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1
unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara - SP
MARIA TEREZA DE FRANÇA ROLAND
AAA CCCAAASSSAAA::: ESTREITOS LAÇOS ENTRE LITERATURA E
ARQUITETURA
ARARAQUARA – SP.
2008
2
MARIA TEREZA DE FRANÇA ROLAND
AAA CCCAAASSSAAA::: ESTREITOS LAÇOS ENTRE LITERATURA E
ARQUITETURA
Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, área de concentração: Estudos
Literários da Faculdade de Ciências e Letras –
Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do
título de Doutor em Estudos Literários.
Linha de pesquisa: Relações intersemióticas
Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz
Gandini Baldan
ARARAQUARA – SP.
2008
3
MARIA TEREZA DE FRANÇA ROLAND
Roland, Maria Tereza de França
A casa: estreitos laços entre arquitetura e literatura / Maria
Tereza de França Roland. – 2008
f : 159
Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade
Estadual Paulista, Araraquara, Faculdade de Ciências e
Letras, Campus de Araraquara
Orientador: Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan
1. Literatura Brasileira – Séc XX 2. Poesia Brasileira – Séc XX
3. Melo Neto, João Cabral. Quaderna 4. Arquitetura Moderna –
Séc. XX 5. Le Corbusier I. Título
4
AAA CCCAAASSSAAA::: ESTREITOS LAÇOS ENTRE LITERATURA E
ARQUITETURA
Tese de Doutorado, apresentado Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários da Faculdade de
Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como
requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos
Literários.
Linha de pesquisa: Relações intersemióticas
Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz
Gandini Baldan
Data de aprovação: 20/10/2008
MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA:
Presidente e Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan. (Orientadora/ Presidente
da banca)
Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara
Membro Titular: Prof. Dr. Mário Henrique Simão D’Agostino
Universidade de São Paulo (FAUUSP)
Membro Titular: Profª Drª Diana Junkes Martha Toneto
Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP)
Membro Titular: Profª Drª Guacira Marcondes M. Leite
Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara
Membro Titular: Profª Drª Renata M. Facuri C. Marchezan
Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara
Local: Universidade Estadual Paulista
Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
5
À Ude Baldan, orientadora e amiga, fonte inesgotável de entusiasmo e confiança.
Ao Ignácio Assis Silva (in memorian), cuja inevitável presença, apesar da ausência, me estimulou
a querer “encurtar a distância entre significação do espaço e o espaço de significação”.
Aos meus pais, primeiros enformadores do olhar.
6
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer a todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para a realização deste
trabalho, em especial
À Fafibe, pelo apoio financeiro. Aos amigos, professores e funcionários que colaboraram de
diferentes maneiras com este trabalho. Sou grata à Profª Aparecida do Carmo Frigeri Berchior,
Diretora Acadêmica, pela amizade e tolerância e a Paulo Ferrarezi, pelos abraços reconfortantes.
Aos coordenadores dos cursos de Letras e de Comunicação Social do Imes-Fafica, Antônia
Ângulo e Marcelo Lapuente, pelo apoio e compreensão nos momentos finais do trabalho.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, com os quais tive a
oportunidade de conviver e aprender nesses anos em que estive ligada ao programa. Aos amigos
e colegas da Pós-Graduação pela convivência estimulante.
Aos membros do Grupo CASA, pelos encontros que muito contribuíram para as reflexões
necessárias à pesquisa.
Aos funcionários da seção de pós-graduação, em especial, Clara Bombarda, por sua inesgotável
atenção e paciência.
Aos professores Mário Henrique e ao Arnaldo Cortina pelos questionamentos, sugestões e
indicações bibliográficas feitas na qualificação.
Aos amigos: Fernanda Zucarelli, Mariângela Vilkas, Rodrigo Martins, Cristiane Campanelli,
Sandra Oliveira e Siumara Quintella que, consciente ou inconscientemente, partilharam comigo
reflexões fundamentais para a realização e conclusão do trabalho. Nossos “cafés filosóficos”
estão aí, implícitos.
Sou profundamente grata àqueles que acompanharam mais de perto a realização da pesquisa:
À minha orientadora Profª Drª Ude Baldan, pela orientação democrática, pela amizade, confiança
e, sobretudo, pelo entusiasmo contagiante.
À minha irmã Angélica, com quem dividi descobertas e incertezas. Sua participação ativa como
leitora e interlocutora foram fundamentais.
Às Anas (Júlia e Flávia) pela alegria de sentir-me em casa.
7
Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu
aprendi com Le Corbusier. A poesia é composição. Quando digo
composição, quero dizer uma coisa construída, planejada – de fora para
dentro. Ninguém imagina que Picasso fez os quadros que fez porque
estava inspirado. O problema dele era pegar a tela, estudar os espaços,
os volumes. Eu só entendo o poético neste sentido. Vou fazer uma
poesia de tal extensão, com tais e tais elementos, coisas que eu vou
colocando como se fossem tijolos. É por isso que eu posso gastar anos
fazendo um poema: porque existe planejamento. (em entrevista aos
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA: João Cabral de Melo
Neto, 1996, p.21)
8
RESUMO
O presente trabalho parte da hipótese de que as contribuições dos escritos e da arquitetura
de Le Corbusier para a poesia de João Cabral de Melo Neto transcendem as influências ditadas
pelo clima intelectual e artístico da época. É conhecido o interesse do poeta pelas artes plásticas e
a simpatia pela idéia da construção da obra literária, que resultam numa poesia racionalmente
elaborada, calculada e medida. Como no fazer arquitetônico, em que o projeto antecede a
construção, o fazer poético é assumido como um processo de construção material precedido pelo
exercício projetual baseado em premissas rigorosas de lucidez, clareza, contenção e cálculo.
Leitor de Le Corbusier, João Cabral toma do ideário modernista traços formais e
procedimentos de composição que ressaltam o despojamento, a precisão e a geometrização das
formas construídas. Nada é dado pelo acaso; tudo é cálculo, obedecendo a um sistema rigoroso de
construção. “Máquina de habitar” e “máquina de comover” são duas expressões usadas por Le
Corbusier para definir sua concepção da arquitetura, em geral, e da casa, em particular: as
funções prática e mítica do edifício-casa serão satisfeitas pela construção de edifícios projetados
segundo a economia e o cálculo a fim de responder a necessidades humanas de habitação e de
emoção plástica, alcançada com as formas simples da geometria.
No entanto, não foi apenas a lição da economia e do cálculo, aprendida do arquiteto
franco-suíço, que o poeta incorporou à sua obra. “Máquina de habitar” e “máquina de comover”,
o objeto arquitetônico exige e pressupõe a criação de espaço interior que contenha o homem e
com o qual ele possa interagir. E é nesse aspecto – da construção do espaço – que o diálogo de
Cabral-Corbusier se mostra mais provocador: embora verbal e bidimensional, uma vez que as
palavras são dispostas sobre um campo de dimensões planares – altura e largura -, a poesia de
João Cabral é projetada e construída segundo estratégias de estruturação que permitem
reconhecer o efeito de tridimensionalidade necessário para que a espacialidade se atualize. E,
mais ainda, esse efeito de espacialidade arquitetônica convida o sujeito a experimentar esse
espaço penetrando-o e movimentando-se em seu interior.
As relações entre a poesia cabralina e a arquitetura corbusiana serão explicitadas através
da apresentação do projeto estrutural que rege a construção de Quaderna, obra em que o diálogo
arquitetura-poesia parece se realizar de forma mais plena, bem como da leitura de quatro dos
poemas que a integram: “Estudos para uma bailadora andaluza”, “A mulher e a casa”, “O
motorneiro de Caxangá” e “Jogos frutais”. Villa Savoye, de Le Corbusier, apresenta-se como
referência arquitetônica para a leitura intersemiótica.
Palavras – chave: João Cabral de Melo Neto. Le Corbusier. Literatura. Arquitetura. Relações
intersemióticas.
9
RÉSUMÉ
Ce travail part de l’hypothèse que l’apport des écrits et de l’architecture de Le Corbusier à
la poésie de João Cabral de Melo Neto transcende les influences imposées par le climat
intellectuel et artistique de l’époque. L’intérêt du poète pour les arts plastiques et son penchant
pour l’idée de la construction de l’œuvre littéraire sont bien connus. Il en résulte une poésie
rationnellement élaborée, calculée et mesurée. Tout comme le faire architectonique où le projet
précède la construction, le faire poétique est conçu comme un processus de construction
matérielle qui est précédé par l’exercice projetuel, lui-même basé sur des prémisses rigoureuses
de lucidité, de clareté, de contention et de calcul.
En tant que lecteur de Le Corbusier, João Cabral reprend dans les idées modernistes, des
traits formels et des procédés de composition qui font ressortir le dépouillement, la précision et la
géométrisation des formes construites. Rien n’est dû au hasard; tout est calculé et obéit à un
système rigoureux de construction. “Machine à habiter” et “machine à émouvoir” sont deux
expressions de Le Corbusier pour définir sa conception de l’architecture, en général, et de la
maison, en particulier; les fonctions pratique et mythique de l’édifice-maison seront respectées
par la construction d’édifices projetés selon l’économie et le calcul, afin de répondre aux besoins
humains d’habitation et d’émotion plastique, une émotion qui sera suscitée par les formes simples
de la géométrie.
Néanmoins, le poète n’a pas seulement incorporé dans son œuvre la leçon d’économie et
de calcul de l’architecte franco-suisse. “Machine à habiter” et “machine à émouvoir”, l’objet
architectonique exige et présuppose la création de l’espace intérieur qui renferme l’homme et
avec qui ce dernier peut interagir. Et, c’est sous cet aspect – de la construction de l’espace – que
le dialogue Cabral-Corbusier se montre le plus provocateur: bien que verbale et bidimensionnelle,
étant donné que les mots sont disposés sur un champ aux dimensions planes – hauteur et largeur-,
la poésie de João Cabral est projetée et construite selon des stratégies de structuration qui
permettent de retrouver l’effet de tridimensionnalité qui est nécessaire à la création d’une
spatialité. Et mieux encore, cet effet de spatialité architectonique invite le sujet à expérimenter cet
espace en y pénétrant et en s’y déplaçant.
Les relations entre la poésie de Cabral et l’architecture de Le Corbusier seront explicitées
à travers la présentation du projet structurel qui régit la construction de Quaderna, œuvre dans
laquelle le dialogue architecture-poésie semble se faire d’une manière plus complète, et
également à travers la lecture de quatre des poèmes qui la composent: “Estudos para uma
bailadora andaluza”, “A mulher e a casa”, “O motorneiro de Caxangá” et “Jogos frutais”. La
Villa Savoye de Le Corbusier constitue une référence architectonique pour la lecture
intersémiotique.
Mots-clés : João Cabral de Melo Neto. Le Corbusier. Littérature. Architecture. Relations
intersémiotiques.
10
ABSTRACT
This current work starts with the hipothesis that Le Corbusier´s writings and architecture
towards João Cabral de Melo Neto transcend the influences dictated by the intellectual and
artistic ambience of that time. The poet´s interest for plastic arts and likeness toward the idea of
literary work construction is widely known, and it results in a rationally elaborate, calculated and
measured poetry. As in the architectonic making, in which the project precedes the construction,
poetic making is assumed like a process of material construction preceded by the projectual
exercise based on strict lucidity, clarity, contention and calculation premises.
A reader of Le Corbusier, João Cabral takes, from the modernist ideologies, formal
features and composition procedures which emphasize the dispossession, accuracy and
geometrization of the constructed forms. Nothing is given by chance; everything is calculated,
obeying a strict construction system. “Machine à habiter” and “machine à émouvoir” are two
expressions used by Le Corbusier to define his conception on architecture, in general, and on the
house, in particular: the practical and mythical functions of the building/house will be met
through the construction of buildings constructed according the economy and calculations in
order to cater to human needs in living and plastic emotion, which is reached with the simple
geometric forms.
However, it was not only the economy and calculations lessons, learned from the French-
Swiss architect, that the poet embodied into his work. “Machine à habiter” and “machine à
émouvoir”, the architectonic object demands and presupposes the creation of interior space that
contains man and with which he can interact. It is in this aspect – space construction – that the
Cabral-Corbusier dialogue is more provocative: albeit verbal and bidimensional, once words are
displayed on a field of plain dimensions – height and width – João Cabral´s poetry is projected
and constructed according structuration strategies that allows recognizing the effect of
tridimensionality, which is necessary so that spatiality updates itself. And, even more, this
architectonic spatiality invites one to experiment this space by penetrating it and moving it in its
interior.
The relationships between Cabral´s poetry and Corbusian architecture will be disclosed
through the presentation of the structural project that directs the Quaderna construction, a work
in which the architecture-poetry dialogue seems to happen in a more complete form, as well as
the reading of four of the poems that complete it: “Estudos para uma bailadora andaluza”, “A
mulher e a casa”, “O motorneiro de Caxangá” and “Jogos frutais”. Le Corbusier´s Villa Savoye is
an architectonic reference for intersemiotic reading.
Key words: João Cabral de Melo Neto. Le Corbusier. Literature. Architecture. Intersemiotic
relations.
11
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ..............................................................................................p. 12
1. PROJETO E CONSTRUÇÃO DE QUADERNA .............................................................p. 23
2. REFLEXÕES SOBRE A CASA.........................................................................................p. 60
3. VILLA SAVOYE – LE CORBUSIER................................................................................p. 80
4. A ESPACIALIDADE ARQUITETÔNICA DE QUADERNA........................................p. 132
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................p. 153
REFERÊNCIAS.....................................................................................................................p. 156
12
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Arquitetura. Literatura. Um saber e um fazer que pensa, projeta e constrói espaços
habitáveis utilizando-se de barro, pedra, tijolo, concreto etc. Um saber e um fazer que pensa,
projeta e constrói espaços ficcionais utilizando-se de palavras. Um convite a habitar. Um convite
a ler. Habitar e ler são mais do que usar. O uso pode ser reduzido a uma ação mecânica ou
mecanizada pela rotina. Mas habitar e ler implicam relações conscientes, ativas, em que sujeito e
objeto estão interligados pelo habitar e ser habitado, pelo ler e ser lido. Nesse sentido, o ato de ler
pode ser considerado uma forma de habitar. O homem habita o espaço e é habitado por ele; o
leitor habita a obra e é habitado por ela. Muitas vezes, porém, a rotina da vida cotidiana faz com
que nos convertamos em meros usuários dos objetos com os quais nos relacionamos,
arquitetônico ou literário. Muitas vezes, usamos o espaço, lemos um romance ou um poema
mecanicamente, sem que nos conscientizemos da necessidade de habitá-los ou de que eles só se
realizam plenamente na relação ativa com o habitante-leitor. Fora dessa relação, permanecem
apenas como potencialidade. Um poema sem leitor não passa de um punhado de palavras
dispostas no papel, à espera de ser lido; uma casa sem habitante também não passa de espaço
vazio, sem vida, à espera de ser habitado.
Esta pesquisa busca explorar as relações entre arquitetura e literatura e, para isso, algumas
considerações iniciais servirão de balizas a fim de ajudarem a demarcar o território a ser visitado:
1) Arquitetura e literatura são formas distintas de manifestação artística, que unem a
inteligência abstrata e racional à imaginação criadora na produção de obras de valor estético,
autônomas e significativas. Apresentam-se, dessa forma, como construções humanas complexas,
que envolvem conhecimento, invenção, expressão e produção, e revelam não apenas o universo
socio-histórico-cultural em que foram produzidas, mas também um modo particular de encarar
(assumir) e exercer a atividade criadora, a qual podemos chamar de projeto poético ou
simplesmente poética, que rege o fazer artístico. Um exemplo de como podemos ler numa das
falas finais de Raimundo, de Os três mal-amados, de João Cabral de Melo Neto:
RAIMUNDO:
Maria era também a folha em branco, barreira oposta ao rio impreciso que corre
em regiões de alguma parte de nós mesmos. Nessa folha eu construirei um
13
objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me definirá. Penso para
escolher: um poema, um desenho, um cimento armado – presenças precisas e
inalteráveis, opostas a minha fuga. (MELO NETO, 1994, p.63)
Se consideramos o espaço, assim como a literatura, “como uma forma susceptível de
erigir-se numa linguagem espacial que permite ‘falar’ de uma coisa diferente do espaço”
(GREIMAS, 1981, p.116), estaremos tomando-os como linguagem, como significante que tem
como significado o homem, a sociedade e seu contexto histórico e sócio-cultural.
2) Arquitetura e literatura são manifestações artísticas, porém, de naturezas distintas. A
arquitetura se dedica à criação de espaços habitáveis, enquanto a literatura busca criar
verbalmente simulacros da vida do homem no mundo, suas ações, pensamentos, sentimentos,
dilemas existenciais, sociais, políticos, éticos e culturais. A matéria a ser enformada pela
literatura é a palavra; a arquitetura, por sua vez, tem, à sua disposição, uma multiplicidade de
materiais – tijolo, pedra, concreto, madeira etc. - para dar forma ao espaço interior1
, o verdadeiro
objeto da arquitetura.
Podemos estabelecer, assim, uma relação de homologia entre essas duas artes:
arquitetura literatura
Matéria tijolo2
palavra
Substância da
expressão
extensão3
sons
forma significante espaço poesia (texto literário)
Em outras palavras, se a literatura simula a vida do homem no mundo, ela é também
construtora de espaços ficcionais4
. A diferença entre essas duas modalidades de espaço criado
1
Nas palavras de Bruno Zevi, “o caráter essencial da arquitetura – o que faz distingui-la das outras atividades
artísticas – está no fato de agir com um vocabulário tridimensional que inclui o homem. (...) a arquitetura é como
uma grande escultura escavada, em cujo interior o homem penetra e caminha.” (ZEVI, 1978, p.17). Assim, nas
palavras do autor, “o que não tem espaço interior não é arquitetura” (ZEVI, 1978, p.24).
2
Tijolo é apenas um exemplo; a relação permaneceria a mesma se ao invés de tijolo tivéssemos escrito pedra,
concreto ou qualquer outro material utilizado na construção civil.
3
Segundo Greimas, a extensão “pode ser considerada como a substância que, uma vez enformada e transformada
pelo homem, torna-se espaço, isto é, forma” significativa. (Greimas, 1981, p.115)
4
Não apenas de espaços ficcionais, é claro, mas também de personagens, ações, tempos etc. igualmente ficcionais.
