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Medicina, Ribeirão Preto,                                      Simpósio: FUNDAMENTOS EM CLÍNICA CIRÚRGICA - 1ª Parte
2008; 41 (3): 259-64                                                     Capítulo II




                        BIOLOGIA DA FERIDA E CICATRIZAÇÃO

                                            WOUND BIOLOGY AND HEALING



      Maria de Fátima G S Tazima1, Yvone Avalloni de Morais Villela de Andrade Vicente1, Takachi Moriya2

Docente da Divisão de Cirurgia Pediátrica, 2Docente da Divisão de Cirurgia Vascular e Endovascular. Departamento de Cirurgia e
1

Anatomia da FMRP-USP.
Correspondência: Maria de Fátima G S Tazima. Divisão de Cirurgia Pediátrica, Departamento de Cirurgia e Anatomia da FMRP-USP.
Av. Bandeirantes, 3900. CEP: 14048-900 - Ribeirão Preto /SP.   (email: mftazima@terra.com.br)




           Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T. Biologia da ferida e cicatrização. Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41
               (3): 259-64.

               RESUMO: O conhecimento dos complexos eventos fisiológicos da cicatrização da ferida é de
           grande importância para o cirurgião. A reparação das feridas é apresentada em suas etapas
           inflamatória, proliferativa e de maturação.

              Palavras-chaves: Cicatrização de Feridas. Ferimentos e Lesões/cirurgia. Ferida Operatória.
           Biologia da Ferida. Biologia/Ferimentos e Lesões.




       O reparo de feridas, uma solução de continui-              selando as bordas da ferida, ainda sem valor mecâni-
dade dos tecidos, decorrente da lesão por agentes me-             co, mas facilitando as trocas. O coágulo formado es-
cânicos, térmicos, químicos e bacterianos, é o esforço            tabelece uma barreira impermeabilizante que protege
dos tecidos para restaurar a função e estruturas normais.         da contaminação. Com a lesão tecidual, há liberação
       O conhecimento dos complexos eventos fisio-                local de histamina, serotonina e bradicinina que cau-
lógicos da cicatrização de feridas é de grande impor-             sam vasodilatação e aumento de fluxo sanguíneo no
tância para o cirurgião.                                          local e, conseqüentemente, sinais inflamatórios como
       A regeneração é a restauração perfeita da ar-              calor e rubor. A permeabilidade capilar aumenta cau-
quitetura do tecido pré-existente, na ausência de for-            sando extravasamento de líquidos para o espaço ex-
mação de cicatriz, e embora seja o tipo ideal no uni-             tracelular, e conseqüente edema.
verso de cicatrização de feridas, ela só é observada                     A resposta inflamatória, que perdura cerca de
no desenvolvimento embrionário, organismos inferio-               três dias,e na qual ocorre a migração seqüencial das
res ou em determinados tecidos como ossos e fígado.               células para a ferida é facilitada por mediadores bio-
Na cicatrização de feridas a acurácia da regeneração              químicos que aumentam a permeabilidade vascular, fa-
é trocada pela velocidade de reparo.                              vorecendo a exsudação plasmática e a passagem de
       A reparação de feridas passa pelas seguintes               elementos celulares para a área da ferida. Os media-
etapas básicas: fase inflamatória, fase proliferativa (que        dores bioquímicos de ação curta são a histamina e sero-
incluem reepitelização, síntese da matriz e neovascu-             tonina e as mais duradouras são a leucotaxina, bradici-
larização) e fase de maturação.                                   nina e prostaglandina. A prostaglandina é um dos me-
                                                                  diadores mais importantes no processo de cicatriza-
1- FASE INFLAMATÓRIA                                              ção, pois além de favorecer a exsudação vascular, es-
                                                                  timula a mitose celular e a quimiotaxia de leucócitos.
     Inicia-se no exato momento da lesão. O san-                         Os primeiros elementos celulares a alcançar o
gramento traz consigo plaquetas, hemácias e fibrina,              local da ferida são os neutrófilos e os monócitos, com


                                                                                                                         259
Biologia da ferida e cicatrização                                                       Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64.
Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T                                                                     http://www.fmrp.usp.br/revista




