6. A normalização é tecnologia consolidada, que nos permite confiar e reproduzir infinitas vezes
determinado procedimento, seja na área industrial, seja no campo de serviços, ou em programas de
gestão, com mínimas possibilidades de errar, entre outros aspectos altamente positivos.
Justamente por isso, a normalização é fascinante. Elaborar uma norma técnica é compartilhar
conhecimento, promover a competitividade, projetar a excelência e suas melhores consequências nos
planos econômico, social e ambiental.
Como Foro Nacional de Normalização, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)
dedica-se, desde 1940, a disseminar metodologias consagradas e processos inovadores, estabelecendo
uma espécie de ponte para o desenvolvimento tecnológico de organizações de todos os perfis.
Desafios, crises e, principalmente, grandes conquistas pontuam a trajetória da ABNT e
constituem, fundamentalmente, a história da normalização em nosso país. Com certeza, essa história
merece ser contada.
Pedro Buzatto Costa
Presidente do Conselho Deliberativo da ABNT
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7. Introdução
Como é possível produzir um objeto? A manufatura moderna difere do artesanato
Como sabemos fazer algo, seja um machado ou individual primeiramente pelas diferenças nas
uma faca de sílex, um avião ou um tecido, um técnicas de mensuração. Na manufatura, as partes
são construídas em conformidade com dimensões
tijolo ou um circuito para um computador? Seja
ou outras características físicas como definidas
para uso pessoal, seja para uma troca econômica, em um desenho ou especificação. Instrumentos
não basta, para começar, que apenas um homem de medida calibrados segundo padrões de
saiba produzir tais objetos. Também não adianta referência são necessários para assegurar o
que ele seja capaz de fazê-lo apenas uma vez. cumprimento dos requisitos necessários.
Um artesão individual pode construir seu produto
O produto do trabalho humano é o produto da
por ajuste ou adequação com uma parte
sociedade humana, e saber fazer alguma coisa
correspondente ou segundo o desejo de seu
significa que muitos homens, no presente e no consumidor. Normas não são necessárias e
futuro, em qualquer lugar, em qualquer tempo, frequentemente nenhum instrumento de medição é
também precisam ser capazes de fazer. preciso, uma vez que as características podem ser
Na realidade, o conhecimento teórico ou determinadas por ajustes e não por medidas.
Um fabricante pode operar um conjunto de normas
prático, desprovido dos meios para sua conservação
satisfatórias apenas para ele, mas se ele compra
e transmissão, pouco significa em si mesmo. O
componentes de outros ou distribui seus produtos em
trabalho humano se torna material por meio de competição com outros, ou para ser usado em
procedimentos, regras, instruções, modelos, que conjunção com outros ou com garantia de que
podem ser repetidos, ensinados e aprendidos. cumprirá certos requisitos de desempenho, então
Sem essa condição fundamental – a expressão normas de uso geral são necessárias. (ASTIN, A.V.,
“Significance of the National Bureau of Standards for
do conhecimento em regras compreensíveis pelo
Industrial Progress”. In RECK, 1956, p. 50).
outro – a civilização material não tem condições
de se reproduzir. Ensinar e aprender a criar são A partir desta transformação, a norma
atos que requerem uma linguagem comum. técnica, em seu sentido moderno, começava a
As s ociedades humanas sempre dispuseram nascer. Primeiro, naturalmente, por estímulo direto
de instrumentos e instituições capazes de atender do Estado; depois, pelas exigências crescentes da
a essa exigência. Tão naturais e corriqueiros manufatura industrial. Permitindo a construção de
eram, contudo, os veículos da transmissão desse marinhas de guerra e de armamentos em série,
conhecimento, que raramente seus registros foram ou oferecendo simplesmente maior confiança
salvos da passagem do tempo. Outras vezes, eles na aquisição e no uso de produtos industriais, o
eram tão preciosos que pereceram, silenciosamente, “como fazer”, no sentido técnico da expressão,
cercados pelo segredo da profissão, guardados nos começava a ser publicado, divulgado e preservado
arquivos do Rei. de forma sistemática.
Em determinado momento, contudo, Assim, imposta pelos governos aos seus
na história do Ocidente, certos procedimentos fornecedores ou resultado do mero entendimento
produtivos, antes rotineiros ou triviais, limitados a de engenheiros, cientistas e empreendedores, a
uma atividade econômica ou a uma determinada normalização técnica avançará por séculos, graças
região geográfica, alcançaram um novo patamar. aos impulsos sucessivos da internacionalização do
A escala social dos empreendimentos humanos, no comércio e da produção e das vagas de inovação
campo da batalha e na economia, tornou evidentes tecnológica. Mais tarde, terão seu peso próprio as
os ganhos em eficiência oferecidos pela melhor novas exigências da proteção ao consumidor, à
organização do “saber fazer”. O que antes era saúde humana e ao meio ambiente.
regulado pelo hábito ou costume começou a ser Nesse sentido, a norma técnica traz a
impresso em livros e transmitido a outro anônimo. marca da cultura e da economia capaz de criá-la.
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8. Onde o Estado comandava as relações econômicas aspectos gerais da cultura material humana e do
e sociais, direta será sua influência sobre sua registro das técnicas de produção dos objetos.
produção e organização. Onde o conhecimento O segundo capítulo trata da cultura material da
tecnológico foi disseminado por universidades e sociedade brasileira.
empresas privadas, ele nascerá de múltiplas fontes. Em seguida, uma perspectiva global é
Por fim, quando os países ordenarem suas relações retomada no terceiro capítulo, que trata das
em um cenário de paz, a norma técnica emergirá. relações entre a normalização e o processo
Compreender a trajetória da Norma industrial, do conflito entre os diversos “modos
Brasileira, portanto, exige o exame de muitos de fazer” em uma sociedade em transformação e
detalhes: as práticas sociais que regem a absorção da organização social da norma.
e a transmissão do conhecimento, os diferentes O quarto capítulo retorna à industrialização
estágios da civilização material, as relações entre a brasileira e ao seu impacto sobre o “saber fazer”. A sua
sociedade e o Estado, o papel social do cientista e relação com o Estado, com as organizações sociais e
do intelectual, do artífice e do engenheiro. com as formas da comunidade científica e profissional.
Este exame oferece, com facilidade, Trata do surgimento da consciência da normalização
seus marcos históricos mais importantes, como a entre as profissões técnicas e da Norma Brasileira no
constituição dos sistemas produtivos pré-industriais, contexto do projeto estatal de Vargas – a criação da
a adaptação da cultura europeia, a emergência como Associação Brasileira de Normas Técnicas.
nação independente, a formação da comunidade O quinto capítulo trata das relações entre
científica, a industrialização, as várias correntes de a ABNT e a industrialização brasileira. Examina
absorção de tecnologia e o convencimento das elites os reflexos da modernização do consumo e da
governantes. Por fim, a criação e a trajetória da substituição de importações e produz uma breve
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). história técnico-científica das primeiras normas
Não é difícil documentar cada um desses passos. oficiais.
Mais relevante do que o registro histórico, Por fim, o sexto capítulo examina a
será ampliar a compreensão da ideia da evolução da ABNT e os reflexos da normalização
normalização no Brasil. Afinal, a norma técnica internacional no Brasil e seu papel na crise
tem a mesma relevância que uma sociedade ou do modelo de industrialização na década de
cultura atribui ao conhecimento, à sua preservação 1980. Estuda a emergência da democracia, do
e à sua transmissão. Um estudo com esse desenho consumidor moderno e das questões ambientais.
tem como objeto, na verdade, as lições que podem Trata dos desafios contemporâneos para a
ser aprendidas, as lições que ficarão para o futuro. comunidade científica e para a organização oficial
Este livro conta essa história e busca essa da normalização e da expansão contínua do
compreensão. O primeiro capítulo examinará campo da norma técnica.