14
reside na natureza verbal e “ficcional” do espaço literário e na natureza física e “real”, do
espaço arquitetônico.
É preciso não esquecer, porém, que é a existência do espaço interior habitável que faz da
arquitetura, arquitetura, e não a plasticidade da caixa mural, embora seja ela quem dá forma ao
espaço interior, ao recortá-lo da continuidade do espaço exterior:
a arquitetura não provém de um conjunto de larguras, comprimentos, e alturas
dos elementos construtivos que contêm o espaço, mas precisamente do vácuo,
do espaço contido, do espaço interior em que os homens andam e vivem. (ZEVI,
1978, p.18)
3) Ao contrário das demais artes, que não precisam responder a finalidades objetivas
imediatas (entre as quais se encontra a literatura), a construção de um edifício, qualquer que seja
ele, é dependente da utilidade prática imediata a que se destina. Ariano Suassuna fala em “Artes
úteis” e “Belas Artes”:
certas Artes, como a Arquitetura, são quase que um meio caminho entre as Artes
úteis e as chamadas Belas Artes, pelo que devemos considerar, primeiro, a
necessidade em que se viu o homem, primeiro de construir abrigos ou casas, e
depois de construir casas e templos belos, como impulso artístico humano igual
aos outros. (SUASSUNA, 2005, p. 280-1)
E acrescenta:
Na verdade, a Arquitetura, além de procurar, como as outras Artes, a criação da
Beleza, possui sempre um objetivo de destinação prática e dependente, mais do
que qualquer outra, de condições alheias à vontade livre do artista, pois a obra a
fazer, o prédio a construir, deverá servir de moradia, de templo, de casa
comercial, de fábrica etc., de modo que, nela, até as condições sociais da
comunidade interferem, de maneira mais direta e forte, no trabalho de criação.
(SUASSUNA, 2005, p. 300)
Assim, quando falamos em objeto arquitetônico destinado a servir como habitação
humana, como escola, teatro, templo etc., duas considerações se fazem necessárias: por um lado,
o objeto arquitetônico apresenta-se como algo feito para atender a necessidades específicas,
definidas pelo que, em arquitetura, chama-se programa arquitetônico. Esse programa considera
primeiramente o uso futuro a que o edifício se destinará e as necessidades espaciais decorrentes
15
desse uso (número e tipo de cômodos, fluxo entre os cômodos, acessibilidade, altura do pé
direito, aberturas etc.). A esse uso e às necessidades dele decorrentes, somam-se outras
determinantes que condicionam o projeto, tais como: a topografia do terreno, as construções do
entorno, a orientação solar, as verbas disponíveis, a legislação e código de edificações,
necessidades técnicas (ligadas à estabilidade estrutural, ao conforto ambiental e acústico, por
exemplo). Todas essas exigências de ordem prática balizarão o fazer do arquiteto, desde a
definição do partido arquitetônico a ser adotado (matriz formal que sintetiza intenções estético-
espaciais do arquiteto para cada projeto específico) até a construção do edifício. O que significa
dizer que um objeto arquitetônico particular é definido por uma somatória de elementos que vão
desde a edificação em si (solução espacial, técnica e estética dada à caixa mural) à adequação do
espaço para o seu uso futuro. Em outras palavras, se a solução estético-espacial conferida à caixa
mural é um dos elementos que participam da definição das qualidades espaciais do edifício, o uso
de um edifício construído - uma casa, uma igreja, uma escola, um supermercado etc. – é definido
pela sua função prática.
A propósito da casa, por exemplo, Ludmila Brandão escreve:
Note-se que ‘casa’ não é apenas a edificação, o conjunto arquitetônico, ainda
que possa ser tomado como tal, até porque o que a define, em arquitetura, não é
a configuração espacial, mas o seu uso. Grosso modo, a casa seria resultante de
uma modalidade de uso de um espaço construído, ou seja, quando atendesse às
funções previstas para operar como ‘uma casa’. (BRANDÃO, 2002, p.64)
Uma obra literária – um poema, um romance, um conto etc. -, ao contrário da obra
arquitetônica, não se define pelo seu uso, mas pela sua construção. A respeito da literatura,
reproduzimos abaixo o que dizem Antonio Candido e Leyla Perrone-Moisés:
Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma
construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma
forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos
indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como
incorporação difusa e inconsciente.
Em geral pensamos que a literatura atua sobre nós devido ao terceiro aspecto,
isto é, porque transmite uma espécie de conhecimentos, que resulta em
aprendizado, como se ela fosse um tipo de instrução. Mas não é assim. O efeito
das produções literárias é devido à atuação simultânea dos três aspectos, embora
costumemos pensar menos no primeiro, que corresponde à maneira pela qual a
16
mensagem é construída: mas esta maneira é o aspecto, senão mais importante,
com certeza crucial, porque é o que decide se uma comunicação é literária ou
não. (CANDIDO, 2004, p.176-7).
A literatura é arte (...); como representação, expressão ou documento histórico-
ideológico, a obra literária pode servir a outras disciplinas; mas a crítica literária,
embora necessite de apoio em outras disciplinas, é em primeiro lugar crítica
estética. Mesmo em suas formas mais fantásticas e “artificiais”, a literatura não
se separa do mundo; entretanto, sua relação com ele é indireta, filtrada por
inúmeras mediações. Seus efeitos sobre o real também são indiretos,
incomensuráveis em termos práticos, mas sensíveis em termos de valorização da
práxis. Daí sua “inutilidade” e sua indispensabilidade. (PERRONE-MOISÉS,
2000, p.13)
4) Porém, retomando a afirmação de Ludmila Brandão citada acima, se “‘casa’ não é
apenas edificação”, se é resultante de um tipo específico de uso do espaço construído, se só se
realiza enquanto casa quando atende “às funções previstas para operar como ‘uma casa’”, não é
possível tomá-la apenas como objeto. O caráter instrumental do objeto arquitetônico (seja ele
casa, igreja ou outro qualquer) o situa numa posição intermediária entre a categoria dos objetos e
a dos sujeitos. Atendendo às “funções previstas para operar como uma ‘casa’”, torna-se partícipe
da ação de habitar e permite vê-la tanto como objeto quanto como sujeito que participa da criação
de efeitos de sentido de “estar-em-casa” (ou não). Quando afirmamos que o espaço participa da
criação de efeitos de sentido, estamos dizendo que a ação do sujeito-espaço não é determinista,
não impõe uma maneira ou sensação de habitar. Afirmar isso seria simplificar a relação que
estabelece com o homem que habita o espaço. Pelo contrário, um mesmo espaço arquitetônico
pode criar efeitos de sentido de opressão ou de bem-estar para diferentes habitantes, dependendo
das condições gerais de habitação (físicas, emocionais, históricas, sociais, econômicas etc.).
Assim, o objeto arquitetônico que abrigará uma escola, um templo, uma casa ou outra
função qualquer, somente cumprirá seu destino (somente terá sua função prática realizada) na
relação com os seres humanos que o habitarão. Segundo Bloomer e Moore, a experiência do
edifício se fundamenta na experiência corporal:
Nosotros entendemos que el sentido de tridimensionalidad, que es para nosotros
el más fundamental y memorable, tiene su origen en la experiencia corporal, y
que es este sentido el que puede servirnos de base para la compreensión del
sentimiento espacial que experimentamos en los edificios. (BLOOMER;
MOORE, 1983, p.10)
17
A arquitetura é, portanto, uma arte corporal e, por isso, a observação das relações entre
corpo e espaço, entre sujeito e objeto, são fundamentais para sua compreensão:
Estamos convencidos de que si no entendemos la manera en que los individuos y
las comunidades se vem afectadas por los edificios, en qué modo éstos
proporcionan a las personas sentimientos de gozo, identidad y lugar, nunca
podremos distinguir la arquitectura de otras actividades constructivas cotidianas.
(BLOOMER; MOORE, 1983, p.9)
Assim, podemos dizer que, por incluir o homem, a função prática pressupõe solicitações
que transcendem o pragmatismo de seu destino: para além da simples caixa habitável, o objeto
arquitetônico guarda, inscritas em seus espaços, aberturas e fechamentos, solicitações advindas
de sua função mítica e simbólica. Por exemplo, a função de sensibilização para a intimidade,
aconchego, proteção, conforto, se for uma casa, ou de sensibilização para o encontro com Deus,
para o encontro do humano com o sobre-humano, do natural com o sobrenatural, do profano com
o sagrado, se for uma igreja. Em outras palavras, o espaço da casa ou o da igreja devem receber
sobredeterminações dos componentes figurativos que sirvam de suporte à configuração temática
de estar “em casa” ou “na casa de Deus”. São volumes, formas, cores, perfumes, sons, afetos,
presenças e memória que ganham significado e existência pela relação entre o espaço e seu
habitante.
Ainda nas palavras de Ludmila Brandão,
podemos dizer que, como na arte, a casa é um ser de sensação, um composto de
perceptos e afectos que emerge dessa bricolage material e imaterial, dessa
conjunção de elementos heterogêneos de toda ordem, que a todo momento se
resume num só enunciado: - estou em casa! O expressivo é, por isso, primeiro
em relação ao possessivo. (BRANDÃO, 2002, p.65)
5) Em Introdução à estética, Ariano Suassuna toma a classificação de Dessoir, que faz a
seguinte divisão entre as artes:
Dessoir classifica as Artes em espaciais – ou do repouso – e temporais – ou do
movimento. As Artes espaciais caracterizam-se por elementos justapostos; são as
18
Artes plásticas, Escultura, Pintura e Arquitetura. As Artes temporais
caracterizam-se por elementos sucessivos; têm como meios de realização,
execução e interpretação os sons e os gestos; são a Mímica, a Literatura e a
Música. (SUASSUNA, 2005, p. 287-8)
Discordamos dessa classificação no que diz respeito ao repouso e aos elementos
justapostos atribuído às artes espaciais. Acreditamos haver, também, movimento e sucessividade
nas obras de arte consideradas espaciais, assim como na fruição e contemplação delas,
principalmente no caso da arquitetura. A representação gráfica do espaço própria da linguagem
arquitetônica, que o reduz a duas dimensões (se representado em corte, elevação ou fachada) ou
três dimensões (em perspectiva - altura, profundidade e largura), induz-nos a menosprezar um
dos elementos que participam da constituição da espacialidade: o tempo. Nesse sentido, é
esclarecedora a apresentação que Bruno Zevi faz a respeito da “quarta dimensão” da perspectiva:
A quarta dimensão pareceu corresponder rigorosamente ao requisito das
dimensões da arquitetura. (...) Na arquitetura – conforme se calculou – existe o
mesmo elemento “tempo”; além disso, este elemento é indispensável à atividade
construtora: da primeira cabana, da primeira caverna do homem primitivo à
nossa casa, à igreja, à escola, ao escritório onde trabalhamos, todas as obras de
arquitetura: para serem compreendidas e vividas, requerem o tempo da nossa
caminhada, a quarta dimensão. (ZEVI, 1978, p.22-3)
Zevi acrescenta, porém, que as quatro dimensões (altura, largura, profundidade e tempo)
são suficientes para definir o “volume arquitetônico” ou “caixa mural” que contém o espaço.
Entretanto, para dar conta do espaço em si – protagonista da arquitetura - seria necessário
considerar outras infinitas dimensões, em busca de elementos que pudessem determinar a
experiência espacial (corporal, já vimos) que a obra arquitetônica proporciona.
Nesse sentido, a arquitetura pode se aproximar de um tipo de literatura que não apenas
represente o espaço (narrando ou descrevendo), mas efetivamente “crie” espaços com palavras
(como acreditamos ser o caso da poesia de João Cabral de Melo Neto).
Voltando à divisão estabelecida por Dessoir, também nos parece insuficiente a
classificação da literatura como arte temporal, do movimento, caracterizada por elementos
sucessivos. Ora, a literatura, a partir do momento em que passou a ser escrita ou impressa,
ganhou um componente visual que, em maior ou menor grau, pode ser também significativo. A
19
disposição gráfica das palavras no papel pode chegar a um nível de complexidade tão alto que
torna possível identificar a existência (implícita ou explícita, como no caso da poesia concretista,
por exemplo) de um projeto gráfico que rege a sua visualidade. E, nesse caso, pode ser
considerada muito próxima das artes ditas espaciais ou “do repouso”, como quer Dessoir, ou
simplesmente artes plásticas ou visuais.
6) Vimos que a arquitetura constrói espaços físicos, com contornos materiais precisos,
em que se pode penetrar e habitar, enquanto a literatura escreve e constrói espaços de palavras e
papel, habitados por personagens, e que podem convocar, também, o leitor a penetrar e habitar. E
assim como a experiência do espaço arquitetônico se faz na interação homem-espaço, o fazer
literário pode ir além de “falar” sobre o espaço (narrar, descrever ou poetizar) e efetivamente
criar efeitos de sentido de espacialidade que podem exercer um poder de afecção sobre o leitor,
promovendo uma experiência que é também corporal, estésica (e cinestésica), assim como a
experiência do espaço arquitetônico.
Porém, tanto a obra arquitetônica como a literária são autônomas. Embora haja um
arquiteto responsável pela sua idealização e concepção, ele não pode controlar o uso e o
comportamento das pessoas no espaço construído, assim como o poeta não pode controlar
totalmente as leituras e interpretações de sua obra. Ambos podem, sim, lançar mão de
procedimentos que criem os efeitos de sentido desejados. Dessa forma, se por um lado o espaço
traz em si uma capacidade de afecção, apresentando-se como uma espécie de sujeito que age
sobre as pessoas, por outro lado esse sujeito-espaço também sofre a ação dos seus habitantes. Se
a arquitetura produz sensações, sensibilidades, independente das intenções primeiras do arquiteto,
essas sensações são produzidas na interação com outros elementos espaciais (materiais ou não) e
na interação com os seres humanos. A arquitetura é, portanto, por um lado, produtora de
sensação, de sentido e de subjetividade e, por outro, produto dessas mesmas sensações e
subjetividades.
Assim, nem o espaço arquitetônico pode ser concebido apenas como lugar, sítio ou
receptáculo, cenário neutro, onde se situam pessoas e acontecimentos, nem a literatura pode ser
encarada como uma espécie de documento, de registro em que se pode buscar a memória de
práticas arquitetônicas. O espaço arquitetônico não é um receptáculo neutro, uma vez que os
acontecimentos não se dão num espaço, mas participam da produção desse espaço, interagindo
20
com os elementos propriamente espaciais e com as pessoas. Por sua vez, o fazer literário, ao
escrever o espaço, nem sempre se restringe a descrevê-lo; mais do que isso, é capaz de produzir
textos-espaços que convocam não apenas os olhos e o intelecto na sua fruição, mas, sobretudo,
que mobilizam os sentidos do leitor. Dennis Bertrand fala em uma capacidade de “produzir e
restituir parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais
concretas” (BERTRAND, 2003, p.154).
Tomando, pois, a habitabilidade como um traço comum à arquitetura e à literatura,
elegemos a casa, objeto arquitetônico construído a fim de servir como habitação humana, como
eixo norteador de nossos estudos e assunto para o cotejo intersemiótico. Pensar sobre a casa e
sobre a poesia é também pensar sobre a casa como poesia, revelando uma poética, e a poesia
como casa, que dá lugar a relações íntimas entre sujeitos e entre sujeito e objeto (freqüentemente
tornado sujeito).
As leituras para a seleção do corpus nos levaram ao poema “A mulher e a casa”, de João
Cabral de Melo Neto. Leitor de Le Corbusier, João Cabral toma do ideário modernista traços
formais e procedimentos de composição que ressaltam o despojamento, a precisão e a
geometrização das formas. A afinidade do poeta com o arquiteto franco-suiço definiu as
coordenadas do território onde nos situaríamos: o cotejo entre a arquitetura de Le Corbusier e a
poesia de João Cabral de Melo Neto.
Partimos da hipótese de que as contribuições dos escritos e da arquitetura de Le Corbusier
para a poesia de João Cabral transcendem as influências ditadas pelo clima intelectual e artístico
da época. É conhecido o interesse do poeta pelas artes plásticas e a simpatia pela idéia da
construção da obra literária, que resultam numa poesia racionalmente elaborada, calculada e
medida. Como no fazer arquitetônico, em que o projeto antecede a construção, o fazer poético
cabralino é assumido como um processo de construção material precedido pelo exercício
projetual baseado em premissas rigorosas de lucidez, clareza, contenção e cálculo. Nada é dado
pelo acaso; tudo é cálculo, obedecendo a um sistema rigoroso de construção.
“Máquina de habitar” e “máquina de comover” são duas expressões usadas por Le
Corbusier para definir sua concepção da arquitetura, em geral, e da casa, em particular: as
funções prática e mítica do edifício-casa serão satisfeitas pela construção de edifícios projetados
segundo a economia e o cálculo a fim de responder a necessidades humanas de habitação e de
21
emoção plástica, alcançada com as formas simples da geometria. A referência à obra do arquiteto
é constante, não apenas em entrevistas e depoimentos dados pelo poeta, como em sua obra,
explicitada, por exemplo, pela epígrafe do livro O engenheiro: “...machine à èmouvoir”.
No entanto, acreditamos, não foi apenas a lição da economia e do cálculo, aprendida do
arquiteto franco-suíço, que o poeta incorporou à sua obra. “Máquina de habitar” e “máquina de
comover”, o objeto arquitetônico exige e pressupõe a criação de espaço interior que contenha o
homem e com o qual ele possa interagir. E é nesse aspecto – da construção do espaço – que o
diálogo de Cabral-Corbusier se mostra mais provocador: embora verbal e bidimensional, uma vez
que as palavras são dispostas sobre um campo de dimensões planares – altura e largura -, a poesia
de João Cabral é projetada e construída segundo estratégias de estruturação que permitem
reconhecer o efeito de tridimensionalidade necessário para que a espacialidade se atualize. E,
mais ainda, esse efeito de espacialidade arquitetônica convida o sujeito a experimentar esse
espaço penetrando-o e movimentando-se em seu interior.