a função de desbridar as superfícies da ferida e                crescimento de novos vasos, caracterizando a cicatri-
fagocitar as partículas antigênicas e corpos estranhos.         zação por segunda intenção e o tecido de granulação.
O pico de atividade dos polimorfonucleares ocorre nas                  Os novos vasos formam-se a partir de brotos
primeiras 24-48 horas após o trauma, seguindo-se de             endoteliais sólidos, que migram no sentido da periferia
um maior aporte de macrófagos durante os dois a três            para o centro da ferida, sobre a malha de fibrina de-
dias seguintes. O macrófago, também ativa os ele-               positada no leito da ferida. A bradicinina, a prosta-
mentos celulares das fases subseqüentes da cicatri-             glandina e outros mediadores químicos oriundos dos
zação tais como fibroblastos e células endoteliais (Fi-         macrófagos, ativados, estimulam a migração e a mitose
gura 1).                                                        das células endoteliais. A neo-angiogênese é respon-
                                                                                      sável não apenas pela nutrição do
                                                                                      tecido, com uma demanda meta-
                                                                                      bólica maior, como também pelo
                                                                                      aumento do aporte de células,
                                                                                      como macrófagos e fibroblastos,
                                                                                      para o local da ferida.
                                                                                       2.2- Fibroplasia
                                                                                               Após o trauma, células
                                                                                       mesenquimais normalmente qui-
                                                                                       escentes e esparsas no tecido nor-
                                                                                       mal, são transformadas em fibro-
                                                                                       blastos e atraídas para o local in-
                                                                                       flamatório, onde se dividem e pro-
                                                                                       duzem os componentes da matriz
                                                                                       extracelular. O fibroblasto só apa-
                                                                                       rece no sítio da lesão a partir do
                                                                                       3º dia, quando os leucócitos poli-
Figura 1: Evolução do número relativo de células sangüineas e fibroblastos nas fases   morfonucleares já fizeram seu
seqüenciais do processo de cicatrização.                                               papel higienizador da área trauma-
                                                                                       tizada. A função primordial dos
                                                                                       fibroblastos é sintetizar colágeno,
                                                                  ainda na fase celular da inflamação.
2- FASE PROLIFERATIVA
                                                                          O colágeno é uma proteína de alto peso mole-
       A fase proliferativa é composta de três eventos            cular, composta de glicina, prolina, hidroxiprolina, lisina
importantes que sucedem o período de maior ativida-               e hidroxilisina, que se organiza em cadeias longas de
de da fase inflamatória: neo-angiogênese, fibroplasia             três feixes polipeptídicos em forma de hélice, respon-
e epitelização. Este fase caracteriza-se pela forma-              sáveis pela força da cicatriz.
ção de tecido de granulação, que é constituído por um                     A síntese de colágeno é dependente da oxige-
leito capilar, fibroblastos, macrófagos, um frouxo ar-            nação das células, da hidroxilação da prolina e lisina,
ranjo de colágeno, fibronectina e ácido hialurônico. Esta         reação essa mediada por uma enzima produzida pelo
fase inicia-se por volta do 3º dia após a lesão, perdura          próprio fibroblasto, em presença de co-enzimas (vita-
por 2 a 3 semanas e é o marco inicial da formação da              minas A, C e E), ferro, testosterona, tiroxina, proteí-
cicatriz.                                                         nas e zinco.
                                                                          O colágeno é o material responsável pela sus-
2.1- Neo-angiogênese                                              tentação e pela força tensil da cicatriz, produzido e
       A neo-angiogênese é o processo de formação                 degradado continuamente pelos fibroblastos. Inicial-
de novos vasos sangüíneos, necessário para manter o               mente, a síntese de colágeno novo é a principal res-
ambiente de cicatrização da ferida. Em todas as feri-             ponsável pela força da cicatriz, sendo substituída ao
das, o suprimento sanguíneo dos fibroblastos respon-              longo de semanas, pela formação de ligações cruza-
sáveis pela síntese de colágeno provém de um intenso              das entre os feixes de colágeno. A taxa de síntese

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Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64.                                             Biologia da ferida e cicatrização
http://www.fmrp.usp.br/revista                                                      Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T




declina por volta de quatro semanas e se equilibra com    palmente nas abertas. Porém, se ocorre de forma exa-
a taxa de destruição e, então, se inicia a fase de        gerada e desordenada causa defeitos cicatriciais im-
maturação do colágeno que continua por meses, ou          portantes por causa da diferenciação dos fibroblas-
mesmo anos.                                               tos em miofibroblastos, estimulados por fatores de
                                                          crescimento.
2.3- Epitelização
                                                          3.2- Remodelação
       Nas primeiras 24 a 36 horas após a lesão, fato-
res de crescimento epidérmicos estimulam a prolife-              A maturação da ferida tem início durante a 3ª
ração de células do epitélio. Na pele os ceratinócitos    semana e caracteriza-se por um aumento da resistên-
são capazes de sintetizar diversas citocinas que esti-    cia, sem aumento na quantidade de colágeno. Há um
mulam a cicatrização das feridas cutâneas.                equilíbrio de produção e destruição das fibras de
       As células epiteliais migram, a partir das bor-    colágeno neste período, por ação da colagenase. O
das, sobre a área cruenta, da ferida e dos folículos      desequilíbrio desta relação favorece o aparecimento
pilosos próximos, induzindo a contração e a neo-          de cicatrizes hipertróficas e quelóides. O aumento da
epitelização da ferida e, assim, reduzindo a sua super-   resistência deve-se à remodelagem das fibras de
fície. Os ceratinócitos, localizados na camada basal      colágeno, com aumento das ligações transversas e
da epiderme residual ou na profundidade de apêndi-        melhor alinhamento do colágeno, ao longo das linhas
ces dérmicos, revestidos de epitélio, migram para         de tensão. A fase de maturação dura toda a vida da
recobrir a ferida. As células epiteliais movem-se, aos    ferida, embora o aumento da força tênsil se estabilize,
saltos e desordenadamente, até as bordas, aproximan-      após um ano, em 70 a 80% da pele intacta. A inclina-
do-as. A epitelização envolve uma seqüência de alte-      ção da curva de maturação é mais aguda durante as
rações nos ceratinócitos da ferida: separação, migra-     primeiras seis a oito semanas.
ção, proliferação, diferenciação e estratificação.
                                                          3.3- Tipos de cicatrização de feridas
2.4- Matriz Extracelular
                                                                 Existem três formas pelas quais uma ferida
       A matriz extracelular, também conhecida como       pode cicatrizar, que dependem da quantidade de teci-
substância fundamental, substitui rapidamente o coá-      do lesado ou danificado e da presença ou não de in-
gulo depositado no leito da ferida logo após o trauma.    fecção: primeira intenção, segunda intenção e tercei-
A principal função da matriz é a restauração da conti-    ra intenção (fechamento primário retardado).
nuidade do tecido lesado, funcionando como um arca-
bouço para a migração celular. Os fibroblastos são as     • Primeira intenção: é o tipo de cicatrização que ocorre
maiores fontes de proteínas da matriz, onde irão orde-      quando as bordas são apostas ou aproximadas, ha-
nar os feixes de colágeno produzidos, também, pelos         vendo perda mínima de tecido, ausência de infec-
próprios fibroblastos, além de ser arcabouço para os        ção e mínimo edema. A formação de tecido de gra-
vasos neoformados. É constituída de várias proteínas,       nulação não é visível. Exemplo: ferimento suturado
como fibrina e colágeno, proteoglicanos (ácido hia-         cirurgicamente (Figura 2).
lurônico e condroítina), glicoproteínas (fibronectina e
                                                          • Segunda intenção: neste tipo de cicatrização ocorre
laminina), água e eletrólitos.
                                                            perda excessiva de tecido com a presença ou não
                                                            de infecção. A aproximação primária das bordas
3- FASE DE MATURAÇÃO                                        não é possível. As feridas são deixadas abertas e
                                                            se fecharão por meio de contração e epitelização.
3.1- Contração da ferida
                                                          • Terceira intenção: designa a aproximação das mar-
      A ferida sofre um processo de contração, por          gens da ferida (pele e subcutâneo) após o trata-
meio de um movimento centrípeto de toda a espessu-          mento aberto inicial. Isto ocorre principalmente quan-
ra da pele circundante, reduzindo a quantidade e o          do há presença de infecção na ferida, que deve ser
tamanho da cicatriz desordenada. Este processo é um         tratada primeiramente, para então ser suturada pos-
importante aliado da cicatrização das feridas, princi-      teriormente.