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10. Capítulo 1
Governo e conhecimento técnico
Antes do século XIX, um registro profissionais e corporativos; não é uma condição
histórico preciso das tecnologias empregadas necessária. Por conta disso, por vários séculos,
pelas sociedades humanas é raro. O mero curso a aquisição de novas técnicas ocorreu por meio
do tempo, as guerras e as revoluções políticas da imigração, captura ou contratação, entre as
fizeram desaparecer prédios, documentos, objetos
pessoas que as dominavam.
e bibliotecas. O próprio progresso tecnológico A c o d i f i c a ç ã o d o c o n h e c i m e n t o
contribuiu para apagar o passado. O moderno tecnológico, por razões de ordem prática e por
triunfa e o obsoleto e atrasado perecem. Quando considerações de lucro e de segurança, sempre
os enciclopedistas franceses decidiram, no final do
foi a exceção nas sociedades humanas e não a
século XVIII, publicar volumes e volumes contendo regra. Não há razão, portanto, para surpresa com
descrições detalhadas das técnicas produtivas de a relativa opacidade do passado.
seu tempo, a iniciativa foi considerada ousada e Trata-se de uma questão que vai além
potencialmente revolucionária. da mera relação entre o progresso da ciência e
Na prática, os marcos deixados pela o desenvolvimento das técnicas produtivas. Uma
civilização são sobreviventes e, quase sempre, a relação cujo sucesso, aliás, depende de grande
compreensão precisa de como foram produzidos número de fatores, desde a situação social dos
exige pesquisa paciente e incerta. O ritmo da cientistas até as modalidades de financiamento
mudança social e econômica nos últimos dois das atividades econômicas. No caso presente,
séculos tornou o passado ainda menos transparente o foco do interesse está no próprio mecanismo
em termos culturais e também materiais. de transmissão do conhecimento tecnológico, na
Os avanços no registro do conhecimento língua em que está expresso, no círculo editorial
por meio da imprensa e a complexidade crescente que pode alcançar ou nos recursos gráficos que
da produção material deveriam, a princípio, alterar pode mobilizar.
esse cenário, mas outros fatores entraram, então, Nesse campo específico, não se trata
em cena. de saber se um resultado experimental pode
Para começar, apenas em períodos ser reproduzido, mas se um determinado
excepcionais da história o conhecimento foi equipamento, construção ou procedimento pode
considerado um bem público à disposição de ser repetido de forma correta e eficaz. Os célebres
todos. Além disso, o uso do conhecimento exige o desenhos de Leonardo da Vinci, por exemplo,
comando da linguagem escrita, outro bem escasso possuem inestimável valor artístico e denotam uma
ao longo dos séculos. Por fim, a complexidade da
impressionante imaginação mecânica, mas nem
produção material, por sua vez, oferece apenas sempre dispunham de materiais ou instrumentos
a oportunidade para a guarda de segredos para sua materialização concreta em seu tempo.
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12. O desenho das especificações Por exemplo, Theâtre des Instruments
O primeiro exemplo de uma exposição Mathématiques et Mécaniches (1579), de Jacques
detalhada e coerente de um ramo tecnológico Besson, professor de matemática em Orleans, trazia
capaz, pela precisão de suas especificações e dos uma extensa coleção de instrumentos, máquinas,
desenhos de equipamentos, de ser reproduzido bombas e equipamentos militares. Boa parte deles
por terceiros talvez seja a obra de George Agricola, utilizava o princípio da rosca e do parafuso, em
De Re Metallica (1556). um evidente empréstimo das ideias de Leonardo
Humanista e professor de grego aos vinte da Vinci. Traduzido em várias línguas e com várias
anos, Agricola (1494-1555) passou ao estudo da edições, o Theâtre resiste a um exame crítico de
medicina, física e química na Universidade de suas máquinas. (Id., Ibid., p.538).
Leipzig e obteve, na Itália, seu título de doutor em
Por sua vez, o volume Le Diverse et
1526. Em seu retorno à Alemanha, residiu nos
Artificiose Machine del Capitano Agostino
centros mineiros Joachimstal e Chemnitz, onde
Ramelli nem sempre é mecanicamente correto
suas pesquisas e seus conhecimentos o levaram
em suas aplicações, mas certamente teve êxito
à posição de burgomestre, mas sua carreira foi
interrompida pelas turbulências da Reforma. como publicação e como modelo. Ramelli,
Agricola permaneceu católico, abandonou a vida um engenheiro militar que serviu a Carlos V e
pública e recolheu-se aos estudos, cujo fruto mais a Henrique III de França, teve seu engenhoso
brilhante é a publicação póstuma de seu tratado tratado publicado em Paris, em 1588, trazendo
sobre mineração e mineralogia. explicações tanto em francês como em italiano
Trata-se de uma coletânea sistemática para 195 desenhos das mais variadas máquinas,
de informações, mas seu interesse principal está quase sempre usando rodas d’água como gerador
na exposição das aplicações de força motriz às de força motriz.
operações de mineração e ao bombeamento de O sucesso editorial não escondia, contudo,
água e ar nas minas. Moinhos de vento e de água o aspecto mais delicado desses experimentos
estão devidamente apresentados em gravuras, pioneiros no registro e na transmissão de tecnologias.
com as especificações necessárias para sua Nem chegava a ser a sugestão eventual de ideias
construção e uso no trabalho de transporte de originais não testadas na prática, mas a inclusão
material, na retirada de água, na ventilação dos de componentes que requeriam uma manufatura
túneis etc. (WOLFF, 1968, p. 506). precisa sem que seus desenhos fossem apresentados
De Re Metallica é tão precisa na sua com especificações de dimensão e materiais. Era
capacidade de transmitir informações técnicas
esse cuidado que tornava a abordagem prática de
que, por vários séculos, em regiões mineiras do
Agricola, que recolhia e sistematizava equipamentos
Velho e do Novo Mundo, seus exemplares fizeram
em uso, muito mais útil como registro do que
parte do cotidiano de mineradores e autoridades
progresso técnico.
governamentais, merecendo as mais variadas
traduções ao longo de seguidos séculos. Suas De todo modo, é evidente a decadência
centenas de ilustrações são célebres por sua na descrição de máquinas e engenhos nas
qualidade artística e técnica e tiveram um impacto décadas que se seguiram à publicação de Ramelli.
duradouro sobre o desenho dos equipamentos de Muitas obras foram publicadas com descrições de
exploração mineral. moinhos, pontes suspensas, bombas d’água etc.,
A ideia de uma exposição publicada mas com uma atenção cada vez menor ao desenho
e precisa de procedimentos tecnológicos teria e à precisão das especificações. Apenas na segunda
seguidores, nem sempre isentos, contudo, de um metade do século XVIII, às portas da Revolução
uso mais livre da imaginação e menos atentos à Industrial, voltariam a ser publicados materiais
necessidade de reproduzir sua construção. semelhantes às obras de Agricola1.
1 Esta é a opinião de Wolff (p. 540-541), que cita uma série de publicações situadas entre 1617 e 1734, quase sempre mera compilação de material antigo.
9
13. Será necessária uma conjunção muito Duque da Toscana, Ferdinando I (1549-1609), a
especial de dois elementos para alterar esse cenário. organizar um novo ramo de artesanato de luxo.
Em primeiro lugar, a estabilidade política oferecida Seria, assim, fundada uma Manufatura Real, no
pelas instituições estatais modernas, capazes de início do século XVII, para a produção de objetos
coordenar vários tipos de informação e interesses decorados com pedras semipreciosas entalhadas.
por meio de sua legislação. Em segundo lugar, a Em qualquer desses casos, porém, a
influência gradual do conhecimento científico sobre natureza do produto e as características de sua
os processos produtivos. Ao mesmo tempo em que produção faziam do artesão o personagem central
aumentava sua eficácia econômica, reduzia o grau de todo o processo. Sua habilidade, conhecimento
de segredo, intencional ou não, quer cercava o e experiência eram a verdadeira substância de
“saber fazer”. qualquer esforço de padronização. No fundo,
Não é preciso muito esforço, por exemplo, o sucesso do empreendimento econômico, por
para detectar maior interesse pela fixação de maior que fosse o empenho do Estado, continuava
procedimentos produtivos por meios legais no a depender de fatores imponderáveis como a
caso da metalurgia de metais preciosos e sua reprodução da mão de obra ou da qualidade
posterior cunhagem. Afinal, era preciso garantir do processo de aprendizado. Por fim, variáveis
a continuidade da produção, o cumprimento econômicas, como a escala da produção e as
das prerrogativas reais e, sempre que possível, flutuações do gosto ou mesmo da renda de
centralizar o controle sobre o processo de seus consumidores, selaram seu destino. Com o
cunhagem. (MAJER, Jirí, “Development of Quality advento da Revolução Industrial, foram reduzidas
Control in Mining, Metallurgy, and Coinage in the à condição de artesanato de luxo, sem qualquer
Czech Lands”. In JURAN, 1995, p. 259). influência sobre o progresso técnico.