As relações entre a poesia cabralina e a arquitetura corbusiana serão examinadas e
explicitadas, assim, seguindo o seguinte percurso: o Capítulo 1, traz a apresentação das etapas de
elaboração e desenvolvimento do projeto que rege a construção de Quaderna, desde os primeiros
“croquis”, presentes no livro Os três mal-amados. A apresentação não tem o rigor de um
levantamento histórico, mas apenas procura captar registros mais significativos desse diálogo
com a obra teórica e arquitetônica de Le Corbusier; no Capítulo 2, procuramos apresentar
algumas reflexões que julgamos fundamentais para o entendimento do conceito moderno de casa,
objeto arquitetônico de referência para o cotejo literatura-arquitetura, João Cabral-Le Corbusier;
no Capítulo 3 apresentamos o projeto da Villa Savoye, obra paradigmática, construída no final da
década de 1920, que sintetiza o pensamento corbusiano desta fase. Tomamos a Villa Savoye
como referência arquitetônica para a leitura intersemiótica apresentada no Capítulo 4.
22
para uns [a composição] é o ato de aprisionar a poesia no poema e para
outros o de elaborar a poesia em poema; (...) para uns é o momento
inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma
procura...
(MELO NETO, 1994, p.723)
23
1. PROJETO E CONSTRUÇÃO DE QUADERNA
Escrita entre 1956 e 1959, durante a segunda temporada de João Cabral na Espanha, a
obra Quaderna é composta por vinte poemas em que as referências a elementos da cultura e da
paisagem espanholas, à paisagem nordestina e ao feminino revelam-se instrumentos de reflexão
sobre a realidade e sobre o próprio fazer poético. Segundo Secchin, com este livro, João Cabral
Retoma uma abrangência temática já expressa em Paisagens com figuras: o
Nordeste, a Espanha, e o diálogo entre ambos, marcados pelo vetor comum de
uma condição humana definida pelos signos da carência e do menos. Quaderna,
todavia, não se limita a esse horizonte: pela primeira vez na obra cabralina
destaca-se a presença do feminino como referência do poema. (SECCHIN, 1985,
p.133)
Condição humana e realidade de um lado, problematização do poema e metalinguagem de
outro. Despojamento, prevalência da visibilidade plástica geometrizada, presentificação do
concreto em sua substantividade desadjetivada, preocupação com a função comunicativa da
poesia e metalinguagem são características presentes na poesia cabralina, não apenas nas obras
acima mencionadas, mas desde a primeira obra, Pedra do sono, publicada em 1942:
Neste livro [Pedra do sono] já se encontram em germe algumas das qualidades
da poesia cabralina: o despojamento, o gôsto pela imagem visual, de táctil
substantividade (“No espaço do jornal / a sombra come a laranja”), aquilo que
Cabral diz ter aprendido com a poesia de Murilo Mendes (“dar precedência à
imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo”), e algo que sem
dúvida aprendeu com a gente de 22 e apurou com Drummond, certo humor seco
servido por uma ágil manipulação de sintagmas extraídos diretamente do
coloquial e postos em contraste com outras áreas mais “puras” de seu
vocabulário, para aquêle efeito de choque ou dialética – que sempre o interessou
– entre poesia e prosa. O poeta começa também a debruçar-se criticamente sobre
o próprio poema (CAMPOS, 1967, p.69)
O que aparece “em germe” em Pedra do sono vai se definindo enquanto projeto nas obras
seguintes (Cf. BARBOSA, 1975). A tematização do poema e a discussão das modalidades de
expressão poética podem ser observadas nas “falas” das personagens drummondianas de Os três
mal-amados, obra de 1943, que, metalingüisticamente, ao falarem de seu objeto de amor, falam
da poesia. Se, conforme aponta João Alexandre Barbosa (BARBOSA, 1975, p. 36-7), as falas de
24
João remetem ao universo do livro de estréia e as de Joaquim mantêm a prevalência emocional,
nas falas de Raimundo, encontramos a síntese do parti pris5
conceitual e programático que regerá
a obra de João Cabral como um todo:
RAIMUNDO:
Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de todos os detalhes
de seu corpo, que poderia reconstruir à minha vontade. Sua boca, seu riso
irregular. Todos esses detalhes não me seria difícil arrumá-los, recompondo-a,
como num jogo de armar ou uma prancha anatômica (OC, p.606
)
RAIMUNDO:
Maria era também o jornal. O mundo ainda quente, em sua última edição e mais
recente. (OC, p.62)
RAIMUNDO:
Maria era também a folha em branco, barreira oposta ao rio impreciso que corre
em regiões de alguma parte de nós mesmos. Nessa folha eu construirei um
objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me definirá. Penso para
escolher: um poema, um desenho, um cimento armado – presenças precisas e
inalteráveis, opostas a minha fuga. (OC, p.63)
RAIMUNDO:
Maria era também o sistema estabelecido de antemão, o fim onde chegar. Era a
lucidez, que, ela só, nos pode dar um modo novo e completo de ver uma flor, de
ler um verso. (OC, p.64)
Segundo o crítico, as falas de Raimundo contêm não apenas a definição do poeta pela
construção do objeto, mas também “uma lição de compromisso (...) com a própria relação que se
5
Solução proposta ou escolhida para resolver uma situação. Em arquitetura, parti pris ou partido arquitetônico são
as diretrizes gerais adotadas no projeto, expressas pela concepção formal da obra a ser construída. Diz respeito à
distribuição das massas construídas no terreno em que será implantado o edifício, aos volumes das edificações, à
proporção entre cheios e vazios, aos principais materiais e técnicas construtivas a serem empregados na construção.
Resulta da consideração de uma série de determinantes que condicionam o projeto: o programa do edifício, a
topografia do terreno, o clima, a orientação solar, materiais e verba disponíveis para a construção, código de
edificações e a intenção plástica do arquiteto. Por exemplo, um partido horizontal é aquele em que predominam as
formas e circulação horizontais e um partido vertical aquele em que predominam formas e circulação verticais. (Cf,
ALBERNAZ; LIMA, 1998)
6
As citações e transcrições de poemas, fragmentos da obra poética ou dos textos críticos-teóricos de João Cabral
referem-se à edição de 1994 da Obra completa: volume único / João Cabral de Melo Neto, pela Editora Nova
Aguilar. Quando houver o uso de outra edição, será devidamente indicado.
25
estabelece, pelo próprio ato de construção, entre o poeta e o seu objeto.” (BARBOSA, 1975,
p.37).
A Maria-poesia é praia freqüentada, cujo ar livre e luz delimitam e iluminam - com exatidão
e nitidez - os gestos do poeta; é fonte que jorra em tempo, espaço e forma previstos e
determinados pela vontade do poeta; é corpo conhecido e construído como prancha anatômica; é
campo percorrido; é árvore (objeto “sólido” e “prático”) que se planta na terra e lança os galhos
para o céu; é aguardente que permite ouvir o rumor dos sonhos que serão submetidos à vontade
do poeta; é jornal que traz notícias do mundo; é livro que permite entender e construir a realidade
e o poema; é a folha em branco, em que será construído o objeto sólido a ser imitado e que
definirá o poeta. Nas palavras de João Alexandre, “o que o poeta imita, e o que o define, é sua
construção”. (BARBOSA, 1975, p.38).
Como no fazer arquitetônico, em que o projeto antecede a construção, o fazer poético é
assumido como um processo de construção material precedido pelo exercício projetual baseado
em premissas rigorosas de lucidez, clareza, despojamento e cálculo (o “sistema estabelecido de
antemão”). Esse projeto, previsto e determinado pela vontade do poeta, resultará numa
construção que é, simultaneamente, celebração e prática de uma poesia racional que rejeita
qualquer possibilidade de intervenção da inspiração e do acaso. Opção que será explicitada
teoricamente na conferência que proferiu em 1952, intitulada “Poesia e composição: a inspiração
e o trabalho de arte”, em que se pode ler:
não se pode negar que essa atitude [que aceita o predomínio do trabalho de arte]
pode contribuir para uma melhor realização artística do poema, pode criar o
poema objetivo, o poema no qual não entra para nada o espetáculo de seu autor
e, ao mesmo tempo, pode fornecer do homem que escreve uma imagem
perfeitamente digna de ser que dirige sua obra e é senhor de seus gestos.
Nestes poetas já o trabalho artístico não se limita ao retoque, de bom
gosto de boa economia, ao material que o instinto fornece. O trabalho artístico é,
aqui, a origem do próprio poema. Não é o olho crítico posterior à obra. O poema
é escrito pelo olho crítico, por um crítico que elabora as experiências que antes
vivera, como poeta. Nestes poetas, geralmente, não é o poema que se impõe.
Eles se impõem o poema, e o fazem geralmente a partir de um tema, escolhido
por sua vez, a partir de um motivo racional. (OC, p.733)
Mais adiante, na mesma conferência, o poeta refere-se ao poema resultante desse fazer
construtivo como sendo
26
raramente um corte num objeto ou um aspecto particular de um objeto visto pela
luz especial de um momento. Durante seu trablaho, o poeta vira seu objeto nos
dedos, iluminando-o por todos os lados. E é ainda seu trabalho que lhe vai
permitir desligar-se do objeto criado. Este será um organismo acabado, capaz de
vida própria. É um filho, com vida independente, e não um membro que se
amputa, incompleto e incapaz de viver por si mesmo. (OC, 734)
Na obra poética seguinte, O engenheiro, de 1945, João Cabral enuncia, no título e na
epígrafe que traz a conhecida frase de Le Corbusier "...machine à émouvoir”, a adesão às
propostas do arquiteto franco-suíço, veiculadas em obras como Depois do Cubismo, publicada
em 1918 (OZENFANT; JEANNERET, 2005), na série de artigos sobre a arquitetura, escritos nos
anos 1920-21 para a revista L’Esprit Nouveau, reunidos, em 1923, em Por uma arquitetura
(CORBUSIER, 2004), e em obras posteriores, como A arte decorativa (CORBUSIER, 1996), de
1925 e La maison des hommes, de 1942, assinado conjuntamente com François de Pierrefeu
(PIERREFEU; CORBUSIER, 1942).
Em Depois do Cubismo, Amédée Ozenfant e Charles-Edouard Jeanneret (que mais tarde
adotaria o nome de Le Corbusier) discutem a crise do cubismo, reconhecendo o mérito dos
cubistas por terem compreendido as lições de seus precursores (Ingres, Coubert, Cézzane etc.), no
que diz respeito à submissão do tema à plástica e à redução do real às formas geométricas, mas
criticando, porém, uma suposta tendência cubista ao ornamental ou decorativo a que acreditavam
ter levado a fragmentação excessiva do objeto. Além disso, os autores discutem a situação da arte
e o papel social do artista e do intelectual no novo universo marcado pela industrialização e pela
guerra.
Neste contexto de modernidade, a máquina representava não apenas o avanço tecnológico
e econômico e a possibilidade de domínio racional e científico da natureza, como também
representava a possibilidade de renovação social e artística. O desenvolvimento econômico e
tecnológico teria seu reflexo estético na renovação das várias linguagens artísticas, pela
assimilação de características maquinistas (como velocidade e simultaneidade, funcionalidade e
racionalidade, vistas como princípios impulsionadores da experimentação artística), enquanto a
contrapartida social e ética se faria sentir no questionamento e renovação da função social da arte
e do artista.
Para Ozenfant e Jeanneret,
27
dado que o espírito científico se desenvolverá cada vez mais e com ele a
indústria: ou bem a arte será a de uma época de ciência, e não pode permanecer
no estado atual; ou não será a arte de uma época de ciência e cessará de existir.
Pois toda arte que deixa de ser de sua época morre.
A ciência progride somente à força de rigor. O espírito atual é uma
tendência ao rigor, à precisão, à melhor utilização das forças e das matérias, à
mínima perda, enfim uma tendência à pureza.
Essa é também a definição da arte. (OZENFANT; JEANNERET, 2005,
p.50)
Os autores criticam também a arquitetura, que teria se transformado em mera decoração e
estaria morta, se não fosse o trabalho dos engenheiros, cujas obras mostravam-se regidas por uma
“pureza” de princípios construtivos, pelo rigor do cálculo, pelo número. Aliás, “Purismo” é o
termo proposto por Ozenfant e Jeanneret para definir e caracterizar a arte e o espírito modernos
posteriores ao cubismo. Segundo essa concepção de arte, a obra deve pautar-se pelo
reconhecimento de invariantes plásticas e sua materialização deve propor uma construção
rigorosa, clara, simples, pura, avessa a qualquer interferência do acaso:
A pintura deve propor construções tão claras quanto a geometria; elas
poderão parecer ainda mais emocionantes com a intervenção da sensibilidade ao
fazer participar o fator humano. Mas isso implica uma realização completa que
não deixa nenhum lugar ao acaso. O acaso é réprobo da arte; é o contrário da
arte. (OZENFANT; JEANNERET, 2005, p.77)
Nos textos sobre a arquitetura, escritos para a revista L’Esprit Nouveau (1920-1), reunidos
em Por uma arquitetura (CORBUSIER, 2004), Le Corbusier volta a exaltar a estética do
engenheiro e retoma as críticas à arquitetura, presentes em Depois do cubismo. Economia,
cálculo e a produção industrial devem servir de modelo para a criação artística. A lei da economia
e do cálculo, aprendida com os engenheiros, implica uma concepção da obra de arte avessa a tudo
que for desnecessário ou supérfluo:
Os florões, as lâmpadas e as guirlandas, as ovais rebuscadas onde pombas
triangulares se beijam e se entrebeijam, as alcovas guarnecidas de almofadas em
forma de abóbadas de veludo, de ouro e de preto, não são mais que os
testemunhos insuportáveis de um espírito morto. Estes santuários asfixiados dos
bem-pensantes ou por outro lado as besteiras “gagás” dos caipiras nos ofendem.
Habituamo-nos ao ar livre e à luz plena. (CORBUSIER, 2004, p.61)
28
E ainda:
Os arquitetos vivem na estreiteza das aquisições escolares, na ignorância
das novas regras de construir, e suas concepções param habitualmente nas
pombas que se entrebeijam. Mas os construtores de transatlânticos, ousados e
sábios, realizam palácios junto dos quais as catedrais são bem pequenas: e eles
os atiram na água!
A arquitetura asfixia-se nos hábitos. (LE CORBUSIER, 2004, p.61)
Sob esse ponto de vista, a obra de arte deve ser regida pela pureza de princípios
construtivos dos instrumentos mecânicos, construídos para funcionar com exatidão e eficiência.
A lição da máquina, aprendida com esses instrumentos produtivos da indústria, corrobora essa
concepção de arte que tem como premissa o rigor inerente à lógica de construção e o
funcionamento das máquinas, sem abdicar de sua função de satisfazer necessidades humanas: a
máquina é concebida pelo homem para responder a necessidades humanas. Para Le Corbusier, a
máquina – avião, navio, automóvel ou casa - é e deve ser resposta a um “problema bem
colocado”:
A lição do avião não está tanto nas formas criadas e, para começar, é
preciso aprender a não ver em um avião um pássaro ou uma libélula, mas uma
máquina de voar; a lição do avião está na lógica que presidiu ao enunciado do
problema e que conduziu ao sucesso de sua realização. Quando um problema é
colocado, na nossa época, sua solução é fatalmente encontrada. (CORBUSIER,
2004, p.71)
Assim, a arte, e em especial a arquitetura, deveria abandonar a estética ornamental
(decorativa e fútil) em favor da estética da indústria moderna. A casa, encarada como uma
“máquina de morar”, deveria ser concebida com lucidez e precisão por um espírito novo e
responder a necessidades humanas (físicas e emocionais).
Desse modo, Le Corbusier não apenas elogiava a estética do engenheiro e criticava a
arquitetura que resistia às mudanças, como também apontava para as diferenças de base que
caracterizavam o fazer do engenheiro e o do arquiteto da época. Para ele,
29
Os engenheiros fazem arquitetura porque empregam um cálculo saído das
leis da natureza e suas obras nos fazem sentir a HARMONIA. Existe então uma
estética do engenheiro, pois é preciso, ao calcular, quantificar certos termos da
equação, e aí é o gosto que intervém. Ora, quando se maneja o cálculo estamos
num estado de espírito puro e, neste estado de espírito, o gosto segue caminhos
seguros.
(...) Ora, hoje são os engenheiros que conhecem, que conhecem a maneira de
sustentar, de aquecer, de ventilar, de iluminar. (...)
O diagnóstico é que, para começar pelo começo, o engenheiro que
procede por conhecimento mostra o caminho e tem a verdade. É que a
arquitetura, que é coisa de emoção plástica, deve, no seu domínio, COMEÇAR
PELO COMEÇO TAMBÉM E EMPREGAR OS ELEMENTOS
SUSCETÍVEIS DE ATINGIR NOSSOS SENTIDOS, DE SATISFAZER
NOSSOS DESEJOS VISUAIS, e dispô-los de tal maneira QUE SUA VISÃO
NOS AFETE CLARAMENTE pela delicadeza ou pela brutalidade, pelo
tumultuo ou pela serenidade, pela indiferença ou pelo interesse; estes elementos
são elementos plásticos, formas que nossos olhos vêem claramente, que nosso
espírito mede. Essas formas primárias ou sutis, brandas ou toscas, agem
fisiologicamente sobre nossos sentidos (esfera, cubo, cilindro, horizontal,
vertical, oblíqua etc.) e os comovem. Sendo afetados, somos suscetíveis de
perceber além das sensações grosseiras; nascerão então certas relações, que
agem sobre nossa consciência e nos conduzem a um estado de júbilo
(concordância com as leis do universo que nos dirigem e às quais todos os
nossos atos se submetem) em que o homem usa plenamente de seus sons de
lembrança, de exame, de raciocínio, de criação.
A arquitetura, hoje, não se lembra mais daquilo que a começa.
(CORBUSIER, 2004, p. 7 – grifos do autor)
Em outras palavras, se a arquitetura pressupõe a exatidão do cálculo que está no centro do
pensamento da engenharia, e deve considerá-la, vai além dela; enquanto a matemática utilizada
pelo engenheiro é uma matemática exata, voltada aos aspectos puramente práticos, de construção
das edificações e das máquinas, a matemática do arquiteto é uma matemática utilizada visando
também a produzir efeitos de ordem sensorial (o que nada têm a ver com os “estilos” definidores
da prática dos arquitetos da época):
A ARQUITETURA é um fato de arte, um fenômeno de emoção, fora das
questões de construção, além delas. A construção É PARA SUSTENTAR; a
arquitetura É PARA EMOCIONAR. A emoção arquitetural, existe quando a
obra soa em você ao diapasão de um universo cujas leis sofremos, reconhecemos
e admiramos. Quando são atingidas certas relações, somos apreendidos pela
obra. Arquitetura consiste em “relações”, é “pura criação do espírito”.