                                                                                                                      261
Biologia da ferida e cicatrização                                                       Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64.
Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T                                                                     http://www.fmrp.usp.br/revista




                                                                                            • Limpa-contaminadas: são
                                                                                              os ferimentos que apresentam
                                                                                              contaminação grosseira, em
                                                                                              acidente doméstico por exem-
                                                                                              plo ou em situações cirúrgicas
                                                                                              em que houve contato com os
                                                                                              tratos respiratório, digestivo,
                                                                                              urinário e genital, porém em
                                                                                              situações controladas. O risco
                                                                                              de infecção é cerca de 10%.
                                                                                            • Contaminadas: são consi-
                                                                                              deradas contaminadas as fe-
                                                                                              ridas acidentais, com mais de
                                                                                              seis horas de trauma ou que
                                                                                              tiveram contato com terra e
   Figura 2: Representação esquemática da cicatrização por primiera e por segunda intenção.   fezes, por exemplo. No ambi-
                                                                                              ente cirúrgico são considera-
                                                                                              das contaminadas as em que
3.4- Classificação das feridas                                           a técnica asséptica não foi devidamente respeita-
                                                                         da. Os níveis de infecção podem atingir 20 a 30%
       As feridas podem ser classificadas de três for-                   (cirurgia dos cólons).
mas diferentes de acordo com o agente causal, o grau                 • Infectadas: são aquelas que apresentam sinais ní-
de contaminação e o comprometimento tecidual.                           tidos de infecção.
3.4.1- Agente causal                                            3.4.3- Comprometimento tecidual
• Incisas ou cirúrgicas: são produzidas por um ins-             • Estágio I: comprometimento da epiderme apenas,
  trumento cortante. As feridas limpas são geralmente             sem perda tecidual.
  fechadas por suturas. Agentes: faca, bisturi, lâmi-           • Estágio II: ocorre perda tecidual e comprometi-
  na, etc.                                                        mento da epiderme, derme ou ambas.
• Contusas: são produzidas por objeto rombo e ca-               • Estágio III: há comprometimento total da pele e
  racterizadas por traumatismo das partes moles, he-              necrose de tecido subcutâneo, entretanto não atin-
  morragia e edema.                                               ge a fáscia muscular.
• Lacerantes: São ferimentos com margens irregu-                • Estágio IV: há extensa destruição de tecido, che-
  lares e com mais de um ângulo. O mecanismo da                   gando a ocorrer lesão óssea ou muscular ou necrose
  lesão é por tração: rasgo ou arrancamento tecidual.             tissular.
  Um exemplo clássico é a mordedura de cão.
• Perfurantes: são caracterizadas por pequenas                  3.5- Fatores que interferem na cicatrização
  aberturas na pele. Há um predomínio da profundi-                     Vários fatores locais e gerais podem interferir
  dade sobre o comprimento. Exemplos: bala ou pon-              em maior ou menor grau no processo de cicatrização,
  ta de faca.                                                   entretanto em muitos deles o cirurgião pode interferir
                                                                para otimizar o resultado final.
3.4.2- Grau de contaminação
       As feridas podem ser limpas, limpa-contamina-            3.5.1- Fatores locais
das, contaminadas e infectadas.                                        Os fatores locais são relacionados às condições
                                                                da ferida e como ela é tratada cirurgicamente (técni-
• Limpas: são as que não apresentam sinais de in-               ca cirúrgica).
  fecção e em que não são atingidos os tratos respi-
  ratório, digestivo, genital ou urinário. Probabilidade        • Vascularização das bordas da ferida: A boa irri-
  de infecção é baixa, em torno de 1 a 5 %. Exemplo:              gação das bordas da ferida é essencial para a cica-
  feridas produzidas em ambiente cirúrgico.                       trização, pois permite aporte adequado de nutientes