Além dos metais preciosos, vários outros
bens de alto valor unitário despertaram o interesse Navios e armas
do Estado moderno, motivando a criação de Um exemplo muito mais importante de
manufaturas de sua propriedade. Tecidos de luxo, conjugação do interesse do Estado com o uso
armas especiais, relógios, instrumentos científicos mais consistente da uniformização de processos é
e objetos de arte atraíram, em várias circunstâncias oferecido pela produção de equipamentos militares.
nacionais, o interesse estatal, seja pelo rendimento Nesse caso, a utilidade do registro documental de
financeiro, seja pela facilidade de controlar um procedimentos compensava os seus riscos e a escala
processo produtivo de alta complexidade. Sua da produção tendia a reduzir o peso do artesão
comercialização regular, contudo, exigia qualidade individual. Afinal, se as tecnologias civis podiam
e, por via de consequência, procedimentos para o ser desenvolvidas por mero interesse econômico
treinamento da mão de obra e para a uniformização privado, as armas de fogo, sua construção,
dos processos produtivos. produção e uso na terra e no mar apresentavam
Os tapetes Gobelin representam um uma complexidade que apenas a interferência
exemplo famoso, mas a criação de objetos de arte direta do poder político poderia dar conta.
com o uso das pietre dure sob o Grão Ducado É importante ressaltar que o objeto dessa
da Toscana talvez seja o caso mais emblemático discussão não é a construção de canhões especiais
de uma manufatura complexa e praticamente ou armas pessoais de grande qualidade. Artesãos
extinta2. O trabalho de composição com rochas poderiam facilmente cumprir essa tarefa sem mobilizar
entalhadas teve início para a construção do mais do que o próprio conhecimento e experiência.
Mausoléu dos Médici na Sacristia Nova da igreja O problema era de outra natureza: organizar uma
de São Lourenço e sua boa recepção levou o Grão produção numerosa e uniforme para abastecer
2 Em 1662, os ateliês da família Gobelin, de prestígio secular na produção de tecidos e tapeçaria de alta qualidade, foram adquiridos pelo ministro das Finanças
de Luís XIV, Jean Baptiste Colbert, e transformados em uma manufatura real. De operação irregular desde então, a Manufacture Nationale des Gobelins existe até
hoje sob administração do Estado francês. (YOUNG, 1930, p. 639).
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15. grandes contingentes de forças armadas e oferecer um materiais, guarda e manutenção dos navios.
desempenho confiável no campo de batalha, quando Na segunda metade do século XV, contudo, o
operado por simples soldados ou marinheiros. Arsenale assumiu outras funções, encarregando-
Na produção tradicional de canhões, se, em nome da República, por todos os aspectos
por exemplo, as chapas de metal ganhavam sua da construção de navios, incluindo armas,
forma por meio da ação física de martelos, sendo equipamentos de navegação e provisões. Tornou-
posteriormente soldadas para formar um tubo. O se rapidamente uma das atividades centrais de
metal era aquecido e esfriado por várias vezes, toda a economia de Veneza (LANE, 1978).
mas sempre restava o problema da estabilidade Se é difícil datar a origem do Arsenale,
da costura do tubo (DUNAUD, Michel, “How é certo que seu apogeu ocorreu nas primeiras
the French Arms Industry Mastered Quality”. In décadas do século XVI, quando no curso da
JURAN, 1995, p. 417). A rigor, não era necessário guerra contra o Império Otomano a República
o conhecimento científico da metalurgia para de Veneza podia equipar mais de 100 galeras.
produzir uma arma utilizável: bastava o acúmulo Um quarto dessas naus poderia ser abrigado em
de experiências bem-sucedidas de um artesão. Por docas secas. A fábrica de cordas do Arsenale era
quase dois séculos, mestres artilheiros dominaram um dos maiores edifícios da cidade e a principal
esse ramo, transmitindo seu conhecimento de doca (Darsena Nuovissima, inaugurada em
geração em geração. 1473) podia receber, ao final do século XVIII,
As necessidades do Estado moderno não 70 galeras, a nave de guerra veneziana por
seriam, entretanto, atendidas pelo trabalho de excelência.
artesãos dedicados, mas limitados em número. O Não seria exagero afirmar que o Arsenale
controle sobre a produção de armas e navios de foi a primeira grande empresa estatal moderna,
guerra ofereceu, assim, a oportunidade para uma operando de forma contínua e com suas instalações
primeira forma de codificação dos procedimentos distribuídas espacialmente em função tanto do
produtivos e dos materiais empregados. Assim processo de produção como de imperativos de
ocorreu no estabelecimento dos arsenais de segurança. Procedimentos específicos foram
marinha da República de Veneza (CONTERIO, adotados para controlar o desperdício e os navios
Annalisa e VILLA, Francesco da, “The Arsenale of sem uso eram desmantelados cuidadosamente,
the Venetian Republic”. In JURAN, 1995, p. 301). com a recuperação dos materiais empregados
É desnecessário se estender sobre a (CONTERIO, Annalisa e VILLA, Francesco da,
importância da construção naval para o bem- op. cit., 1995, p. 308).
estar econômico e militar da cidade italiana, que A integração das atividades do Arsenale era
passou a controlar boa parte do comércio do completa: além da construção naval propriamente
Mediterrâneo a partir do século XII. Mantendo dita, em suas instalações havia uma fábrica de
linhas regulares de comércio com centros tão cordas, uma fundição de canhões, docas secas e
distantes como Constantinopla, o Cairo e as molhadas, depósitos de armas e munições, áreas
cidades de Flandres e da Inglaterra, a República de teste para armamento, depósitos de madeira
de Veneza encomendava a construção de até e fábricas de remos. Os projetistas dos navios
20 navios por ano em meados do século XV, dispunham, inclusive, de escritórios próprios.
cuja dimensão podia chegar a 3 mil toneladas O Arsenale também abastecia com material
(LUZZATO, 1954). e mão de obra todos os demais estaleiros venezianos,
Até então a construção naval era no mar Tirreno e no Egeu. A especialização da
conduzida por meio da contratação de estaleiros mão de obra era cuidadosamente administrada,
privados, cabendo ao Arsenale di Stato apenas com grandes ganhos em eficiência. Em 1570, para
a responsabilidade pelo armazenamento de uma contraofensiva na ilha de Chipre, o Arsenale
12
16. construiu cem galeras no espaço de apenas dois não escondia o fato de que cada navio continuava
meses. Em 1573, durante uma visita diplomática a ter dimensões próprias e de que não havia
do rei Henrique III da França, uma galera teria sido separação entre o desenho e a construção dos
montada em cerca de duas horas. navios. Procedimentos científicos ainda não
Nenhuma dessas proezas seria possível sem haviam chegado ao coração do processo produtivo
uma notável estrutura administrativa, segmentada e Veneza seria inexoravelmente superada pela nova
para a produção de armas, navios e insumos, ou abordagem para a construção naval na Inglaterra e,
sem procedimentos contábeis detalhados. Também em menor medida, na Holanda.
eram necessários controles estritos da qualidade e Outro exemplo importante da relação entre
da exploração de matérias-primas estratégicas, as necessidades militares do Estado absolutista e as
como a madeira, o treinamento constante da mão primeiras experiências de uniformização de processos
de obra e o registro da informação associada ao e produtos é a experiência vivida pelas forças armadas
processo produtivo (Id., Ibid., p. 323). da França. Decretos de Luís XIV reorganizando a
Não deve ser motivo de surpresa, portanto, Marinha e seus arsenais, editados em 15 de abril de
que as atividades do Arsenale estimulassem 1689, fixavam os procedimentos necessários para
importantes esforços de normalização. Mesmo garantir a qualidade da fundição dos canhões e das
mantida ainda no quadro tradicional da produção matérias-primas empregadas, regras para rejeitar
artesã, a construção naval veneziana registrou peças defeituosas e para assegurar a fabricação dos
avanços na uniformização do uso das peças de equipamentos nos pesos e calibres especificados
madeira e de vários tipos de equipamento. (DUNAUD, Michel, “How the French Arms Industry
Se os troncos usados para a definição Mastered Quality”. In JURAN, 1995, p. 419-420).
do casco do navio possuíssem dimensões ainda No reinado de Luís XV, a reforma da
variáveis, as demais peças, usadas para compor Marinha de Guerra francesa, iniciada em 1765, daria
o resto do navio, eram cortadas e armazenadas novos passos para garantir a eficácia da construção
em tamanhos e formas predefinidas. O maior naval. Foram nomeados engenheiros para a
progresso na normalização foi registrado, supervisão do trabalho dos estaleiros e oficiais da
contudo, na produção de equipamentos e de artilharia para examinar a qualidade da produção
seus componentes: remos, velas, lemes, mastros, das fábricas de armas. O Duque de Choiseul, então
arcabuzes, mosquetes, artilharia em geral. Com ministro da Guerra, elaborou um plano completo de
o passar dos anos, o Arsenale uniformizou sua equipamento militar, com metas de recrutamento,
produção de tal modo que podia ser rapidamente e criou um corpo de engenheiros. A produção de
transferida de uma embarcação à outra. navios foi racionalizada e uniformizada. Haveria
Essa experiência produziu, naturalmente, modelos predefinidos com 74, 80 ou 110 canhões,
um vasto acervo de material técnico, distribuído todos construídos com peças intercambiáveis nos
entre publicações, manuscritos e documentos, estaleiros do reino de Brest, Rochefort e Toulon.
que hoje constituem parte preciosa do Arquivo de O processo de uniformização foi a seguir
Estado de Veneza. estendido a outros ramos das forças militares e o
Como vários outros empreendimentos engenheiro Jean-Baptiste Wacquette de Gribeauval
humanos, a decadência do Arsenale teve suas (1715-1789) foi o primeiro responsável pelo uso
raízes no seu próprio sucesso. Seu imenso e dos conceitos de tipo de arma e de intercâmbio de
eficiente aparato administrativo foi montado em partes. Tornou-se possível, após 1767, adotar uma
torno dos procedimentos tradicionais da produção especificação completa para todo o material de uso
de navios e sobre a habilidade dos mestres artesãos. militar comprado pelo Estado, das armas de uso na
A padronização de componentes e equipamentos artilharia até navios de guerra (Id., Ibid., p. 423).