(CORBUSIER, 2004, p.10 – grifos do autor)
30
Para o arquiteto, portanto, economia e cálculo, bases do pensamento do engenheiro,
devem estar unidos à ousadia e à imaginação, bases do pensamento do arquiteto. Porém, ousadia
e imaginação emocionam quando operadas pelo cálculo, pela matemática subjacente à geometria
das formas simples. Ou seja, a arquitetura vai além do cálculo, mas deve encontrar nele sua
origem.
“Máquina de habitar” e “máquina de emocionar” são as duas expressões usadas por
Corbusier para definir sua concepção da casa e da arquitetura: as funções prática e mítica serão
satisfeitas pela construção de edifícios rigorosamente projetados segundo a economia, o cálculo,
a fim de responder a necessidades humanas de habitação e de emoção plástica, garantida pela
clareza das formas simples, da geometria. Enquanto máquina, a casa não pode ser concebida a
partir de uma gramática pré-estabelecida; deve ser resultado de um problema bem colocado e
equacionado, levando-se em conta, além do programa arquitetônico (necessidades humanas em
relação ao espaço a ser construíco), questões de ordem econômica, social, urbana.
Não é casual, portanto, a opção de João Cabral pelo título dado à sua terceira obra, O
engenheiro, assim como não é casual a epígrafe de Le Corbusier. Para Benedito Nunes,
A epígrafe mesma de O engenheiro, tomada a Le Corbusier, ”... machine
à emouvoir”, indica-nos que o autor já atribui a esse fazer poético a natureza de
um ato de construção. Pois a feitura do poema, que se qualifica de máquina de
comover, obedecerá analogicamente à mesma razão construtiva e geométrica
que gera o projeto técnico de uma máquina e a planta de um edifício, traçados a
lápis e a esquadro numa folha de papel.7
(NUNES, 1971, p.41)
Se o fazer poético tem a mesma natureza de uma ato de construção, é a partir da razão
construtiva do engenheiro que ela se realiza. As características pessoais e profissionais do
7
O crítico continua o parágrafo afirmando que “como tôda máquina se constrói pela função que a define e que lhe
determina o tipo de trabalho a executar, o edifício e o poema se corresponderão, de acôrdo com o ideal de O
engenheiro, na ordem funcional que os aproxima, sendo o primeiro máquina de habitar e o segundo máquina de
comover.” (NUNES, 1971, p. 41). Não é isso, a nosso ver, que propõe Le Corbusier. Pelo contrário, o arquiteto é
claro ao afirmar, em Por uma arquitetura, que não é apenas a atenção à função prática que define a arquitetura, mas
a atenção às duas funções, prática e mítica:
Quando uma coisa responde a uma necessidade, ela não é bela, ela satisfaz toda uma parte de nosso
espírito, a primeira parte, aquela sem a qual não há satisfações ulteriores possíveis; (...).
A arquitetura tem um outro significado e outros fins que acusar as construções e responder às
necessidades (necessidades tomadas no sentido, aqui subentendido, de utilidade, de conforto, de disposição
prática). A ARQUITETURA é a arte por excelência, que atinge o estado de grandeza platônica, ordem
matemática, especulação, percepção da harmonia pelas relações comoventes. Eis aí o FIM da arquitetura.
(CORBUSIER, 2004, p. 73)
31
engenheiro exaltado por Le Corbusier, que podemos ver ecoando na obra de Cabral, vêm tanto da
utilização de materiais e técnicas modernas de construção como da economia, objetividade e
funcionalidade que regem seu exercício profissional.
Além disso, se, num primeiro momento, nos perguntamos por que a figura do engenheiro
e não a do arquiteto é usada no título, já que a epígrafe remete ao arquiteto franco-suiço, a leitura
dos poemas que integram a obra permite reconhecer que há, nesse momento do processo
projetual e construtivo da poética cabralina, a afirmação de um fazer poético que se aproxima do
fazer da engenharia, em que prevalece o estudo das características dos materiais utilizados, das
condições do terreno (orientação, topografia, incidência dos ventos), do destino da construção e o
dimensionamento e especificação da estrutura. Nessa obra, é a construção em si que está em jogo
e ela é vista pelo prisma do engenheiro. Podemos estabelecer uma relação de homologia
envolvendo os termos “poema”, “construção”, “poeta” e “engenheiro”: o poema está para a
construção civil assim como o poeta está para o engenheiro (poema : construção :: poeta :
engenheiro). O olhar do arquiteto e sua preocupação com a organização física e estética do
espaço, em função do homem que o habitará, surgirá em obras posteriores, como veremos
adiante.
Vale a pena, porém, determo-nos um pouco nesta oposição entre engenheiros e arquitetos
e acompanhar as reflexões de Le Corbusier acerca desta questão. Em La Maison des hommes,
François de Pierrefeu e Le Corbusier apresentam um esquema que resume o que, para eles
compõe a natureza e a missão do “mestre-de-obra” (Cf. PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942).
A fim de rever as bases da arquitetura da nova civilização maquinista, os autores resgatam esse
termo medieval - “mestre-de-obra” -, não apenas para restituir sua dignidade, mas, sobretudo,
para, na busca de sua definição, traçar as linhas-mestras do profissional que deveria ser o
responsável pelas obras que a vida moderna exigia.
As novas técnicas aplicadas à construção devolveram a ela a posição de destaque que
ocupava no passado, quando a construção de uma catedral exigia do mestre-de-obra um grande
conjunto de conhecimentos que abarcavam desde o conhecimento do homem “real” e de suas
necessidades até um profundo conhecimento das leis físicas e dos recursos tecnológicos cada vez
mais avançados que possibilitavam as soluções desejadas. Com o tempo, esses conhecimentos
acabaram por levar a uma dupla polarização, distanciando arquitetos e engenheiros que
32
assumiram posturas diferenciadas (e quase opostas) em relação à construção: de um lado o
arquiteto, privilegiando o conhecimento do homem e da arte; de outro lado o engenheiro, dando
maior relevo e importância ao conhecimento técnico. Essa tendência foi agravada pelo
direcionamento dado à formação acadêmica que, especializada e especializadora, dirigia a
formação profissional ou para a estética pura ou para a matemática pura, representando,
respectivamente, segundo os autores, o “perigo das Belas Artes” e o “perigo da politécnica”: “la
façade préférée au logis” e “le kilowatt préférée au muscle” (PIERREFEU; LE CORBUSIER,
1942, p 114).
Resgatar o sentido medieval do “mestre-de-obra” significava, assim, reunir os dois pólos
de conhecimento e transformá-los nos suportes da construção moderna. Na junção dos dois tipos
de conhecimento estaria, pois, “o segredo e a razão de ser do mestre-de-obras”:
Le maître d’œuvre idéal serait um humaniste, qui composerait en lui-
même, pour les animer de son souffle, deux acteurs distincts, un architecte et un
engénieur. (PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 108)
O esquema em duas cores proposto pelos autores traz, assim, os diversos aspectos da
missão do mestre-de-obras, que resulta da integração entre os dois pólos de conhecimento e
premissas construtivas: a do arquiteto e a do engenheiro.
33
fonte: PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 117
Estamos diante de um esquema em duas cores, azul e vermelho, em que arquiteto e
34
engenheiro estão representados por dois círculos, colocados respectivamente acima e abaixo de
uma faixa horizontal central, que representa, por sua vez, um inventário de edificações.
A cor azul simboliza o “conhecimento do homem”: necessidades espirituais, intelectuais,
cívicas, sociais, familiares, fisiológicas, materiais.
A cor vermelha simboliza o “conhecimento das leis da física” (empírico e científico):
conhecimento dos materiais, da lei da gravidade e da estática, da resistência dos materiais, o
conhecimento das hipóteses matemáticas de cálculo.
É relevante observar que o círculo superior, que representa as predisposições técnicas e a
cultura do arquiteto, tem a maior parte de sua área em azul e apenas uma faixa em vermelho,
enquanto no círculo inferior, que representa as predisposições e a cultura do engenheiro, a
proporção é inversa. Segundo os autores,
Sensibilité et technique doivent figurer en effect, sous des dosages différents
mais fondues ensemble inséparablement, dans l’une et l’autre discipline.
(PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 118)
A faixa horizontal central, que representa um inventário das edificações, é dividida em
nove setores8
, dispostos da esquerda para a direita, de acordo com uma seqüência determinada
pela função prática das edificações: 1- templo ou monumentos (religiosos ou patrióticos); 2-
hotéis, bibliotecas, teatros etc. (lazer e cultura); 3- hospitais, casas de repouso, sanatórios (saúde);
4- estádio de esportes, clubes, escolas etc. (esporte e educação); 5- a casa (família); 6- edifícios
de administração, públicos ou privados, escritórios (trabalho - serviços); 7- oficinas e pequenas
fábricas (trabalho – artesanato e manufaturas); 8- indústrias e empresas (trabalho - indústrias); 9-
pontes, estradas, barragens etc. (obras de infra-estrutura).
Duas setas partem do centro do inventário (da casa), em diagonal, uma para a direita,
definindo um gradiente crescente do que chamam “homem econômico”, e outra para a esquerda,
definindo um gradiente crescente do que chamam “homem espiritual”. Essas setas diagonais
dividem cada um dos vários setores do inventário das edificações inventariadas em dois
triângulos, um azul e um vermelho.
8
Os autores alertam que o inventário das edificações contém apenas nove setores, apesar da complexidade das
edificações efetivamente construídas, apenas por uma questão de economia e clareza da exposição.
35
Dois eixos coordenados permitem comparar as edificações inventariadas: no eixo
horizontal, temos o gradiente de importância das coerções dos materiais, das exigências da física
e do cálculo; no eixo vertical, o gradiente da a liberdade de criação e do direito à beleza.
A casa ocupa a posição central do inventário de edificações e é representada por dois
triângulos iguais, um azul e um vermelho, mostrando que, na casa, “raison et sensibilité y
concourent à parts égales” (PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 118).
As edificações colocadas à esquerda da casa requerem uma predominância do arquiteto
sobre o engenheiro. Nesses casos, dizem os autores, o “mestre-de-obra” será um arquiteto. Por
outro lado, as edificações colocadas à direita do eixo central exigem uma predominância do
engenheiro sobre o arquiteto e, nesses casos, o “mestre-de-obra” será um engenheiro, embora,
lembram os autores, a contribuição do arquiteto não seja dispensada nem mesmo se a obra for
inteiramente técnica, como uma barragem.
Assim, a epígrafe Le Corbusier, ao mesmo tempo em que evoca as propostas do arquiteto
franco-suiço, anuncia, junto com o título, não apenas o ideal construtivo almejado, mas sobretudo
o tipo de edificação a ser construída e o “mestre-de-obra” encarregado de sua construção. Talvez
possamos nos valer do esquema proposto por Pierrefeu e Corbusier para entender as várias
expressões utilizadas indiferentemente para qualificar o poeta: “poeta-engenheiro”, ”poeta-
arquiteto”, ”poeta-construtor” ou ”pedreiro do verso”. Essas expressões contêm, mesmo que à
revelia de quem as usa, uma concepção (acertada ou equivocada, dependendo do caso) acerca das
predisposições, cultura, formação técnica específica dos vários profissionais. Embora as
expressões sejam próximas ou afins, como afirma Eucanaã Ferraz (2000, p.21), uma vez que
todos os profissionais arrolados participam da atividade construtiva, elas não são sinônimas e
apontam para diferenças significativas na maneira de definir seu objeto e seu método de atuação.
O que não quer dizer, obviamente, que um profissional seja melhor do que os outros; significa,
apenas, que há diferenças na relação que estabelecem com seu objeto (qualquer que seja a
natureza da edificação a ser construída) e que cada construção ou etapa da construção convoca
um determinado profissional. Em Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do
urbanismo, Le Corbusier coloca o problema da seguinte forma:
Coloquei o engenheiro em primeiro plano. Por uma arquitetura (meu
primeiro livro, 1920-21, l’Esprit Nouveau) era-lhe dedicado em grande parte e
36
constituía, até certo ponto, uma antecipação. Em breve eu iria pressentir o
“construtor”, “o novo homem dos novos tempos”.
O engenheiro é análise e aplicação dos cálculos; o construtor é síntese e
criação. (LE CORBUSIER, 2004, p.45)
Outro aspecto ligado ao título da obra e dos poemas que a integram deve ser observado.
Trata-se da identidade sintática da construção dos títulos dos poemas que compõem o livro, cuja
constância reiterativa, afirma Eucanaã Ferraz, revela-se como um aspecto construtivo
significativo (Cf. FERRAZ, 2000). Entre os vinte e dois poemas que compõem a obra, os
dezesseis primeiros têm os respectivos títulos construídos por artigo definido + substantivo. Nos
cinco poemas seguintes a construção de base é: preposição a + nome de um homenageado. E no
último poema, adjetivo + substantivo + adjetivo.
Se, por um lado, essa constância reiterativa faz eco a mais um dos postulados de Le
Corbusier, o do módulo construtivo, já que a mesma fórmula (não se trata de fôrma, salientamos,
mas de constante matemático-formal) é tomada como base para a construção dos títulos, por
outro lado, esse recurso construtivo revela um modo de aproximação e de estudo do objeto
tomado como fonte de interesse.
Como salienta Ferraz, no primeiro e maior grupo de poemas aproximados pela construção
dos títulos, o
artigo definido indica que o substantivo é um ser conhecido do leitor ou ouvinte,
seja por ter sido mencionado antes, seja por ser objeto de um conhecimento pela
experiência. (FERRAZ, 2000, p.116)
Dessa forma, segundo o ensaísta, ao pressupor um conhecimento prévio partilhado com o
leitor, os títulos dos poemas propõem um diálogo com o leitor, que é “convidado à leitura, à
interpretação das coisas do mundo”. Se há na construção dos títulos uma busca de aproximação
entre o texto e o leitor, e não negamos que haja, não podemos deixar de observar também que há
uma declaração de intenção (um termo de compromisso?) de exploração cognitiva, de
aproximação e compreensão do construtor em relação aos objetos que se põe a estudar e
construir.
Tal postura investigativa nos remete novamente às idéias corbusianas, agora no que diz
respeito à formulação do problema a ser solucionado: o poema responde a um problema
37
formulado (colocado) no título. É o que encontramos no poema “O engenheiro”, homônimo ao
título da obra, em que os ecos da lucidez da fala de Raimundo, de Os três mal-amados, se
expandem em uma nítida tomada de posição a favor de valores ao mesmo tempo éticos e
estéticos característicos do fazer do engenheiro, como exaltado por Le Corbusier: a construção
buscada e empreendida a partir do cálculo e da economia, em prol do bem comum9
.
Nos poemas seguintes, o módulo construtivo é preposição a + nome de um homenageado.
Como aponta Ferraz,
O endereçamento pressupõe o termo precedente (o poema), subentendido, e
sublinha seu destinatário, aqui também o próprio motivo da escrita. (FERRAZ,
2000, p.117)
Se nos poemas anteriores o que prevalecia era a busca de aproximação e compreensão dos
objetos de estudo, ou de um certo fazer artístico generalizado pela profissão do construtor, como
no caso de “O engenheiro”, nesse grupo de poemas-homenagem o que prevalece é a aproximação
em relação às premissas que presidem os modos de conceber e fazer - poético, pictórico,
futebolístico – de seus homenageados, individualizados agora pela nomeação. O estudo do fazer
dos homenageados permite reconhecer afinidades e divergências e evidencia a necessidade de
definir e explicitar ainda mais rigorosa e claramente as premissas que devem reger a sua própria
ação construtiva.
Essa busca de definição e explicitação de uma dicção própria está presente, também, no
último poema da obra, “Pequena ode mineral”. Neste poema, porém, a aproximação não se dá a
partir do fazer de um homenageado, como no grupo anterior de poemas, mas a partir da própria
tradição literária. O título do poema tem a seguinte construção sintática: adjetivo + substantivo +
adjetivo. O centro da construção do título, o substantivo “ode”, remete para o próprio poema,
uma vez que o termo, de origem grega – oidê, canto - designa uma forma poética tradicional,
destinada ao canto com acompanhamento musical. Trata-se, portanto, de um metapoema, que,
enquanto tal, põe em questão os valores subjacentes à forma poética da tradição lírica, apontando
para uma nova maneira de encarar a feitura do poema.
9
Não podemos nos esquecer da utopia corbusiana segundo a qual os novos princípios construtivos da máquina e,
sobretudo, da arquitetura, quando feita a partir da racionalidade do cálculo, da economia e da produção em série,
teria um alcance revolucionário: “O equilíbrio da sociedade é uma questão de construção. Concluímos com esse
dilema defensável: arquitetura ou revolução. (LE CORBUSIER, 2004, p.168)
38
No plano do conteúdo, o substantivo “ode” é qualificado e especificado pelos adjetivos
que o ladeiam: “pequena” define a extensão dimensional do substantivo e “mineral” define a
natureza do objeto a ser construído. No plano da expressão, os dois adjetivos que envolvem
graficamente o substantivo “ode” (pela posição anterior e posterior em relação ao substantivo)
funcionam como uma espécie de “contorno” gráfico-visual que mantém o substantivo sob
controle físico, definindo-lhe a tamanho (pequena) e matéria (mineral).
A “ode” surge, assim, como “material sólido natural, inorgânico, de composição química
definida e estrutura interna regular” (Cf. HOUAISS, 2001, p. 1926), substância que ocupa lugar
no espaço, sujeita a receber determinada forma ou sobre a qual pode atuar algum agente. A
posição dos adjetivos do título afirma e reitera a espacialidade implícita nos signos “pequena” e
“mineral”. Ao mesmo tempo, o núcleo sêmico dos signos “ode” e “mineral” apontam,
respectivamente, para a musicalidade e regularidade eufóricas, culturalmente obtidas, e para a
solidez inorgânica e regular, naturais do mineral.
A oposição entre natureza e cultura presente no título do poema anuncia, pois, a intenção
de aderir a fazer poético que toma como modelo um elemento da natureza – o mineral - e sua
constituição formal, sobrepondo espacialidade à musicalidade.
