu a
procura dele. Foi encontrá-lo no quintal, fumando um cachimbo velho e desbotado, os olhos presos no
rio. Mansamente ela chegou por trás dele e esperou que ele desse pela sua presença.
— Descansou, querida? perguntou Rui, sentindo-a ali parada. Corada, sentiu o calor subir até
seu rosto.
— Sabe Alice, estou pensando que seria divertido nós tomarmos um banho no rio, agora.
Vamos?
Ela olhou para ele e sorriu acenando um sim.

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— Tenho uma ideia melhor ainda. Vamos nadar nus. Vamos fazer de conta que somos Adão e
Eva no Paraíso Terrestre. Um paraíso cheio de borrachudos e pernilongos, não muito diferente do
paraíso do velho Adão.
Vendo-a olhar para ele espantada, continuou:
— Você nunca entrou n'água nua, com outra pessoa?
— Não. Nem sozinha.
— Pois então vamos! Já não é sem tempo!
Num frenesi de movimentos, ambos tiraram as roupas. Alice não sabia como podia proceder
assim, tão levianamente, tão despudoradamente, ela que fora sempre tão recatada, tão envergonhada da
presença masculina, que não ficava pelada nem na frente de mulher. Nem reparou nele, tão excitada
estava com a novidade da situação, ia viver a primeira aventura real de sua vida. De mãos dadas,
correram até o rio e se jogaram na areia, deixando o sol beijar os corpos brancos e luminosos. Então
ela sentou-se, subitamente, dando-se conta do que estava fazendo:
— E o velho? Não tem ninguém por perto?
— Não, tolinha. Não há ninguém aqui.
E os dois riram dos temores dela, como se aquilo fosse algo profundamente engraçado, uma
piada de primeira qualidade. Deixaram-se ficar ali, por uns instantes, ele parecendo sereno, ela ardente,
por dentro e por fora até que o calor os convidou para que mergulhassem nas águas claras do rio. Sem
olhar para ele, ela foi entrando devagarinho, até a altura dos seios, que ficaram boiando a flor d'água,
claros e túrgidos, os bicos rosados apontando para frente. Então olhou para Rui que vinha em sua
direção e nos seus olhos não enxergou desejo, mas amor. As palavras que ele nunca pronunciara,
estavam lá, meigas, refletidas no seu olhar direto e calmo.

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O desejo que inundava o corpo de Alice deu lugar a um calor no seu coração e ela sentiu
deslumbrada que o amava também. Sentiu o seu ser palpitar quando ele chegou e mansamente beijou-a
deixando que seus lábios reproduzissem as palavras que ela já havia lido em seu olhar. E ela teve a
certeza que pela primeira vez na vida, ela realmente sentia alguma coisa por alguém, tão diferente e tão
próximo daquilo que ela sentia pelos filhos, tão semelhante e tão diferente do abrasador desejo que
dela havia se apossado quando estava sozinha no quarto alguns minutos antes. De sua mente, de sua
consciência se apagaram os temores de um passo mal dado, de uma aventura, substituídos por algo
mais sólido, do mesmo modo que, teve a certeza para ela, aqueles dias não seriam uma vingança, uma
experiência sem significação, uma aventura banal, mas uma gloriosa semana de amor.
Ela não disse nada, quando, tomando-a pela mão, pingando a água que lhe escorria pelo
corpo, ele a carregou para dentro de casa e, atravessando a cozinha e a sala, pousou-a suavemente
sobre a colcha de florezinhas amarelas. Ele era um homem e ela uma mulher e isto lhes bastava.
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Donana Gallo podia ser considerada uma mulher valente.
Chegara à prefeitura por meio de muita luta obstinada e uma
vontade imensa de vencer, aliadas a um coração de ouro, uma
bondade inata, um desejo enorme de abraçar seus semelhantes
como se estes fossem filhos de sua carne. Filhos ela possuía nove,
todos criados no meio de seu suor e sangue, de seu trabalho
perseverante.
Durante os primeiros quinze anos de sua vida de casada,
sempre com um filho no bucho e outro nas ancas, Donana trabalhara, o sabão e a soda comendo-lhe os
dedos, o marido e filhos comendo-lhe o feijão. Mas no dia em que completou seus trinta anos, algo
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despertou dentro dela, um estalo nítido soou dentro de seu cérebro e ela resolveu mudar de vida.
Nunca lhe havia passado pela ideia mandar embora o marido boa vida que arranjara, pois amava-o
apesar de tudo, como amava os seus filhos travessos e brigões que só trabalho lhe davam. Nunca havia
passado pela cabeça inteligente e ativa que um homem normal e sadio vivia às suas custas, à dura pena
de seu labor suado e honesto.
— Mulher nasceu para sofrer, amar e obedecer o marido, havia ouvido de seu pai, um velho às
antigas e machão.
Donana, naquele tempo simplesmente Ana, casou-se aos quinze anos com Anésio Gallo que se
dizia corretor de imóveis para não dizer vagabundo e boa vida. De fato, não havia realmente uma
mentira no que ele dizia, porque quando se casou, logo no primeiro mês vendeu três terreninhos na
praia de São Francisco dando-lhe uma corretagem pequena mas suficiente para a compra de uma
casinha de alvenaria perto do Rio Feio. E dizia-se na cidade que fora o dinheiro que mais rendera, pois
ele nunca mais havia tido necessidade de trabalhar.
Foi no dia em que completou trinta anos de idade que Donana abriu os olhos para a vida.
Conhecia as cuecas, sutiãs e calcinhas de toda Igaratuba, porque lavara e passara roupa para sustentar
mal e mal os filhos e o marido boa vida durante aqueles quinze anos de sua vida, vivendo em eternas
aperturas, roendo beira de penico.
Pois foi no dia de seus trinta anos que Ana Gallo passou a ser Donana.
Passando a limpo os quinze anos de casamento ela se sentiu uma naufraga no mar de sua porca
existência. Ela não se levantou cedo como de costume, antes de toda a família. Ao contrário do usual,
deixou-se ficar na cama, com os olhos fechados, como que dormindo, com os pensamentos ouriçados
fazendo malabarismos dentro de sua cabeça. Não se mexeu nem mesmo quando o marido se levantou
e, admirado ao vê-la ainda deitada perguntou:

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— Tá doente, mulher?
Ela não respondeu. Suas ideias voavam longe, fazendo um balanço do que fora sua vida
naqueles últimos quinze anos. E se deu conta que haviam sido totalmente negativos. Os pensamentos
pularam para o futuro e ela viu se estruturar diante de seus olhos fechados, toda uma vida nova, uma
modificação plena e consciente de um tempo pretérito inútil, suado e sacrificado. Sua vida tinha sido
uma espécie de sonho mau. Será que a sina da gente nunca poderia mudar? Não, ela não acreditava
nisso, o passado poderia ser esquecido e o futuro modificado se a razão e o bom-senso prevalecesse,
ela decidiu que tudo iria ser diferente no momento em que se levantasse daquela cama. E foi uma nova
Ana que se levantou naquela manhã.
Chamou o marido, o traste que vivia com ela há quinze anos, um vagabundo que só sabia fazer
filhos — isto ele fazia com extrema competência e por isso, talvez por isso, ela o mantinha ali,
sustentando-o como podia, para esquentar sua cama a noite. Pela primeira vez, firme e decidida ela o
peitou:
— Anésio, tive pensando. Se eu continuar nesse caminho terei mais uns seis filhos para criar
até os quarenta anos. E a casa é tão apertada que não vamos ter lugar para alojar tanto fedelho. De hoje
em diante, Anésio, você troca de cama com a Jerusa, ela dorme comigo. A não ser que você compre na
farmácia aquelas borrachinhas de evitar filho.
Anésio arregalou os olhos:
— Endoideceu mulher? Esta coisa é cara demais. Já pensou comprar para usar uma por dia?
Além disso eu nunca usei estas coisas, você está é variando...
— Bem, ela foi firme, olhando-o com a determinação de não ceder, então eu fecho as pernas.
Acabou-se o que era doce...
Esta foi a primeira resolução de Donana, o que foi facilmente cumprido. A segunda resolução
foi montar uma pensão. Foi o que fez. Deu de entrada sua casinha e comprou uma pensão vagabunda,
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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

no centro da cidade, com o mobiliário caindo aos pedaços, um casarão velho, cheio de ratos e baratas,
tudo por uma pechincha e à prestação. Era uma casa pintada de azul, desse azul de mau gosto com que
se costuma pintar as casas do interior. As paredes externas descascadas mostravam os tijolos
avermelhados e pareciam desafiar a lei da gravidade, paredes abaladas, janelas e portas emperradas.
Dentro, uma enormidade de salas, com duas mesas compridas cercadas de cadeiras vagabundas
e cambaias, num canto um aparador antigo e nas paredes alegres folhinhas coloridas e um Coração de
Jesus emoldurado de dourado, o sangue escorrendo num vermelho vivo do coração sagrado.
Os quartos eram pobres também, apesar de serem limpos, os colchões velhos mas sem
percevejos — cama patente, guarda-roupas, mesa com moringa e um espelho vagabundo. Mas eram
muitos e Donana reservou três deles para acomodar seu batalhão — um quarto para ela e Anésio, pela
primeira vez na vida, ela dormiria num quarto sem filhos — um quarto para os meninos e outro para as
meninas.
Banheiro, um único para todos os quartos, um horror. Velho, pintado de um pavoroso verde
escuro, uma barra de óleo rodeando as paredes, fazendo fundo a uma banheira grande, de pezinhos
minúsculos, virados para fora. Se a pobreza da casa era grande, a cozinha era miserável. Nada mais
havia além de um fogão a lenha, monstro avermelhado e imenso a um canto, uma mesa e prateleiras
onde se amontoavam a louça branca e ordinária que servia às mesas. Não possuía sequer uma pia
destas pequenas e encolhidas das cozinhas pobres. Em cima da chapa escura brilhavam latões enormes,
de óleo Saúde, da Esso, os letreiros apagados pela constante areação, pois se a casa era pobre em
mobiliário era mais pobre ainda em panelas. Não havia uma. Mas, nos latões em cima do grande fogão
borbulharam e ferveram as mais prodigiosas peixadas da cidade. Foi com surpresa para todos que a
pensão ultravagabunda de Donana passou a ser cada vez mais procurada por um número cada vez
maior de pessoas por ter a fama de sua mesa farta e boa, a notícia ultrapassou as das fronteiras de
Igaratuba e mesmo as de São Damião. Determinada a vencer, procurou subjugar o turista pelo
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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

estômago, já que não possuía outro meio. Experimentava temperos e ervas, combinações esquisitas de
gosto, misturando o sal com pitadas de açúcar, inventando sabores diferentes e excitantes. Como um
químico em seu laboratório de pesquisa, passava horas na sua cozinha escura mexendo os latões
procurando um segredo que a deixasse famosa. E o conseguiu. A magia de sua alquimia culinária
transformou a pensão vagabunda numa casa famosa, numa atração turística. Diziam que se comia a
peixada de Donana de joelhos.
Comer lá era obrigação de todo turista que se prezasse, mesmo pagando diária e outro hotel da
cidade. Em volta das duas mesas da sala de jantar, irmanavam-se amigos e desconhecidos, como uma
família grande, para saborear os deliciosos camarões à Moda de Donana ou a Peixada Divina, prato
farto, onde os sete-barbas boiavam num grosso molho cujo segredo só ela possuía. Dos latões do fogão
saíram os deleites gastronômicos de muita gente fina e muita gente importante que pela cidade
passava.
Não foi surpresa para Igaratuba quando Donana começou a construir seu próprio hotel. A
afluência a sua mesa era tão grande que todos sabiam que o dinheiro entrava a rodo, mesmo fora das
temporadas. Nestas alturas o marido já a ajudava em algumas coisas, fazendo as compras e recebendo
o pessoal. Se assim não fosse seria muito difícil, pois ela não deixava o fogão dia e noite, sabendo que
o sucesso de sua casa dependia de seu tempero e de seus segredos culinários. Mesmo quando mudaram
para o prédio novo, de cinco andares, batizado de Hotel Donana, moderno e limpo, ela não deixou o
fogão. Continuou fiel a seus hóspedes, temperando e misturando os seus molhos, dia e noite, agora à
beira de um moderno fogão a gás, cuja chapa abrigava caldeirões novos de alumínio de primeira
qualidade.
Só largou o fogão quando eleita prefeita de Igaratuba por uma maioria absoluta de votos de um
eleitorado que aprendeu a respeitar a mulher que vencera sozinha, apesar do marido incapaz e dos
nove filhos. Trocou o fogão a gás por uma escrivaninha de fórmica branca de onde dirigia a cidade,
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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

deixando o hotel a cargo de Jerusa, sua filha mais velha, passando os segredos culinários para ela e
para uma empregada fiel.
Não se podia dizer que era má administradora. Prática de administração, isto lá tinha, habituada
que fora a fazer render o dinheiro para chegar até onde estava. Comparava a cidade a um hotel,
vivendo de seus hóspedes e turistas. Mas o dinheiro arrecadado nunca chegava para as necessidades
reais do município.
— A senhora precisa arranjar dinheiro com o Governo do Estado. Ele empresta para a
ampliação da Santa Casa.
Irmã Coração tentava convencer Donana da necessidade de um pavilhão infantil. A freira tinha
andado, guarda-sol aberto para resguardá-la do calor do sol, um bom pedaço, mas tivera a sorte de
encontrá-la na Prefeitura.
— É duro ver esta criançada sem poder se tratar. A miséria é grande.
— Eu sei, retrucou a Prefeita. Ninguém sabe disso melhor do que eu que dela saí apesar das
adversidades. Eu contrairei o destino irmã, mas sei na carne o que é a pobreza.
— Além da pediatria, precisaríamos de um lactário, fornecer leite para toda esta criançada da
roça, uma assistente social para ir aos pescadores ensinar para as mães um pouco de higiene. Tenho
grandes planos para isso e a senhora tem que me ajudar.
— Irmã, prometo ir a São Paulo ver isto depois da Semana Santa. Quem sabe se a gente pode
arrumar alguma coisa por lá. Daqui não pode sair nada porque não há dinheiro. Só com o que gasto
para manter a cidade apresentável! É preciso irmã, a senhora sabe, o turismo exige uma aplicação de
dinheiro para chamar gente. É a vida de Igaratuba.