262
Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64.                                            Biologia da ferida e cicatrização
http://www.fmrp.usp.br/revista                                                     Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T




  e oxigênio. Entretanto, a boa vascularização depende      tese de colágeno. A vitamina A contrabalança os
  das condições gerais e co-morbidades do paciente,         efeitos dos corticóides que inibem a contração da
  bem como do tratamento dado a esta ferida.                ferida e a proliferação de fibroblastos. A vitamina
• Grau de contaminação da ferida: uma incisão cirúr-        B aumenta o número de fibroblastos. A vitamina D
  gica realizada com boa técnica e em condições de          facilita a absorção de cálcio e a E é um co-fator na
  assepsia tem melhor condição de cicatrização do           síntese do colágeno, melhora a resistência da cica-
  que um ferimento traumático ocorrido fora do am-          triz e destrói radicais livres. O zinco é um co-fator
  biente hospitalar. O cuidado mais elementar e efici-      de mais de 200 metaloenzimas envolvidas no cres-
  ente é a limpeza mecânica, remoção de corpos              cimento celular e na síntese protéica, sendo, por-
  estranhos, detritos e tecidos desvitalizados.             tanto, indispensável para a reparação dos tecidos.
• Tratamento das feridas: assepsia e antissepsia, téc-   • Diabetes: a diabetes melito prejudica a cicatriza-
  nica cirúrgica correta (diérese, hemostasia e sínte-      ção de ferida em todos os estágios do processo. O
  se), escolha de fio cirúrgico (que cause mínima re-       paciente diabético com neuropatia associada e
  ação tecidual), cuidados pós-operatórios adequados        aterosclerose é propenso à isquemia tecidual, ao
  (curativos e retirada dos pontos), são alguns dos         traumatismo repetitivo e à infecção.
  aspectos importantes a serem observados em rela-        • Medicamentos: Os corticosteróides, os quimiote-
  ção ao tratamento das feridas.                            rápicos e os radioterápicos podem reduzir a cicatri-
                                                            zação de feridas, pois interferem na resposta imu-
3.5.2- Fatores gerais                                       nológica normal à lesão. Eles interferem na síntese
                                                            protéica ou divisão celular agindo diretamente na
       Os fatores gerais estão relacionados às condi-       produção de colágeno. Além do mais, aumentam a
ções clínicas do paciente, e estas podem alterar a ca-      atividade da colagenase, tornando a cicatriz mais
pacidade do paciente de cicatrizar com eficiência.          frágil.
• Infecção: é provavelmente a causa mais comum           • Estado imunológico: nas doenças imunossupres-
  de atraso na cicatrização. Se a contagem bacteriana       soras, a fase inflamatória está comprometida pela
  na ferida exceder 105 microorganismos/g de tecido         redução de leucócitos, com conseqüente retardo da
  ou se qualquer estreptococo B-hemolítico estiver          fagocitose e da lise de restos celulares. Pela ausên-
  presente, a ferida não cicatriza por qualquer meio,       cia de monócitos a formação de fibroblastos é defi-
  como suturas primárias, enxertos ou retalhos.             citária.
• Idade: quanto mais idoso o paciente menos flexí-
  veis são os tecidos. Há uma diminuição progressiva           Além destes fatores acima mencionados, lon-
  de colágeno.                                           gos períodos de internação hospitalar e tempo cirúrgi-
• Hiperatividade do paciente: a hiperatividade di-       co elevado são também aspectos complicadores im-
  ficulta a aproximação das bordas da ferida. O re-      portantes para o processo de cicatrização.
  pouso favorece a cicatrizção.
• Oxigenação e perfusão dos tecidos: doenças que         4- RETIRADA DOS PONTOS
  alteram o fluxo sangüíneo normal podem afetar a
  distribuição dos nutrientes das células, assim como           De modo geral a retirada dos pontos deve ser
  a dos componentes do sistema imune do corpo. Es-       feita entre o 6º e 7º dias de pós-operatório, para sutu-
  sas condições afetam a capacidade do organismo         ras simples com pontos separados. Nas incisões que
  de transportar células de defesa e antibióticos, o     seguem as linhas de força da pele e os pontos foram
  que dificulta o processo de cicatrização. O fumo       dados sem tensão, os pontos podem ser retirados mais
  reduz a hemoglobina funcional e leva à disfunção       precocemente, em torno do 4º dia de pós-operatório.
  pulmonar, o que reduz o aporte de oxigênio para as     Em suturas intradérmicas contínuas com fios não ab-
  células e dificulta a cura da ferida.                  sorvíveis, os pontos devem permanecer por até 12 dias.
• Nutrição: uma deficiência nutricional pode dificul-           Em condições adversas (infecção, desnutri-
  tar a cicatrização, pois deprime o sistema imune e     ção, neoplasias, diabetes, déficits de vitaminas e oli-
  diminui a qualidade e a síntese de tecido de repara-   goelementos, etc) os pontos devem ser removidos
  ção. As carências de proteínas e de vitamina C são     mais tardiamente, isto é, entre o 10º e 12º dias de pós-
  as mais importantes, pois afetam diretamente a sín-    operatório.

                                                                                                                     263
Biologia da ferida e cicatrização                                                              Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64.
Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T                                                                            http://www.fmrp.usp.br/revista




              Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T. Wound biology and healing. Medicina (Ribeirão Preto) 2008;
                  41 (3): 259-64.