Os adjetivos circunscrevem o substantivo, determinando os limites de sua “área”,
podendo ser comparados às paredes que definem o espaço interior de uma construção
arquitetônica. Embora se encontre num espaço interior criado por esse “contorno”, a
espacialidade criada não revela, porém, um caráter plenamente arquitetônico, pois, ainda que
exista espaço interior, esse espaço é bidimensional, planar e gráfico, no qual estão dispostos os
elementos a serem problematizados e a maneira segundo a qual serão manipulados. Ou seja, o
foco de atenção não é, ainda, o espaço em si, mas a matéria a ser enformada, o modo e o processo
de construção.
Se a existência de espaço interior é condição sine qua non para que a edificação seja
identificada como arquitetura, se o caráter essencial da arquitetura “está no fato de agir com um
vocabulário tridimensional que inclui o homem”, como nos ensina Bruno Zevi (1978, p. 17),
podemos verificar que o volume que é edificado no poema não é ainda aquele em que “o homem
penetra e caminha”, que tem o homem como seu habitante e que atualiza a dimensão sensível do
corpo que experimenta o espaço e suas qualidades ou as dimensões do próprio espaço que,
39
tornado corpo, projeta-se nos planos que o delimitam, como veremos adiante nos poemas de
Quaderna. Pelo contrário, o que se encontra no interior desse espaço não é o homem em sua
corporeidade espacializada, mas a delimitação bidimensional de um produto de seu fazer, o
poema.
Trata-se, portanto, de uma etapa preliminar de projeto, na qual estão sendo estabelecidas
as premissas materiais, construtivas e plásticas da edificação a ser projetada e executada. Ou seja,
a fase de definição do que em arquitetura denominaríamos “programa arquitetônico”
(condicionantes espaciais, funcionais, materiais, estruturais, econômicas etc.) e, principalmente,
“partido arquitetônico” (intenção plástica) que têm como premissas a economia, despojamento,
exatidão, ordem, contundência e silêncio.
Assim, embora o substantivo “ode” esteja em posição interior na construção do título e
possa ser relacionado com o que Zevi chama de “jóia arquitetônica” (o espaço interior habitável),
que está delimitada e contida dentro da caixa formada pelos adjetivos, a leitura do poema leva a
perceber que o que se constrói não é, até esse momento, o espaço em si, mas a constituição de
uma maneira de construir.
Ainda no título, a opção pela figura da “ode” instala uma musicalidade que é negada pelas
figuras a ela relacionadas: “pequena” espacializa ao determinar a sua dimensão, enquanto
“mineral” petrifica e emudece, afastando a “ode”, forma poética da tradição literária, de sua
natureza musical. No título, a espacialidade que se sobrepõe à musicalidade da lírica tradicional
não significa, é claro, ausência de sonoridade. O que podemos reconhecer nesta construção é a
negação da sonoridade tradicional e a busca de uma sonoridade de outra natureza: no lugar de
uma musicalidade cantante e efêmera, a mineralidade silenciosa e permanente da “voz do
silêncio”. Antonio Carlos Secchin nos mostra a natureza desse silêncio, proposto também no
poema “A Paul Valéry”:
Mas não se trata de um silêncio metafísico, que poderia carrear perquirições
sobre a impotência da linguagem; ao contrário, será a resposta organizada contra
o “apetite” da impulsividade, da escrita a qualquer preço e a qualquer verso.
(SECCHIN, 1985, p.42)
Ambas as figuras – “pequena” e “mineral” – apontam, assim, para a qualidade corpórea,
material, espacial e permanente do poema (e da poética) que se pretende construir. Porém, o foco
40
de atenção não se volta para o espaço geográfico ou sobre o espaço arquitetônico propriamente
dito; a atenção está voltada para espaço cultural (e literário) e para as implicações estéticas da
construção de uma “pequena-ode-mineral”.
O poema é dividido em doze estrofes de quatro versos e pode ser segmentado em duas
partes, cada uma com seis estrofes. Na primeira parte encontramos a negação das qualidades
poéticas indesejáveis da lírica tradicional – desordem, leveza, fugacidade, temporalidade. As
figuras “alma”, “nuvem“, “fumaça”, por exemplo, atualizam os valores disfóricos ligados à forma
lírica da “ode” e contrários aos instalados pela imagem-base explicitada no título. Esses valores
disfóricos da desordem, da ausência de forma definida (“informe”), da efemeridade (palavras
ditas que, abundantes, se perdem e morrem) e da temporalidade são negados na segunda parte,
que se inicia com a exortação à “ordem” (duplamente colocada no primeiro verso da sétima
estrofe: ordem dada pelo modo verbal – imperativo – e ordem como objeto de busca), primeiro
dos valores eufóricos instalado no texto. Além da afirmação da ordem em oposição à desordem,
temos a permanência em oposição à efemeridade, a atemporalidade em oposição à temporalidade,
o silêncio em oposição ao canto. A obtenção desses valores resultará na possibilidade de atingir
uma construção poética que se expressa por meio do “silêncio / que imóvel fala”. Ao invés de
“palavras ditas”, “voz de silêncio”.
A relação canto x silêncio deve ser vista, porém, com cuidado, uma vez que o silêncio,
como vimos anteriormente, não implica ausência de sonoridade ou recusa à possibilidade de
expressão pela linguagem; pelo contrário, o silêncio redefine o “canto”, uma vez que deve buscar
a ordem que “imóvel fala” com “voz de silêncio”. Dessa forma, a passagem da desordem para a
ordem, das palavras ditas e perdidas para a voz do silêncio revelam a busca da definição de uma
poética própria, em que o canto é associado às noções de economia, exatidão e permanência.
Se, em “Pequena ode mineral”, a identificação entre poesia e pedra ainda não foi obtida,
como aponta Aguinaldo Gonçalves (Cf, GONÇALVES, 1989, p.49), não há como negar a
direção apontada desde o título. Mineralidade que nega a ação das forças da subjetividade, do
inconsciente, da inspiração e sela a opção pelo aprendizado do silêncio:
Procura a ordem
desse silêncio
que imóvel fala:
41
silêncio puro,
de pura espécie,
voz de silêncio,
mais do que a ausência
que as vozes ferem. (OC., p.84)
A negação da emotividade, da transitoriedade do ser e da poesia pela afirmação da
precisão e da economia justificam a escolha de O engenheiro para título da obra e do poema
homônimo: o uso do termo implica aliança entre criação, racionalidade e alto nível de
conhecimento tecnológico. Ou melhor, a criação racional operada a partir da objetividade técnica
e da exatidão do cálculo.
O poema “O engenheiro”, transcrito abaixo, pode ser tomado como síntese da proposta
construtiva presente no livro homônimo e nas obras anteriores, mesmo que ainda em germe.
Além da tematização do fazer definido por métodos e valores fundamentados na racionalidade e
no cálculo, o poema revela uma apropriação desses métodos e valores em termos formais e
construtivos. O poema apresenta, em linhas gerais, as etapas de elaboração do projeto
arquitetônico, desde sua concepção até a materialização da edificação na paisagem urbana:
O engenheiro
A luz, o sol, o ar livre
envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária,
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro.)
A água, o vento, a claridade
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
42
crescendo de suas forças simples.
(OC., p.69-70)
Composto por quatro estrofes de quatro versos cada, o poema traz a estruturação estrófica
que, embora ainda não se apresente como constante modular da estruturação poemática de todos
os poemas do livro, anuncia um dos elementos que estará na base da organização formal de obras
futuras: o número quatro e de seus múltiplos, a quadra e o quadrado.
Essa divisão estrófica reproduz, no plano da expressão, a segmentação das etapas de
elaboração do projeto e construção da obra e pode ser identificada com as quatro fases da
seqüência narrativa canônica: a manipulação, a competência, a performance e a sanção.
Na primeira estrofe, uma debreagem enunciva introduz um sujeito, “o engenheiro”, que se
define pelo universo axiológico que o envolve (“A luz, o sol, o ar livre / envolvem o sonho do
engenheiro”) e pelo desejo de construir (“O engenheiro sonha coisas claras”). Essa etapa de
idealização e concepção do projeto da edificação a ser construída (de estabelecimento do “partido
arquitetônico” a ser adotado) corresponde à fase da manipulação, em que um sujeito age sobre
outro para levá-lo a querer ou dever fazer algo. Instalado no texto como um profissional da
construção, esse sujeito encontra-se convencido pela sua formação profissional e cultural a adotar
os valores da modernidade como premissas para a sua atuação profissional: racionalidade,
economia, simplicidade das formas simples, o respeito à orientação solar e sua capacidade de
conferir salubridade às construções, o equilíbrio com a natureza, a conquista de horizontes
abertos, liberados pela construção verticalizada.
As figuras da “luz”, do “sol”, do “ar livre” representam, assim, tanto os elementos
concretos da natureza valorizados positivamente pela arquitetura moderna, como os valores
almejados pelo homem moderno e pelo profissional encarregado de construir para ele, em
alternativa à concentração populacional e de edificações das grandes cidades. Denotativamente,
são portadoras das condições ideais de salubridade que os engenheiros e arquitetos da
modernidade devem reconhecer e utilizar em proveito de suas construções e de seus clientes. Mas
figurativizam, também, as condições propícias para a clareza do raciocínio, para a lucidez, para o
cálculo e para a elaboração do projeto. Instalam, assim, tanto a claridade necessária para como a
resultante da reflexão consciente e racional, exigência da modernidade.
43
O aproveitamento da iluminação solar é um princípio-chave da arquitetura moderna, pois
o sol é fonte de luz e de salubridade. Coerentemente, a claridade envolve “o sonho do
engenheiro”, que “sonha coisas claras”, facilmente visíveis em seus contornos sem ambigüidades:
“superfícies, tênis, um copo de água”. O universo simples do cotidiano natural e construído,
definido pela escolha vocabular se reflete na construção sintática direta e clara, impede a ligação
do termo “sonho” com o universo onírico (predominante em Pedra do sono) e vincula o “sonho”
não com o que é visto ou desejado durante o sono ou devaneio, mas com o que é imaginado como
ideal a ser buscado conscientemente.
(croqui de Le Corbusier para ilustrar a implantação ideal do edifício na
cidade-jardim. Fonte: PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 95)
A presença da luz, instalada no texto como valor positivo da luminosidade, da
salubridade e do regime diurno de imaginação (do racionalismo e rigor presentes no
encadeamento entre sonho, pensamento e projeto), pressupõe o seu contrário, a sombra, que,
embora não seja figurativizada explicitamente no poema, está implícita pela pressuposição
lógica e carrega o valor negativo da obscuridade noturna do sonho e do sono e da visibilidade
dificultada pela mediação da emoção e da subjetividade, negadas no poema pela afirmação da
inexistência de obstáculos (figurativizado pelo “véu”) entre observador e observado: “o
engenheiro pensa o mundo justo, / que nenhum véu encobre”.
Do sonho idealizado (imaginado ou visualizado através do pensamento consciente), o
sujeito passa, na terceira estrofe, ao processo de elaboração do projeto (“o engenheiro pensa o
44
mundo justo”), realizado com o auxílio dos instrumentos de trabalho típicos da engenharia e da
arquitetura do século XX - lápis, esquadro, papel.
Essa etapa de elaboração do projeto por meio do desenho pode ser identificada com a fase
da seqüência narrativa chamada de competência, em que o sujeito do fazer é dotado de um saber
e/ou poder fazer. Traçando à lápis e esquadro sobre o papel, o “engenheiro” sabe e pode calcular
e projetar o “edifício” ou “mundo justo” que quer construir. Cabe lembrar que o termo “justo” é
tomado tanto no sentido de “exatidão de cálculo” como no sentido de “justiça social”, como
postulava Corbusier:
O engenheiro, inspirado pela lei da economia e conduzido pelo cálculo,
nos põe em acordo com as leis do universo. Atinge a harmonia. (LE
CORBUSIER, 2004a, p. 3. Grifo do autor.)
Se arrancarmos do coração e do espírito os conceitos imóveis da casa, e se
encararmos a questão de um ponto de vista crítico e objetivo, chegaremos à
casa-instrumento, casa em série acessível a todos, incomparavelmente mais
sadia que a antiga (e moralmente também) e bela pela estética dos instrumentos
de trabalho que acompanham nossa existência (LE CORBUSIER, 2004a, p. 166)
Trata-se, portanto, do problema central para a época, segundo o arquiteto franco-suiço: o
direito à habitação e à cidade humanas, simples, funcionais, limpas e saudáveis. Le Corbusier
chega a afirmar que “o equilíbrio da sociedade é uma questão de construção”, concluindo com a
defesa da famosa frase “arquitetura ou revolução.” (LE CORBUSIER, 2004a, p. 168).
Temos, pois, nas duas primeiras estrofes as aspirações técnicas, éticas e estéticas do
sujeito do fazer, cuja habilidade para realizar sua performance está fora de dúvida. Além de
compor o título do poema, a figura do engenheiro é repetida por mais três vezes nessas duas
estrofes (novamente o número quatro...), numa gradação que vai da função de adjunto adnominal
indicador de posse, em “o sonho do engenheiro”, a sujeito da ação, em “o engenheiro sonha” e
em “o engenheiro pensa”.
A construção do ator “engenheiro’ destaca por pressuposição lógica a oposição entre a
atualidade e racionalidade que rege o fazer do engenheiro e o atraso e retrocesso em que se
encontrava a arquitetura no início do século XX, embora o texto não traga a figura do arquiteto
explicitamente colocada. Nas palavras de Le Corbusier,
45
Os engenheiros constroem os instrumentos de seu tempo.
Há uma grande escola nacional de arquitetos e há em todos os países,
escolas nacionais, regionais, municipais, de arquitetos, que embrulham
inteligências jovens e lhes ensinam o falso, o artifício e as obsequiosidades dos
cortesãos.
Os engenheiros são viris e saudáveis, úteis e ativos, morais e alegres. Os
arquitetos são desencantados e desocupados, faladores ou lúgubres.
(CORBUSIER, 2004a, p. 6)
Em suma, a arquitetura é “uma das mais urgentes necessidades do homem”
(CORBUSIER, 2004a, p. 5), mas se encontra em “penosa regressão”, e a engenharia avança
sintonizada com a tecnologia e necessidades de seu tempo; é preciso aprender a lição técnica,
estética e ética dos engenheiros. A oposição estabelecida entre o fazer do arquiteto e o do
engenheiro instala, nas duas primeiras estrofes, a oposição entre a tradição ultrapassada e a
modernidade, entre o ornamento fútil e a funcionalidade socialmente consciente.
Nessas duas estrofes, portanto, a descrição eufórica do fazer do engenheiro faz eco à
utopia construtiva e social presente nas propostas arquitetônicas de Le Corbusier. A simplicidade
almejada e projetada pelo engenheiro opõe-se ao decorativismo supérfluo e superficial. A criação
é apresentada como ato de pensamento lúcido, voluntário e calculado, que impede a intromissão
da desordem, do acaso e da efusão emocional. O engenheiro busca dominar as regras de
construção da sua obra, de modo a construir uma edificação sólida e resistente. Porém, esse
sujeito é construído não como indivíduo, mas como profissional representante de um modo de
pensar e atuar específico, baseado no conhecimento técnico dos materiais, das leis da física e das
hipóteses matemáticas de cálculo, como é apresentado por Le Corbusier, em suas obras.
Vale a pena ressaltar, como observa Eucanaã Ferraz (2000, p. 145-6), que o poema é
dedicado ao engenheiro, urbanista e professor universitário Antônio B. Baltar, um dos pioneiros
da arquitetura moderna em Recife e que elaborou, em 1951, uma proposta urbanística para a
cidade:
Não propomos que o engenheiro do poema, ou no poema, seja entendido como
referência direta e restrita a Baltar, mais ou menos como se tivéssemos
46
descoberto a verdadeira identidade do “personagem”, o que seria uma redução
tola. Ao contrário, entendemos que a dedicatória aponta para uma
individualidade que imediatamente se dissolve num protótipo – “o engenheiro”-
sugerindo, a um só tempo, um tipo ideal, utópico, idéia corbusiana convertida
em criação poética, e sua contraface real, ou seja, um tipo de engenheiro em
ação, reflexo material, palpável da idéia, surgindo o nome “Antônio B. Baltar”,
na dedicatória, como a ponta visível de um paradigma em que se alinham Luiz
Nunes, Ayrton Carvalho, Saturnino de Brito, Burle Marx, Joaquim Cardozo e o
próprio Le Corbusier. (FERRAZ, 2000, p 150-1)
As duas estrofes iniciais são, pois, o lugar do desejo (do sonho) e da abstração do projeto
(pensamento) que permitirá a construção do edifício propriamente dito.
A terceira estrofe surge destacada das demais por três procedimentos discursivos: 1) o uso
de parênteses, 2) pela debreagem enunciativa que institui um sujeito em primeira pessoa e 3) pelo
tempo verbal (pretérito imperfeito).
Em relação ao uso dos parênteses, Evanildo Bechara (2004) nos ensina que
assinalam um isolamento sintático e semântico mais completo dentro do
enunciado, além de estabelecer maior intimidade entre o autor e o seu leitor. Em
geral, a inserção do parêntese é assinalada por uma entonação especial.
(BECHARA, 2004, p.612)
Assim, o isolamento gramatical recorta e enfatiza a ação pragmática realizada nesta
estrofe. Além disso, acentua o efeito de maior proximidade do sujeito da enunciação instalado
pela debreagem enunciativa. A função de sujeito desempenhada pelo pronome “nós” (“Em certas
tardes nós subíamos / ao edifício...”) sugere a presença de pelo menos dois atores, um dos quais o
próprio “engenheiro”, e o outro podendo ser um outro profissional da construção, o cliente, um
visitante (o amigo poeta?) ou todos juntos. Na verdade, temos duas ações realizadas nesta estrofe:
por um lado, a ação do sujeito “engenheiro” – ação de “construir”-, que encontra-se em processo,
já que a visita repetida ao edifício (“Em certas tardes nós subíamos ao edifício”) sugere a rotina
de acompanhamento das atividades do canteiro de obras pelo profissional responsável por ela.
Por outro lado, temos a ação do(s) outro(s) sujeito(s) que participam das visitas à obra como
integrantes ou não da equipe de construção.