A freira deixou a Prefeitura com esperanças. A ida de Donana a São Paulo para falar com o
Governador, poderia dar bons resultados. Para isso iria começar uma oração muito forte pedindo ao

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S. F. Arsky

Sexta-feira da Paixão

Santo de sua devoção que não abandonasse os pequeninos que tanto precisavam do auxílio dos homens
adultos.
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A noite era suave, muito suave, com poucas nuvens num céu pontilhado de estrelas. Às vezes a
lua minguante sumia, escondendo-se matreira para aparecer pouco depois iluminando mal e mal a
praia. A luz elétrica de Igaratuba é pobre e anêmica. Os postes que acompanham a calçada da beira da
praia pouco iluminam, tentam, bruxuleantes, tornar visíveis os bancos. Debaixo deles tudo é visível,
tudo toma tons avermelhados, mas já a uma distância não se consegue enxergar mais. Só a lua, quando
cheia, tornava a areia branca e brilhante delineando os vultos dos que por ela andavam. A medida que
as horas avançavam e a noite crescia os transeuntes foram se tornando mais raros para desaparecerem
completamente. Na época das férias, quando a cidade borbulha de turistas e o calor é forte, a Avenida
da praia é bem concorrida. Depois da sessão do cinema o povo faz o futingue na beira da praia,
disputando os bancos de pedra que a margeiam. É mesmo um prazer passear sentindo o cheiro do mar
e a brisa quando se sabe que nos quartos o calor é abafante e os lençóis queimam a pele. Porém,
quando as noites são mais frescas e os turistas raros, Igaratuba é uma cidade morta depois das onze da
noite. As casas vão apagando suas luzes pouco a pouco, os bares vão abaixando suas portas, o cinema
despeja o público para suas casas, deixando as ruas vazias. Somente a fraca luz dos postes mostra que
ali existe uma cidade, ao iluminar o que fica sob o débil clarão, ou um muro, ou um portão, ou mesmo
uma árvore que balança levemente suas folhas à brisa noturna.
Corina olhava a cidade quase morta pela janela do corredor do terceiro andar do hotel. Dentro
de meia hora iria deixar o serviço para subir o morro até o seu barraco. Tudo estaria calmo até quartafeira quando se esperava que começariam a chegar os hóspedes para o fim de semana prolongado.
Pensou na caminhada que teria que dar até a sua casa e deu graças a Deus por haver uma lua grande
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  • 1.
  • 2. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão —2—
  • 3. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Espremida entre a serra e o oceano existe uma cidade que o leitor poderá considerar como fantasia nascida na cabeça desta contadora de história, ou não. Prefiro deixar que este assunto fique na preferência de quem está lendo. Mas, a verdade nua e crua, é que esta contadora de história se inspirou num aprazível lugar que conheceu durante suas andanças. Contudo, para levar a história adiante, vamos fazer de conta que ele existe mesmo, cravado no litoral norte do Estado de São Paulo, uma progressista cidade litorânea, verdadeiro paraíso tropical. Duas magníficas rodovias levam o viajante até ela, uma vinda pelo litoral, a outra descendo a serra e caindo bem no meio dela. Vindo pela via litorânea, o viajante encontra magníficos condomínios, alguns com casas de veraneio de alto padrão, outros mais modestos, mas ainda assim dignos de admiração, marinas, hotéis, restaurantes. Num dos mais belos condomínios, destacam-se, —3—
  • 4. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão visíveis da rodovia, as faraônicas mansões do Dr. Danilo Guimarães, importante magnata paulista, a do Dr. Haroldo Penteado, vitorioso empreiteiro de obras públicas, a do combativo Deputado Estadual Carlos Vieira, antigo prefeito da cidade, emérito cidadão que fala grosso na política. Também nesta região se encontra o Cemitério Municipal, mais para o lado da Serra, com acesso por rodovia secundária porem asfaltada, onde há um túmulo muito visitado por turistas e caiçaras da região. A lápide de mármore rosa, generoso presente da Associação Comercial, tem o inusitado formato de um coração, e abriga sob ela os ossos de uma freira considerada santa e milagreira, para quem velas, flores e pedidos são ali diariamente depositados por devotos, agradecidos e necessitados. Para chegar ao centro comercial da cidade atravessa-se uma ponte de concreto sobre o Rio Feio, mas não tão feio como seu nome proclama, pois é ladeado por gramados, flores e plantas tropicais, obra de afamado paisagista paulistano. Muito pelo contrário, uma beleza de rio, de águas muito escuras, margeado por jardins. E logo depois da ponte, atravessa-se um enorme portal, arquitetura moderna, com os dizeres “BEM-VINDO AMIGO VISITANTE”. O grande portal dá inicio a uma rotatória que ostenta bem no meio uma estátua de mulher em bronze, recém-inaugurada com discursos e foguetório. Uma placa com inscrição identifica a notável personagem: "Homenagem a Dona Ana Gallo, nossa prefeita por três mandatos". A rua principal, assim como todas as outras da cidade, é arborizada e cheia de canteiros com flores diversas — azaleias, tarjetes, gerânios, maria-sem-vergonha, tornando o caminho colorido e agradável. Pela construção dos prédios e pelo comércio nota-se a pujança econômica do lugar. Um shopping center de bom tamanho, com lojas de souvenires, butiques, cafés e sorveterias, um hipermercado com um feérico letreiro luminoso "Eufrásio e Filhos", a igreja matriz branca e azul, estilo colonial no meio de uma praça florida e sombreada por chapéus-de-sol, o hospital moderno capitaneado pela Dra. Zezé Peres, o calçadão salpicado de mesinhas, com bares e restaurantes —4—
  • 5. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão oferecendo serviço de garçom, os hotéis modernos em prédios com elevadores e valetes fardados na porta. E a cadeia de motéis que levam o nome "Império Romano", I, II, III, IV, construções com altos muros, amarelos, ostentando a cada dois metros a estatueta de um fauno em mármore branco. Não há em todo território nacional lugar mais seguro para viver ou veranear. A lei se faz presente nas figuras do Dr. Ubirajara Guedes de Oliveira, idoso delegado à beira da aposentadoria compulsória e do capitão da PM, Nivaldo de Jesus. Ambos mantêm, com o auxílio do destacamento da PM local, a cidade em ordem. Com mãos de ferro não permitem o estabelecimento de traficantes e o comércio de drogas qualquer que seja, nem drogados são tolerados. Mas bebedeiras e porres monumentais que sempre acontecem não são levados em conta, o que não é de se estranhar pois uma das maiores marcas de caninha do pais é ali fabricada por honrada família iguatubense. Ah! Não foi ainda mencionado o seleto clube Lady's Home, fundado pelas beneméritas senhoras Alice Mendes e Áurea Pacheco, setentonas com aparência de quarenta, devido a portentosa ajuda do bisturi de afamado cirurgião paulistano. O Lady's Home é dedicado às mulheres da terceira idade, palacete finamente decorado, com professor de hidroginástica, massagistas importadas peritas em massagem linfática, cabeleireiras e esteticistas, lugar frequentado por donas de alto coturno da sociedade local, que recendem a perfume francês e com conta bancária de vulto. Como todo lugar que se preze, Igaratuba tem seus mitos, seus folclores, seus personagens típicos. Há uma casa velha, hoje museu da cidade e antiga sede da destilaria, que todo habitante jura de pé junto ser assombrada. Ainda há a assombração de duas figuras molambentas que dizem vagar na madrugada pela avenida beira-mar, por sinal magnífica, arborizada com palmeiras e coqueiros em toda sua extensão. E a figura folclórica de um habitante lelé-da-cuca, um mentecapto que se diz atrás de um tesouro, um mulato de cabeça quase branca que faz buracos, dando trabalho aos jardineiros, escavando o parque municipal, terreno antes pertencente ao emérito e exemplar cidadão Dionísio Lugão, doado para recreação e deleite do povo iguatubense. —5—
  • 6. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Há também a figura viva, em carne e osso, de Tonico de Abreu que, com seus noventa anos ainda é ai Jesus do mulherio cuia fama de garanhão tinha ultrapassado fronteiras, herói cultuado e reverenciado por vasta coorte de machos Igatubenses, com seus gloriosos feitos cantados em verso e prosa, invejado pelos varões dos 13 aos 90 anos; herói sem nunca ter lutado numa batalha, sem nunca ter mostrado heroísmo salvando um vivente em perigo, sem nunca ter fundando meritória instituição de ajuda ao próximo, herói cujo único magnífico feito era manter uma ereção diária de quase vinte quatro horas, fato este inexplicado pela ciência, admirado pelos médicos e digno de ser incluído no Guiness. Esta é a Igaratuba de hoje, moderna, progressista, que tem a sua florescente economia baseada em turismo, numa grande indústria pesqueira, dos sócios milionários Gabril Mazzini e Antonio da Silva, mais conhecido como Antônio-sem-calça e na lucrativa indústria da cachaça. Contudo, quero dizer ao leitor que não vale a pena contar a história deste lugar como ele é atualmente, seria muito sem graça. Nem contar como Igaratuba surgiu no mapa do estado. Prefiro falar do lugar pacato que era, quando não tinha o esplendor necessário para ser colocada entre os balneários de luxo, embora, naquele tempo, fosse frequentada por ricaços que preferiam veranear em lugares menos badalados. Era uma cidade que lutava para sobreviver com as temporadas de verão, época das vacas gordas, quando ela inchava e o dinheiro entrava a rodo, pois no Brasil inteiro sempre foi assim, do Oiapoque ao Chuí; toda cidade beira mar que se preze tem vocação para o turismo. O intuito de quem escreve é contar, sem tirar nem por, sem exageros nos detalhes mas também, não deixando de lado as minúcias, um pedaço da história deste lugar e de alguns viventes, não poderia contar a de toda a população, é claro, faltaria tempo, competência e papel. Mas contarei a de alguns residentes e uns outros passantes e como tudo o que aconteceu mudou suas vidas e a vida da cidade para sempre. —6—
  • 7. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão I Segunda-feira —7—
  • 8. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão —8—
  • 9. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Segunda-feira —1— O verão daquele começo dos anos 70 estava no fim. Já agonizava calmo e lento, mas o calor ainda não tinha fugido para esquentar outras paragens. As noites, porém, eram frescas e agradáveis, noites apropriadas para se dormir com um cobertor leve e com venezianas fechadas. A brisa do mar soprando leve provocava um arrepio gostoso nos que saiam sem agasalho depois que o sol morria. Durante o dia, quando não chovia e quando não se acumulavam nuvens densas no céu unindo a linha do mar à serra, o sol dourado queimava os banhistas amontoados na areia, escurecia em tons de marrom os moleques soltos pelas ruas e acariciava a pele dos que não procurava uma sombra fresca. Um sol quente iluminava toda a região, um sol que anulava a aragem marítima, um sol que provocava uma sede danada e aumentava o consumo de chopes, de cervejas e de refrigerantes. Quando o inverno chegasse, ele ainda estaria brilhando, embora mais suavemente, ainda estaria queimando alguns poucos turistas renitentes, casais em lua-de-mel, os moleques e a criançada, soltos na vagabundagem das ruas, mas a animação da cidade, a vida e a balbúrdia da temporada de verão só voltariam no ano seguinte com um outro novo verão. Fora da temporada de férias, o mundo ali era pacato e diferente, a vida ficava adormecida e calma, a pasmaceira sem fim tomando conta de tudo e de todos. —9—
  • 10. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Naquele dia de fim de temporada, Igaratuba despertou alegre, espreguiçando-se molemente entre a montanha e o mar. Já na fímbria da manhã a luz de um sol promissor substituiu a fraca luz elétrica das ruas e foi tingindo pouco a pouco o horizonte sobre o mar de tons de vermelho vivo. As águas escuras foram clareando, passando por um cinza chumbo, depois, um cinza claro, até tornaremse esverdeadas e cintilantes. Aos poucos, uma a uma, as janelas foram se abrindo, as venezianas chocando-se contra as paredes, e as chaminés começaram a vomitar a fumaça dos fogões de lenha, ainda em uso em muitas casas. O aroma do café quentinho, do café feito na hora, café ralinho ou café bem preto, deixava as casas e invadia as ruas para ir se desmanchar na brisa da manhã. Do lado oposto do mar, o sol começava a colorir de tons vivos os picos dos morros, fazendo renascer os tons verdes das matas, neutralizando os tons azulados e violetas que desapareciam lentamente até que, finalmente, toda a serra resplandeceu glorioso, na sua majestade. As folhas das mangueiras brilhavam, ainda molhadas de orvalho, num verde escuro e profundo, pintadas de pontinhos refulgentes enquanto que as amendoeiras das ruas refletiam o dourado das copas alegres e acolhedoras, debruçando-se sobre o muro das casas, balançando suas folhas em frente das portas ainda fechadas dos bares e armazéns. Pouca gente andava pelas ruas. O padeiro ia de casa em casa entregando os últimos pães para a freguesia. Ia vagaroso, arrastando-se na carrocinha velha de um só cavalo também velho. Contornou a igreja, entrou pela Rua Sete de Setembro sacolejando os cestos com pães e broas quentes num balanço perigoso, e sumiu da vista de Seu Teodoro que atravessava o largo da matriz em direção aos seu bar. O dono da sorveteria e bar "Ponto Chic" passou pelo último banco da praça, atravessou a rua e preparouse para abrir, limpar, varrer e lavar o melhor estabelecimento da cidade, o primeiro a abrir todos os dias suas portas para acolher os fregueses viciados em levantar cedo. Embora quase ninguém transitasse pelas ruas e pela praça principal, todos os cães da cidade já tinham tomado conta das calçadas. Podia-se ver a cada cem passos uns vira-latas, ou refestelado no — 10 —