13
17. Esse esforço de normalização esteve competição econômica e militar entre os Estados
associado, inclusive, ao uso de uma metrologia: europeus certamente levou a progressos em
todos os fornecedores deveriam obedecer ao uso do matéria de organização produtiva e os ganhos
chamado “pé real”. Gribeauval elaborou também oferecidos pela padronização de procedimentos
formas de ensaio de material, como um teste padrão e insumos foram corretamente identificados. O
aplicado aos eixos de ferro utilizados em veículos investimento político e administrativo da República
para uso militar. Os ensaios podiam ser destrutivos de Veneza em seu Arsenale é o melhor indicador
(quando um peso era feito para pender do eixo), de seu impacto sobre a política de segurança do
conduzidos por amostragem (dez por vez de cada Estado.
lote produzido) e, sempre que possível, realizados de Sua disseminação pelos demais setores
forma pública. produtivos, contudo, foi sempre limitada e não se
Gribeauval não chegou a ver o resultado revelava capaz de alterar, por si mesma, o núcleo
final de sua obra, e sua Table des constructions des do processo produtivo. O exercício do poder de
principaux attirails de l’artillerie foi publicada apenas compra do Estado conseguia obter um fornecimento
em 1792. Em junho de 1794, em plena Revolução de insumos e equipamentos de melhor qualidade,
Francesa, uma lei aprovada pelo Comitê de Salvação mas essas atividades sobreviviam como meras ilhas
Pública criava um laboratório de precisão, núcleo do de maior eficiência. Para mudar esse cenário, era
futuro Laboratório Central do Exército francês. preciso mudar o próprio processo produtivo, e
O brilho e a originalidade desses esforços apenas a transformação econômica da Revolução
não devem, portanto, ocultar seus limites. A Industrial seria capaz de fazê-lo.
Desenho de construção do sistema de canhões de Gribeauval
14
20. Capítulo 2
Brasil: das técnicas coloniais
à sociedade industrial
Se os limites das primeiras experiências simples do primeiro século da colonização. Não
europeias com a padronização de equipamentos, pode ser outra a explicação, por sinal, para a
navios e armamentos são bem reconhecidos, a crescente imigração de artesãos de todo o tipo para
mera sugestão de um estudo da normalização no a colônia. Com esses homens, vinham as técnicas
Brasil colonial pode soar exagerada. A escala e a e o conhecimento europeu, por mais simples que
natureza das atividades econômicas indicariam a fossem.
prevalência de técnicas herdadas e transmitidas pelo Além disso, a falta de acesso ao mercado de
costume, em um espaço econômico caracterizado produtos manufaturados europeus determinava que
pela produção local e artesanal, específica de cada
uma boa parte dos objetos em uma residência fosse
território geográfico. A prevalência do trabalho
produzida ali mesmo. Em certos casos, como no dos
escravo, por fim, completaria a condenação de
produtos têxteis, tecidos de algodão, roupas de cama e
sua tecnologia ao seu nível mais elementar. mesa, tapetes e itens de decoração, era evidentemente
Esta avaliação é correta para boa parte necessária a transmissão de certas técnicas, por sinal
dos tempos coloniais e para a maior parte do dominadas pelas mulheres e trazidas da metrópole
território sob controle português. A vida material (Id., Ibid., p. 121-122). O tear para fazer redes era um
de suas vilas e de suas cidades permaneceria, por item comum nos inventários coloniais.
um longo tempo, limitada ao mínimo pelo baixo Para um olhar moderno, a produção
nível de renda da população, por sua densidade doméstica de têxteis pode ser apenas uma
rarefeita e pelas dificuldades de importação de bens
curiosidade, quando comparada aos produtos
de consumo, materiais e equipamentos. É bem manufaturados. Essa distância, contudo, era
conhecido o despojamento das casas brasileiras, menos evidente duzentos ou trezentos anos atrás.
tal como descritas pelos relatos dos viajantes. A Por sua vez, é certo que a preservação
própria natureza provisória da presença na colônia de “modos de fazer” tradicionais, por conta da
seria uma boa razão para o baixo interesse em mera necessidade de produzir domesticamente,
acumular mesmo bens como móveis e utensílios manteve vivas, por exemplo, técnicas de produção
domésticos (ALGRANTI, Leila Mezan, “Famílias indígena. É o caso da fabricação de cerâmicas e
e vida doméstica”. In SOUZA, Laura de Mello e outros utensílios para guardar alimentos, cestarias
(org.), 1997, p. 110-111). e trançados, redes, vassouras e esteiras.
Entretanto, assim que o nível da atividade Finalmente, tal como na Europa, não
econômica permitisse o crescimento da renda demorou muito tempo até que a produção doméstica,
disponível, tal panorama seria alterado e a história organizada de acordo com técnicas tradicionais,
das técnicas produtivas abandonaria o roteiro alcançasse os circuitos comerciais regionais:
17
21. Embora voltadas para as necessidades domésticas, bibliotecas inventariadas entre os séculos XVII e
algumas regiões se especializaram na tecelagem XVIII, mas nota que não é raro encontrar livros
e seu produto passou a ser exportado para outras sobre matemática ou ciências naturais (VILLALTA,
localidades, como as cobertas fabricadas pelos
Luiz Carlos, op.cit., p. 364-365).
habitantes de Minas Novas, no início do século
XIX [...]. Já sobre o trabalho com as rendas, foi
observado que mulheres de todas as origens
Um empreendimento oficial
ocupavam-se em fazê-las para adornar redes,
lençóis e demais panos caseiros. A fim de tornar
Naturalmente, o Brasil colonial, sem
os tecidos mais atraentes, usavam-se algumas universidades, vivendo sob vigilância estrita em
técnicas de tinturaria caseira, aproveitando-se o matéria de publicações e isolado do comércio
pau Brasil e o anil e utilizando-se a urina para fixar mundial, estava longe de ser um ambiente
a cor. (Id., Ibid., p. 148). propício para a difusão do conhecimento
A ausência de instituições formais de científico, mas, nesse tempo, poucos lugares no
ensino, como universidades e escolas, também mundo eram. Seu mero crescimento econômico,
não deve ser motivo para subestimar a densidade contudo, a partir da descoberta do ouro em Minas
do fluxo de informações, inclusive sobre técnicas Gerais, gerava pressões inevitáveis sobre seus
produtivas, nos tempos coloniais. Tal como a sistemas produtivos. Era preciso construir mais
produção de vários tipos de bens, a instrução era prédios oficiais e igrejas, abastecer mais casas
um assunto privado, doméstico e informal, mas que com móveis e utensílios de metal, vestir mais
bem podia evoluir, por exemplo, no contexto das pessoas, mesas e camas. Tudo isso empregando
relações artesão-professor-aprendiz (VILLALTA, um repertório limitado de tecnologias, passado
Luiz Carlos, “O que se fala e o que se lê: Língua, de geração em geração, sem poder contar com o
instrução e leitura”. In SOUZA, Laura de Mello e uso generalizado da escrita.