                  ABSTRACT: A profound knowledge about the complex physiological processes underlying the
              cicatrization of wounds is crucial for any surgeon. Here, the following stages of wound regeneration
              are emphasized: inflammation, proliferation, and maturation.

                 keywords: Wound Healing. Wounds And Injuries/Surgery. Surgical Wound. Biology, Wound.
              Biology/Wounds and Injuries.




BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA                                             4 - Araujo ID. Fisiologia da cicatrização. In: Petroian A. Lições de
                                                                         Cirurgia, 1ª ed., ed interlivros, p. 101-14, 1997.
1 - Fischer JE. Mastery of surgery. Willianas & Willians.
    Philadelphia, 5 st. Ed., 2007.                                               Recebido para publicação em 20/08/2008
2 - Brunicard FC Schwartz’s principles of surgery. McGrawn
                                                                                Aprovado para publicação em 30/09/2008
    USA, 8 th. ed. 2007.
3 - Mimi Leong MD, Linda G, Philips MD. Cicatrização. In: Sabiston
    - tratado de cirurgia - Courtney M. Townsend Jr MD et al. 17a.
    ed. Elsevier, p. 183-207, 2005.




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Biologia da ferida e cicatrização

  • 1. Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: FUNDAMENTOS EM CLÍNICA CIRÚRGICA - 1ª Parte 2008; 41 (3): 259-64 Capítulo II BIOLOGIA DA FERIDA E CICATRIZAÇÃO WOUND BIOLOGY AND HEALING Maria de Fátima G S Tazima1, Yvone Avalloni de Morais Villela de Andrade Vicente1, Takachi Moriya2 Docente da Divisão de Cirurgia Pediátrica, 2Docente da Divisão de Cirurgia Vascular e Endovascular. Departamento de Cirurgia e 1 Anatomia da FMRP-USP. Correspondência: Maria de Fátima G S Tazima. Divisão de Cirurgia Pediátrica, Departamento de Cirurgia e Anatomia da FMRP-USP. Av. Bandeirantes, 3900. CEP: 14048-900 - Ribeirão Preto /SP. (email: mftazima@terra.com.br) Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T. Biologia da ferida e cicatrização. Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64. RESUMO: O conhecimento dos complexos eventos fisiológicos da cicatrização da ferida é de grande importância para o cirurgião. A reparação das feridas é apresentada em suas etapas inflamatória, proliferativa e de maturação. Palavras-chaves: Cicatrização de Feridas. Ferimentos e Lesões/cirurgia. Ferida Operatória. Biologia da Ferida. Biologia/Ferimentos e Lesões. O reparo de feridas, uma solução de continui- selando as bordas da ferida, ainda sem valor mecâni- dade dos tecidos, decorrente da lesão por agentes me- co, mas facilitando as trocas. O coágulo formado es- cânicos, térmicos, químicos e bacterianos, é o esforço tabelece uma barreira impermeabilizante que protege dos tecidos para restaurar a função e estruturas normais. da contaminação. Com a lesão tecidual, há liberação O conhecimento dos complexos eventos fisio- local de histamina, serotonina e bradicinina que cau- lógicos da cicatrização de feridas é de grande impor- sam vasodilatação e aumento de fluxo sanguíneo no tância para o cirurgião. local e, conseqüentemente, sinais inflamatórios como A regeneração é a restauração perfeita da ar- calor e rubor. A permeabilidade capilar aumenta cau- quitetura do tecido pré-existente, na ausência de for- sando extravasamento de líquidos para o espaço ex- mação de cicatriz, e embora seja o tipo ideal no uni- tracelular, e conseqüente edema. verso de cicatrização de feridas, ela só é observada A resposta inflamatória, que perdura cerca de no desenvolvimento embrionário, organismos inferio- três dias,e na qual ocorre a migração seqüencial das res ou em determinados tecidos como ossos e fígado. células para a ferida é facilitada por mediadores bio- Na cicatrização de feridas a acurácia da regeneração químicos que aumentam a permeabilidade vascular, fa- é trocada pela velocidade de reparo. vorecendo a exsudação plasmática e a passagem de A reparação de feridas passa pelas seguintes elementos celulares para a área da ferida. Os media- etapas básicas: fase inflamatória, fase proliferativa (que dores bioquímicos de ação curta são a histamina e sero- incluem reepitelização, síntese da matriz e neovascu- tonina e as mais duradouras são a leucotaxina, bradici- larização) e fase de maturação. nina e prostaglandina. A prostaglandina é um dos me- diadores mais importantes no processo de cicatriza- 1- FASE INFLAMATÓRIA ção, pois além de favorecer a exsudação vascular, es- timula a mitose celular e a quimiotaxia de leucócitos. Inicia-se no exato momento da lesão. O san- Os primeiros elementos celulares a alcançar o gramento traz consigo plaquetas, hemácias e fibrina, local da ferida são os neutrófilos e os monócitos, com 259