  • 11. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão passei, ou fuçando uma lata de lixo esquecida, na esperança de uma refeição matinal, ou rodeando um poste. Aos bandos, ou solitários, os vira-latas eram, naquela hora, os donos da cidade, e tomariam conta dela até que a vida e o movimento se instalassem definitivamente nas ruas, na praça e nas casas comerciais, trazendo gente que andava à toa e gente que trabalhava. Já passava das sete e meia quando um grupo de jovens atravessou o largo da matriz, em direção a Rua Quinze de Novembro onde funcionava o Colégio Estadual e Escola Normal de Igaratuba. Agora a cidade já tinha o movimento usual da manhã, o comércio se abrindo, gente indo em direção da escola, das lojas, ou andando sem destino certo. Caminhões e automóveis, não muitos, mas já o suficiente para causar certo barulho, cruzavam a rua principal, uns para parar mais adiante no posto e abastecer os tanques, outros dobrando as esquinas, outros passando reto em direção a São Damião. A praia porém, ainda estava vazia de gente, as areias brancas brilhando ao sol, convidativas e macias. As moças atravessaram a praça alegremente e entraram na Rua Quinze de Novembro. Um bando de homens já a postos na porta do Ponto Chic, interrompem a discussão que se iniciava a respeito do governo, para olhar as jovens que passavam. — Que safra boa essa! Comentou Tônico de Abreu que tinha fama de mulherengo e se considerava o maior olho clínico para classificar uma fêmea. Os comentários se sucederam os olhos gulosos a medir e a conferir. — Boa pra burro. Gostosona. Olha pra ela. A menina vai longe. — Tá virando um pedaço de mulher! Que bundão! — Deixa o pai dela ouvir isso que ele te quebra a cara e a boca! — É a melhor delas, apetitosa! Dizem que vai ficar noiva daquele rapaz de São Paulo. Aquele que a família tem casa na Enseada dos Coqueiros. — Que tá no ponto para casar, lá isso é verdade. Um tesão! — 11 —
  • 12. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão — Pra uns cinco daqui eu sei que ela já deu. Alheia ao que sobre ela comentavam, Rute Pacheco da Silva, bambaleava-se junto das amigas em direção à escola. Fazia um cartaz enorme junto das outras, porque era a única que namorava firme, compromisso sério, e que ficaria noiva naquela semana, noiva de aliança no dedo, enxoval encomendado e casamento quase que marcado. Era uma morena vistosa, bonita, dourada nas praias de Igaratuba e temperada com o sal do oceano, cabeleira farta, rolando nos ombros, o corpo apertado na blusa branca do uniforme, a cintura fina, olhos esverdeados orlados por cílios enormes, cílios de boneca. E também uma jovem cheia de vida, moderninha, filha de gente rica e da melhor sociedade local. Os Pachecos da Silva, já estavam por aquelas bandas há muitos anos. Aos poucos foram consolidando uma sólida fortuna em terras, loteamentos, propriedades imensas na região e terrenos bem localizados dentro da área urbana. Inácio Pacheco da Silva era o concorrente dos bancos, o banqueiro da região, emprestando a juros para quem precisava e não conseguia com os estabelecimentos bancários, negociando títulos e hipotecas, financiando empreendimentos. Era, além disso, dono do maior e melhor hotel da região para onde convergia o grosso da granfinada da capital e das cidades maiores, aqueles que não queriam se dar ao luxo e trabalho de manter uma casa na Enseada dos Coqueiros. O Hotel dos Golfinhos era um tanto retirado de Igaratuba e ficava na beira de uma praia particular, cercado por uma sebe sempre verde que, durante quase todo o ano, ficava pontilhada de flores coloridas, onde a molecada fazia posto para espionar a exibição de coxas e barrigas, bundas e umbigos de mulheres metidas em biquínis coloridos e reduzidos, e que circulavam em volta da piscina e nos jardins bem cuidados. Rute tinha estudado em São Paulo por alguns anos, aluna do Sacré-Coeur, e tinha voltado para terminar o último ano do curso e se preparar para o casamento. Considerava-se viajada, pois, estivera numas férias em excursão pela Europa com as colegas do colégio, sozinha, sem pai e sem mãe para vigiar-lhe os passos, tentando conquistar Paris nos três dias que por lá passou. Era considerada pelas — 12 —
  • 13. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão amigas como experiente, vivida, avançada, o máximo em elegância. As jovens imitavam o seu penteado, suas roupas, seu comportamento, desejando desesperadamente serem iguais a ela. Já os homens viam nela outras qualidades menos perceptíveis pelo sexo feminino, parando os olhos gulosos nos quadris arredondados, nas pernas bem torneadas e bronzeadas, no busto cheio e na bunda empinada. As jovens conversavam animadas comentando com Rute o seu próximo noivado. Eram todas amigas, colegas de estudo, moradoras da cidade, sonhando em encontrar um bom casamento. Corina, a melhor amiga e confidente, caminhava ao lado dela, era a mais calada. — Você vai dar festa? perguntou Helena Santiago, magrela, de pernas finas. — Vou dar um festão. Toda a família de Haroldo vem para Semana Santa e o noivado. Vem muita gente. Os que não puderem ficar em casa e na Enseada com Haroldo, vão ficar nos Golfinhos. Vocês estão todas convidadas! — Puxa! Que bárbaro! Exclamaram as garotas em coro, com exceção de Corina. — Você também vai, Corina? perguntou Helena Santiago maldosamente. — Não sei. Depende... Corina Perez era pobre, de uma pobreza aviltante. Todas sabia que vestia as sobras de Rute. Seus irmãos vivam esfarrapados e ela mesma, se não fosse a ajuda da amiga, nem poderia estudar. Rute, mesmo quando estava estudando fora, se correspondia com ela, ajudava-a à distancia. Corina trabalhava no Hotel da Donana, propriedade da prefeita da cidade, no período da tarde e parte da noite, arrumando quartos, limpando banheiros, atendendo hóspedes para ganhar o salário com que ajudava em casa e comprava os livros e cadernos que precisava para estudar. Morava longe, num barraco aos pedaços, pendurado no morro, lugar escuro como breu a noite, infestado de borrachudos durante o dia. — 13 —
  • 14. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão O velho Juan Perez, pai de Corina, tinha vindo da Espanha, era um espanhol que não progredira na vida como tinham progredido os Santiagos. Era um velho orgulhoso e ferido na sua dignidade pelo comportamento da mulher, a mulher de todos os homens da cidade. Era o bode expiatório de Igaratuba, o maior cornudo da região e alvo de chacotas e piadas. Corina era filha de seu primeiro casamento com uma conterrânea, bigoduda e trabalhadora. A primeira mulher lhe dera dois filhos, Corina e um rapaz, Álvaro, que servia o exército em Quitaúna, perto de São Paulo. A vida naquela época não era tão ruim, e Juan Perez até progredira, chegara a ter carroça para transporte de lenha, mas, assim que enviuvara teve a má sorte de se engraçar com uma jovem, quase menina, que engarrafava pinga na destilaria do Mendonça e se casara com ela, primeiro, porque tinha dois filhos pequenos, depois, porque precisava de uma mulher para lhe esquentar as costelas nas noites ais frias. Dinheiro, ele não tinha para sustentar as putas da cidade e, segundo o seu parecer, mulher legítima era mais barato, comia quando tinha, vestia o que podia, além de trabalhar no barraco e para ele ter sua cama todas as noites. Assim pensara Juan Perez quando resolveu pedir Maria Penha em casamento, tudo nos conformes, dentro da lei. Ela era menor, precisava do consentimento da mãe dela, mesmo sendo uma mulher desclassificada, sem muita honra. Mas Juan Perez não sabia, nem sonhava e não podia adivinhar que Maria Penha era louca por homem e ele, já maduro não aguentava o repuxo. Mais moça, ela tinha mais energia que dez potrancas no cio, ávida de homem e de pinga, vício adquirido nos anos de trabalho engarrafando caninha. As colegas eram cruéis com Corina. E Corina, tímida demais, envergonhada pelo comportamento da madrasta, nunca argumentava, passando por tola. Contudo, a mocinha tinha dignidade, uma altivez andaluza que transparecia no seu porte, no seu andar seguro e no seu olhar firme. Era bonita, agradável de se ver, charmosa, era levemente rechonchuda, de uma gordura sem banhas, tinha o brilho da juventude no corpo e no rosto e, talvez, acabasse com o decorrer dos anos, — 14 —
  • 15. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão bigoduda e corpulenta como fora sua mãe. Mas era preciso analisá-la muito para descobrir que não era uma beleza deslumbrante, pois impressionava a todos. Rute, encontrando ouvintes ávidas, falava sem parar, enquanto caminhavam em direção à escola. — Eu não pensava em casamento tão cedo. Vocês sabem, na Europa a moça demora para se casar, nem se casa, vive junto, não é assim como aqui, onde as garotas vivem só para isso. Na realidade eu pretendia ter uma porção de casos amorosos em vez de me amarrar de cara. Ela usava e abusava dos conhecimentos adquiridos com a curta viagem pela Europa e constantemente procurava escandalizar as amigas com opinião sobre a conduta da mulher europeia, modernismo e sexo. — Credo Rute, você teria coragem? — Ora, meninas, a virgindade é propriedade particular de Igaratuba. Lá em São Paulo, que não é Europa, as coisas são diferentes. Pode-se contar nos dedos as virgens de mais de dezesseis anos. Foi por isso que papai me trouxe para cá... Coitado, mal sabe ele... — Bem, argumentou Helena, as moças que vem passar as férias aqui não parecem diferentes de nós... — E desde quando arrombamento aparece na cara? A turma riu da saída de Rute. Era sempre assim, ela dava a última palavra, a última piada, a última sentença, as colegas adorando e invejando seus gestos, sua ousadia, sua riqueza, beleza e boa sorte. E enquanto ela falava, o grupo foi engrossando, já perto da escola. Bandos de escolares uniformizados, saia ou calça azul marinho e blusa branca com as iniciais C.E.E.N.I. bordadas no bolsinho, livros debaixo dos braço ou malas pretas na mão, encaminhavam-se em direção do prédio amarelo que tomava todo um quarteirão da Rua Quinze. O grosso da juventude de Igaratuba passava — 15 —
  • 16. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão por aquele prédio durante o ginásio e grande parte das jovens cursava a Escola Normal para obter um diploma enquanto o casamento não aparecia. Era a única escola secundária da região. Mesmo em São Damião, cidade quase do mesmo tamanho, não havia ainda ginásio, só grupo escolar. Todos os dias a prefeitura de São Damião mandava um ônibus cheio de alunos para o colégio de Igaratuba. Ele chegava alegre e ruidoso, bufando de velhice e despejava as sete e vinte e cinco uma turma de jovens barulhentos que se unia aos não menos barulhentos jovens de Igaratuba para assistir às aulas matinais. O sinal de entrada para as aulas soou assim que as moças cruzaram o portão da escola. Centenas de estudantes se agruparam em filas para entrar em aula. A balbúrdia natural dos jovens foi cessando a media em que eles entravam no prédio de portas escancaradas para engolir as filas que se movimentavam ziguezagueando pelo pátio. De repente o galpão ficou deserto e vazio de vida, um lugar silencioso onde momentos antes imperavam os gritos, as vozes e o riso. Mas uma hora depois, na hora do recreio, ele se encheria outra vez de juventude e de vida. Às vezes a turma de São Damião se pegava com a turma de Igaratuba. Nessas horas era preciso a intervenção do diretor e dos professores que corriam aflitos procurando impedir um conflito de maiores consequências. Mas isso acontecia quase que exclusivamente quando, na véspera, os times de futebol das duas cidades haviam se pegado num amistoso onde já haviam apanhado o juiz e os jogadores e muitos dos torcedores. No mais, imperava a amizade entre os jovens das duas cidades. E tinha que ser assim porque sempre havia um rapaz namorando uma moça de lá ou um rapaz de lá namorando uma moça de Igaratuba. Mas, economicamente, as duas cidades eram rivais. Rivais na disputa de turistas que deixavam durante as férias, feriados e fins de semana, os cruzeiros preciosos para que as cidades continuassem vivas, comendo e prosperando. — 16 —
  • 17. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão —2— Igaratuba e São Damião distam uma da outra, trinta e seis quilômetros, ligadas por uma estrada de rodagem asfaltada que ora segue o recortado de costa, ora penetra pela serra subindo em curvas fechadas e perigosas para deixar o mar e a praia uns cem metros abaixo. Quem viaja de uma cidade para outra fica encantado com a beleza desta parte do litoral. Todo recortado, cheio de enseadas, belas baias. É a costa mais procurada para pesca submarina e esquiagem. O mar visto de cima da serra, tem tonalidades diversas, às vezes inacreditáveis, variando do verde esmeralda ao verde escuro, passando por todos os tons de azul ao violeta profundo até chegar ao cinza. Transparente, cristalino, é na maior parte das vezes, tranquilo e calmo, convidativo e repousante, qual imenso e majestoso lago a rodear a praia. A areia é branca, muito branca. Alva mesmo. Além disso, é fina e macia, chamando a gente para deitar, descansar e dourar debaixo de um sol sempre acariciante. Durante o verão as praias de Igaratuba e São Damião são procuradas por estudantes em férias, turistas de todo o estado. Ficam cheias, alegres e barulhentas, o mar pontilhado de cabeças, barcos e esquis. Já no inverno, embora o sol seja quente e macio, um vento irritante sopra do mar, arrepiando as peles nuas, afastando o grosso dos turistas e diminuindo a arrecadação da região. Quando chove muito durante o verão, o vento vem mais frio e mais forte e, com muita frequência, os dias são cinzentos, escuros e desagradáveis. Aquele ano o inverno prometia ser desse tipo, pois, as chuvas haviam castigado todo o litoral, perturbando os turistas. Sempre chovia à tarde. Mal acabava o almoço nos hotéis, o céu escurecia e nuvens vindo da serra ensombreavam a cidade e a alegria dos hóspedes. E chovia até o dia seguinte, a jogatina forte aumentava cada vez mais dentro das salas do hotel de luxo, os rapazes e moças jogando pingue-pongue, lendo para passar o tempo. Os que tinham namorados ou namoradas, achavam no que passar as tardes facilmente. Deixavam os hotéis e as vistas maternas nos carros paternos e iam estacionar na encosta do morro, onde terminavam as ruas ou praias desertas, para explorar os mistérios do amor. Os que não tinham namorados ou namoradas, ficavam amolando os gerentes até que — 17 —