(org.), 1997, p. 357). Foi deste modo que parte da Assim, quando se olha a tela de João
elite colonial teve acesso à instrução, assim como Francisco Muzzi, A feliz e pronta reedificação da
certamente a grande maioria de seus artistas, Igreja do Antigo Recolhimento de Nossa Senhora
arquitetos, construtores, médicos e boticários. do Parto (1789), hoje uma peça dos Museus Castro
Seu funcionamento, seu potencial, suas formas Maya, é possível se encantar com a representação do
específicas para a conservação e transmissão do Mestre Valentim, um homem negro, apresentando
conhecimento são desconhecidos, mas podem a planta da construção a D. Luís de Vasconcellos.
ser contemplados de relance nas biografias de Esse era um dos homens que dominavam o
personagens como Antônio Francisco Lisboa, o conhecimento técnico de engenharia e arquitetura
Aleijadinho (VASCONCELLOS, 1979), ou Mestre nos últimos anos e, por sua condição social, não é
Valentim (CARVALHO, 1999). motivo de surpresa que reste tão pouca informação
O que realmente faltava à sociedade sobre tal conhecimento.
colonial eram os meios e mesmo as razões materiais Pode-se, ainda, perguntar de onde saíram,
para o registro histórico-documental das técnicas antes da introdução da máquina a vapor, as
empregadas por conjunto de atividades produtivas pranchas de madeira cuidadosamente cortadas,
que foi sendo ampliado ao longo dos anos. Nem empilhadas, apresentadas em poucos tamanhos
mesmo o acesso aos livros era completamente definidos, ou quem teria construído as carroças
vedado. Bibliotecas, privadas e públicas, eram rigorosamente iguais que transportavam os
raras até o século XIX, mas não havia razão, por materiais de construção.
exemplo, para censura eclesiástica ou real sobre Duas considerações ajudam, portanto, a
livros que tratavam de ofícios mecânicos. Villalta modificar parcialmente um julgamento rigoroso
não entra em detalhes sobre o conteúdo de várias das técnicas em uso na sociedade colonial.
18
23. Desde logo se deve notar a proximidade produção de açúcar foi publicado na Bahia, em
de origem entre o grande estaleiro veneziano e o 1816 (GAMA, Ruy, op. cit., p. 58).
empreendimento português no Brasil: sua direta Além disso, a padronização de moendas,
relação com o Estado moderno. O transplante da das rodas de água e dos tachos revela-se um
civilização europeia para a América, sobretudo no resultado inevitável da intensa divisão de trabalho
caso ibérico, não é o resultado do livre trânsito de na produção de açúcar. As várias etapas, da
pessoas e objetos, mas de um processo controlado moagem à cura, exigiam articulação especial e
pelo Estado, para a obtenção de certos objetivos cada uma delas criava oportunidades específicas
econômicos e políticos. de aperfeiçoamento e uniformização, dos rolos das
Além disso, desde a instalação da produção moendas às formas do açúcar. Esse processo de
de açúcar no Brasil não se pode classificar sua padronização chegaria gradualmente até mesmo
economia como elementar do ponto de vista técnico. às plantas de seus prédios, com o desenvolvimento
Mesmo deixando de lado a especulação sobre o grau de uma arquitetura funcional característica.
de padronização dos equipamentos, construções e Não seria exagero afirmar que o engenho
materiais utilizados nos engenhos (GAMA, Ruy, evoluiu na direção de uma instalação fabril e, assim,
“História da técnica no Brasil colonial”. In VARGAS também da padronização de seus equipamentos,
(org.), 1994b, p. 61-62). é evidente que aspectos processos e instalações.
técnicos cruciais para a atividade, como o uso da O engenho chegou mesmo a tocar na
energia hidráulica, requeriam uma construção fronteira da tecnologia de seu tempo em pelo
informada dos equipamentos usados pelos moinhos menos duas áreas relevantes: o uso da energia
(GAMA, 1983). mecânica pelas rodas d’água e a gestão da energia
A documentação técnica e iconográfica calorífica usada pelos fornos e tachos.
examinada pelo professor Ruy Gama oferece Dessa forma, à estagnação técnica da manufatura
perspectivas originais sobre a tecnologia envolvida corresponderia um desconhecimento, mesmo a
na atividade econômica mais importante nos três nível científico, dos aspectos físicos e químicos das
transformações a que se submetia a
séculos da colonização. O engenho de açúcar das
cana-de-açúcar e seu caldo. Isso pode ser uma
gravuras históricas está longe de ser, para começar, parte da verdade, mas não serve para explicar a
o resultado de um mero acúmulo de experiências estagnação técnica nas colônias, pois foi
empíricas locais. Trata-se de um produto direto da exatamente nelas que as máquinas dos moinhos
adaptação de tecnologias estabilizadas há séculos, de cereais e de minérios foram adaptadas e
como os moinhos utilizados na mineração e o uso aperfeiçoadas para seu novo uso. E não apenas
máquinas, mas a própria divisão do trabalho, que
da força motriz da água.
antecedeu o emprego das máquinas
A pesquisa científica sobre o melhor desenho
especificamente aperfeiçoadas para a produção do
para uma roda d’água data de meados do século açúcar, desceu a níveis pouco comuns para o
XVIII e este desenho é decisivo para o melhor século XVI. Da mesma maneira, a arquitetura dos
aproveitamento da energia (DAUMAS, 1996, p. 11). engenhos já, pelo menos no século XVII, havia
Na verdade, como mostra Gama, mesmo em um atingido soluções indiscutivelmente adequadas.
ambiente colonial, o uso da roda d’água podia (GAMA, 1983, p. 311).
ser objeto de estudo e aperfeiçoamento. Trata- Por menos ilustrada que fosse a sociedade
se aqui do notável experimento conduzido pelo colonial em termos de difusão do conhecimento
professor português e dono de engenho, Manuel científico e por mais dispersa que fosse a própria
Jacinto Sampaio de Mello, que pretendia usar um atividade produtiva no território, as exigências
mecanismo similar a uma turbina para acionar econômicas dos mercados internacionais e a gestão
uma roda d’água. Seu livro sobre a reforma da de um processo complexo, para os termos da época,
20
24. bastavam para induzir uma lenta uniformização de realizadas para a administração justificam maior
equipamentos, plantas e processos. atenção. Nesse caso, a intervenção do poder público
As inovações técnicas mais importantes foram a criou as condições e a escala para a uniformização de
especialização dos utensílios de manufatura (das prédios e outras instalações, onde devem ser incluídas
tachas, por exemplo), o crescimento modular do as igrejas de maior porte e as fortalezas militares.
conjunto do engenho (multiplicação das moendas
Assim, os conjuntos arquitetônicos coloniais
e dos jogos de tachas – já assinalados nas
descrições da iconografia do século XVII) e, ainda
no Brasil, em seu próprio formato, apontam para a
que tardiamente, a adoção dos fornos de tipo uniformização. Compostos pela casa de câmara e
inglês e o uso do bagaço como combustível. cadeia, pela igreja ou convento e, eventualmente,
(Id., Ibid., p. 315). por um palácio destinado a uma autoridade, eles
Um panorama mais complexo também têm suas plantas trazidas de Lisboa ou de Roma, no
emerge da análise das técnicas construtivas. caso das igrejas. Suas normas construtivas, por fim,
Edificações oficiais como igrejas e prédios públicos, são garantidas pela execução, a cargo dos poucos
instalações militares, grandes estradas, pontes e arquitetos religiosos e militares a serviço da Coroa.
mesmo a construção naval, quando construídas
Por outro lado, e isso é especialmente significativo,
na sociedade colonial, refletiam decisões e técnicas por volta dos anos 1730-40 é emitida pelo rei uma
estabelecidas pela metrópole. Antes de existirem no série de cartas de fundação de novas vilas no Brasil.
Brasil, eram descritos em decretos e planos oficiais, A importância desses documentos tem sido realçada
sendo repetidos em todas as localidades que a por todos os que lidam com a história do urbanismo
conveniência política exigisse. A face material da neste período e não é necessário insistir nesse
aspecto. No entanto, continuam de certo modo
sociedade colonial, sua organização urbanística e
por esclarecer as circunstâncias precisas de sua
seus formatos arquitetônicos parecem semelhantes
redação. Questionar a conjuntura de sua elaboração
em todas as partes do Brasil e do mundo português obrigaria a rever o papel da intelligentsia ligada a D.
não apenas por acaso ou por sua pobreza relativa, João V, incluindo naturalmente Azevedo Fortes e
mas pelo comando dominante do Estado. outros engenheiros, assim como ao Padre Manuel
Esse traço de origem era ainda agravado de Campos e os padres matemáticos. [...] O que
está em causa é a criação de cidades cujo desenho
por outro aspecto da sociedade colonial: a virtual
é estudado a priori nas várias escalas. Isto é, desde
ausência das comunidades responsáveis pelo
a concretização formal do núcleo em si, de que são
“saber fazer” na metrópole. As corporações de das instruções precisas na carta de fundação, até a
ofício e o aprendizado tradicional por meio da estruturação do território, para o que sua função de
relação entre artesão e aprendiz não eram realidade capital administrativa é pensada. (ARAÚJO, Renata,
sociais preexistentes, mas também instaladas por “Com régua e compasso: Lisboa, os engenheiros
militares e o desenho do Brasil”. In ARAÚJO, Ana
uma determinação do Estado.
