O documento discute como o design tem se tornado mais um verbo do que um ofício, possibilitando intervenções em desafios complexos da sociedade contemporânea. Indivíduos estão se lançando em jornadas para criar transformações que impactam gerações atuais e futuras, assim como heróis míticos. O design em um mundo complexo requer abordagens holísticas e a capacidade de modular soluções de acordo com as necessidades locais.
2. 37TRINTA E SETE
Estamos em 2014 e o design tem
se manifestado mais como verbo
do que como ofício. Projetar tornou-
se uma inquietação, possibilitando
intervir nos desafios e dilemas
complexos gerados pela sociedade
contemporânea, afetando o estilo
de vida, os problemas crônicos das
cidades, ou no aquecimento global.
Cidadãos - não necessariamente
formados em design - estão se
lançando em verdadeiras jornadas
em busca de algo maior do que eles
mesmos, tentando mudar a vida
das pessoas e o mundo, projetando
intervenções que impactam as
gerações atuais e futuras.
O mitólogo Joseph Campbell,
em sua Jornada do Herói, revela
personagens que se arriscam em
mudar o status quo e entram numa
aventura com um fim incerto.
Aceitam o desafio, com provações
que poderão levá-los ao sucesso,
ou ao fracasso. O herói de Campbell
está presente em praticamente
todos os mitos e sem a existência
dessa pessoa, capaz de explorar
e expandir seu próprio potencial
de criação, não seria possível o
continuum de transformação em
nossa sociedade. Intervenções
em ambientes complexos criam
um movimento sociodinâmico de
homeostase, com capacidade para
gerar um fluxo livre e ininterrupto
de destruição criativa - no
hinduísmo associado aos deuses
Shiva e Brama -, onde a única
verdade é que toda criação gerada
no sistema se torne um potencial
gatilho para a transformação.
ÇÃOÇÃO
3. 38TRINTA E OITO
A virada do atual milênio pode
ter provocado nos indivíduos
esse tipo de impulso. Algo similar
ao que aconteceu em outros
momentos da história, como
no Renascimento, ou na virada
do século XIX para o XX. Certa
sincronicidade, potencializada
pela conectividade e ubiquidade
da atualidade, criando uma
consciência global e autocrítica
sobre os modelos (econômicos,
sociais, tecnológicos, políticos
e ambientais) dentro dos quais
se vive. Embora todos sejam
educados para resolver problemas
dentro de especialidades, como
engenharia, advocacia, economia.
Em geral, a resposta como
especialista traz simplismo e
convencionalismo na solução
de problemas complexos. Não
à toa, na sociedade, observa-se
um esgotamento dos modelos.
Criar mais um processo, produto
ou serviço de modo isolado e
especializado já não atende
o real problema. Projetar na
complexidade faz, portanto, surgir
modos de pensar mais holísticos,
procurando integrar distintos
campos do conhecimento na
busca por novas respostas1 para
novos (e antigos) problemas.
Indivíduos atuando nesta trama
se apoderam da liberdade de criar
e recriar seus próprios códigos,
crenças e valores, destruindo
mitos, rituais e símbolos
conservados pela cultura, gerando
um desequilíbrio momentâneo no
sistema. Indivíduos conscientes
do seu livre pensar, criar e agir
vivem uma relação paradoxal de
liberdade condicional.
Durante a revolução industrial
presenciou-se o fenômeno da
alienação2, o divórcio entre o
pensar e o fazer. Quando o artesão
de ofício - os designers e criativos
daquele tempo - perde para as
indústrias as ferramentas e os
recursos que viabilizavam sua
criação. Curiosamente, nos dias de
hoje surge um movimento inverso,
em que a criação se populariza
por meio de ágoras físicas e
digitais, onde qualquer criativo
pode aprender individualmente
ou coletivamente a libertar suas
mentes para criar, projetar e
desenvolver soluções de alta
qualidade, que atendam suas
próprias necessidades ou as de
uma sociedade. Esses cidadãos
preferem aprender com seus
próprios erros e acertos. Às vezes,
contam com o apoio de mentores
incomuns, como um amigo ao lado.
Após décadas de dogmatização do
profissional criativo, reconhecido
pela sua genialidade e importância
na massificação, padronização e
mecanização de novos conceitos,
chega-se a homeostase social3.
Práticas como a digitalização da
produção ou a cocriação fazem
emergir empreendedores criativos,
prontos para atuarem muito além
do design de ofício, produzindo
e espalhando seus ideais pelo
mundo de forma não ortodoxa.