  • 18. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão colocassem um som, a fim de dançarem e conseguirem arrumar um namorado ou namorada. E assim passava o dia para a turma de turistas. Mas nos dias em que o sol não se escondia atrás das nuvens, e que a serra não mandava as chuvas para banhar o litoral, as praias ficavam cheias até anoitecer, revezando as turmas, não dando sossego ao mar e à areia. E à noite um futingue animado tomava conta do largo da matriz, da rua principal e da porta do cinema, que ficavam lotados de turistas e de moças e rapazes da cidade. O parque de diversões faturava a rodo, todo mundo, grandes e pequenos, andando de roda gigante e de trem fantasma, comendo algodão doce ou tomando sorvete. O bar de Seu Teodoro, vendia além de todo o sorvete, toda a cerveja e todo o chope em estoque, precisando no dia seguinte ter fortalecido seu suprimento. E o verão estava no fim e com ele a temporada alegre e lucrativa. Mas havia ainda uma última etapa a explorar e as cidades se preparavam para ela. Igaratuba e São Damião se preparavam para os feriados da Semana Santa, quando outra vez as cidades ficariam cheias e o dinheiro entraria grosso, para depois parar com a chegada do inverno. Esperava-se a lotação completa dos hotéis, tudo já reservado. Os bares e restaurantes tinham seus estoques já prontos, bebida e comida a rodo, esperando a boca voraz do turista faminto e sedento. Esperava-se a lotação total das cidades; esperava-se faturar o máximo para depois, com o fim da estação, poder aguentar os meses não produtivos e preparar condignamente a chegada de mais um verão. —3— A estrada que liga São Paulo a Igaratuba é sinuosa como uma mulher bonita. Cheia de curvas e lisa como a pele de uma garota estendida sobre uma esteira de praia. O motorista precisa ser hábil para vencer a distância em menos de quatro horas. Mesmo com um carro potente, as curvas são fechadas e poucos conseguem fazê-las com segurança em alta velocidade. — 18 —
  • 19. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Rui Mendes, já havia vencido mais da metade do caminho quando percebeu que corria muito, e que nunca fizera aquele trajeto tão rapidamente. Olhou para a companheira de viagem e sentiu-a tensa, quieta, as mãos apertadas ao colo. Poucas palavras tinham sido pronunciadas desde que saíra de São Paulo. — Não precisa ficar nervosa, Alice. Vou diminuir a velocidade. Não se preocupe. Conheço a estrada de cor. Ela não respondeu logo. Parecia que meditava, que escolhia as palavras para não falar além do necessário. Depois de uns instantes de silêncio, em que se ouvia somente o ruído do motor em movimento, ela falou: — Não é a velocidade, Rui, você sabe. Você também parece nervoso. É o que estamos fazendo, toda a enormidade de nosso ato. — Ainda não fizemos nada, querida. Já arrependida? — Não. Nem um pouco, mas penso que poderemos encontrar alguém conhecido. O mundo é pequeno quando queremos nos esconder do resto da humanidade. — Não se preocupe quanto a isso. Ficaremos meio isolados, fora da cidade, numa casinha ao pé do morro, com rio entrando quase na cozinha. Tem praia no rio. É o lugar mais lindo do mundo. Alice não respondeu e olhou pela janela. Serra e mais serra. As viagens com muita curva, deixavam-na levemente enjoada e amolecida, com vontade de dormir. Mas não tirou os olhos da estrada e da paisagem até o mirante. De lá podiam avistar toda a baía cheia de sol e luz num magnífico — 19 —
  • 20. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão dia. Rui não parou o carro como de costume para gozar a vista do mirante. Conhecia-a de cor, pois muitas vezes havia passado por ali em direção ao seu chalé. Quem olha lá do mirante pode divisar toda a topografia da região. A cidade de Igaratuba se estende por toda a baia do mesmo nome. Logo na estrada, assim que acaba o contraforte da Serra, a estrada atravessa a ponte do Rio Feio, estreito, mas profundo e perigoso. O rio vem de mansinho, saindo de repente da serra, todo margeado de samambaias, folhagens e copos de leite, para atravessar a areia branca e se jogar dentro do mar. Tudo isso sossegadamente, sem se cansar, sem grandes correrias, arrastando molemente suas águas escuras e tristes. No verão refresca a margem e o casario pobre e tão feio como suas águas, e que com ele segue o curso, invadindo pomares e quintais, servindo de tanque, de banheiro e de privada. Mas o rio preguiçoso e molenga torna-se violento e malvado quando na época das chuvas, pois recebe as águas da serra inteira transformando-se num caudal impetuoso, transbordando, até invadir as casinhas que o margeiam. Mas o mar, a grande bacia, engole rapidamente toda a água excedente, e num fechar de olhos, lá fica ele outra vez, preguiçoso e moleirão a arrastar suas águas tristes e escuras. Atravessando a ponte, a estrada termina logo dentro da rua principal, cruzando toda a cidade para, na outra extremidade, transformar-se outra vez em rodovia estadual. Igaratuba fica apertada entre a serra e o mar, numa faixa de uns três quilômetros. Fora a Avenida Central que é a principal e atravessa a cidade de ponta a ponta, duas outras ruas apresentam um movimento mais intenso. O restante delas é sossegado, quase sem tráfego, a não ser na temporada de verão, em janeiro e fevereiro, quando toda Igaratuba se transforma num formigueiro humano. Mesmo a Avenida Beira Mar é tranquila quando fora de temporada. Um ou outro habitante que passa, um ou outro casal de namorados, que sentados nos bancos passam o tempo a sonhar e a se beijar e se esfregar. Os hotéis, quase vazios, abrigam ocasionais casais em lua de mel ou casais de fim de semana. — 20 —
  • 21. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão O Aero Willis vermelho de Rui acabou de atravessar a Avenida Central e retornou à estrada, rodando mais alguns quilômetros. Parou numa variante e entrou por ela adentro, sacolejando-se na estradinha vagabunda e esburacada, sobre cascalho e areia. No fim dela por entre coqueiros e bananeiras podia-se perceber o chalé maltratado de Rui. Mal ele desligou o motor um velho barbudo de pé no chão abriu o portão. Rui deu de novo na partida e colocou o carro debaixo das árvores enquanto o velho fechava o portão de madeira, isolando o chalé da estradinha. — Lugar velho e feio, pensou Alice. Esperava outra coisa, uma casa mais bonita e menos assustadora. A voz do companheiro chegou até ela interrompendo os pensamentos. — Vamos descer? Aqui estamos. Lar, doce lar! Este é o Florêncio, disse mostrando o velho. Trabalha para mim há mais de 20 anos. Alice desceu e ajudou o velho com as malas enquanto Rui transportava as provisões para dentro. Quando sentou na sala de estar esperando por Rui que providenciava o almoço com o velho, pensou pela primeira vez na sua casa e nos seus filhos. Pensou também em seu marido e o ódio que sentia por ele aumentou, fazendo-a estremecer involuntariamente. Para Alice aquele passeio com Rui representava uma fuga, uma renovação. Deixara os filhos para trás, com a mãe, enquanto o marido estava fora do país, e seguira um homem quase estranho a quem não sabia sequer se amava realmente, para uns dias de aventura e romance. Tudo isto porque sabia que o marido tinha uma amante por ele mantida, que zombava dela, em altos brados, nas rodas que frequentavam. Quando Alice casou-se com Fernando Camargo Ribeiro, o doutor Fernando, era uma moça tola e ingênua. Dessas moças antigas de colégio de freiras, que liam Delli e Coleção Rosa para Moças, que achava que o ato sexual era exclusivamente para gerar filhos. Sonhava em ter três filhos, dois meninos e uma menina, todos loiros, rosados e perfeitos. — 21 —
  • 22. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Mal saiu do colégio, com dezessete anos, encantou-se com Fernando, amigo da casa, rico e boa pinta. Daí para o casamento foi uma questão de meses, pois Alice também convinha ao médico em ascensão. Depois do casamento custou muito a se acostumar com o marido. Pretendia ter apenas três filhos e já havia discutido isto com Fernando quando noivos e achava absurda aquela fome por sexo que descobriu haver entre os homens. Em lágrimas, abriu-se com a mãe, chorando a sua situação e pediu-lhe que fosse falar com seu marido. E suas lágrimas não secaram quando a mãe, pela primeira vez na vida, foi franca com ela, contando-lhe a realidade da vida conjugal e aconselhando-a que fosse paciente pois mulher nascia para sofrer e suportar a nojeira dos homens. Com o tempo as lágrimas foram secando, rareando, e ela foi se acostumando as exigências sexuais do marido. Aconselhada por amigas procurou ler sobre a fisiologia humana. Ficou abismada ao descobrir o pouco que sabia sobre o assunto, mesmo já sendo mãe. E nas suas leituras aqui e ali, também descobriu que não fora despertada sexualmente pelo marido grosseiro, que se atirava e cima dela como se ela fosse um pedaço de pudim ou um bom-bocado, saboreando-a sem sequer se importar com o que ela pudesse estar sentindo ou deixando de sentir. Suas amigas mais íntimas também eram unânimes em afirmar que nada sentiam. "Você precisa fingir, aconselhavam, mesmo que nada sinta, revirar os olhos, gemer, como se estivesse gozando". Fingir, uma ova, pensava. Não fingiria como uma puta, não daria ao animal do marido o prazer de pensar que poderia despertar nela qualquer coisa. Mas, assim mesmo, procurava, socialmente, parecer feliz mulher casada, esposa amantíssima de um homem de sucesso. Pelo menos não se negava a ele, já se acostumara com o marido e até achava-o um homem que poderia ser suportado até o fim de sua vida. Nunca teve coragem de procurar um médico especialista, morria de vergonha de seu ginecologista. Mas não havia desistido de ler tudo sobre o assunto, era perita na teoria, conhecia tudo sobre sexo, tanto em forma de ciências, como o de sacanagem. — 22 —
  • 23. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Quando descobriu, por acaso, e depois confirmado por uma amiga íntima, que o marido mantinha uma amante requintada e bonita e que esta mulher gozava a situação chamando-a de geladeira, não fazendo segredo para ninguém de suas relações com Fernando, Alice se acabou. Um ódio intenso pelo marido foi tomando conta dela e ela procurava justificar este ódio. Primeiro, dizia a si mesma, porque se submetia as suas exigências sexuais sem nenhuma queixa, sem recusa, passivamente; segundo, porque o marido contara a outra mulher os problemas íntimos do casal, coisa que ela não poderia perdoar. Desabafando-se com as amigas, todas foram da mesma opinião. Ela precisava se arrumar por fora, e talvez tivesse uma chance de encontrar alguém que a levasse até o fim e fizesse dela uma mulher perita no assunto, o chifre que estava usando merecia um retorno adequado. Levando os conselhos ao pé da letra, não foi muito difícil encontrar Rui, dar em cima dele, interessálo, coisa que achou um pouco mais difícil, pois, com os anos de casamento e de fidelidade havia perdido um pouco a prática destes assuntos. Mansamente ela esperou que Fernando viajasse para os Estados Unidos, o que fazia regularmente para participar de congressos, levando a amante a tiracolo e discretamente partiu com Rui para uma semana de férias extraconjugais, ao encontro da aventura e do desconhecido sexo. Estava decidida ir até o fim, naqueles dias de experiência. Estava com medo de falhar, muito nervosa, receosa de que as portas do prazer não se abririam para ela. Não sabia se amava Rui, mas pela primeira vez sentia por um homem forte, atração física. Achava-o bonitão, gostava de seus cabelos tingidos de branco nas têmporas, da sombra escura de sua barba sempre bem escanhoada, gostava de seu físico forte, embora não esportivo. Sentia-se levemente perturbada quando o via, mesmo de longe, e seu coração acelerava quando ele chegava perto dela. Quando lhe tomava as mãos e a beijava, o perfume dos cabelos dele, da pele, o roçar áspero da barba cerrada, faziam-na tremer, agitando seus pensamentos, esticando seus nervos e quase fazendo seu juízo sumir nos ares. — 23 —
  • 24. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão O que a intrigava, era que, nestes arroubos amorosos que pela primeira vez sentia realmente com grande intensidade, o cheiro de Rui, o calor que dele emanava, não faziam com que ela recordasse o marido, mas faziam-na sentir uma vaga sensação de já ter sentido antes o mesmo calor, o mesmo perfume masculino. Ah! O cheiro do Rui! Como era diferente! Como entrava pelas suas narinas de uma maneira deliciosa fazendo-a respirar fundo para não perder uma só nuança dele! Jurou para si mesma que tiraria daqueles dias o máximo que pudesse e voltaria para casa confiante e senhora de si, dando a Fernando uns belos chifres, os mesmos que ela usava sem protestar. Prometeu a si mesma que o marido haveria de conhecer a verdade, que não seria o último a saber, mas, um dos primeiros, e já de antemão gozava a vitória que obteria com sua vingança, a de trair a quem a traía e a de tornar-se uma verdadeira mulher, uma fêmea e toda a sua plenitude, por intermédio de outro homem, já que o legítimo e sacramentado não despertava a fêmea escondida dentro dela. Foi nesta disposição de espírito que Rui a encontrou, sentada, fumando, na saleta do chalé. Tomou-a pela mão e levou-a para mostrar a casa. O chalé não era bonito. Mal tratado, mostrando a falta de mãos femininas, era menos que uma casa, um pouso de homem solteirão. A única peça mais cuidada era o quarto, com uma imensa cama de casal de ferro batido, mas, levemente enferrujado nos cantinhos por causa do ar marinho, uma cama que não deveria estar ali, como julgou Alice. Não parecia uma cama de beira de praia. Contudo era uma cama sólida, majestosa, com colchões altos e fofos, coberta por uma antiga colcha amarela de crochê num trabalho intrincado de rosinhas e folhinhas entrelaçadas. — Trabalho de minha mãe, muito antigo, explicou Rui, vendo os olhos dela examinando cuidadosamente a cama. — Bonito, falou baixinho, passando a mão sobre as flores salientes, a espessura do crochê causando-lhe um arrepio gostoso. — 24 —