Cristina et alii (org.), 2007, p. 484).
Uma primeira área de interesse para
a padronização de técnicas e procedimentos, Uma visão notável do ponto a que chegava a
portanto, seria a própria arquitetura colonial, fruto regularidade dos procedimentos construtivos é
da interseção de tecnologias construtivas bem oferecida, de relance, por um relatório de Frei
determinadas, da adaptação de materiais obtidos Bernardo de São Bento, um dos arquitetos
localmente e das condições sociais do trabalho. responsáveis pela edificação do mosteiro de São
Aquele conjunto foi definido de forma magistral Bento, no Rio de Janeiro4. Para os elementos
por Ruy Gama como as “técnicas do fazer cidades, arquitetônicos mais delicados, que exigissem técnica
casas e coisas”. (Id., Ibid., p. 51). ou material específico, as pedras vinham inteiras,
Naturalmente, das três áreas da atividade nas formas necessárias, devidamente produzidas
de construção civil na Colônia3, apenas as obras na Metrópole. A padronização das plantas e
3 A tipologia é fixada por Júlio Roberto Katinsky, no artigo “Sistemas construtivos coloniais”. (VARGAS (org.), 1994b, p. 68). São analisados os sistemas construtivos
dedicados às instalações produtivas, às atividades administrativas e à sociedade em geral.
4 A referência oferecida por Katinsky sobre o relatório é a obra de Dom Clemente da Silva Nigra, “Construtores e artistas do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro”.
Salvador, Tipografia Beneditina, 1950. (VARGAS (org.), 1994b).
21
26. materiais era de tal ordem que toda a cantaria de uma boa explicação para a emergência de um artista
uma igreja poderia vir de Portugal, sendo montada como Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho.
no Brasil. Como nota Katinsky, é o caso da Igreja A padronização de plantas e materiais
de Nossa Senhora da Conceição da Praia, em da arquitetura governamental na Colônia, seja
Salvador (KATINSKY, Júlio Roberto, op.cit, p. 80). civil ou religiosa, pode ser mais visível e regulada
A razão do procedimento era simples. pelos sistemas oficiais de gestão do conhecimento
Os aspectos construtivos que exigiam um técnico, mas a atividade de construção, mesmo em
nível tecnológico e confiabilidade um pouco ambientes não industriais, pede uniformização. No
maior, como o uso de ferramentas metálicas território brasileiro, a difusão regular de técnicas de
ou materiais adequados para uma fundação construção de menor custo, mas bem delineadas,
ou pilastras, não poderiam ficar a cargo dos como o pau a pique ou a taipa de pilão, justifica seu
trabalhadores coloniais, distantes das práticas estudo por meio de conceito de sistema construtivo
corporativas de transmissão do conhecimento (KATINSKY, Júlio Roberto, op. cit., p. 81).
técnico. O próprio governo metropolitano Os limites do “saber fazer” em um
procurava garantir que essas exigências ambiente colonial são, contudo, bem delimitados,
fossem cumpridas. Na própria reconstrução e o caso da metalurgia oferece um contraponto
de Lisboa, após o terremoto de 1755, o interessante. Nesse campo, sempre houve interesse
procedimento se tornou explícito e oficial: oficial em conter a expansão da atividade, por
razões econômicas e de segurança, e mesmo
Mas sabemos também que a construção, que se arrastou
em dificuldades econômicas naturais, mas sem jamais,
a Metrópole não tinha muito o que oferecer em
ao longo de cem anos, perder rumo e responsabilidade matéria tecnológica.
em problemas de acertos de terrenos entre proprietários, Seja como for, a criação dos “engenhos de
teve uma característica inovada, para satisfazer custos e ferro” torna-se esporádica a partir do século XVII,
urgências, que foi de pré-fabricação de elementos e sua primeiro na forma de fundições e, mais tarde, com
estandardização. Pedras e madeiramentos, tijolos e ferraria, processos tradicionais de forja, sempre em resposta
azulejos também, de rodapés, tudo isso era transportado
às necessidades mais prementes de utensílios de ferro
para os locais de seu emprego sistematizado [...]. Mais
ou aço, em regiões cuja demanda não era atendida
seguros, assim, de suas pessoas e bens, os lisboetas deviam
afazer-se a uma nova maneira de habitar – em prédios de pelo comércio português. Jamais conseguiram,
série, por igualdade de projeto, e circulando em suas ruas entretanto, sustentabilidade econômica, mantendo-
retilíneas, com novas utilizações de espaço e tempo, por isso se em níveis mínimos de desenvolvimento técnico.
mesmo. (FRANÇA, José Augusto, “Mutações pombalinas Também não se livraram dos ciclos de intervenção
ou o pombalismo como mutação”. In ARAÚJO, Ana do governo metropolitano, que nunca se decidiu
Cristina et alii (org.), 2007, p. 17).
se proibia ou permitia a atividade metalúrgica
É curioso notar que enquanto os na colônia (LANDGRAF, F., TSHIPTSCHIN, A.
procedimentos de maior custo e alguma e GOLDENSTEIN, H., “Notas sobre a história da
complexidade ficavam reservados, no Brasil, para os metalurgia no Brasil (1500-1850)”. In VARGAS
aspectos construtivos fundamentais produzidos na (org.), 1994, p. 107).
Metrópole, todo o resto da decoração de uma igreja Com a transferência da Metrópole para o
era responsabilidade dos artesãos locais. Liberados Brasil, o problema da intervenção do governo foi
de maiores obrigações técnicas, podiam então exibir superado e D. João VI patrocinou o modelo das
sua criatividade na seleção de materiais encontrados Fábricas Reais, instaladas em São João do Ipanema
na colônia, como madeiras ou pedra-sabão, e na (1810) e no Morro do Pilar (1812). Engenheiros
definição de modelos estéticos. Katinsky observa estrangeiros foram contratados para a gestão dos
que o surgimento de uma comunidade crescente empreendimentos, mas a incerteza tecnológica,
de artesãos, operando nas margens de um sistema que também não havia sido ainda resolvida na
construtivo administrado pela Metrópole, constitui Europa, terminou selando o destino de ambos.
23
27. Apenas na década de 1850, em outra
conjuntura técnica, a metalurgia seria realmente
incorporada à economia brasileira. Tão limitada foi a
difusão das técnicas e experiências do período colonial
que seu registro histórico, em material publicado ou
documental, é escasso, incerto e, por vezes, depende
mesmo de um trabalho arqueológico.
O trem e a estrada de rodagem
Uma conexão realmente moderna entre
conhecimento técnico e atividade industrial seria
formada no Brasil apenas com o desenvolvimento
do transporte ferroviário. Surgiram, então, as
primeiras condições para uma maior consciência
da importância da normalização de processos e
materiais.
Após uma fase de incertezas, marcada por
verdadeiros experimentos empresariais, as ferrovias,
a partir de meados do século XIX, se apresentavam
como a solução perfeita para os seculares problemas
de comunicação e transporte no interior brasileiro.