  • 2. Biologia da ferida e cicatrização Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64. Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T http://www.fmrp.usp.br/revista a função de desbridar as superfícies da ferida e crescimento de novos vasos, caracterizando a cicatri- fagocitar as partículas antigênicas e corpos estranhos. zação por segunda intenção e o tecido de granulação. O pico de atividade dos polimorfonucleares ocorre nas Os novos vasos formam-se a partir de brotos primeiras 24-48 horas após o trauma, seguindo-se de endoteliais sólidos, que migram no sentido da periferia um maior aporte de macrófagos durante os dois a três para o centro da ferida, sobre a malha de fibrina de- dias seguintes. O macrófago, também ativa os ele- positada no leito da ferida. A bradicinina, a prosta- mentos celulares das fases subseqüentes da cicatri- glandina e outros mediadores químicos oriundos dos zação tais como fibroblastos e células endoteliais (Fi- macrófagos, ativados, estimulam a migração e a mitose gura 1). das células endoteliais. A neo-angiogênese é respon- sável não apenas pela nutrição do tecido, com uma demanda meta- bólica maior, como também pelo aumento do aporte de células, como macrófagos e fibroblastos, para o local da ferida. 2.2- Fibroplasia Após o trauma, células mesenquimais normalmente qui- escentes e esparsas no tecido nor- mal, são transformadas em fibro- blastos e atraídas para o local in- flamatório, onde se dividem e pro- duzem os componentes da matriz extracelular. O fibroblasto só apa- rece no sítio da lesão a partir do 3º dia, quando os leucócitos poli- Figura 1: Evolução do número relativo de células sangüineas e fibroblastos nas fases morfonucleares já fizeram seu seqüenciais do processo de cicatrização. papel higienizador da área trauma- tizada. A função primordial dos fibroblastos é sintetizar colágeno, ainda na fase celular da inflamação. 2- FASE PROLIFERATIVA O colágeno é uma proteína de alto peso mole- A fase proliferativa é composta de três eventos cular, composta de glicina, prolina, hidroxiprolina, lisina importantes que sucedem o período de maior ativida- e hidroxilisina, que se organiza em cadeias longas de de da fase inflamatória: neo-angiogênese, fibroplasia três feixes polipeptídicos em forma de hélice, respon- e epitelização. Este fase caracteriza-se pela forma- sáveis pela força da cicatriz. ção de tecido de granulação, que é constituído por um A síntese de colágeno é dependente da oxige- leito capilar, fibroblastos, macrófagos, um frouxo ar- nação das células, da hidroxilação da prolina e lisina, ranjo de colágeno, fibronectina e ácido hialurônico. Esta reação essa mediada por uma enzima produzida pelo fase inicia-se por volta do 3º dia após a lesão, perdura próprio fibroblasto, em presença de co-enzimas (vita- por 2 a 3 semanas e é o marco inicial da formação da minas A, C e E), ferro, testosterona, tiroxina, proteí- cicatriz. nas e zinco. O colágeno é o material responsável pela sus- 2.1- Neo-angiogênese tentação e pela força tensil da cicatriz, produzido e A neo-angiogênese é o processo de formação degradado continuamente pelos fibroblastos. Inicial- de novos vasos sangüíneos, necessário para manter o mente, a síntese de colágeno novo é a principal res- ambiente de cicatrização da ferida. Em todas as feri- ponsável pela força da cicatriz, sendo substituída ao das, o suprimento sanguíneo dos fibroblastos respon- longo de semanas, pela formação de ligações cruza- sáveis pela síntese de colágeno provém de um intenso das entre os feixes de colágeno. A taxa de síntese 260
  • 3. Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64. Biologia da ferida e cicatrização http://www.fmrp.usp.br/revista Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T declina por volta de quatro semanas e se equilibra com palmente nas abertas. Porém, se ocorre de forma exa- a taxa de destruição e, então, se inicia a fase de gerada e desordenada causa defeitos cicatriciais im- maturação do colágeno que continua por meses, ou portantes por causa da diferenciação dos fibroblas- mesmo anos. tos em miofibroblastos, estimulados por fatores de crescimento. 2.3- Epitelização 3.2- Remodelação Nas primeiras 24 a 36 horas após a lesão, fato- res de crescimento epidérmicos estimulam a prolife- A maturação da ferida tem início durante a 3ª ração de células do epitélio. Na pele os ceratinócitos semana e caracteriza-se por um aumento da resistên- são capazes de sintetizar diversas citocinas que esti- cia, sem aumento na quantidade de colágeno. Há um mulam a cicatrização das feridas cutâneas. equilíbrio de produção e destruição das fibras de As células epiteliais migram, a partir das bor- colágeno neste período, por ação da colagenase. O das, sobre a área cruenta, da ferida e dos folículos desequilíbrio desta relação favorece o aparecimento pilosos próximos, induzindo a contração e a neo- de cicatrizes hipertróficas e quelóides. O aumento da epitelização da ferida e, assim, reduzindo a sua super- resistência deve-se à remodelagem das fibras de fície. Os ceratinócitos, localizados na camada basal colágeno, com aumento das ligações transversas e da epiderme residual ou na profundidade de apêndi- melhor alinhamento do colágeno, ao longo das linhas ces dérmicos, revestidos de epitélio, migram para de tensão. A fase de maturação dura toda a vida da recobrir a ferida. As células epiteliais movem-se, aos ferida, embora o aumento da força tênsil se estabilize, saltos e desordenadamente, até as bordas, aproximan- após um ano, em 70 a 80% da pele intacta. A inclina- do-as. A epitelização envolve uma seqüência de alte- ção da curva de maturação é mais aguda durante as rações nos ceratinócitos da ferida: separação, migra- primeiras seis a oito semanas. ção, proliferação, diferenciação e estratificação. 