  • 25. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão A janela do quarto era baixinha, mais baixa que sua cintura e estava aberta para um quintal de árvores. Chegando à janela, não muito longe, podia-se ver um rio, um braço de mar parecendo caminhar para as montanhas, seguido, lado a lado, por uma estreita faixa de areia branca. Rui chegouse até Alice, passando o braço em volta dos ombros dela. — Ele varia conforme a maré. Às vezes mais alto, mais cheio, às vezes rasinho, aumentando a prainha. É um rio mesmo. Nasce lá na serra. Nós vamos até lá uma hora qualquer ver a nascente. Lá adiante, beirando o mar, muitas vezes a areia se acumula e fecha o caminho dele, transformando-o num lago. Então é uma delícia nadar ali; a água fica gelada e transparente como cristal... — Há muito tempo você tem esta casa? — Foi de meus pais. Minha mãe passava as férias comigo aqui, quando eu era moleque. Naquele tempo a casa era diferente, bem tratada, vivia cheia de amigos. Agora só venho aqui ocasionalmente... — Quando vem trazer uma mulher... emendou Alice, quase sem querer. — Nem sempre. Mas não nego que já trouxe algumas... Ela se afastou dele, como que magoada. A franqueza de Rui a deixava muitas vezes constrangida, muitas vezes triste. Sabia que um homem solteiro, rico e atraente tinha os seus casos, mas não esperava ele confirmasse tão simplesmente e tinha a secreta vontade de ser primeira aventura na vida dele, como ele era a primeira de sua vida. Sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos, procurando por de lado as ideias que agora chamava de tolas e românticas. Este tipo de pensamento infalivelmente lhe ocorria, como se ela ainda fosse uma donzela que esperava o seu cavaleiro andante para salvá-la das garras da realidade e levá-la com ele para o país dos sonhos. Sabia que estava tentando transformar-se em outra mulher, e para isso precisava abolir para sempre de sua mente as ideias rançosas tão diferentes da vida real, que nela persistiam, para poder formar uma nova personalidade. — 25 —
  • 26. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão — Vamos ver o rio de perto antes do almoço? convidou Rui. Alice segurou fortemente as mãos dele e atravessou o limiar da porta da cozinha para o ar livre, respirando forte o ar do mar com gosto de sal e cheiro de peixe, e caminhou com ele em direção à prainha branca que se estendia no fundo do quintal. — Pensei que ele fosse me jogar logo em cima da cama, disse para si mesma. Por que será que não fez isto? —4— Carlos Vieira Filho, professor de sociologia, falava animado explicando para a turma do terceiro normal a integração da teoria e pesquisa: "A ciência é uma estruturação dos fatos. A sociologia é uma ciência que procura a estruturação teórico-sistemática dos dados...". Corina não ouvia uma palavra do que ele dizia. Mas seus olhos negros e inquietos não despregavam da figura que se movimentava de um lado para o outro da classe silenciosa. Mal sentiu a mão que punha um bilhete no seu colo. Corou quando leu o que estava escrito: "Cuidado que você engole o Carlinhos com os olhos". Rute olhava para ela divertida. Sabia, como amiga íntima da moça, da paixão secreta de Corina pelo professor de sociologia. Já havia um ano que ela suspirava e sonhava com ele, mas não havia oportunidade para ela. Carlos parecia não notar que ela existia. Mesmo quando se esforçava barbaramente num trabalho de pesquisa, para mostrar a ele interesse pela matéria, ele parecia não notála. Procurava esconder o seu amor frustrado, com medo da caçoada das colegas, desesperadamente, mas às vezes se distraia e seu rosto estampava todo o enlevo que sentia pelo jovem professor. Carlos Vieira chegara a Igaratuba no ano anterior. Formado em ciências sociais, prestava o concurso para o preenchimento do cargo de Professor de Sociologia no ensino público do estado e se mandara para Igaratuba seguindo o seu primeiro impulso, o de ensinar. Mas o ardor, a vontade — 26 —
  • 27. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão idealista de dedicar-se àquela tarefa considerada por muitos como um sacerdócio, durou muito pouco. Primeiramente, porque o salário era desanimador. Carlos Vieira era filho de um professor de Português e se entusiasmara pela profissão do pai desde pequeno. Na época de sua infância e mesmo em parte de sua juventude, o cargo de professor público era muito vantajoso. Além de ser muito bem remunerado, era um emprego sólido, desde que o candidato passasse no difícil concurso para preencher a vaga, e também garantido mesmo depois da morte, dando pensão integral à família do defunto. Contudo, as coisas haviam mudado e Carlos ingressara no magistério público no início da degradação da profissão — os proventos já não eram como ele esperava e ele estava ficando ambicioso. Começava a sonhar com uma cátedra universitária, quem sabe algum dia se transformaria num eminente intelectual colaborando para o desenvolvimento das ciências sociais e humanas, seria citado pela imprensa, aplaudido e admirado pelos eruditos, quem sabe até algum dia poderia ser diretor honoris causa pela gloriosa Universidade de Columbia. Seus devaneios, seus sonhos de cátedra e fama intelectual tivera seus dias contados em Igaratuba. Longe dos meios culturais, ilhado numa cidade onde poucos liam um simples jornal, onde não existia uma única livraria, Carlos temia terminar seus dias como um modesto professor concursado, fadado a se tornar um chatíssimo mestre desfiando baboseiras para alunas de Curso Normal, pouco interessadas no que ele ensinava, nunca conseguindo os aplausos e o reconhecimento que almejara. Uma urgente avidez de progresso material substituiu os seus sonhos de glória. Seus planos mudaram da água para o vinho. Pensava em obter uma remoção para uma cidade maior onde pudesse cursar uma faculdade de direito noturna e mudar-se para a área mais rendosa da advocacia, talvez até tornar-se um juiz, depois desembargador, ou mesmo aventurar-se na política. Se suas palavras ensinando a árida sociologia entravam por um dos ouvidos de suas alunas, e, quase que imediatamente saiam pelo outro, demorando-se os sábios ensinamentos apenas alguns — 27 —
  • 28. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão instantes nos cérebros das ouvintes pouco interessadas neles, seu porte atlético, sua aparência máscula, sua voz quente, faziam dele o objeto de mais legítima adoração. Era venerado pelas moças que viam nele um provável candidato a marido. Para o desespero das suas fãs Carlos parecia inacessível à qualquer abordagem. Não frequentava os bailes, sumia durante as férias e feriados, quando ia à praia se afastava de todos, se entregando ao prazer de nadar sozinho, o que, segundo as mulheres, fazia magistralmente. O povo mexeriqueiro achava que ele era um tipo esquisito, as línguas compridas comentavam que talvez ele fosse um daqueles que não gostava de mulher. Os homens conjeturavam numa possível impotência, pois ninguém podia afirmar tê-lo visto marcar presença na zona, nem na pensão da Dora Rabo Quente nem nas outras casas de putas existentes pela periferia da cidade. Tão pouco tinha notícia dele na putaria de São Damião, localidade um pouco mais progressista neste setor comercial, pois tinha até um cabaré com música ao vivo, frequentado por marinheiros. Carlos sabia do falatório, já tinha sido interpelado, sem nenhum pudor, por um sujeito frequentador do seu barbeiro, se ele era um veado ou se não dava no couro. Na ocasião, se não fosse conceituado mestre local, teria pulado para cima do descarado e lhe metido a mão na fuça. Mas se controlara e achou melhor não dar importância ao fuxico e às más línguas, pois não pretendia ficar muito tempo em Igaratuba. O que realmente acontecia, é que, por puro milagre, nenhum vivente da cidade sabia que ele era assíduo frequentador da casa de Dona Zuleica Paiva, respeitadíssima dama, quarentona, mas ainda em excelente estado, dada como viúva recatada e moradora há três anos em Igaratuba. Carlos conhecia a respeitada Dona Zuleica desde os tempos da faculdade, quando se chamava Zuzu — 28 —
  • 29. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Amorzinho e mantinha movimentado e requintado randevu na Rua Maria Antônia, em frente ao Mackenzie e ao lado da Faculdade de Filosofia da USP, lugar muito conhecido de ilustres catedráticos, professores assistentes e alunos, entre outros fregueses, alugando quarto para casais, fornecendo meninas lindíssimas e ela mesmo exercendo o ofício. O randevu da Zuzu Amorzinho, um completo lugar de lazer, onde além de acolhedor e sofisticado retiro para sacanagens, era uma ágora onde se discutia política e se maquinava a queda da ditadura militar. Visada pelas sentinelas vigilantes do poder, Zuzu viu-se na contingência de vender seu rendoso estabelecimento e sumir do mapa, escondendo-se em Igaratuba onde não recebia mais as visitas indesejáveis de milicos e agentes policiais. Zuzu Amorzinho aposentara-se temporariamente e escolhera Igaratuba como pouso e mocó. Estudara o local como um provável estabelecimento onde poderia exercer seu ofício, quando as coisas se esfriassem. A localidade era propícia a um randevu semelhante ao que tinha em São Paulo, mas sem a freguesia de alto gabarito intelectual, freguesia de comerciantes, veranistas endinheirados, pois, ela filosofava, o contato com os ilustres mestres do saber só havia trazido problemas para ela. Portanto, a mudança do perfil de sua futura clientela só poderia ser benéfica e segura. Já com este pensamento ela havia comprado uma propriedade, uma pequena chácara junto ao mar. A casa era acolhedora, suficiente para o começo de um randevu, podendo, se necessário, ser ampliada a contento. Era um lugar discreto e bonito, com acesso para a praia, não muito retirado do centro, rodeada de árvores, a maioria delas frondosas amendoeiras. Refestelada na sua propriedade, Zuzu apenas dava tempo para ser esquecida pela famigerada autoridade policial a serviço da ditadura, para poder abrir de novo e exercer o seu ofício com extrema competência, no capricho, como era de seu feitio, com casa cheia e muita animação. Enquanto o tempo passava ela se fazia passar por viúva abastada, rodando pela cidade no seu Fusca azul, assídua na igreja para as novenas, vestida sempre nos trinques seguindo os ditames da moda, amiga das senhoras distintas, santas esposas de seus futuros clientes. Zuzu — 29 —
  • 30. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Amorzinho já havia assuntado a praça — a concorrência era pouca, alguns bordeis mal cheirosos, com camas cheias de percevejos, na periferia, frequentado por pobres coitados sem eira nem beira, algumas putas de casa aberta depois da ponte sobre o Rio Feio. A casa melhor da praça, a de Dora Rabo Quente era limpa, mas modesta, sem o refinamento que ela pretendia dar ao seu estabelecimento. Carlos Vieira Filho ia uma ou duas vezes por semana visitar a respeitável Dona Zuleica como seu único e exclusivo cliente, onde ficava até tarde da noite, jantava e se deitava nos lençóis alvos e cheirosos , se regalava com os prazeres de sua preferência, pagava e saia satisfeito para o hotel onde morava, Hotel da Donana. —5— Corina trabalhava no hotel onde o Professor Carlos morava, mas ele nunca havia notado os olhares da moça. Ela o vigiava discretamente. Quando sabia que ele estava almoçando ou jantando, entrava no quarto do rapaz e fuçava gavetas e armários, cheirando e apalpando tudo que encontrava. Corina sabia que ele usava cuecas de malha de Santa Catarina, conhecia o número de seus sapatos e quantos pares ele tinha, que não tinha pijamas nas gavetas e portanto dormia nu. Sabia a marca de seu creme dental, do perfume da sua loção de barba, a cor de seu roupão de banho. Lia as cartas que ele recebia e deixava esquecida por cima da cômoda, guardando na memória os endereços de seus amigos e parentes. Procurava saber tudo o que podia sobre Carlos Vieira Filho, guardando avaramente estes segredos, não compartilhando com ninguém estas preciosidades que tinha a ventura de conhecer. Até o lixo do quarto de Carlos era escarafunchado, procurando encontrar nele algum indício de amor que ele poderia sentir por ela, ou alguma coisa mais que pudesse ajudá-la a conquistá-lo. Mesmo Rute Pacheco, sua melhor amiga, desconhecia o que ela fazia no hotel, tinha vergonha de contar suas espionagens, não queria ser motivo de riso e troça. — 30 —
  • 31. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão O sinal do término das aulas soou forte na sala, e a balbúrdia tomou conta do lugar, todo mundo querendo sair, Corina saiu ao lado de Rute. — Você precisa deixar de ser transparente, menina. Daqui a pouco a cidade inteira vai comentar que você gosta dele, cochichou Rute no ouvido da amiga. Além do mais, dizem que ele é maricas. Corina corou, sentindo o calor subindo no rosto. — Eu sei, é tudo mentira, disse baixinho, maldizendo aquela sua mania de corar à toa, sem motivo nenhum, deixando transparecer no rosto o seu embaraço. As duas seguiram lentamente em direção ao largo da matriz. Já estava bem quente o sol naquela hora do dia, convidando a um banho de mar. Rute olhou para o relógio da igreja. — Onze e meia. Ainda dá para pegar uma praia. Vamos? Corina pensou, tinha vontade de ir, conversar com a amiga, mas precisava estar no emprego a uma. — Não dá tempo de eu ir até em casa. — Não precisa ir até lá. Você põe um maiô meu. Depois você almoça comigo e vai para o emprego. Que tal a ideia? — Ótima, aceitou Corina. Eu topo. As duas praticamente correram até chegar à casa de Rute. Os Pacheco da Silva moravam na mais bela e maior casa da cidade, Igaratuba inteira se orgulhava dela, considerada como casa de capital pelos moradores que já tinham estado pelo Jardim América e pelo Morumbi. Era um dos poucos sobrados que a cidade possuía. Residencial, era o único. E dizer que conviviam com a família Pacheco da Silva, que comiam em sua bela sala de jantar de jacarandá da Bahia, que se sentavam nos estofados — 31 —
  • 32. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão de veludo do salão era o máximo que podiam espirar os frequentadores da sociedade local. É bem verdade que todo mundo na cidade já havia, uma vez ou outra estado na casa; mas de um modo geral as visitas locais eram recebidas num imenso alpendre do lado da casa, todo mobiliado com cana da Índia, com bar e geladeira sortida, cheio de batidas gostosas, especialidade de D. Áurea, vasos de antúrios espalhados e xaxins de samambaias balançando no ar. Inácio Pacheco da Silva tinha construído aquela casa quando os filhos eram bem pequenos. Importara tudo de São Paulo, a começar pelo arquiteto famoso. De fato a casa era linda, bem entrosada na paisagem litorânea. Ao lado da praia, abrangendo meio quarteirão, ficava no meio de um jardim de pitangueiras e mangueiras rodeado por um gramado escuro, margeado por roseiras. Uma imensa varanda a rodeava, para onde saiam as janelas francesas, que acompanhavam toda a extensão dela. O arquiteto quisera uma casa térrea, mas D. Áurea batera pé e fizera questão de sobrado. Queria poder se debruçar na janela de cima, ver a sua rua do alto, de poder enxergar o mar de seu quarto de dormir. E a vontade da dona da casa fora feita e o sobrado lá estava, dominando as demais casas e sem sair da linha imposta pelo arquiteto. Rute e Corina passaram pelo portão como um jato e atravessaram o gramado em direção ao fundo da casa. Não se passaram dez minutos quando atravessaram de volta o arvoredo e cinco minutos depois estavam estendidas na areia da praia. Deixaram-se ficar na modorra, quietas, recebendo a carícia morna do sol, dourando a pele já morena. Foi Corina quem quebrou o silêncio: — Você gosta mesmo dele? — Gosto. Não deixo ninguém perceber isto, mas gosto. — Pensei que não gostasse. Você é tão evoluída, tão diferente das outras moças que eu conheço, que muitas vezes fiquei imaginando se você gostava mesmo do Haroldo. — 32 —