47
Essa segunda ação, a de subir freqüentemente ao edifício, compartilhada pelo sujeito
coletivo “nós” possibilita a observação e leitura da paisagem circundante e da cidade onde o
edifício está situado. O edifício é convertido em instrumento para a leitura do entorno, já que é a
partir de sua materialidade verticalizada que o exterior (cidade e natureza) pode ser lido. A sua
“altura” proporciona um olhar distanciado, e seu traçado geometrizado
pela vista de cima, como se fosse desenhada “em planta”, e permite ler a
cidade-texto e reconhecer nela o organismo vivo (figurativizado
metonimicamente pelo “pulmão”) formado pelo conjunto de construções
(“pulmão de cimento e vidro).
Plasticamente, essa estrofe se destaca das demais, como se o uso
dos parênteses, somado à proximidade com o enunciador e a ação repetida
da visita ao edifício, criassem o efeito de tridimensionalidade. Assim
como o edifício visitado, a estrofe ganha volume em relação às outras
estrofes.
Por sua vez, a última estrofe apresenta-se como uma espécie de
conclusão, identificando-se com a etapa canônica da sanção, na qual se dá o reconhecimento da
performance realizada. A edificação está finalizada e inserida na natureza:
A água, o vento, a claridade
de um lado o rio, no alto as nuvens,
situavam na natureza o edifício
crescendo de suas forças claras.
Mais uma vez, estamos diante dos princípios da arquitetura moderna, o conceito de
“conformidade” da construção:
Conformité au but poursuivi;
Conformité à la nature, morale et physique, de l’homme;
Conformité au site et au contexte bâti;
Conformité à la divine proportion, que la géométrie, c’est-à-dire la plus
haute logique, impose à toutes formes vivantes et aux logements de celles-ci.
Arquitetura e poesia: os laços entre Le Corbusier e João Cabral
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Arquitetura e poesia: os laços entre Le Corbusier e João Cabral

  • 1. 1 unesp UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” Faculdade de Ciências e Letras Campus de Araraquara - SP MARIA TEREZA DE FRANÇA ROLAND AAA CCCAAASSSAAA::: ESTREITOS LAÇOS ENTRE LITERATURA E ARQUITETURA ARARAQUARA – SP. 2008
  • 2. 2 MARIA TEREZA DE FRANÇA ROLAND AAA CCCAAASSSAAA::: ESTREITOS LAÇOS ENTRE LITERATURA E ARQUITETURA Tese de Doutorado, apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras, área de concentração: Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – Unesp/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Relações intersemióticas Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan ARARAQUARA – SP. 2008
  • 3. 3 MARIA TEREZA DE FRANÇA ROLAND Roland, Maria Tereza de França A casa: estreitos laços entre arquitetura e literatura / Maria Tereza de França Roland. – 2008 f : 159 Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Estadual Paulista, Araraquara, Faculdade de Ciências e Letras, Campus de Araraquara Orientador: Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan 1. Literatura Brasileira – Séc XX 2. Poesia Brasileira – Séc XX 3. Melo Neto, João Cabral. Quaderna 4. Arquitetura Moderna – Séc. XX 5. Le Corbusier I. Título
  • 4. 4 AAA CCCAAASSSAAA::: ESTREITOS LAÇOS ENTRE LITERATURA E ARQUITETURA Tese de Doutorado, apresentado Programa de Pós- Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do título de Doutor em Estudos Literários. Linha de pesquisa: Relações intersemióticas Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan Data de aprovação: 20/10/2008 MEMBROS COMPONENTES DA BANCA EXAMINADORA: Presidente e Orientador: Profa. Dra. Maria de Lourdes Ortiz Gandini Baldan. (Orientadora/ Presidente da banca) Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara Membro Titular: Prof. Dr. Mário Henrique Simão D’Agostino Universidade de São Paulo (FAUUSP) Membro Titular: Profª Drª Diana Junkes Martha Toneto Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) Membro Titular: Profª Drª Guacira Marcondes M. Leite Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara Membro Titular: Profª Drª Renata M. Facuri C. Marchezan Universidade Estadual Paulista – UNESP. Campus de Araraquara Local: Universidade Estadual Paulista Faculdade de Ciências e Letras UNESP – Campus de Araraquara
  • 5. 5 À Ude Baldan, orientadora e amiga, fonte inesgotável de entusiasmo e confiança. Ao Ignácio Assis Silva (in memorian), cuja inevitável presença, apesar da ausência, me estimulou a querer “encurtar a distância entre significação do espaço e o espaço de significação”. Aos meus pais, primeiros enformadores do olhar.
  • 6. 6 AGRADECIMENTOS Gostaria de agradecer a todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para a realização deste trabalho, em especial À Fafibe, pelo apoio financeiro. Aos amigos, professores e funcionários que colaboraram de diferentes maneiras com este trabalho. Sou grata à Profª Aparecida do Carmo Frigeri Berchior, Diretora Acadêmica, pela amizade e tolerância e a Paulo Ferrarezi, pelos abraços reconfortantes. Aos coordenadores dos cursos de Letras e de Comunicação Social do Imes-Fafica, Antônia Ângulo e Marcelo Lapuente, pelo apoio e compreensão nos momentos finais do trabalho. Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, com os quais tive a oportunidade de conviver e aprender nesses anos em que estive ligada ao programa. Aos amigos e colegas da Pós-Graduação pela convivência estimulante. Aos membros do Grupo CASA, pelos encontros que muito contribuíram para as reflexões necessárias à pesquisa. Aos funcionários da seção de pós-graduação, em especial, Clara Bombarda, por sua inesgotável atenção e paciência. Aos professores Mário Henrique e ao Arnaldo Cortina pelos questionamentos, sugestões e indicações bibliográficas feitas na qualificação. Aos amigos: Fernanda Zucarelli, Mariângela Vilkas, Rodrigo Martins, Cristiane Campanelli, Sandra Oliveira e Siumara Quintella que, consciente ou inconscientemente, partilharam comigo reflexões fundamentais para a realização e conclusão do trabalho. Nossos “cafés filosóficos” estão aí, implícitos. Sou profundamente grata àqueles que acompanharam mais de perto a realização da pesquisa: À minha orientadora Profª Drª Ude Baldan, pela orientação democrática, pela amizade, confiança e, sobretudo, pelo entusiasmo contagiante. À minha irmã Angélica, com quem dividi descobertas e incertezas. Sua participação ativa como leitora e interlocutora foram fundamentais. Às Anas (Júlia e Flávia) pela alegria de sentir-me em casa.
  • 7. 7 Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier. A poesia é composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída, planejada – de fora para dentro. Ninguém imagina que Picasso fez os quadros que fez porque estava inspirado. O problema dele era pegar a tela, estudar os espaços, os volumes. Eu só entendo o poético neste sentido. Vou fazer uma poesia de tal extensão, com tais e tais elementos, coisas que eu vou colocando como se fossem tijolos. É por isso que eu posso gastar anos fazendo um poema: porque existe planejamento. (em entrevista aos CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA: João Cabral de Melo Neto, 1996, p.21)
  • 8. 8 RESUMO O presente trabalho parte da hipótese de que as contribuições dos escritos e da arquitetura de Le Corbusier para a poesia de João Cabral de Melo Neto transcendem as influências ditadas pelo clima intelectual e artístico da época. É conhecido o interesse do poeta pelas artes plásticas e a simpatia pela idéia da construção da obra literária, que resultam numa poesia racionalmente elaborada, calculada e medida. Como no fazer arquitetônico, em que o projeto antecede a construção, o fazer poético é assumido como um processo de construção material precedido pelo exercício projetual baseado em premissas rigorosas de lucidez, clareza, contenção e cálculo. Leitor de Le Corbusier, João Cabral toma do ideário modernista traços formais e procedimentos de composição que ressaltam o despojamento, a precisão e a geometrização das formas construídas. Nada é dado pelo acaso; tudo é cálculo, obedecendo a um sistema rigoroso de construção. “Máquina de habitar” e “máquina de comover” são duas expressões usadas por Le Corbusier para definir sua concepção da arquitetura, em geral, e da casa, em particular: as funções prática e mítica do edifício-casa serão satisfeitas pela construção de edifícios projetados segundo a economia e o cálculo a fim de responder a necessidades humanas de habitação e de emoção plástica, alcançada com as formas simples da geometria. No entanto, não foi apenas a lição da economia e do cálculo, aprendida do arquiteto franco-suíço, que o poeta incorporou à sua obra. “Máquina de habitar” e “máquina de comover”, o objeto arquitetônico exige e pressupõe a criação de espaço interior que contenha o homem e com o qual ele possa interagir. E é nesse aspecto – da construção do espaço – que o diálogo de Cabral-Corbusier se mostra mais provocador: embora verbal e bidimensional, uma vez que as palavras são dispostas sobre um campo de dimensões planares – altura e largura -, a poesia de João Cabral é projetada e construída segundo estratégias de estruturação que permitem reconhecer o efeito de tridimensionalidade necessário para que a espacialidade se atualize. E, mais ainda, esse efeito de espacialidade arquitetônica convida o sujeito a experimentar esse espaço penetrando-o e movimentando-se em seu interior. As relações entre a poesia cabralina e a arquitetura corbusiana serão explicitadas através da apresentação do projeto estrutural que rege a construção de Quaderna, obra em que o diálogo arquitetura-poesia parece se realizar de forma mais plena, bem como da leitura de quatro dos poemas que a integram: “Estudos para uma bailadora andaluza”, “A mulher e a casa”, “O motorneiro de Caxangá” e “Jogos frutais”. Villa Savoye, de Le Corbusier, apresenta-se como referência arquitetônica para a leitura intersemiótica. Palavras – chave: João Cabral de Melo Neto. Le Corbusier. Literatura. Arquitetura. Relações intersemióticas.
  • 9. 9 RÉSUMÉ Ce travail part de l’hypothèse que l’apport des écrits et de l’architecture de Le Corbusier à la poésie de João Cabral de Melo Neto transcende les influences imposées par le climat intellectuel et artistique de l’époque. L’intérêt du poète pour les arts plastiques et son penchant pour l’idée de la construction de l’œuvre littéraire sont bien connus. Il en résulte une poésie rationnellement élaborée, calculée et mesurée. Tout comme le faire architectonique où le projet précède la construction, le faire poétique est conçu comme un processus de construction matérielle qui est précédé par l’exercice projetuel, lui-même basé sur des prémisses rigoureuses de lucidité, de clareté, de contention et de calcul. En tant que lecteur de Le Corbusier, João Cabral reprend dans les idées modernistes, des traits formels et des procédés de composition qui font ressortir le dépouillement, la précision et la géométrisation des formes construites. Rien n’est dû au hasard; tout est calculé et obéit à un système rigoureux de construction. “Machine à habiter” et “machine à émouvoir” sont deux expressions de Le Corbusier pour définir sa conception de l’architecture, en général, et de la maison, en particulier; les fonctions pratique et mythique de l’édifice-maison seront respectées par la construction d’édifices projetés selon l’économie et le calcul, afin de répondre aux besoins humains d’habitation et d’émotion plastique, une émotion qui sera suscitée par les formes simples de la géométrie. Néanmoins, le poète n’a pas seulement incorporé dans son œuvre la leçon d’économie et de calcul de l’architecte franco-suisse. “Machine à habiter” et “machine à émouvoir”, l’objet architectonique exige et présuppose la création de l’espace intérieur qui renferme l’homme et avec qui ce dernier peut interagir. Et, c’est sous cet aspect – de la construction de l’espace – que le dialogue Cabral-Corbusier se montre le plus provocateur: bien que verbale et bidimensionnelle, étant donné que les mots sont disposés sur un champ aux dimensions planes – hauteur et largeur-, la poésie de João Cabral est projetée et construite selon des stratégies de structuration qui permettent de retrouver l’effet de tridimensionnalité qui est nécessaire à la création d’une spatialité. Et mieux encore, cet effet de spatialité architectonique invite le sujet à expérimenter cet espace en y pénétrant et en s’y déplaçant. Les relations entre la poésie de Cabral et l’architecture de Le Corbusier seront explicitées à travers la présentation du projet structurel qui régit la construction de Quaderna, œuvre dans laquelle le dialogue architecture-poésie semble se faire d’une manière plus complète, et également à travers la lecture de quatre des poèmes qui la composent: “Estudos para uma bailadora andaluza”, “A mulher e a casa”, “O motorneiro de Caxangá” et “Jogos frutais”. La Villa Savoye de Le Corbusier constitue une référence architectonique pour la lecture intersémiotique. Mots-clés : João Cabral de Melo Neto. Le Corbusier. Littérature. Architecture. Relations intersémiotiques.
  • 10. 10 ABSTRACT This current work starts with the hipothesis that Le Corbusier´s writings and architecture towards João Cabral de Melo Neto transcend the influences dictated by the intellectual and artistic ambience of that time. The poet´s interest for plastic arts and likeness toward the idea of literary work construction is widely known, and it results in a rationally elaborate, calculated and measured poetry. As in the architectonic making, in which the project precedes the construction, poetic making is assumed like a process of material construction preceded by the projectual exercise based on strict lucidity, clarity, contention and calculation premises. A reader of Le Corbusier, João Cabral takes, from the modernist ideologies, formal features and composition procedures which emphasize the dispossession, accuracy and geometrization of the constructed forms. Nothing is given by chance; everything is calculated, obeying a strict construction system. “Machine à habiter” and “machine à émouvoir” are two expressions used by Le Corbusier to define his conception on architecture, in general, and on the house, in particular: the practical and mythical functions of the building/house will be met through the construction of buildings constructed according the economy and calculations in order to cater to human needs in living and plastic emotion, which is reached with the simple geometric forms. However, it was not only the economy and calculations lessons, learned from the French- Swiss architect, that the poet embodied into his work. “Machine à habiter” and “machine à émouvoir”, the architectonic object demands and presupposes the creation of interior space that contains man and with which he can interact. It is in this aspect – space construction – that the Cabral-Corbusier dialogue is more provocative: albeit verbal and bidimensional, once words are displayed on a field of plain dimensions – height and width – João Cabral´s poetry is projected and constructed according structuration strategies that allows recognizing the effect of tridimensionality, which is necessary so that spatiality updates itself. And, even more, this architectonic spatiality invites one to experiment this space by penetrating it and moving it in its interior. The relationships between Cabral´s poetry and Corbusian architecture will be disclosed through the presentation of the structural project that directs the Quaderna construction, a work in which the architecture-poetry dialogue seems to happen in a more complete form, as well as the reading of four of the poems that complete it: “Estudos para uma bailadora andaluza”, “A mulher e a casa”, “O motorneiro de Caxangá” and “Jogos frutais”. Le Corbusier´s Villa Savoye is an architectonic reference for intersemiotic reading. Key words: João Cabral de Melo Neto. Le Corbusier. Literature. Architecture. Intersemiotic relations.
  • 11. 11 SUMÁRIO CONSIDERAÇÕES INICIAIS ..............................................................................................p. 12 1. PROJETO E CONSTRUÇÃO DE QUADERNA .............................................................p. 23 2. REFLEXÕES SOBRE A CASA.........................................................................................p. 60 3. VILLA SAVOYE – LE CORBUSIER................................................................................p. 80 4. A ESPACIALIDADE ARQUITETÔNICA DE QUADERNA........................................p. 132 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................p. 153 REFERÊNCIAS.....................................................................................................................p. 156
  • 12. 12 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Arquitetura. Literatura. Um saber e um fazer que pensa, projeta e constrói espaços habitáveis utilizando-se de barro, pedra, tijolo, concreto etc. Um saber e um fazer que pensa, projeta e constrói espaços ficcionais utilizando-se de palavras. Um convite a habitar. Um convite a ler. Habitar e ler são mais do que usar. O uso pode ser reduzido a uma ação mecânica ou mecanizada pela rotina. Mas habitar e ler implicam relações conscientes, ativas, em que sujeito e objeto estão interligados pelo habitar e ser habitado, pelo ler e ser lido. Nesse sentido, o ato de ler pode ser considerado uma forma de habitar. O homem habita o espaço e é habitado por ele; o leitor habita a obra e é habitado por ela. Muitas vezes, porém, a rotina da vida cotidiana faz com que nos convertamos em meros usuários dos objetos com os quais nos relacionamos, arquitetônico ou literário. Muitas vezes, usamos o espaço, lemos um romance ou um poema mecanicamente, sem que nos conscientizemos da necessidade de habitá-los ou de que eles só se realizam plenamente na relação ativa com o habitante-leitor. Fora dessa relação, permanecem apenas como potencialidade. Um poema sem leitor não passa de um punhado de palavras dispostas no papel, à espera de ser lido; uma casa sem habitante também não passa de espaço vazio, sem vida, à espera de ser habitado. Esta pesquisa busca explorar as relações entre arquitetura e literatura e, para isso, algumas considerações iniciais servirão de balizas a fim de ajudarem a demarcar o território a ser visitado: 1) Arquitetura e literatura são formas distintas de manifestação artística, que unem a inteligência abstrata e racional à imaginação criadora na produção de obras de valor estético, autônomas e significativas. Apresentam-se, dessa forma, como construções humanas complexas, que envolvem conhecimento, invenção, expressão e produção, e revelam não apenas o universo socio-histórico-cultural em que foram produzidas, mas também um modo particular de encarar (assumir) e exercer a atividade criadora, a qual podemos chamar de projeto poético ou simplesmente poética, que rege o fazer artístico. Um exemplo de como podemos ler numa das falas finais de Raimundo, de Os três mal-amados, de João Cabral de Melo Neto: RAIMUNDO: Maria era também a folha em branco, barreira oposta ao rio impreciso que corre em regiões de alguma parte de nós mesmos. Nessa folha eu construirei um
  • 13. 13 objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento armado – presenças precisas e inalteráveis, opostas a minha fuga. (MELO NETO, 1994, p.63) Se consideramos o espaço, assim como a literatura, “como uma forma susceptível de erigir-se numa linguagem espacial que permite ‘falar’ de uma coisa diferente do espaço” (GREIMAS, 1981, p.116), estaremos tomando-os como linguagem, como significante que tem como significado o homem, a sociedade e seu contexto histórico e sócio-cultural. 2) Arquitetura e literatura são manifestações artísticas, porém, de naturezas distintas. A arquitetura se dedica à criação de espaços habitáveis, enquanto a literatura busca criar verbalmente simulacros da vida do homem no mundo, suas ações, pensamentos, sentimentos, dilemas existenciais, sociais, políticos, éticos e culturais. A matéria a ser enformada pela literatura é a palavra; a arquitetura, por sua vez, tem, à sua disposição, uma multiplicidade de materiais – tijolo, pedra, concreto, madeira etc. - para dar forma ao espaço interior1 , o verdadeiro objeto da arquitetura. Podemos estabelecer, assim, uma relação de homologia entre essas duas artes: arquitetura literatura Matéria tijolo2 palavra Substância da expressão extensão3 sons forma significante espaço poesia (texto literário) Em outras palavras, se a literatura simula a vida do homem no mundo, ela é também construtora de espaços ficcionais4 . A diferença entre essas duas modalidades de espaço criado 1 Nas palavras de Bruno Zevi, “o caráter essencial da arquitetura – o que faz distingui-la das outras atividades artísticas – está no fato de agir com um vocabulário tridimensional que inclui o homem. (...) a arquitetura é como uma grande escultura escavada, em cujo interior o homem penetra e caminha.” (ZEVI, 1978, p.17). Assim, nas palavras do autor, “o que não tem espaço interior não é arquitetura” (ZEVI, 1978, p.24). 2 Tijolo é apenas um exemplo; a relação permaneceria a mesma se ao invés de tijolo tivéssemos escrito pedra, concreto ou qualquer outro material utilizado na construção civil. 3 Segundo Greimas, a extensão “pode ser considerada como a substância que, uma vez enformada e transformada pelo homem, torna-se espaço, isto é, forma” significativa. (Greimas, 1981, p.115) 4 Não apenas de espaços ficcionais, é claro, mas também de personagens, ações, tempos etc. igualmente ficcionais.