3.3- Tipos de cicatrização de feridas 2.4- Matriz Extracelular Existem três formas pelas quais uma ferida A matriz extracelular, também conhecida como pode cicatrizar, que dependem da quantidade de teci- substância fundamental, substitui rapidamente o coá- do lesado ou danificado e da presença ou não de in- gulo depositado no leito da ferida logo após o trauma. fecção: primeira intenção, segunda intenção e tercei- A principal função da matriz é a restauração da conti- ra intenção (fechamento primário retardado). nuidade do tecido lesado, funcionando como um arca- bouço para a migração celular. Os fibroblastos são as • Primeira intenção: é o tipo de cicatrização que ocorre maiores fontes de proteínas da matriz, onde irão orde- quando as bordas são apostas ou aproximadas, ha- nar os feixes de colágeno produzidos, também, pelos vendo perda mínima de tecido, ausência de infec- próprios fibroblastos, além de ser arcabouço para os ção e mínimo edema. A formação de tecido de gra- vasos neoformados. É constituída de várias proteínas, nulação não é visível. Exemplo: ferimento suturado como fibrina e colágeno, proteoglicanos (ácido hia- cirurgicamente (Figura 2). lurônico e condroítina), glicoproteínas (fibronectina e • Segunda intenção: neste tipo de cicatrização ocorre laminina), água e eletrólitos. perda excessiva de tecido com a presença ou não de infecção. A aproximação primária das bordas 3- FASE DE MATURAÇÃO não é possível. As feridas são deixadas abertas e se fecharão por meio de contração e epitelização. 3.1- Contração da ferida • Terceira intenção: designa a aproximação das mar- A ferida sofre um processo de contração, por gens da ferida (pele e subcutâneo) após o trata- meio de um movimento centrípeto de toda a espessu- mento aberto inicial. Isto ocorre principalmente quan- ra da pele circundante, reduzindo a quantidade e o do há presença de infecção na ferida, que deve ser tamanho da cicatriz desordenada. Este processo é um tratada primeiramente, para então ser suturada pos- importante aliado da cicatrização das feridas, princi- teriormente. 261
  • 4. Biologia da ferida e cicatrização Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64. Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T http://www.fmrp.usp.br/revista • Limpa-contaminadas: são os ferimentos que apresentam contaminação grosseira, em acidente doméstico por exem- plo ou em situações cirúrgicas em que houve contato com os tratos respiratório, digestivo, urinário e genital, porém em situações controladas. O risco de infecção é cerca de 10%. • Contaminadas: são consi- deradas contaminadas as fe- ridas acidentais, com mais de seis horas de trauma ou que tiveram contato com terra e Figura 2: Representação esquemática da cicatrização por primiera e por segunda intenção. fezes, por exemplo. No ambi- ente cirúrgico são considera- das contaminadas as em que 3.4- Classificação das feridas a técnica asséptica não foi devidamente respeita- da. Os níveis de infecção podem atingir 20 a 30% As feridas podem ser classificadas de três for- (cirurgia dos cólons). mas diferentes de acordo com o agente causal, o grau • Infectadas: são aquelas que apresentam sinais ní- de contaminação e o comprometimento tecidual. tidos de infecção. 3.4.1- Agente causal 3.4.3- Comprometimento tecidual • Incisas ou cirúrgicas: são produzidas por um ins- • Estágio I: comprometimento da epiderme apenas, trumento cortante. As feridas limpas são geralmente sem perda tecidual. fechadas por suturas. Agentes: faca, bisturi, lâmi- • Estágio II: ocorre perda tecidual e comprometi- na, etc. mento da epiderme, derme ou ambas. • Contusas: são produzidas por objeto rombo e ca- • Estágio III: há comprometimento total da pele e racterizadas por traumatismo das partes moles, he- necrose de tecido subcutâneo, entretanto não atin- morragia e edema. ge a fáscia muscular. • Lacerantes: São ferimentos com margens irregu- • Estágio IV: há extensa destruição de tecido, che- lares e com mais de um ângulo. O mecanismo da gando a ocorrer lesão óssea ou muscular ou necrose lesão é por tração: rasgo ou arrancamento tecidual. tissular. Um exemplo clássico é a mordedura de cão. • Perfurantes: são caracterizadas por pequenas 3.5- Fatores que interferem na cicatrização aberturas na pele. Há um predomínio da profundi- Vários fatores locais e gerais podem interferir dade sobre o comprimento. Exemplos: bala ou pon- em maior ou menor grau no processo de cicatrização, ta de faca. entretanto em muitos deles o cirurgião pode interferir para otimizar o resultado final. 3.4.2- Grau de contaminação As feridas podem ser limpas, limpa-contamina- 3.5.1- Fatores locais das, contaminadas e infectadas. Os fatores locais são relacionados às condições da ferida e como ela é tratada cirurgicamente (técni- • Limpas: são as que não apresentam sinais de in- ca cirúrgica). fecção e em que não são atingidos os tratos respi- ratório, digestivo, genital ou urinário. Probabilidade • Vascularização das bordas da ferida: A boa irri- de infecção é baixa, em torno de 1 a 5 %. Exemplo: gação das bordas da ferida é essencial para a cica- feridas produzidas em ambiente cirúrgico. trização, pois permite aporte adequado de nutientes 262