  • 33. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão — 33 —
  • 34. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Rute virou-se na areia e chegou mais perto da amiga, falando mais baixo, como que em segredo: — Sabe, perto dele eu me sinto uma boba, uma ignorante e inexperiente, mesmo com tudo o que eu já fiz. Ele me faz sentir uma criança que precisa de proteção, um ser pequenino e imaturo. Você vai gostar dele quando o conhecer. — Já conheço. Há muito tempo que vejo ele por aqui nas temporadas. — Não. Não conhece. Você só conhece Haroldo depois de conviver com ele. Ele é muito bom, Corina. — Engraçado você ficar noiva pra casar. Sempre você falou em esperar uns tempos, viver sozinha, ter muitos amantes. — Você sabe, ele se forma no ano que vem e vai para os Estados Unidos fazer especialização. Se ele for sozinho, ele arruma uma americana por lá. Estas moças americanas trepam com qualquer um. É costume lá. Imagine se ele trepa com uma americana bonita, loirona, fica gostando e casa. Não. Eu vou com ele pra dormir com ele lá, casada, assim ele estará seguro. Corina pensou um pouco e acabou concordando com a amiga que realmente era um perigo deixar um noivo solto pelos Estados Unidos. E, convidando a amiga para segui-la, levantou-se e encaminhou-se para o mar. O mar da baia de Igaratuba é manso e liso como um lago. Ele só vem se quebrar na beiradinha da praia e, apenas quando o vento é mais forte ele ondula a superfície esverdeada em marolas dançantes e embaladoras. As mães costumam largar as crianças à vontade pois não há perigo de ondas bravias ou de buracos perigosos. Pode-se andar muito tempo dentro dele até chegar a um lugar onde se possa nadar livremente. Então o nadador olha a costa ao longe, sentindo-se forte, uma sensação de poder, misturado com o temor de estar muito longe da praia. Mas não oferece perigo algum. Basta — 34 —
  • 35. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão nadar um pouco para fluir levemente sobre as marolas que ondulam de leve a superfície. Já em São Damião, o mar é perigoso, apresentando declives rápidos e peraus que deixa o banhista sem pé num instante, com ondas altas, fortes, ameaçadoras quando o vento sopra. Rute e Corina entraram no mar adentro andando devagar, ganhando terreno aos poucos, afundando devagarinho. — Quando mesmo chega Haroldo com a família? perguntou Corina. — Acho que quinta-feira. Vão telefonar hoje à noite para confirmar. Daqui a cinco dias fico noiva. — E sua irmã, vem? — Chega amanhã. Por isso não sei se poderei ir com você até a ilha... Com um mergulho perfeito Rute desapareceu na água para surgir bem adiante em braçadas vagarosas paralelamente à praia. Corina seguiu-a, no mesmo ritmo. —6— Irmã Coração de Jesus abriu a porta do quarto para deixar passar o paciente. O homem na sala do médico todo encolhido, humilde e ficou de pé esperando o Dr. Paulo atendê-lo. A freira deixou a sala e fechou a porta antes que o médico levantasse a cabeça para falar com o paciente. Depois, subiu as escadas em direção ao segundo andar, galgando os degraus rapidamente até alcançar o topo da escada. De lá dirigiu-se para o longo do corredor, até a última porta, abrindo-a e penetrando na saleta semiescurecida onde se sentou pesadamente numa cadeira giratória. O hábito pesava-lhe nos ombros, umedecido pelo calor provocado pela correria do sobe-desce de escada. — 35 —
  • 36. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Abriu as pernas e levantou os pés para o ar, esperando que o sangue fluísse para cima aliviando o cansaço delas e o ardor das varizes. Quando fazia muito calor, suas pernas inchavam e doíam e nada podia aliviá-las. Mas ela não se importava e nas horas de muito trabalho esquecia as suas varizes e os pés doloridos para se dedicar de corpo e alma a seus doentes e a sua Santa Casa. Irmã Coração de Jesus, Irmã Coração, como era chamada, já estava em Igaratuba há muito tempo. Desde pequenina quisera ser médica ou irmã de caridade e dedicar sua vida ao tratamento de enfermos. Menina, descalça e pobre, cuidava dos gatos e cachorros enfermos da redondeza. Quando deixavam-na, fazia curativo nas feridas dos moleques vizinhos, mostrando uma inclinação natural para a medicina e uma vocação decidida para samaritana. Contudo, não pudera ser médica, pois a pobreza da família não permitiu que estudasse, mas logo que possível ingressou na Irmandade a que pertencia para dedicar-se a apaziguar o sofrimento alheio. O povo doente da redondeza, que tinha passado pela Santa Casa, não podia deixar de adorar aquela freira de meia idade, pequenina e feia, mas grande de alma e de bondade, bela interiormente no seu amor à humanidade de Deus. A Santa Casa era sua vida e, a certeza disto, fazia que ela lutasse pela melhoria necessária e ampliação do pavilhão das crianças. A Santa Casa de Igaratuba fica perto do Rio Feio, na entrada da cidade para quem vem de São Paulo. É um prédio quadrado e feio, sempre precisando de reparos e ampliações. A ala paga é melhor, mais ajeitada, embora a ala gratuita e do INAMPS que abrange quase a totalidade do prédio, seja limpa e bem cuidada. Irmã Coração, como chefe responsável pela enfermagem e pela limpeza do hospital, não poupava esforços e broncas para conseguir a mais perfeita higiene e assepsia da casa. Desde o asseio dos pacientes, ao brilho dos imensos caldeirões, tudo passava pelos olhos insatisfeitos da pequenina freira que vigiava seus subordinados com feroz obstinação, sem esmorecer jamais, mesmo quando não encontrava a colaboração dos deficientes empregados locais. A freira descansava um pouco, de pernas para o ar. Olhava para a própria vestimenta branca, hábito surrado e amarfanhado, os olhos parados e o pensamento longe. Naquele dia recusara duas — 36 —
  • 37. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão crianças por falta de acomodação. Não havia um só leito desocupado no pavilhão infantil e tinha lhe doído na alma não ter podido atender as mães dos pequeninos. Os grande olhos dos molecotes, com o brilho aumentado pela febre, dançavam em frente dela, como um pedido de ajuda. "Bom Deus, o Dr. Paulo não toma nenhuma providência mesmo. Acho que eu tenho que tomar a iniciativa e fazer alguma coisa", suspirou alto. O Dr. Paulo Xavier era um esquisitão. Todo mundo sabia disto, principalmente Irmã Coração que com ele trabalhava há mais de cinco anos. Caladão, taciturno, arredio, o médico mal se dava com as pessoas da cidade, desde que para lá viera pra trabalhar na Santa Casa. Trabalhador ele era. Afundava no trabalho cada vinte e quatro horas do dia, mal parando para comer ou chegar até sua casa, onde sua esposa criava seus dois filhos. Além de caladão, era mal criado, uma fera, não respeitando nem as freiras com seus palavrões nos momentos de zanga, o palavreado chulo era frequente e habitual. No começo as freiras se apavoravam; muitas irmãs acharam mesmo que estavam lidando com um homem mancomunado com o diabo. Depois foram se acostumando, evitando a presença do médico, mas falando com ele a não ser o estritamente necessário, deixando nas costas de Irmã Coração, a superiora, a responsabilidade de tratar com o tinhoso Doutor as questões necessárias para ordem interna no hospital. E a respeito da tão necessitada ampliação da Santa Casa tinha a freira conversando com o médico, uma vez mais, na noite anterior. Lembrava-se ela da discussão acalorada, da vontade dela de conseguir convence-lo a tomar uma atitude para o bem da população. — Doutor, toda a região procura o hospital. Precisamos ampliar pelo menos a parte das crianças que é menor. — Ora bolas! A senhora pensa que eu não vejo isso? Estou farto de saber e os filhos da puta dos políticos daqui também. — Doutor, tenho certeza de que, se o senhor falar com a prefeita ela conseguirá um crédito, um empréstimo. Precisamos disso, Dr. Paulo. É para o bem da comunidade. — 37 —
  • 38. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão — Não vou arrear as calças e pedir penico para ela que está farta de saber que a cidade dela precisa. Nunca. Esta prefeita de merda já teria arranjado o crédito, se ela quisesse, mas ela só se preocupa com a bosta do turismo. Irmã Coração não havia discutido mais. Sabia que não adiantava gastar o seu latim, que o homem era cabeçudo, turrão, parecia impermeável a seus argumentos. Benzeu-se, como fazia todas as vezes que ouvia o palavreado do médico e esforçou-se para esquecer o que tinha ouvido. Agora, sentada, meditando, resolveu ir pessoalmente tratar do assunto com as autoridades. Sabia que a abundância dos problemas eram provenientes da falta de dinheiro, onde, meu Deus, encontrá-lo? — O porcaria do doutor que vá à merda. Nossa Senhora, ajudai-me. Estou ficando como ele... persignou-se a irmã, levantando-se. Uma batida forte na porta cortou seus pensamentos. Ruborizada, como se eles estivessem soando no ar e pudessem ser captados por outrem, abriu a porta e deixou passar Bento Roque. — Irmã, queria falar com a senhora. — Pois não Bento. Do que se trata? A freira sentou-se novamente, convidando o homem para fazer o mesmo com um gesto de mão. Bento Roque era um mulato asseado, educado, de uns trinta e poucos anos, imaculadamente branco no seu avental de enfermeiro. Trabalhava ali para mais de dez anos, era inteligente e interessado em tudo o que fazia, tomando parte ativa na rotina da Santa Casa. Era o auxiliar mais precioso de Irmã Coração, conhecedor de todos os mistérios da enfermagem masculina, de que ficava a cargo. A voz do mulato estava emocionada quando ele falou, devagarinho e baixo: — Vou ficar aqui só até amanhã, irmã. Na terça tomo o ônibus para São Paulo. Chegou a hora. — Conseguiu então, heim Bento? — 38 —
  • 39. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão — Consegui sim, irmã. Vou me matricular num cursinho que começa depois da Semana Santa. Já está tudo planejado. Irmã Coração foi sincera quando falou, pois estimava aquele homem lutador, idealista, que sabia o que queria: — Fico contente, Bento, embora fique triste de perder a sua colaboração eficiente. Mas um dia você voltará para ficar, não? Bento sorriu, de boca aberta, como que antegozando o momento triunfal de sua volta: — Se Deus quiser irmã, se Deus quiser, volto Doutor. Todo mundo conhecia a vida de Bento Roque. O que ele era, o que ele fazia, seus anseios não eram segredo para uma cidade pequena, onde a bisbilhotice e a fofoca são o principal divertimento. Morava perto do Rio Feio, quase ao lado da Santa Casa, junto de sua mãe preta lavadeira e de seu inútil pai mulato. O velho Roque era o pé de cana de Igaratuba, uma instituição alcoólica que berrava aos quatro ventos a excelência da pinga das destilarias locais. Bebia dia e noite, o dinheiro surgindo milagrosamente em suas mãos para o mata-bicho, embora faltasse para a mesa do casebre. Era raro ver o velho Roque sóbrio. O seu ponto preferido era na porta do armazém de seu Tovinho, onde ficava marchando de um lado para o outro da calçada, fazendo continência para o povo que por lá passava. Seu Tovinho muitas vezes tinha vontade de mandá-lo embora, mas acreditavam que o bêbado lhe dava sorte. E não era difícil ver o comerciante oferecendo ao velho um trago por conta da casa, alimentando-lhe o vício. — O velho Roque não merece o filho que tem, dizia o povo sentenciosamente. Embora toda a cidade soubesse das adversidades de sua vida particular, o enfermeiro não comentava nada sobre as dificuldades de sua família. Não se queixava do pai, não falava da mãe, apenas trabalhava, era um zé-ninguém, um pobretão procurando ganhar o máximo com horas extras e — 39 —
  • 40. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão com aplicações de injeções em domicílio. É que Bento Roque tinha um sonho e uma meta em sua vida. Ser médico, estudar para doutor. Para isso vinha guardando há anos o dinheiro suado do hospital, escondendo cada vintém da garganta sedenta de seu pai. O velho sabia que seu filho mantinha uma gorda conta na Caixa Econômica e que emprestava a juros a muita gente, mas quando choramingava alguns trocados para um golezinho, Bento era inflexível, negava seriamente e nada, nem as súplicas, nem as ameaças do velho, nem o xingatório violento faziam-no mudar de ideia. Gastava apenas o necessário para manter-se de pé, vivo e limpo, contribuindo com uns miseráveis níqueis para a alimentação sua e de sua mãe. Mãe Preta, que se defendia mal e mal lavando roupa na beira do rio que passava no fundo do quintal. Bento dava as costas para o falatório das comadres que achavam o mulato pretensioso, metido a besta. — Pretensão e água benta todo mundo tem, diziam os mais comedidos. Mas que ele vive uma merda de vida, ah, isso vive. — Fio, às vezes até a mãe reclamava, a gente carece de tanta coisa, as veis até passa fome e você tem bastante guardado. Mas ele sempre respondia, sem piedade: — Calma, mãe. Um dia a senhora vai ser uma dama aqui em Igaratuba. Terá empregada e nunca mais vai lavar roupa na beira deste maldito rio. Deixa só eu me formar. — Qual o que! retrucava a mãe. Nunca vi gente preta ser dama! Bento tinha saído da região uma só vez, quando fora a São Paulo prestar exames supletivos. Depois disso nunca mais saíra da cidade, trabalhando noite e dia, fazendo crescer o pé de meia, aumentando o capital que iria possibilitar os anos de estudo e o diploma sonhado. Por isso Irmã Coração ficou feliz quando ouviu dele a notícia de sua partida. Ela sabia que o mulato conseguiria ir até o fim, pois possuía uma férrea vontade e uma cabeça firme. Quando ele deixou a saleta, ela sorriu e — 40 —