O marco histórico relevante foi a construção da
Estrada de Ferro de Petrópolis (1852-1854), seguida generalizada de pontes de ferro; mais tarde, pelo
pela iniciativa inglesa de ligar as cidades de Santos uso crescente do concreto armado.
e Jundiaí. Não se trata, aqui, de contar novamente Por fim, houve a necessidade de criar a
a história do transporte ferroviário no Brasil, objeto infraestrutura para a manutenção das estradas de
de uma extensa produção bibliográfica. Do ponto ferro, das vias e de seus equipamentos. Foram
de vista que nos interessa, basta registrar que sua estabelecidas no Brasil oficinas metalúrgicas
expansão no Brasil criava três domínios relevantes relativamente sofisticadas, que deveriam ser
para a consciência da normalização. capazes de produzir e reparar trilhos, estruturas de
O primeiro deles, naturalmente, foi a questão pontes, máquinas, rodas de metal etc. De algum
tecnológica tradicional das bitolas (PUFFERT, 2009), modo, os engenheiros brasileiros começavam a
o caso clássico de disputa econômica em torno de envolver-se com atividades – a construção civil
normas técnicas. O Brasil não escapou nem das e a metalurgia de material ferroviário – que, na
consequências da diversidade de bitolas – o isolamento Inglaterra, estiveram na origem das primeiras
dos sistemas construídos de forma independente - formas institucionais de normalização.
nem da observação consciente do problema (SOUZA, Na verdade, a conexão entre o prestígio
Antônio Francisco de Paula, 1876). crescente da profissão de engenharia e o
O segundo foi o investimento necessário ordenamento da vida econômica social podia se
em obras de engenharia – as chamadas “obras estender em direções surpreendentes, mesmo em
de arte”- como pontes e túneis. Pela primeira vez, uma sociedade pré-industrial, mesmo em uma
engenheiros brasileiros sentiram a necessidade economia ainda escravocrata.
prática do conhecimento científico da natureza e Em 8 de outubro de 1887, um parecer do
do comportamento dos materiais de construção Clube de Engenharia respondia à demanda de
nacionais e estrangeiros. De início, pela importação uma “Empresa Ambulante Doméstica”, que pedia
24
29. um exame técnico de diferentes tipos de carrinhos Mesquita Barros, Frederico Augusto Liberalli e
de mão que seriam oferecidos ao serviço do Frederico Augusto de Vasconcellos.
mercado ambulante. Nada menos que dez tipos A história da normalização brasileira
de carrinhos de mão foram levados à consideração começaria, contudo, a ser contada quando, nas
dos engenheiros. primeiras décadas do século XX, o interesse das elites
São carrinhos para tração braçal, assentos sobre brasileiras no transporte ferroviário foi substituído
um só eixo fixo, que tem em suas extremidades pelo entusiasmo com o automóvel e com a civilização
duas rodas móveis de 50 a 70 centímetros de urbana criada pela estrada de rodagem.
diâmetro, os dois varais por meio dos quais se dará
Não é por acaso, assim, que se vê o
o impulso servem de apoio à mesa e ligam-se ao
eixo por meio de molas curvas, havendo no centro
engenheiro Antônio Francisco de Paula Souza
de cada varal um descanso de ferro, destinado a (1843-1927) na origem do que pode ser considerada
dar-lhe posição horizontal, quando os carrinhos a primeira instituição de pesquisa tecnológica do
estiverem em repouso. (Revista do Clube de Brasil: o Gabinete de Resistência de Materiais da
Engenharia, nº 10, outubro de 1887, p. 100-103). Escola Politécnica, formalmente criado em 18995.
A partir dessa estrutura básica, as dimensões Em torno dessa instituição, seriam formados os
dos vários compartimentos e sua disposição seriam laços entre engenheiros europeus, promotores do uso
adaptadas às mercadorias vendidas. Quando do concreto armado na construção civil e da pesquisa
destinados à venda de produtos frescos, como tecnológica aplicada no Brasil (VASCONCELLOS,
verduras e carnes, eles seriam perfeitamente Augusto Carlos de, “História do concreto armado no
ventilados, além de contar com depósitos para gelo, Brasil”. In VARGAS (org.), 1994a).
sem contato direto com as mercadorias. Quando A participação estrangeira começa
destinados à venda de doce, pão, objetos de pela chegada ao Brasil, em 1903, do professor
armarinho e cigarros, teriam portas envidraçadas. Wilhelm Fischer, da Eidgenossische Technische
Os carrinhos para cigarros teriam também um Hochschule, de Zurique, para dirigir o Gabinete e
compartimento para expor os bilhetes de loteria. acompanhar a instalação de seus equipamentos.
Em seu parecer, os engenheiros afirmam que Dois anos depois, o Grêmio Politécnico já
os carrinhos não representavam nenhuma invenção, publicava um Manual de Resistência de Materiais.
mas reconhecem que sua construção foi bem estudada Ao final da década, as primeiras construções de
e recomendam sua adoção pelo mercado ambulante: prédios e pontes em concreto armado, com o uso
Melhor acondicionados os gêneros que tiverem de de cálculos científicos e testes de materiais, são
ser levados ao consumidor, facilitando-se ao mesmo
registradas no Brasil6.
tempo o serviço de transporte, está claro que
A expansão do uso do concreto armado
considerado do ponto de vista higiênico lucrará a
população. (Revista do Clube de Engenharia, também contou com o direto interesse de escritórios
nº 10, outubro de 1887). estrangeiros no mercado de construção brasileiro.
Os engenheiros advertem ainda que uma O engenheiro francês François Hennbique é
municipalidade interessada em uma boa situação ativo desde a primeira década do século XX, e
sanitária deve se preocupar com a solução oferecida a famosa firma alemã do pioneiro dos estudos
pelos carrinhos. No mínimo, eles serviriam para científicos sobre concreto, Gustav Adolph Wayss,
“acabar com os repugnantes balaios e tabuleiros” operava no Brasil, de forma indireta, desde 1913
(Revista do Clube de Engenharia, nº 10, outubro e, oficialmente, desde 1924.
de 1887), pouco próprios a uma cidade como A importância e o pioneirismo do uso do
o Rio de Janeiro, como “foros de civilizada”. concreto armado no Brasil proporcionaram uma
O parecer é assinado por Feliciano Mendes de extensa lista de recorde na construção de estruturas,
5 Antônio Francisco de Paula Sousa (1843-1917), filho do senador Francisco de Paula Sousa e Melo, primeiro-ministro durante o Império, teve uma brilhante carreira
técnica e política. Estudou engenharia na Suíça e na Alemanha e voltou ao Brasil em 1871 para se tornar um dos maiores especialistas em transporte ferroviário. Republicano,
foi eleito deputado estadual em 1892 e presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo. Foi criador da Escola Politécnica de São Paulo. Foi também ministro dos
Transportes do governo Floriano Peixoto, em 1893.
6 Há uma longa disputa por primazia nesse campo, mas é certa a notícia da construção de uma ponte em concreto armado sobre o rio Maracanã, no Rio de Janeiro, em
1908, e de um prédio com a mesma técnica na Rua Direita, em São Paulo, em 1909. (VASCONCELLOS, Augusto Carlos de, op.cit., p. 93).
26
31. incluindo a marquise da tribuna de sócios do Jockey contrário das pontes de aço, podiam ser construídas
Clube do Rio de Janeiro (1926); o edifício Martinelli, em qualquer ordem e o transporte dos materiais
em São Paulo (construído entre 1925 e 1929), à época podia ser feito de forma bem mais simples. Os perfis
o maior prédio em concreto armado do mundo em metálicos também não podiam ser uniformizados,
área; e o célebre edifício “A Noite”, no Rio de Janeiro, porque precisavam ser adequados ao traçado,
construído entre 1928 e 1931 como o mais alto enquanto as pontes de concreto podiam ser feitas na
edifício de concreto no mundo (VASCONCELLOS, forma de módulos.
Augusto Carlos de, “História do concreto armado no O pioneirismo do esforço no mundo e
Brasil”. In VARGAS (org.), 1994a, p. 81-82.) sua escala no Brasil dependeram, naturalmente,
Nenhuma obra, contudo, representa mais de pesquisa realizada no próprio país, sobre o
o momento vivido pela engenharia brasileira nesse uso do cimento e sobre a resistência dos materiais
momento do que a ferrovia Mairinque-Santos, cuja empregados. Não admira, portanto, que a
construção foi dirigida pelo engenheiro Humberto intensidade das atividades do Gabinete levasse à
Fonseca a partir de 1927. sua transformação no Laboratório de Ensaios de
[Fonseca] lutou durante anos até conseguir impor Materiais, em 1926, sob a direção do engenheiro Ary
o uso do concreto armado, considerado por
Torres. Em seu Boletim nº 1, o Laboratório publicaria
muitos engenheiros do Brasil e da Europa como
material inadequado para ferrovias por causa da justamente um trabalho de Torres, Dosagem de
fissuração e do carregamento repetitivo. Concretos, como registra Vasconcellos:
A dificuldade de justificativa era enorme por falta Constitui uma obra histórica, servindo de base
de experiência estrangeira, por falta de para tudo o mais que se fizesse no Brasil e até hoje
conhecimento tecnológico e principalmente pelo
ainda é utilizada para ministrar aos alunos as
interesse dos ingleses de venderem seus perfis de
primeiras noções de dosagem (Id., Ibid., p. 93).
aço. (VASCONCELLOS, Augusto Carlos de
“História do concreto armado no Brasil”. Como será visto à frente, a combinação
In VARGAS (org.), 1994a, p. 106). entre as atividades de Ary Torres e o triunfo da
As vantagens econômicas eram bem tecnologia do concreto armado no Brasil está na
particulares. Todo o material de construção seria raiz da criação da Associação Brasileira de Normas
nacional; as pontes de concreto de uma estrada, ao Técnicas (ABNT).