  • 5. Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64. Biologia da ferida e cicatrização http://www.fmrp.usp.br/revista Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T e oxigênio. Entretanto, a boa vascularização depende tese de colágeno. A vitamina A contrabalança os das condições gerais e co-morbidades do paciente, efeitos dos corticóides que inibem a contração da bem como do tratamento dado a esta ferida. ferida e a proliferação de fibroblastos. A vitamina • Grau de contaminação da ferida: uma incisão cirúr- B aumenta o número de fibroblastos. A vitamina D gica realizada com boa técnica e em condições de facilita a absorção de cálcio e a E é um co-fator na assepsia tem melhor condição de cicatrização do síntese do colágeno, melhora a resistência da cica- que um ferimento traumático ocorrido fora do am- triz e destrói radicais livres. O zinco é um co-fator biente hospitalar. O cuidado mais elementar e efici- de mais de 200 metaloenzimas envolvidas no cres- ente é a limpeza mecânica, remoção de corpos cimento celular e na síntese protéica, sendo, por- estranhos, detritos e tecidos desvitalizados. tanto, indispensável para a reparação dos tecidos. • Tratamento das feridas: assepsia e antissepsia, téc- • Diabetes: a diabetes melito prejudica a cicatriza- nica cirúrgica correta (diérese, hemostasia e sínte- ção de ferida em todos os estágios do processo. O se), escolha de fio cirúrgico (que cause mínima re- paciente diabético com neuropatia associada e ação tecidual), cuidados pós-operatórios adequados aterosclerose é propenso à isquemia tecidual, ao (curativos e retirada dos pontos), são alguns dos traumatismo repetitivo e à infecção. aspectos importantes a serem observados em rela- • Medicamentos: Os corticosteróides, os quimiote- ção ao tratamento das feridas. rápicos e os radioterápicos podem reduzir a cicatri- zação de feridas, pois interferem na resposta imu- 3.5.2- Fatores gerais nológica normal à lesão. Eles interferem na síntese protéica ou divisão celular agindo diretamente na Os fatores gerais estão relacionados às condi- produção de colágeno. Além do mais, aumentam a ções clínicas do paciente, e estas podem alterar a ca- atividade da colagenase, tornando a cicatriz mais pacidade do paciente de cicatrizar com eficiência. frágil. • Infecção: é provavelmente a causa mais comum • Estado imunológico: nas doenças imunossupres- de atraso na cicatrização. Se a contagem bacteriana soras, a fase inflamatória está comprometida pela na ferida exceder 105 microorganismos/g de tecido redução de leucócitos, com conseqüente retardo da ou se qualquer estreptococo B-hemolítico estiver fagocitose e da lise de restos celulares. Pela ausên- presente, a ferida não cicatriza por qualquer meio, cia de monócitos a formação de fibroblastos é defi- como suturas primárias, enxertos ou retalhos. citária. • Idade: quanto mais idoso o paciente menos flexí- veis são os tecidos. Há uma diminuição progressiva Além destes fatores acima mencionados, lon- de colágeno. gos períodos de internação hospitalar e tempo cirúrgi- • Hiperatividade do paciente: a hiperatividade di- co elevado são também aspectos complicadores im- ficulta a aproximação das bordas da ferida. O re- portantes para o processo de cicatrização. pouso favorece a cicatrizção. • Oxigenação e perfusão dos tecidos: doenças que 4- RETIRADA DOS PONTOS alteram o fluxo sangüíneo normal podem afetar a distribuição dos nutrientes das células, assim como De modo geral a retirada dos pontos deve ser a dos componentes do sistema imune do corpo. Es- feita entre o 6º e 7º dias de pós-operatório, para sutu- sas condições afetam a capacidade do organismo ras simples com pontos separados. Nas incisões que de transportar células de defesa e antibióticos, o seguem as linhas de força da pele e os pontos foram que dificulta o processo de cicatrização. O fumo dados sem tensão, os pontos podem ser retirados mais reduz a hemoglobina funcional e leva à disfunção precocemente, em torno do 4º dia de pós-operatório. pulmonar, o que reduz o aporte de oxigênio para as Em suturas intradérmicas contínuas com fios não ab- células e dificulta a cura da ferida. sorvíveis, os pontos devem permanecer por até 12 dias. • Nutrição: uma deficiência nutricional pode dificul- Em condições adversas (infecção, desnutri- tar a cicatrização, pois deprime o sistema imune e ção, neoplasias, diabetes, déficits de vitaminas e oli- diminui a qualidade e a síntese de tecido de repara- goelementos, etc) os pontos devem ser removidos ção. As carências de proteínas e de vitamina C são mais tardiamente, isto é, entre o 10º e 12º dias de pós- as mais importantes, pois afetam diretamente a sín- operatório. 263
  • 6. Biologia da ferida e cicatrização Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64. Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T http://www.fmrp.usp.br/revista Tazima MFGS, Vicente YAMVA, Moriya T. Wound biology and healing. Medicina (Ribeirão Preto) 2008; 41 (3): 259-64. ABSTRACT: A profound knowledge about the complex physiological processes underlying the cicatrization of wounds is crucial for any surgeon. Here, the following stages of wound regeneration are emphasized: inflammation, proliferation, and maturation. keywords: Wound Healing. Wounds And Injuries/Surgery. Surgical Wound. Biology, Wound. Biology/Wounds and Injuries. BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA 4 - Araujo ID. Fisiologia da cicatrização. In: Petroian A. Lições de Cirurgia, 1ª ed., ed interlivros, p. 101-14, 1997. 1 - Fischer JE. Mastery of surgery. Willianas & Willians. Philadelphia, 5 st. Ed., 2007. Recebido para publicação em 20/08/2008 2 - Brunicard FC Schwartz’s principles of surgery. McGrawn Aprovado para publicação em 30/09/2008 USA, 8 th. ed. 2007. 3 - Mimi Leong MD, Linda G, Philips MD. Cicatrização. In: Sabiston - tratado de cirurgia - Courtney M. Townsend Jr MD et al. 17a. ed. Elsevier, p. 183-207, 2005. 264