  • 14. 14 reside na natureza verbal e “ficcional” do espaço literário e na natureza física e “real”, do espaço arquitetônico. É preciso não esquecer, porém, que é a existência do espaço interior habitável que faz da arquitetura, arquitetura, e não a plasticidade da caixa mural, embora seja ela quem dá forma ao espaço interior, ao recortá-lo da continuidade do espaço exterior: a arquitetura não provém de um conjunto de larguras, comprimentos, e alturas dos elementos construtivos que contêm o espaço, mas precisamente do vácuo, do espaço contido, do espaço interior em que os homens andam e vivem. (ZEVI, 1978, p.18) 3) Ao contrário das demais artes, que não precisam responder a finalidades objetivas imediatas (entre as quais se encontra a literatura), a construção de um edifício, qualquer que seja ele, é dependente da utilidade prática imediata a que se destina. Ariano Suassuna fala em “Artes úteis” e “Belas Artes”: certas Artes, como a Arquitetura, são quase que um meio caminho entre as Artes úteis e as chamadas Belas Artes, pelo que devemos considerar, primeiro, a necessidade em que se viu o homem, primeiro de construir abrigos ou casas, e depois de construir casas e templos belos, como impulso artístico humano igual aos outros. (SUASSUNA, 2005, p. 280-1) E acrescenta: Na verdade, a Arquitetura, além de procurar, como as outras Artes, a criação da Beleza, possui sempre um objetivo de destinação prática e dependente, mais do que qualquer outra, de condições alheias à vontade livre do artista, pois a obra a fazer, o prédio a construir, deverá servir de moradia, de templo, de casa comercial, de fábrica etc., de modo que, nela, até as condições sociais da comunidade interferem, de maneira mais direta e forte, no trabalho de criação. (SUASSUNA, 2005, p. 300) Assim, quando falamos em objeto arquitetônico destinado a servir como habitação humana, como escola, teatro, templo etc., duas considerações se fazem necessárias: por um lado, o objeto arquitetônico apresenta-se como algo feito para atender a necessidades específicas, definidas pelo que, em arquitetura, chama-se programa arquitetônico. Esse programa considera primeiramente o uso futuro a que o edifício se destinará e as necessidades espaciais decorrentes
  • 15. 15 desse uso (número e tipo de cômodos, fluxo entre os cômodos, acessibilidade, altura do pé direito, aberturas etc.). A esse uso e às necessidades dele decorrentes, somam-se outras determinantes que condicionam o projeto, tais como: a topografia do terreno, as construções do entorno, a orientação solar, as verbas disponíveis, a legislação e código de edificações, necessidades técnicas (ligadas à estabilidade estrutural, ao conforto ambiental e acústico, por exemplo). Todas essas exigências de ordem prática balizarão o fazer do arquiteto, desde a definição do partido arquitetônico a ser adotado (matriz formal que sintetiza intenções estético- espaciais do arquiteto para cada projeto específico) até a construção do edifício. O que significa dizer que um objeto arquitetônico particular é definido por uma somatória de elementos que vão desde a edificação em si (solução espacial, técnica e estética dada à caixa mural) à adequação do espaço para o seu uso futuro. Em outras palavras, se a solução estético-espacial conferida à caixa mural é um dos elementos que participam da definição das qualidades espaciais do edifício, o uso de um edifício construído - uma casa, uma igreja, uma escola, um supermercado etc. – é definido pela sua função prática. A propósito da casa, por exemplo, Ludmila Brandão escreve: Note-se que ‘casa’ não é apenas a edificação, o conjunto arquitetônico, ainda que possa ser tomado como tal, até porque o que a define, em arquitetura, não é a configuração espacial, mas o seu uso. Grosso modo, a casa seria resultante de uma modalidade de uso de um espaço construído, ou seja, quando atendesse às funções previstas para operar como ‘uma casa’. (BRANDÃO, 2002, p.64) Uma obra literária – um poema, um romance, um conto etc. -, ao contrário da obra arquitetônica, não se define pelo seu uso, mas pela sua construção. A respeito da literatura, reproduzimos abaixo o que dizem Antonio Candido e Leyla Perrone-Moisés: Analisando-a, podemos distinguir pelo menos três faces: (1) ela é uma construção de objetos autônomos como estrutura e significado; (2) ela é uma forma de expressão, isto é, manifesta emoções e a visão do mundo dos indivíduos e dos grupos; (3) ela é uma forma de conhecimento, inclusive como incorporação difusa e inconsciente. Em geral pensamos que a literatura atua sobre nós devido ao terceiro aspecto, isto é, porque transmite uma espécie de conhecimentos, que resulta em aprendizado, como se ela fosse um tipo de instrução. Mas não é assim. O efeito das produções literárias é devido à atuação simultânea dos três aspectos, embora costumemos pensar menos no primeiro, que corresponde à maneira pela qual a
  • 16. 16 mensagem é construída: mas esta maneira é o aspecto, senão mais importante, com certeza crucial, porque é o que decide se uma comunicação é literária ou não. (CANDIDO, 2004, p.176-7). A literatura é arte (...); como representação, expressão ou documento histórico- ideológico, a obra literária pode servir a outras disciplinas; mas a crítica literária, embora necessite de apoio em outras disciplinas, é em primeiro lugar crítica estética. Mesmo em suas formas mais fantásticas e “artificiais”, a literatura não se separa do mundo; entretanto, sua relação com ele é indireta, filtrada por inúmeras mediações. Seus efeitos sobre o real também são indiretos, incomensuráveis em termos práticos, mas sensíveis em termos de valorização da práxis. Daí sua “inutilidade” e sua indispensabilidade. (PERRONE-MOISÉS, 2000, p.13) 4) Porém, retomando a afirmação de Ludmila Brandão citada acima, se “‘casa’ não é apenas edificação”, se é resultante de um tipo específico de uso do espaço construído, se só se realiza enquanto casa quando atende “às funções previstas para operar como ‘uma casa’”, não é possível tomá-la apenas como objeto. O caráter instrumental do objeto arquitetônico (seja ele casa, igreja ou outro qualquer) o situa numa posição intermediária entre a categoria dos objetos e a dos sujeitos. Atendendo às “funções previstas para operar como uma ‘casa’”, torna-se partícipe da ação de habitar e permite vê-la tanto como objeto quanto como sujeito que participa da criação de efeitos de sentido de “estar-em-casa” (ou não). Quando afirmamos que o espaço participa da criação de efeitos de sentido, estamos dizendo que a ação do sujeito-espaço não é determinista, não impõe uma maneira ou sensação de habitar. Afirmar isso seria simplificar a relação que estabelece com o homem que habita o espaço. Pelo contrário, um mesmo espaço arquitetônico pode criar efeitos de sentido de opressão ou de bem-estar para diferentes habitantes, dependendo das condições gerais de habitação (físicas, emocionais, históricas, sociais, econômicas etc.). Assim, o objeto arquitetônico que abrigará uma escola, um templo, uma casa ou outra função qualquer, somente cumprirá seu destino (somente terá sua função prática realizada) na relação com os seres humanos que o habitarão. Segundo Bloomer e Moore, a experiência do edifício se fundamenta na experiência corporal: Nosotros entendemos que el sentido de tridimensionalidad, que es para nosotros el más fundamental y memorable, tiene su origen en la experiencia corporal, y que es este sentido el que puede servirnos de base para la compreensión del sentimiento espacial que experimentamos en los edificios. (BLOOMER; MOORE, 1983, p.10)
  • 17. 17 A arquitetura é, portanto, uma arte corporal e, por isso, a observação das relações entre corpo e espaço, entre sujeito e objeto, são fundamentais para sua compreensão: Estamos convencidos de que si no entendemos la manera en que los individuos y las comunidades se vem afectadas por los edificios, en qué modo éstos proporcionan a las personas sentimientos de gozo, identidad y lugar, nunca podremos distinguir la arquitectura de otras actividades constructivas cotidianas. (BLOOMER; MOORE, 1983, p.9) Assim, podemos dizer que, por incluir o homem, a função prática pressupõe solicitações que transcendem o pragmatismo de seu destino: para além da simples caixa habitável, o objeto arquitetônico guarda, inscritas em seus espaços, aberturas e fechamentos, solicitações advindas de sua função mítica e simbólica. Por exemplo, a função de sensibilização para a intimidade, aconchego, proteção, conforto, se for uma casa, ou de sensibilização para o encontro com Deus, para o encontro do humano com o sobre-humano, do natural com o sobrenatural, do profano com o sagrado, se for uma igreja. Em outras palavras, o espaço da casa ou o da igreja devem receber sobredeterminações dos componentes figurativos que sirvam de suporte à configuração temática de estar “em casa” ou “na casa de Deus”. São volumes, formas, cores, perfumes, sons, afetos, presenças e memória que ganham significado e existência pela relação entre o espaço e seu habitante. Ainda nas palavras de Ludmila Brandão, podemos dizer que, como na arte, a casa é um ser de sensação, um composto de perceptos e afectos que emerge dessa bricolage material e imaterial, dessa conjunção de elementos heterogêneos de toda ordem, que a todo momento se resume num só enunciado: - estou em casa! O expressivo é, por isso, primeiro em relação ao possessivo. (BRANDÃO, 2002, p.65) 5) Em Introdução à estética, Ariano Suassuna toma a classificação de Dessoir, que faz a seguinte divisão entre as artes: Dessoir classifica as Artes em espaciais – ou do repouso – e temporais – ou do movimento. As Artes espaciais caracterizam-se por elementos justapostos; são as
  • 18. 18 Artes plásticas, Escultura, Pintura e Arquitetura. As Artes temporais caracterizam-se por elementos sucessivos; têm como meios de realização, execução e interpretação os sons e os gestos; são a Mímica, a Literatura e a Música. (SUASSUNA, 2005, p. 287-8) Discordamos dessa classificação no que diz respeito ao repouso e aos elementos justapostos atribuído às artes espaciais. Acreditamos haver, também, movimento e sucessividade nas obras de arte consideradas espaciais, assim como na fruição e contemplação delas, principalmente no caso da arquitetura. A representação gráfica do espaço própria da linguagem arquitetônica, que o reduz a duas dimensões (se representado em corte, elevação ou fachada) ou três dimensões (em perspectiva - altura, profundidade e largura), induz-nos a menosprezar um dos elementos que participam da constituição da espacialidade: o tempo. Nesse sentido, é esclarecedora a apresentação que Bruno Zevi faz a respeito da “quarta dimensão” da perspectiva: A quarta dimensão pareceu corresponder rigorosamente ao requisito das dimensões da arquitetura. (...) Na arquitetura – conforme se calculou – existe o mesmo elemento “tempo”; além disso, este elemento é indispensável à atividade construtora: da primeira cabana, da primeira caverna do homem primitivo à nossa casa, à igreja, à escola, ao escritório onde trabalhamos, todas as obras de arquitetura: para serem compreendidas e vividas, requerem o tempo da nossa caminhada, a quarta dimensão. (ZEVI, 1978, p.22-3) Zevi acrescenta, porém, que as quatro dimensões (altura, largura, profundidade e tempo) são suficientes para definir o “volume arquitetônico” ou “caixa mural” que contém o espaço. Entretanto, para dar conta do espaço em si – protagonista da arquitetura - seria necessário considerar outras infinitas dimensões, em busca de elementos que pudessem determinar a experiência espacial (corporal, já vimos) que a obra arquitetônica proporciona. Nesse sentido, a arquitetura pode se aproximar de um tipo de literatura que não apenas represente o espaço (narrando ou descrevendo), mas efetivamente “crie” espaços com palavras (como acreditamos ser o caso da poesia de João Cabral de Melo Neto). Voltando à divisão estabelecida por Dessoir, também nos parece insuficiente a classificação da literatura como arte temporal, do movimento, caracterizada por elementos sucessivos. Ora, a literatura, a partir do momento em que passou a ser escrita ou impressa, ganhou um componente visual que, em maior ou menor grau, pode ser também significativo. A
  • 19. 19 disposição gráfica das palavras no papel pode chegar a um nível de complexidade tão alto que torna possível identificar a existência (implícita ou explícita, como no caso da poesia concretista, por exemplo) de um projeto gráfico que rege a sua visualidade. E, nesse caso, pode ser considerada muito próxima das artes ditas espaciais ou “do repouso”, como quer Dessoir, ou simplesmente artes plásticas ou visuais. 6) Vimos que a arquitetura constrói espaços físicos, com contornos materiais precisos, em que se pode penetrar e habitar, enquanto a literatura escreve e constrói espaços de palavras e papel, habitados por personagens, e que podem convocar, também, o leitor a penetrar e habitar. E assim como a experiência do espaço arquitetônico se faz na interação homem-espaço, o fazer literário pode ir além de “falar” sobre o espaço (narrar, descrever ou poetizar) e efetivamente criar efeitos de sentido de espacialidade que podem exercer um poder de afecção sobre o leitor, promovendo uma experiência que é também corporal, estésica (e cinestésica), assim como a experiência do espaço arquitetônico. Porém, tanto a obra arquitetônica como a literária são autônomas. Embora haja um arquiteto responsável pela sua idealização e concepção, ele não pode controlar o uso e o comportamento das pessoas no espaço construído, assim como o poeta não pode controlar totalmente as leituras e interpretações de sua obra. Ambos podem, sim, lançar mão de procedimentos que criem os efeitos de sentido desejados. Dessa forma, se por um lado o espaço traz em si uma capacidade de afecção, apresentando-se como uma espécie de sujeito que age sobre as pessoas, por outro lado esse sujeito-espaço também sofre a ação dos seus habitantes. Se a arquitetura produz sensações, sensibilidades, independente das intenções primeiras do arquiteto, essas sensações são produzidas na interação com outros elementos espaciais (materiais ou não) e na interação com os seres humanos. A arquitetura é, portanto, por um lado, produtora de sensação, de sentido e de subjetividade e, por outro, produto dessas mesmas sensações e subjetividades. Assim, nem o espaço arquitetônico pode ser concebido apenas como lugar, sítio ou receptáculo, cenário neutro, onde se situam pessoas e acontecimentos, nem a literatura pode ser encarada como uma espécie de documento, de registro em que se pode buscar a memória de práticas arquitetônicas. O espaço arquitetônico não é um receptáculo neutro, uma vez que os acontecimentos não se dão num espaço, mas participam da produção desse espaço, interagindo
  • 20. 20 com os elementos propriamente espaciais e com as pessoas. Por sua vez, o fazer literário, ao escrever o espaço, nem sempre se restringe a descrevê-lo; mais do que isso, é capaz de produzir textos-espaços que convocam não apenas os olhos e o intelecto na sua fruição, mas, sobretudo, que mobilizam os sentidos do leitor. Dennis Bertrand fala em uma capacidade de “produzir e restituir parcialmente significações análogas às de nossas experiências perceptivas mais concretas” (BERTRAND, 2003, p.154). Tomando, pois, a habitabilidade como um traço comum à arquitetura e à literatura, elegemos a casa, objeto arquitetônico construído a fim de servir como habitação humana, como eixo norteador de nossos estudos e assunto para o cotejo intersemiótico. Pensar sobre a casa e sobre a poesia é também pensar sobre a casa como poesia, revelando uma poética, e a poesia como casa, que dá lugar a relações íntimas entre sujeitos e entre sujeito e objeto (freqüentemente tornado sujeito). As leituras para a seleção do corpus nos levaram ao poema “A mulher e a casa”, de João Cabral de Melo Neto. Leitor de Le Corbusier, João Cabral toma do ideário modernista traços formais e procedimentos de composição que ressaltam o despojamento, a precisão e a geometrização das formas. A afinidade do poeta com o arquiteto franco-suiço definiu as coordenadas do território onde nos situaríamos: o cotejo entre a arquitetura de Le Corbusier e a poesia de João Cabral de Melo Neto. Partimos da hipótese de que as contribuições dos escritos e da arquitetura de Le Corbusier para a poesia de João Cabral transcendem as influências ditadas pelo clima intelectual e artístico da época. É conhecido o interesse do poeta pelas artes plásticas e a simpatia pela idéia da construção da obra literária, que resultam numa poesia racionalmente elaborada, calculada e medida. Como no fazer arquitetônico, em que o projeto antecede a construção, o fazer poético cabralino é assumido como um processo de construção material precedido pelo exercício projetual baseado em premissas rigorosas de lucidez, clareza, contenção e cálculo. Nada é dado pelo acaso; tudo é cálculo, obedecendo a um sistema rigoroso de construção. “Máquina de habitar” e “máquina de comover” são duas expressões usadas por Le Corbusier para definir sua concepção da arquitetura, em geral, e da casa, em particular: as funções prática e mítica do edifício-casa serão satisfeitas pela construção de edifícios projetados segundo a economia e o cálculo a fim de responder a necessidades humanas de habitação e de
  • 21. 21 emoção plástica, alcançada com as formas simples da geometria. A referência à obra do arquiteto é constante, não apenas em entrevistas e depoimentos dados pelo poeta, como em sua obra, explicitada, por exemplo, pela epígrafe do livro O engenheiro: “...machine à èmouvoir”. No entanto, acreditamos, não foi apenas a lição da economia e do cálculo, aprendida do arquiteto franco-suíço, que o poeta incorporou à sua obra. “Máquina de habitar” e “máquina de comover”, o objeto arquitetônico exige e pressupõe a criação de espaço interior que contenha o homem e com o qual ele possa interagir. E é nesse aspecto – da construção do espaço – que o diálogo de Cabral-Corbusier se mostra mais provocador: embora verbal e bidimensional, uma vez que as palavras são dispostas sobre um campo de dimensões planares – altura e largura -, a poesia de João Cabral é projetada e construída segundo estratégias de estruturação que permitem reconhecer o efeito de tridimensionalidade necessário para que a espacialidade se atualize. E, mais ainda, esse efeito de espacialidade arquitetônica convida o sujeito a experimentar esse espaço penetrando-o e movimentando-se em seu interior. As relações entre a poesia cabralina e a arquitetura corbusiana serão examinadas e explicitadas, assim, seguindo o seguinte percurso: o Capítulo 1, traz a apresentação das etapas de elaboração e desenvolvimento do projeto que rege a construção de Quaderna, desde os primeiros “croquis”, presentes no livro Os três mal-amados. A apresentação não tem o rigor de um levantamento histórico, mas apenas procura captar registros mais significativos desse diálogo com a obra teórica e arquitetônica de Le Corbusier; no Capítulo 2, procuramos apresentar algumas reflexões que julgamos fundamentais para o entendimento do conceito moderno de casa, objeto arquitetônico de referência para o cotejo literatura-arquitetura, João Cabral-Le Corbusier; no Capítulo 3 apresentamos o projeto da Villa Savoye, obra paradigmática, construída no final da década de 1920, que sintetiza o pensamento corbusiano desta fase. Tomamos a Villa Savoye como referência arquitetônica para a leitura intersemiótica apresentada no Capítulo 4.