  • 41. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão pensou que seria difícil arranjar por ali um outro enfermeiro competente e que teria que colocar uma freira para cuidar da enfermagem masculina. E também sabia que o Dr. Paulo iria soltar uns palavrões cabeludos por perder um bom funcionário, pois, o doutor tinha uma latrina no lugar da boca. —7— Seu Tovinho era o apelido do negociante Beetoven da Cruz, dono do melhor armazém que se localizava no coração da cidade, na esquina da rua Quinze com a Avenida Central. Homem grandalhão, alegre e bem humorado, ele camuflava com seu comportamento o homem que ele realmente era. Era um pão-duro assumido, sovina com a pobre mulher que morava com ele nos fundos da loja e que criava suas duas filhas. Não deixava que ela pusesse os pés no armazém, com medo de que ela se inteirasse do movimento e da féria diária, que pingava sem parar na sua caixa registradora. Dinheiro pra mulher, só para duas — a Kioko, mulher-dama da casa da Dora e Maria Penha, a quem chamava de dona e pagava, sempre que podia, em espécie, com algumas batatas e cigarros. Fora estas duas privilegiadas senhoras e o Velho Roque, a quem dava uma vez ou outra um copo de cachaça, Seu Tovinho levava a sério o seu trabalho de comerciante. Tinha começado o seu ofício em 1945, quando chegara em Igaratuba, vindo do interior de Minas Gerais, com uma mão na frente e outra atrás. Naquele tempo, Igaratuba era isolada do resto do estado, uma estrada sinuosa e sem vergonha descia a serra, uma ponte de madeira caindo aos pedaços sobre o Rio Feio unindo as duas partes da cidade. Seu Tovinho trocou um relógio de bolso, seu único bem, por um burro e começou sua vida. Ia a São José, comprava algumas mercadorias fiado, descia a serra, mercadejava, pagava, comprava mais. Em pouco tempo se estabeleceu numa vendinha minúscula e miserável perto do Rio Feio. Daí pra frente só progrediu e acabou sendo o proprietário do — 41 —
  • 42. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão melhor armazém de Igaratuba. Não havia nenhum outro para lhe fazer sombra — apenas vendinhas com um estoque mínimo nas pontas da cidade. Ali ele tinha tudo, lataria, embutidos, queijos, tamancos de praia, frutas e verduras para os turistas. Para os nativos, vassoura de piaçava, tachos, carretel de linha, anzol para pescador, panelas, linguiça que comprava nas sitiocas das redondezas, mantimentos a granel, guardados em sacos. Tudo se comprava no armazém de Seu Tovinho. O pagamento para a maioria e para o povo de fora era à vista. Um cartaz em grandes letras negras, trombava com os olhos dos fregueses, a primeira coisa que viam ao entrar no armazém — Fiado só amanhã — dizia o cartaz. Apenas alguns privilegiados que ele sabia serem bons pagadores tinham o privilégio de ter caderneta de compras. O acerto das cadernetas era mensal, ele somava tudo com grande presteza e nunca se esquecia de acrescentar duas latas de goiabada, uns quilos a mais de arroz, ou garrafas de cerveja, conforme o perfil do freguês. Seu Tovinho não confiava em bancos. Transformava seus lucros em casinhas e casebres que alugava, casas melhores que alugava para temporada, terrenos e sítios espalhados pela região. Conhecendo sua loja na palma da mão, naquela segunda-feira, ele arrumava, remarcando o estoque velho e o pondo preço no sortimento recém-chegado para fazer face à invasão de turistas esperada para o fim de semana. Colocava as latas de conserva, tão a gosto do turista, metodicamente empilhada, como o rótulo virado para a frente nas prateleiras, a etiqueta com o preço bem à vista. Uma pilha de pacotes de macarrão, misturados com latas de leite condensado esperava no balcão pelas mãos ordeiras de Seu Tovinho. Naquelas épocas a mercearia ficava bem sortida com artigos especiais para as pessoas que vinham passar a temporada, o preço carregado, sempre remarcado para os visitantes. Fora das temporadas o movimento era bem menor mas, assim mesmo, ele havia enriquecido. É verdade que abria cedo, fechava tarde, dava um duro atrás do balcão e nos negócios particulares. Para ajudá-lo, apenas um mulato de cabelo pixaim, a quem pagava um mísero salário. Seu único divertimento era ir — 42 —
  • 43. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão às segundas-feiras na pensão da Dora onde visitava a cama da japonesa Kioko, como cliente regular e assíduo. Lá ele se desforrava da dureza da vida, do trabalho sem fim, procurando não faltar nunca, nem mesmo nos feriados. Neste dia da semana, sagrado para a diversão, ele fechava o armazém mais cedo. Depois do jantar saia para a pensão e a mulher sabia para onde ele se dirigia. Seu Tovinho não escondia da mulher o seu pecado semanal. Para não escandalizar as filhas já grandinhas, dizia que ia para o armazém botar a escrita em dia. Ele contava rindo para os amigos que faziam ponto na sua porta. — No começo, quando comecei com a brincadeira até a patroa acreditava na minha conversa. Um dia ela descobriu que a escrita era outra e tentou bancar a mulher macho. Mas eu botei as coisas no lugar com dois bofetões e ela se conformou com a reza. O negócio é não se intimidar. Afinal sou um homem forte e tenho os meus direitos... Ela sempre pergunta o que é que a Kioko tem que ela não tem. Eu digo que a japonesa tem a xoxota atravessada e ela acredita... A turma sempre ria neste pedaço do seu discurso e seu Tovinho ficava satisfeito por se passar por um sujeito jovial, engraçado, mascarando a sua natureza real e o seu caráter. Era justamente na visita semanal a sua japonesa que ele pensava, antagonizando os momentos de saborosa sacanagem nos braços da dita cuja, quando entrou a Maria Penha que, embora um tanto gasta, era ainda um pedaço de mulher e que vivia tentando Seu Tovinho. Ela entrou, rindo alto, chamando-o pelo nome, equilibrando-se nos saltos altos e tortos de um sapato velho. Mal vestida, a boca lambuzada de batom vermelho vivo, um tanto suja e mal cuidada, mesmo assim ela atraia os homens que passavam por perto. Tinha o corpo bem feito, apesar da penca de filhos, opulento, sugerindo promessas e prazeres, o olhar franco e direto de um convite quase às claras. Seu Tovinho se babava pela Penha, os olhos gulosos comiam as partes fartas e baratas que se deixavam aparecer pelo decote baixo e pela saia curta. — 43 —
  • 44. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão — Seu Tovinho, larga essa lata e vem me servir, vem? Não quero este moleque. Sua voz esganiçada e risonha ecoou pela loja. Não se fazendo de rogado, ele desceu da escada com uma lata de sardinhas na mão, quase que se curvando numa reverência para a mulher. — Pois não, dona Penha. O que a senhora quer? — Um quilo de batatas para o jantar. É pra fazer uma sopinha. Queria também um traguinho. Tô com sede. Hoje ainda não bebi nadinha. Sem tirar os olhos dela ele escolheu as batatas, embrulhando tudo numa folha de jornal. Depois encheu um copo pequeno com uma pinga de cheiro forte. — Essa é da boa, disse. Pode beber sem susto. — Tô vendo que é pura. Olha as argolinhas, disse Penha pegando o copo e examinando o conteúdo. Seu Tovinho ficou observando a mulher virar o copo devagar, mas num só gole, depois, estalando a língua. — Gostou? Perguntou ele. — Adorei, respondeu Penha baixinho, sem desviar o olhar, colocando o copo manchado de batom em cima do balcão. — Só isso? Não precisa mais nada? — Só isso agora. Posso pagar depois, Seu Tovinho? Hoje tô dura... Questão de dinheiro era questão de dinheiro, para o comerciante. Nem mais nem menos. Negócio, negócios, amigos à parte, era seu lema mais citado e preferido, razão do seu tremendo sucesso financeiro. Fiado só amanhã, não dizia assim na frente do freguês? Ele esperava que a Penha dissesse as palavras de sempre. Ela sempre dizia. Mas continuou com a farsa. — 44 —
  • 45. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão — Bem dona Penha, a senhora sabe que eu não fio. — Sabe Seu Tovinho, de noite vou ter dinheiro. Se o senhor se encontrar comigo na praia, eu pago o senhor. O senhor até vai ficar me devendo. Como sempre, os olhos de Seu Tovinho brilhavam, antegozando o que iria acontecer. Por sua mente passou, como num relâmpago, a ideia, as lembranças, do que sempre acontecia na praia com a mulher. Mulher de curriculum vastíssimo, sem preconceito, que em matéria de homem, fazia questão apenas de dois detalhes de suma importância para ela — usar calças e levantar o pau. Não era puta que exercia o ofício por dinheiro. Aceitava alguns agrados dele é verdade, mas, coisa mínima, um traguinho, um quilo de arroz, uma lata de sardinha, coisas assim, nada além disso. Seu Tovinho não podia deixar de lado o convite da mulher de farta carnação e peitaria saliente. Para ele quem precisava de ossos era coveiro, ele gostava mesmo é de carnes sobrando, lugar onde pegar e apalpar com gosto. Por isso não se fez de rogado: — Bem, só se for muito tarde. Hoje é segunda-feira e eu tenho um serviço a fazer à noite. — Depois das onze, tá bem? Nesta hora não tem ninguém por lá. Eu espero o senhor no banco das casas Pernambucanas. O homem ficou olhando a mulher sair, com o embrulho de batatas nas mãos, equilibrando-se nos incríveis saltos cambaios, rebolando a bunda redonda, espalhando promessas e um perfume vagabundo no ar, ante o olhar atônito do empregado que ouvira a conversa, e que deu um assobio de admiração. — Hoje é segunda-feira. O senhor aguenta Seu Tovinho? — Ora, se aguento. E ainda sobra um pouco pra patroa. E começou a cantarolar um samba antigo que falava de amor, de lua e de carinho. — 45 —
  • 46. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão —8— Alice deitou-se um pouco depois do almoço, sozinha, na velha cama de ferro batido. Rui ainda não tinha tocado nela, limitara-se a beijá-la suavemente, parecia que estava procurando acalmá-la e acostumá-la à situação. Haviam jogado conversa fora, falando sobre vários assuntos, ele procurando distraí-la com estórias engraçadas sobre sua infância e sobre sua família. Deitada meio encolhida, ela deixou seus pensamentos vagarem, soltos, procurando pela primeira vez fazer uma imagem para si, do homem que tentava seduzi-la. Viu diante dela um cavalheiro, pois não estava ele procedendo como um gentleman? não sendo afoito, muito calmo e atenciosos, não se atirando faminto em cima dela como um cão em cima de um osso. Além disso era inteligente e gentil, agradável e interessante, capaz de agradá-la e entretê-la, capaz de fazê-la sentir-se mulher amada e desejada. Dele emanava um calor humano, e ela percebeu que ele tinha competência para sufocar suas inquietações e apaziguar seu coração. Haviam falado, sem parar, sobre vários assuntos. Ele pulava de um tema para outro com a agilidade de uma mente jovem, distraindo-a e divertindo-a ao mesmo tempo. Alice esticou-se na cama, em cima da colcha de florezinhas em relevo e passou a mão sobre elas vagarosamente. Sentiu um formigar nas palmas, um formigar gostoso provocado pelo contato áspero do crochê, sentiu vontade de se despir, deixar aquela aspereza gostosa fazer cosquinhas em toda sua pele, em todo o seu corpo. Era uma sensação estranha, absurdos desejos tomando conta dela, ondas de sentimentos novos escravizando-a, num crescendo, aumentando gradativamente, fazendo-a feliz. Percebia um sentimento doce em certos momentos, fogo e labaredas queimando suas entranhas, uma avidez incontrolável de ter o calor de um homem ao seu lado. Sabia que já não era, há muito tempo, mocinha inexperiente em idade de namoro. Não era uma donzela tola e ignorante dos desejos da carne. Mas, mesmo sendo mulher feita, não queria cometer os erros muitas vezes perdoáveis em jovenzinhas. — 46 —
  • 47. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Ela queria ter a certeza para não cometer um engano, um equívoco que poderia trazer-lhe dor, humilhação e mágoas. Levantou-se da cama e despiu-se defronte da antiga penteadeira, onde o espelho comprido e alto refletia todo o seu corpo nu. Dez anos de casamento e três filhos não haviam conseguido destruir os seios, as coxas e o ventre. Ainda podia se considerar bela, as pernas, colunas bem torneadas estavam muito brancas, era esguia, cheia de corpo sem ser gorda. Ela se esticou e se contorceu em frente ao espelho procurando encontrar uma falha, um ponto fraco que precisasse ser escondido, camuflado. Não, não era um corpo feio, embora nunca experimentado o amor em toda a sua plenitude, um único orgasmo sequer. Alice se contemplou, passou a mão pelo corpo, parando nos seios ainda firmes, tocando os bicos rosados com a ponta dos dedos até eles ficarem duros e empinados. Um arrepio percorreu-a dançando na sua pele, condensando-se no meio de suas coxas. Deitou-se e esperou por Rui. Ele deveria parecer, de qualquer forma, pois a trouxera até lá para isso. — Meu Deus, fazei-o vir logo. Cruzes, se é isto o desejo, estou me desmanchando, me consumindo. Porém esperou e vão pelo companheiro. Ele não veio e foi ela que, novamente vestida, saiu a procura dele. Foi encontrá-lo no quintal, fumando um cachimbo velho e desbotado, os olhos presos no rio. Mansamente ela chegou por trás dele e esperou que ele desse pela sua presença. — Descansou, querida? perguntou Rui, sentindo-a ali parada. Corada, sentiu o calor subir até seu rosto. — Sabe Alice, estou pensando que seria divertido nós tomarmos um banho no rio, agora. Vamos? Ela olhou para ele e sorriu acenando um sim. — 47 —
  • 48. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão — Tenho uma ideia melhor ainda. Vamos nadar nus. Vamos fazer de conta que somos Adão e Eva no Paraíso Terrestre. Um paraíso cheio de borrachudos e pernilongos, não muito diferente do paraíso do velho Adão. Vendo-a olhar para ele espantada, continuou: — Você nunca entrou n'água nua, com outra pessoa? — Não. Nem sozinha. — Pois então vamos! Já não é sem tempo! Num frenesi de movimentos, ambos tiraram as roupas. Alice não sabia como podia proceder assim, tão levianamente, tão despudoradamente, ela que fora sempre tão recatada, tão envergonhada da presença masculina, que não ficava pelada nem na frente de mulher. Nem reparou nele, tão excitada estava com a novidade da situação, ia viver a primeira aventura real de sua vida. De mãos dadas, correram até o rio e se jogaram na areia, deixando o sol beijar os corpos brancos e luminosos. Então ela sentou-se, subitamente, dando-se conta do que estava fazendo: — E o velho? Não tem ninguém por perto? — Não, tolinha. Não há ninguém aqui. E os dois riram dos temores dela, como se aquilo fosse algo profundamente engraçado, uma piada de primeira qualidade. Deixaram-se ficar ali, por uns instantes, ele parecendo sereno, ela ardente, por dentro e por fora até que o calor os convidou para que mergulhassem nas águas claras do rio. Sem olhar para ele, ela foi entrando devagarinho, até a altura dos seios, que ficaram boiando a flor d'água, claros e túrgidos, os bicos rosados apontando para frente. Então olhou para Rui que vinha em sua direção e nos seus olhos não enxergou desejo, mas amor. As palavras que ele nunca pronunciara, estavam lá, meigas, refletidas no seu olhar direto e calmo. — 48 —