Aplicando modelos econômicos,
quase irracionais, como o freemium
e o crowdfuning, os novos
criadores são os arautos desse
novo tempo. Diversos estudos,
um deles realizado pela IBM4 com
1500 lideranças e confirmado
por outro da Adobe5, sugerem
que sem essa liderança criativa
(creative leadership) ou confiança
criativa (creative confidence)
não será possível solucionar os
desafios capciosos desta geração.
Fazendo com que esta jornada
trilhada por indivíduos, pequenas
equipes, organizações ou grupos
sociais vejam ao final a criação
como um ato de ativismo, quase
invisível nesse emaranhado de
transformação. Atualmente, vive-se
o futuro do passado, onde algum
desses ativistas antigos projetou
os artefatos, as instituições, as
regras e o ambiente de interação
humana existentes hoje. O estilo
de vida móvel, disperso, conectado,
foi projetado há menos de 30 anos
por pessoas decididas a criar o
(nosso) futuro. Lugares como
Califórnia (Vale do Silício), Londres
(Inglaterra), Tel Aviv (Israel) e
Berlim (Alemanha) já sentiram os
efeitos, muitas vezes silenciosos,
deste tipo de protagonismo social.
1 A convergência tecnológica NBIC (siglas para integração da Nano, Bio, Info e Cognição) tornou-se um mantra em escolas como o MIT e Singularity
University nos EUA, onde problemas são analisados e tratados de maneira transdisciplinar.
2 Conceito apresentado por Karl Marx, no livro “O Capital”.
3 O professor italiano Massimo Canefacci chama o indivíduo contemporâneo de multivíduo, um indivíduos com múltiplos “eus” criativos.
4 Capitalizing on Complexity, IBM, 2010.
5 State of Create Study, Adobe, April 2012.
4. 39TRINTA E NOVE
Anderson Penha é o pai da Nina, designer pela Symnetics, professor de
Criatividade e Inovação nos MBAs da BI International, Sustentare e professor
convidado nos cursos de Business Design da Business School São Paulo.
André Coutinho é agente de inovação pela Symnetics e professor de
Business Design dos MBAs e programas executivos da HSM Educação e
Business School São Paulo.
passa mais por uma única visão
modeladora. Aos poucos se dá
conta de que a sociedade sempre
esteve em ebulição e, de tempos
em tempos, regras e valores são
colocados à prova, mantendo viva
a tensão criativa, entre os adeptos
(de novos modelos) e reacionários
(fã de carteirinha dos modelos
clássicos, que um dia também
foram novos). Nesse contexto, o
design se torna uma plataforma
de diálogo aberta para modular as
diversas tensões sociais e modelar
soluções de arquitetura aberta, onde
pessoas e coletivos possam adequar
soluções às suas necessidades.
O designer se torna um
catalizador que estimula, articula,
valoriza e potencializa qualquer
criativo ou expert ao seu redor,
bem como o intérprete social
que usa a linguagem como sua
principal ferramenta de criação
e a mídia como adequação da
linguagem. Esse movimento
libertário e participativo tem se
mostrado um caminho para a
solução de problemas complexos,
cujo escopo nunca está claro e
as múltiplas soluções possíveis
residem na junção de diversos
campos do conhecimento.
DESIGN EM UM
MUNDO COMPLEXO
O design neste mundo complexo
- o mundo sempre foi complexo,
o ser humano é que o simplifica,
reduze-o por um tempo – volta a
ser o verbo que catalisa e estimula
a (re)conexão e interação entre
agentes, sejam eles humanos
ou não humanos (objetos,
plantas, animais, rios, mares) e
que permite, pelas interações,
fazer emergir suas próprias
perguntas e respostas. Neste
contexto, o designer passa a ser
aquele que trabalha constante a
modulação: mediação, articulação,
interpretação e adequação.
Vivendo no meio, não no lugar, no
in between entre polos opostos: do
individual & coletivo, do fechado
& aberto, do público & privado, do
orgânico & inorgânico, do real &
virtual. O modelar, projetar coisas
concretas (ou abstratas), simples e
memoráveis, com um rigor estético
e funcional, acessível e intuitivo aos
indivíduos, deixa de ser um mantra
para o designer.
O mundo contemporâneo requer um
projetar que balanceie o modular
e o modelar. Nestes últimos anos,
é possível notar que temas como
degradação do meio ambiente,
consumo consciente, modos de
aprendizagem não convencionais,
entre outros, têm sido abordado por
diversos campos do conhecimento,
passando a ser temas transversais,
onde a soluções dos problemas não
“O designer se torna
um catalizador
que estimula,
articula, valoriza
e potencializa
qualquer criativo
ou expert ao seu
redor, bem como
o intérprete social
que usa a linguagem
como sua principal
ferramenta de
criação e a mídia
como adequação da
linguagem”
#