28
33. Capítulo 3
A ideia de normalização
O avanço da ciência e a expansão do imposta, de forma voluntária ou compulsória, aos
comércio mundial são condições necessárias para processos produtivos.
a institucionalização da elaboração de normas Em condições ideais, é fácil sugerir que o
técnicas, mas não bastam, por si mesmos, para Estado seria o melhor instrumento para superar
iniciar esse processo. Foi necessário que as este problema de ação coletiva. Ao final do século
relações econômicas entre as nações envolvessem XIX, contudo, a intervenção dos governos no
produtos de maior sofisticação e conteúdo técnico
domínio da economia estava longe de ser objeto de
para que emergisse a necessidade de compatibilizar consenso entre líderes políticos e empresariais. Não
diversas estruturas tecnológicas e sociais. No parecia simples imaginar com que procedimentos
sentido próprio do termo, não há norma técnica legais poderiam ser contidas as pressões da
antes da revolução industrial e da formação dos competição econômica. Sob certa perspectiva, um
mercados mundiais desses novos produtos. O empreendimento dessa natureza assumia os traços
desenvolvimento dessas novas tecnologias data de mais uma utopia social de fim de século.
das últimas décadas do século XIX7. Além disso, sempre havia faltado poder
Em vários setores da economia, havia e interesse aos Estados para impor normas
pressões para a harmonização de processos e compulsórias. “O processo é custoso e complexo
produtos, canalizadas pelo comércio e pelo consumo, demais para estar ao alcance de legislaturas ou
mas o elemento decisivo seria o desenvolvimento da burocracias” (MURPHY e YATES, 2009, p. 9).
siderurgia e do uso da energia elétrica na Europa Em contrapartida, muitos atores sociais privados,
e nos Estados Unidos. Estes setores tornaram como associações, técnicos, consumidores,
indispensável a normalização. Na prática, mesmo empresas etc., têm grande interesse na fixação de
quando as normas técnicas não são essenciais para normas e poderiam se dispor a sustentar os custos
a conexão entre os processos tecnológicos, elas da ação coletiva necessária para queimar etapas
definem os termos da competição econômica e, por
que o mercado levaria muito tempo para cumprir
consequência, a própria natureza da inovação8. por si mesmo.
A normalização, em escala mundial, de Mesmo que engenheiros e empresas
produtos ou processos representava, contudo, resolvessem o problema de ação coletiva, havia outro
um problema de ação coletiva. As empresas dilema igualmente sério. A normalização internacional
precisavam estar convencidas de que colheriam teria de se manter alinhada com o processo de
ganhos econômicos concretos para dedicar recursos mudança tecnológica. No ritmo intenso com que o
humanos, tempo e dinheiro à elaboração de conhecimento científico transformava a produção
normas. Tais ganhos deveriam superar, inclusive, industrial ao final do século XIX, era evidente a
os custos de uma maior regulamentação que seria possibilidade de que normas envelhecessem com
7 Normalização, tal como definida pelo Vocabulário Geral da ABNT, é uma atividade que estabelece, em relação a problemas existentes ou potenciais, prescrições
destinadas à utilização comum e repetitiva com vistas à obtenção do grau ótimo de ordem, em um dado contexto. Em particular, a atividade consiste nos processos de
elaboração, difusão e implementação de normas. A normalização proporciona importantes benefícios, melhorando a adequação dos produtos, processos e serviços às
finalidades para as quais foram concebidos, contribuindo para evitar barreiras comerciais e facilitando a cooperação tecnológica.
8 Murphy e Yates retiram o conceito de um artigo de Jean-Daniel Merlet, “Normalisation, réglementation, innovation dans la construction: opposition ou complémentarité”?.
Annales des Ponts et Chaussées, 95(2000), p. 20-27.
30
34. rapidez, sem compensar os custos de elaboração O congresso de fundação da IEC foi
e adaptação. Simples escolhas tecnológicas, como realizado no Hotel Cecil, em Londres, nos dias
o tipo de corrente elétrica usada na distribuição de 26 e 27 de junho de 1906, sob a presidência de
energia, podiam ter vastas implicações financeiras9. Alexander Siemens. O Report of preliminary meeting
Terminou prevalecendo, de forma curiosa, a informa que os trabalhos da entidade seriam
atração de sua intenção utópica e internacionalista. conduzidos por meio de correspondência entre
A normalização, em seu aspecto formal, revelou-se seus membros e estariam sob a responsabilidade
apenas um dos campos de uniformização necessários de um secretário-geral. A entidade deveria estar
para o funcionamento da economia mundial na aberta à participação de todas as nações, e no
segunda metade do século XIX, um esforço que relatório preliminar há um pedido de desculpas
se estendia dos padrões de medida às transações aos governos do México e da Argentina, que
bancárias e à administração pública (MURPHY, não foram informados corretamente sobre o
1994, p. 56-62). Em resposta a essa intenção utópica, Congresso. O Brasil não é mencionado.
não faltava nem mesmo certo espírito evangélico às As regras iniciais da conferência foram
associações de engenheiros engajadas nos primeiros propostas pela Bristish Institution of Electrical
esforços de racionalização da produção e que, mais Engineers, sempre com o espírito de garantir a
tarde, seriam também estendidos à modernização maior liberdade possível às instituições nacionais.
da administração pública10. A organização alemã de engenheiros, por sinal,
A primeira experiência de normalização chegou a pedir que os governos fossem deixados
internacional foi, assim, conduzida como um de fora das atividades da Comissão. Cada país
esforço de cooperação voluntária, construído deveria contribuir de forma igualitária para a
a partir de uma fronteira tecnológica em plena organização e, naturalmente, ter direito a votos
expansão: o uso da eletricidade, uma indústria com o mesmo peso. Um subcomitê foi formado
nova e de alto conteúdo científico. Suas exigências para ajustar as regras propostas pela associação
específicas de coordenação estão na raiz da criação britânica de engenheiros elétricos e, no dia
da International Electrotechnical Commission seguinte, apresentou considerações importantes.
(IEC). Os temas então discutidos haveriam de
Um núcleo limitado de cientistas, de engenheiros constituir as linhas fundamentais de toda a história
e também de líderes empresariais foi capaz de institucional da normalização: as relações com o setor
estabelecer um mínimo de cooperação para privado e com os governos, o ritmo da produção de
o estabelecimento de normas técnicas, sem a normas, as regras para sua elaboração e a melhor
necessidade de envolver governos e prometendo organização da entidade de normalização.
ganhos econômicos imediatos. Os delegados decidiram, por exemplo,
Ao fim do Congresso Internacional de que os interesses empresariais deveriam estar
Eletricidade, realizado em 1904, em St. Louis, representados nos comitês nacionais, mas,
nos Estados Unidos, delegados de vários países caso um país não possuísse um comitê próprio,
aprovaram a proposta de cooperação técnica entre os representantes deveriam ser indicados pelo
todas as organizações de engenheiros e cientistas governo. Uma sociedade técnica só poderia indicar
com vistas à uniformização dos termos técnicos e representantes após três anos de existência e o
das características de equipamentos e instrumentos poder de voto de cada país (e o modo de registrá-
elétricos. Este relatório é considerado o ponto de los) deveria constar nos estatutos.
partida para a constituição da IEC, cuja sede foi Das matérias regimentais, os delegados
estabelecida em 1906, em Londres11. logo passaram a observações mais substantivas
9 É o caso da “batalha” entre os sistemas de provisão de energia elétrica por corrente alternada ou por corrente contínua nos Estados Unidos, encerrada na década de
1890, com a vitória do sistema da Westinghouse, por corrente alternada. Tal vitória, contudo, foi obtida não pela conquista de um lado pelo outro, mas por uma “notável
resolução da controvérsia técnica e organizacional”. (HUGHES, 1995, p. 106-107).
10 No Brasil, esse movimento chegaria após a Revolução de 1930 na forma dos projetos de reforma administrativa do Departamento Administrativo do Serviço
Público (DASP), e não é por acaso que as mesmas personalidades estavam envolvidas nas reformas de Vargas e no início da normalização no Brasil. (MURPHY e
YATES, 2009, p. 13).
11 Nove países atenderam ao chamado original para a constituição da IEC, por meio de suas organizações nacionais de engenheiros elétricos: Estados Unidos, França,
Itália, Canadá, Alemanha, Império Austro-Húngaro, Dinamarca, Suécia e Noruega. Por ocasião da conferência de 1906, a lista passou a incluir a Bélgica, a Holanda, o Japão,
a Suíça e a Espanha. As informações relevantes podem ser encontradas no site da instituição: www.iec.ch.
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