  • 49. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão O desejo que inundava o corpo de Alice deu lugar a um calor no seu coração e ela sentiu deslumbrada que o amava também. Sentiu o seu ser palpitar quando ele chegou e mansamente beijou-a deixando que seus lábios reproduzissem as palavras que ela já havia lido em seu olhar. E ela teve a certeza que pela primeira vez na vida, ela realmente sentia alguma coisa por alguém, tão diferente e tão próximo daquilo que ela sentia pelos filhos, tão semelhante e tão diferente do abrasador desejo que dela havia se apossado quando estava sozinha no quarto alguns minutos antes. De sua mente, de sua consciência se apagaram os temores de um passo mal dado, de uma aventura, substituídos por algo mais sólido, do mesmo modo que, teve a certeza para ela, aqueles dias não seriam uma vingança, uma experiência sem significação, uma aventura banal, mas uma gloriosa semana de amor. Ela não disse nada, quando, tomando-a pela mão, pingando a água que lhe escorria pelo corpo, ele a carregou para dentro de casa e, atravessando a cozinha e a sala, pousou-a suavemente sobre a colcha de florezinhas amarelas. Ele era um homem e ela uma mulher e isto lhes bastava. —9— Donana Gallo podia ser considerada uma mulher valente. Chegara à prefeitura por meio de muita luta obstinada e uma vontade imensa de vencer, aliadas a um coração de ouro, uma bondade inata, um desejo enorme de abraçar seus semelhantes como se estes fossem filhos de sua carne. Filhos ela possuía nove, todos criados no meio de seu suor e sangue, de seu trabalho perseverante. Durante os primeiros quinze anos de sua vida de casada, sempre com um filho no bucho e outro nas ancas, Donana trabalhara, o sabão e a soda comendo-lhe os dedos, o marido e filhos comendo-lhe o feijão. Mas no dia em que completou seus trinta anos, algo — 49 —
  • 50. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão despertou dentro dela, um estalo nítido soou dentro de seu cérebro e ela resolveu mudar de vida. Nunca lhe havia passado pela ideia mandar embora o marido boa vida que arranjara, pois amava-o apesar de tudo, como amava os seus filhos travessos e brigões que só trabalho lhe davam. Nunca havia passado pela cabeça inteligente e ativa que um homem normal e sadio vivia às suas custas, à dura pena de seu labor suado e honesto. — Mulher nasceu para sofrer, amar e obedecer o marido, havia ouvido de seu pai, um velho às antigas e machão. Donana, naquele tempo simplesmente Ana, casou-se aos quinze anos com Anésio Gallo que se dizia corretor de imóveis para não dizer vagabundo e boa vida. De fato, não havia realmente uma mentira no que ele dizia, porque quando se casou, logo no primeiro mês vendeu três terreninhos na praia de São Francisco dando-lhe uma corretagem pequena mas suficiente para a compra de uma casinha de alvenaria perto do Rio Feio. E dizia-se na cidade que fora o dinheiro que mais rendera, pois ele nunca mais havia tido necessidade de trabalhar. Foi no dia em que completou trinta anos de idade que Donana abriu os olhos para a vida. Conhecia as cuecas, sutiãs e calcinhas de toda Igaratuba, porque lavara e passara roupa para sustentar mal e mal os filhos e o marido boa vida durante aqueles quinze anos de sua vida, vivendo em eternas aperturas, roendo beira de penico. Pois foi no dia de seus trinta anos que Ana Gallo passou a ser Donana. Passando a limpo os quinze anos de casamento ela se sentiu uma naufraga no mar de sua porca existência. Ela não se levantou cedo como de costume, antes de toda a família. Ao contrário do usual, deixou-se ficar na cama, com os olhos fechados, como que dormindo, com os pensamentos ouriçados fazendo malabarismos dentro de sua cabeça. Não se mexeu nem mesmo quando o marido se levantou e, admirado ao vê-la ainda deitada perguntou: — 50 —
  • 51. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão — Tá doente, mulher? Ela não respondeu. Suas ideias voavam longe, fazendo um balanço do que fora sua vida naqueles últimos quinze anos. E se deu conta que haviam sido totalmente negativos. Os pensamentos pularam para o futuro e ela viu se estruturar diante de seus olhos fechados, toda uma vida nova, uma modificação plena e consciente de um tempo pretérito inútil, suado e sacrificado. Sua vida tinha sido uma espécie de sonho mau. Será que a sina da gente nunca poderia mudar? Não, ela não acreditava nisso, o passado poderia ser esquecido e o futuro modificado se a razão e o bom-senso prevalecesse, ela decidiu que tudo iria ser diferente no momento em que se levantasse daquela cama. E foi uma nova Ana que se levantou naquela manhã. Chamou o marido, o traste que vivia com ela há quinze anos, um vagabundo que só sabia fazer filhos — isto ele fazia com extrema competência e por isso, talvez por isso, ela o mantinha ali, sustentando-o como podia, para esquentar sua cama a noite. Pela primeira vez, firme e decidida ela o peitou: — Anésio, tive pensando. Se eu continuar nesse caminho terei mais uns seis filhos para criar até os quarenta anos. E a casa é tão apertada que não vamos ter lugar para alojar tanto fedelho. De hoje em diante, Anésio, você troca de cama com a Jerusa, ela dorme comigo. A não ser que você compre na farmácia aquelas borrachinhas de evitar filho. Anésio arregalou os olhos: — Endoideceu mulher? Esta coisa é cara demais. Já pensou comprar para usar uma por dia? Além disso eu nunca usei estas coisas, você está é variando... — Bem, ela foi firme, olhando-o com a determinação de não ceder, então eu fecho as pernas. Acabou-se o que era doce... Esta foi a primeira resolução de Donana, o que foi facilmente cumprido. A segunda resolução foi montar uma pensão. Foi o que fez. Deu de entrada sua casinha e comprou uma pensão vagabunda, — 51 —
  • 52. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão no centro da cidade, com o mobiliário caindo aos pedaços, um casarão velho, cheio de ratos e baratas, tudo por uma pechincha e à prestação. Era uma casa pintada de azul, desse azul de mau gosto com que se costuma pintar as casas do interior. As paredes externas descascadas mostravam os tijolos avermelhados e pareciam desafiar a lei da gravidade, paredes abaladas, janelas e portas emperradas. Dentro, uma enormidade de salas, com duas mesas compridas cercadas de cadeiras vagabundas e cambaias, num canto um aparador antigo e nas paredes alegres folhinhas coloridas e um Coração de Jesus emoldurado de dourado, o sangue escorrendo num vermelho vivo do coração sagrado. Os quartos eram pobres também, apesar de serem limpos, os colchões velhos mas sem percevejos — cama patente, guarda-roupas, mesa com moringa e um espelho vagabundo. Mas eram muitos e Donana reservou três deles para acomodar seu batalhão — um quarto para ela e Anésio, pela primeira vez na vida, ela dormiria num quarto sem filhos — um quarto para os meninos e outro para as meninas. Banheiro, um único para todos os quartos, um horror. Velho, pintado de um pavoroso verde escuro, uma barra de óleo rodeando as paredes, fazendo fundo a uma banheira grande, de pezinhos minúsculos, virados para fora. Se a pobreza da casa era grande, a cozinha era miserável. Nada mais havia além de um fogão a lenha, monstro avermelhado e imenso a um canto, uma mesa e prateleiras onde se amontoavam a louça branca e ordinária que servia às mesas. Não possuía sequer uma pia destas pequenas e encolhidas das cozinhas pobres. Em cima da chapa escura brilhavam latões enormes, de óleo Saúde, da Esso, os letreiros apagados pela constante areação, pois se a casa era pobre em mobiliário era mais pobre ainda em panelas. Não havia uma. Mas, nos latões em cima do grande fogão borbulharam e ferveram as mais prodigiosas peixadas da cidade. Foi com surpresa para todos que a pensão ultravagabunda de Donana passou a ser cada vez mais procurada por um número cada vez maior de pessoas por ter a fama de sua mesa farta e boa, a notícia ultrapassou as das fronteiras de Igaratuba e mesmo as de São Damião. Determinada a vencer, procurou subjugar o turista pelo — 52 —
  • 53. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão estômago, já que não possuía outro meio. Experimentava temperos e ervas, combinações esquisitas de gosto, misturando o sal com pitadas de açúcar, inventando sabores diferentes e excitantes. Como um químico em seu laboratório de pesquisa, passava horas na sua cozinha escura mexendo os latões procurando um segredo que a deixasse famosa. E o conseguiu. A magia de sua alquimia culinária transformou a pensão vagabunda numa casa famosa, numa atração turística. Diziam que se comia a peixada de Donana de joelhos. Comer lá era obrigação de todo turista que se prezasse, mesmo pagando diária e outro hotel da cidade. Em volta das duas mesas da sala de jantar, irmanavam-se amigos e desconhecidos, como uma família grande, para saborear os deliciosos camarões à Moda de Donana ou a Peixada Divina, prato farto, onde os sete-barbas boiavam num grosso molho cujo segredo só ela possuía. Dos latões do fogão saíram os deleites gastronômicos de muita gente fina e muita gente importante que pela cidade passava. Não foi surpresa para Igaratuba quando Donana começou a construir seu próprio hotel. A afluência a sua mesa era tão grande que todos sabiam que o dinheiro entrava a rodo, mesmo fora das temporadas. Nestas alturas o marido já a ajudava em algumas coisas, fazendo as compras e recebendo o pessoal. Se assim não fosse seria muito difícil, pois ela não deixava o fogão dia e noite, sabendo que o sucesso de sua casa dependia de seu tempero e de seus segredos culinários. Mesmo quando mudaram para o prédio novo, de cinco andares, batizado de Hotel Donana, moderno e limpo, ela não deixou o fogão. Continuou fiel a seus hóspedes, temperando e misturando os seus molhos, dia e noite, agora à beira de um moderno fogão a gás, cuja chapa abrigava caldeirões novos de alumínio de primeira qualidade. Só largou o fogão quando eleita prefeita de Igaratuba por uma maioria absoluta de votos de um eleitorado que aprendeu a respeitar a mulher que vencera sozinha, apesar do marido incapaz e dos nove filhos. Trocou o fogão a gás por uma escrivaninha de fórmica branca de onde dirigia a cidade, — 53 —
  • 54. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão deixando o hotel a cargo de Jerusa, sua filha mais velha, passando os segredos culinários para ela e para uma empregada fiel. Não se podia dizer que era má administradora. Prática de administração, isto lá tinha, habituada que fora a fazer render o dinheiro para chegar até onde estava. Comparava a cidade a um hotel, vivendo de seus hóspedes e turistas. Mas o dinheiro arrecadado nunca chegava para as necessidades reais do município. — A senhora precisa arranjar dinheiro com o Governo do Estado. Ele empresta para a ampliação da Santa Casa. Irmã Coração tentava convencer Donana da necessidade de um pavilhão infantil. A freira tinha andado, guarda-sol aberto para resguardá-la do calor do sol, um bom pedaço, mas tivera a sorte de encontrá-la na Prefeitura. — É duro ver esta criançada sem poder se tratar. A miséria é grande. — Eu sei, retrucou a Prefeita. Ninguém sabe disso melhor do que eu que dela saí apesar das adversidades. Eu contrairei o destino irmã, mas sei na carne o que é a pobreza. — Além da pediatria, precisaríamos de um lactário, fornecer leite para toda esta criançada da roça, uma assistente social para ir aos pescadores ensinar para as mães um pouco de higiene. Tenho grandes planos para isso e a senhora tem que me ajudar. — Irmã, prometo ir a São Paulo ver isto depois da Semana Santa. Quem sabe se a gente pode arrumar alguma coisa por lá. Daqui não pode sair nada porque não há dinheiro. Só com o que gasto para manter a cidade apresentável! É preciso irmã, a senhora sabe, o turismo exige uma aplicação de dinheiro para chamar gente. É a vida de Igaratuba. A freira deixou a Prefeitura com esperanças. A ida de Donana a São Paulo para falar com o Governador, poderia dar bons resultados. Para isso iria começar uma oração muito forte pedindo ao — 54 —
  • 55. S. F. Arsky Sexta-feira da Paixão Santo de sua devoção que não abandonasse os pequeninos que tanto precisavam do auxílio dos homens adultos. — 10 — A noite era suave, muito suave, com poucas nuvens num céu pontilhado de estrelas. Às vezes a lua minguante sumia, escondendo-se matreira para aparecer pouco depois iluminando mal e mal a praia. A luz elétrica de Igaratuba é pobre e anêmica. Os postes que acompanham a calçada da beira da praia pouco iluminam, tentam, bruxuleantes, tornar visíveis os bancos. Debaixo deles tudo é visível, tudo toma tons avermelhados, mas já a uma distância não se consegue enxergar mais. Só a lua, quando cheia, tornava a areia branca e brilhante delineando os vultos dos que por ela andavam. A medida que as horas avançavam e a noite crescia os transeuntes foram se tornando mais raros para desaparecerem completamente. Na época das férias, quando a cidade borbulha de turistas e o calor é forte, a Avenida da praia é bem concorrida. Depois da sessão do cinema o povo faz o futingue na beira da praia, disputando os bancos de pedra que a margeiam. É mesmo um prazer passear sentindo o cheiro do mar e a brisa quando se sabe que nos quartos o calor é abafante e os lençóis queimam a pele. Porém, quando as noites são mais frescas e os turistas raros, Igaratuba é uma cidade morta depois das onze da noite. As casas vão apagando suas luzes pouco a pouco, os bares vão abaixando suas portas, o cinema despeja o público para suas casas, deixando as ruas vazias. Somente a fraca luz dos postes mostra que ali existe uma cidade, ao iluminar o que fica sob o débil clarão, ou um muro, ou um portão, ou mesmo uma árvore que balança levemente suas folhas à brisa noturna. Corina olhava a cidade quase morta pela janela do corredor do terceiro andar do hotel. Dentro de meia hora iria deixar o serviço para subir o morro até o seu barraco. Tudo estaria calmo até quartafeira quando se esperava que começariam a chegar os hóspedes para o fim de semana prolongado. Pensou na caminhada que teria que dar até a sua casa e deu graças a Deus por haver uma lua grande — 55 —