  • 22. 22 para uns [a composição] é o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros o de elaborar a poesia em poema; (...) para uns é o momento inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de uma procura... (MELO NETO, 1994, p.723)
  • 23. 23 1. PROJETO E CONSTRUÇÃO DE QUADERNA Escrita entre 1956 e 1959, durante a segunda temporada de João Cabral na Espanha, a obra Quaderna é composta por vinte poemas em que as referências a elementos da cultura e da paisagem espanholas, à paisagem nordestina e ao feminino revelam-se instrumentos de reflexão sobre a realidade e sobre o próprio fazer poético. Segundo Secchin, com este livro, João Cabral Retoma uma abrangência temática já expressa em Paisagens com figuras: o Nordeste, a Espanha, e o diálogo entre ambos, marcados pelo vetor comum de uma condição humana definida pelos signos da carência e do menos. Quaderna, todavia, não se limita a esse horizonte: pela primeira vez na obra cabralina destaca-se a presença do feminino como referência do poema. (SECCHIN, 1985, p.133) Condição humana e realidade de um lado, problematização do poema e metalinguagem de outro. Despojamento, prevalência da visibilidade plástica geometrizada, presentificação do concreto em sua substantividade desadjetivada, preocupação com a função comunicativa da poesia e metalinguagem são características presentes na poesia cabralina, não apenas nas obras acima mencionadas, mas desde a primeira obra, Pedra do sono, publicada em 1942: Neste livro [Pedra do sono] já se encontram em germe algumas das qualidades da poesia cabralina: o despojamento, o gôsto pela imagem visual, de táctil substantividade (“No espaço do jornal / a sombra come a laranja”), aquilo que Cabral diz ter aprendido com a poesia de Murilo Mendes (“dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo”), e algo que sem dúvida aprendeu com a gente de 22 e apurou com Drummond, certo humor seco servido por uma ágil manipulação de sintagmas extraídos diretamente do coloquial e postos em contraste com outras áreas mais “puras” de seu vocabulário, para aquêle efeito de choque ou dialética – que sempre o interessou – entre poesia e prosa. O poeta começa também a debruçar-se criticamente sobre o próprio poema (CAMPOS, 1967, p.69) O que aparece “em germe” em Pedra do sono vai se definindo enquanto projeto nas obras seguintes (Cf. BARBOSA, 1975). A tematização do poema e a discussão das modalidades de expressão poética podem ser observadas nas “falas” das personagens drummondianas de Os três mal-amados, obra de 1943, que, metalingüisticamente, ao falarem de seu objeto de amor, falam da poesia. Se, conforme aponta João Alexandre Barbosa (BARBOSA, 1975, p. 36-7), as falas de
  • 24. 24 João remetem ao universo do livro de estréia e as de Joaquim mantêm a prevalência emocional, nas falas de Raimundo, encontramos a síntese do parti pris5 conceitual e programático que regerá a obra de João Cabral como um todo: RAIMUNDO: Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de todos os detalhes de seu corpo, que poderia reconstruir à minha vontade. Sua boca, seu riso irregular. Todos esses detalhes não me seria difícil arrumá-los, recompondo-a, como num jogo de armar ou uma prancha anatômica (OC, p.606 ) RAIMUNDO: Maria era também o jornal. O mundo ainda quente, em sua última edição e mais recente. (OC, p.62) RAIMUNDO: Maria era também a folha em branco, barreira oposta ao rio impreciso que corre em regiões de alguma parte de nós mesmos. Nessa folha eu construirei um objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento armado – presenças precisas e inalteráveis, opostas a minha fuga. (OC, p.63) RAIMUNDO: Maria era também o sistema estabelecido de antemão, o fim onde chegar. Era a lucidez, que, ela só, nos pode dar um modo novo e completo de ver uma flor, de ler um verso. (OC, p.64) Segundo o crítico, as falas de Raimundo contêm não apenas a definição do poeta pela construção do objeto, mas também “uma lição de compromisso (...) com a própria relação que se 5 Solução proposta ou escolhida para resolver uma situação. Em arquitetura, parti pris ou partido arquitetônico são as diretrizes gerais adotadas no projeto, expressas pela concepção formal da obra a ser construída. Diz respeito à distribuição das massas construídas no terreno em que será implantado o edifício, aos volumes das edificações, à proporção entre cheios e vazios, aos principais materiais e técnicas construtivas a serem empregados na construção. Resulta da consideração de uma série de determinantes que condicionam o projeto: o programa do edifício, a topografia do terreno, o clima, a orientação solar, materiais e verba disponíveis para a construção, código de edificações e a intenção plástica do arquiteto. Por exemplo, um partido horizontal é aquele em que predominam as formas e circulação horizontais e um partido vertical aquele em que predominam formas e circulação verticais. (Cf, ALBERNAZ; LIMA, 1998) 6 As citações e transcrições de poemas, fragmentos da obra poética ou dos textos críticos-teóricos de João Cabral referem-se à edição de 1994 da Obra completa: volume único / João Cabral de Melo Neto, pela Editora Nova Aguilar. Quando houver o uso de outra edição, será devidamente indicado.
  • 25. 25 estabelece, pelo próprio ato de construção, entre o poeta e o seu objeto.” (BARBOSA, 1975, p.37). A Maria-poesia é praia freqüentada, cujo ar livre e luz delimitam e iluminam - com exatidão e nitidez - os gestos do poeta; é fonte que jorra em tempo, espaço e forma previstos e determinados pela vontade do poeta; é corpo conhecido e construído como prancha anatômica; é campo percorrido; é árvore (objeto “sólido” e “prático”) que se planta na terra e lança os galhos para o céu; é aguardente que permite ouvir o rumor dos sonhos que serão submetidos à vontade do poeta; é jornal que traz notícias do mundo; é livro que permite entender e construir a realidade e o poema; é a folha em branco, em que será construído o objeto sólido a ser imitado e que definirá o poeta. Nas palavras de João Alexandre, “o que o poeta imita, e o que o define, é sua construção”. (BARBOSA, 1975, p.38). Como no fazer arquitetônico, em que o projeto antecede a construção, o fazer poético é assumido como um processo de construção material precedido pelo exercício projetual baseado em premissas rigorosas de lucidez, clareza, despojamento e cálculo (o “sistema estabelecido de antemão”). Esse projeto, previsto e determinado pela vontade do poeta, resultará numa construção que é, simultaneamente, celebração e prática de uma poesia racional que rejeita qualquer possibilidade de intervenção da inspiração e do acaso. Opção que será explicitada teoricamente na conferência que proferiu em 1952, intitulada “Poesia e composição: a inspiração e o trabalho de arte”, em que se pode ler: não se pode negar que essa atitude [que aceita o predomínio do trabalho de arte] pode contribuir para uma melhor realização artística do poema, pode criar o poema objetivo, o poema no qual não entra para nada o espetáculo de seu autor e, ao mesmo tempo, pode fornecer do homem que escreve uma imagem perfeitamente digna de ser que dirige sua obra e é senhor de seus gestos. Nestes poetas já o trabalho artístico não se limita ao retoque, de bom gosto de boa economia, ao material que o instinto fornece. O trabalho artístico é, aqui, a origem do próprio poema. Não é o olho crítico posterior à obra. O poema é escrito pelo olho crítico, por um crítico que elabora as experiências que antes vivera, como poeta. Nestes poetas, geralmente, não é o poema que se impõe. Eles se impõem o poema, e o fazem geralmente a partir de um tema, escolhido por sua vez, a partir de um motivo racional. (OC, p.733) Mais adiante, na mesma conferência, o poeta refere-se ao poema resultante desse fazer construtivo como sendo
  • 26. 26 raramente um corte num objeto ou um aspecto particular de um objeto visto pela luz especial de um momento. Durante seu trablaho, o poeta vira seu objeto nos dedos, iluminando-o por todos os lados. E é ainda seu trabalho que lhe vai permitir desligar-se do objeto criado. Este será um organismo acabado, capaz de vida própria. É um filho, com vida independente, e não um membro que se amputa, incompleto e incapaz de viver por si mesmo. (OC, 734) Na obra poética seguinte, O engenheiro, de 1945, João Cabral enuncia, no título e na epígrafe que traz a conhecida frase de Le Corbusier "...machine à émouvoir”, a adesão às propostas do arquiteto franco-suíço, veiculadas em obras como Depois do Cubismo, publicada em 1918 (OZENFANT; JEANNERET, 2005), na série de artigos sobre a arquitetura, escritos nos anos 1920-21 para a revista L’Esprit Nouveau, reunidos, em 1923, em Por uma arquitetura (CORBUSIER, 2004), e em obras posteriores, como A arte decorativa (CORBUSIER, 1996), de 1925 e La maison des hommes, de 1942, assinado conjuntamente com François de Pierrefeu (PIERREFEU; CORBUSIER, 1942). Em Depois do Cubismo, Amédée Ozenfant e Charles-Edouard Jeanneret (que mais tarde adotaria o nome de Le Corbusier) discutem a crise do cubismo, reconhecendo o mérito dos cubistas por terem compreendido as lições de seus precursores (Ingres, Coubert, Cézzane etc.), no que diz respeito à submissão do tema à plástica e à redução do real às formas geométricas, mas criticando, porém, uma suposta tendência cubista ao ornamental ou decorativo a que acreditavam ter levado a fragmentação excessiva do objeto. Além disso, os autores discutem a situação da arte e o papel social do artista e do intelectual no novo universo marcado pela industrialização e pela guerra. Neste contexto de modernidade, a máquina representava não apenas o avanço tecnológico e econômico e a possibilidade de domínio racional e científico da natureza, como também representava a possibilidade de renovação social e artística. O desenvolvimento econômico e tecnológico teria seu reflexo estético na renovação das várias linguagens artísticas, pela assimilação de características maquinistas (como velocidade e simultaneidade, funcionalidade e racionalidade, vistas como princípios impulsionadores da experimentação artística), enquanto a contrapartida social e ética se faria sentir no questionamento e renovação da função social da arte e do artista. Para Ozenfant e Jeanneret,
  • 27. 27 dado que o espírito científico se desenvolverá cada vez mais e com ele a indústria: ou bem a arte será a de uma época de ciência, e não pode permanecer no estado atual; ou não será a arte de uma época de ciência e cessará de existir. Pois toda arte que deixa de ser de sua época morre. A ciência progride somente à força de rigor. O espírito atual é uma tendência ao rigor, à precisão, à melhor utilização das forças e das matérias, à mínima perda, enfim uma tendência à pureza. Essa é também a definição da arte. (OZENFANT; JEANNERET, 2005, p.50) Os autores criticam também a arquitetura, que teria se transformado em mera decoração e estaria morta, se não fosse o trabalho dos engenheiros, cujas obras mostravam-se regidas por uma “pureza” de princípios construtivos, pelo rigor do cálculo, pelo número. Aliás, “Purismo” é o termo proposto por Ozenfant e Jeanneret para definir e caracterizar a arte e o espírito modernos posteriores ao cubismo. Segundo essa concepção de arte, a obra deve pautar-se pelo reconhecimento de invariantes plásticas e sua materialização deve propor uma construção rigorosa, clara, simples, pura, avessa a qualquer interferência do acaso: A pintura deve propor construções tão claras quanto a geometria; elas poderão parecer ainda mais emocionantes com a intervenção da sensibilidade ao fazer participar o fator humano. Mas isso implica uma realização completa que não deixa nenhum lugar ao acaso. O acaso é réprobo da arte; é o contrário da arte. (OZENFANT; JEANNERET, 2005, p.77) Nos textos sobre a arquitetura, escritos para a revista L’Esprit Nouveau (1920-1), reunidos em Por uma arquitetura (CORBUSIER, 2004), Le Corbusier volta a exaltar a estética do engenheiro e retoma as críticas à arquitetura, presentes em Depois do cubismo. Economia, cálculo e a produção industrial devem servir de modelo para a criação artística. A lei da economia e do cálculo, aprendida com os engenheiros, implica uma concepção da obra de arte avessa a tudo que for desnecessário ou supérfluo: Os florões, as lâmpadas e as guirlandas, as ovais rebuscadas onde pombas triangulares se beijam e se entrebeijam, as alcovas guarnecidas de almofadas em forma de abóbadas de veludo, de ouro e de preto, não são mais que os testemunhos insuportáveis de um espírito morto. Estes santuários asfixiados dos bem-pensantes ou por outro lado as besteiras “gagás” dos caipiras nos ofendem. Habituamo-nos ao ar livre e à luz plena. (CORBUSIER, 2004, p.61)
  • 28. 28 E ainda: Os arquitetos vivem na estreiteza das aquisições escolares, na ignorância das novas regras de construir, e suas concepções param habitualmente nas pombas que se entrebeijam. Mas os construtores de transatlânticos, ousados e sábios, realizam palácios junto dos quais as catedrais são bem pequenas: e eles os atiram na água! A arquitetura asfixia-se nos hábitos. (LE CORBUSIER, 2004, p.61) Sob esse ponto de vista, a obra de arte deve ser regida pela pureza de princípios construtivos dos instrumentos mecânicos, construídos para funcionar com exatidão e eficiência. A lição da máquina, aprendida com esses instrumentos produtivos da indústria, corrobora essa concepção de arte que tem como premissa o rigor inerente à lógica de construção e o funcionamento das máquinas, sem abdicar de sua função de satisfazer necessidades humanas: a máquina é concebida pelo homem para responder a necessidades humanas. Para Le Corbusier, a máquina – avião, navio, automóvel ou casa - é e deve ser resposta a um “problema bem colocado”: A lição do avião não está tanto nas formas criadas e, para começar, é preciso aprender a não ver em um avião um pássaro ou uma libélula, mas uma máquina de voar; a lição do avião está na lógica que presidiu ao enunciado do problema e que conduziu ao sucesso de sua realização. Quando um problema é colocado, na nossa época, sua solução é fatalmente encontrada. (CORBUSIER, 2004, p.71) Assim, a arte, e em especial a arquitetura, deveria abandonar a estética ornamental (decorativa e fútil) em favor da estética da indústria moderna. A casa, encarada como uma “máquina de morar”, deveria ser concebida com lucidez e precisão por um espírito novo e responder a necessidades humanas (físicas e emocionais). Desse modo, Le Corbusier não apenas elogiava a estética do engenheiro e criticava a arquitetura que resistia às mudanças, como também apontava para as diferenças de base que caracterizavam o fazer do engenheiro e o do arquiteto da época. Para ele,
  • 29. 29 Os engenheiros fazem arquitetura porque empregam um cálculo saído das leis da natureza e suas obras nos fazem sentir a HARMONIA. Existe então uma estética do engenheiro, pois é preciso, ao calcular, quantificar certos termos da equação, e aí é o gosto que intervém. Ora, quando se maneja o cálculo estamos num estado de espírito puro e, neste estado de espírito, o gosto segue caminhos seguros. (...) Ora, hoje são os engenheiros que conhecem, que conhecem a maneira de sustentar, de aquecer, de ventilar, de iluminar. (...) O diagnóstico é que, para começar pelo começo, o engenheiro que procede por conhecimento mostra o caminho e tem a verdade. É que a arquitetura, que é coisa de emoção plástica, deve, no seu domínio, COMEÇAR PELO COMEÇO TAMBÉM E EMPREGAR OS ELEMENTOS SUSCETÍVEIS DE ATINGIR NOSSOS SENTIDOS, DE SATISFAZER NOSSOS DESEJOS VISUAIS, e dispô-los de tal maneira QUE SUA VISÃO NOS AFETE CLARAMENTE pela delicadeza ou pela brutalidade, pelo tumultuo ou pela serenidade, pela indiferença ou pelo interesse; estes elementos são elementos plásticos, formas que nossos olhos vêem claramente, que nosso espírito mede. Essas formas primárias ou sutis, brandas ou toscas, agem fisiologicamente sobre nossos sentidos (esfera, cubo, cilindro, horizontal, vertical, oblíqua etc.) e os comovem. Sendo afetados, somos suscetíveis de perceber além das sensações grosseiras; nascerão então certas relações, que agem sobre nossa consciência e nos conduzem a um estado de júbilo (concordância com as leis do universo que nos dirigem e às quais todos os nossos atos se submetem) em que o homem usa plenamente de seus sons de lembrança, de exame, de raciocínio, de criação. A arquitetura, hoje, não se lembra mais daquilo que a começa. (CORBUSIER, 2004, p. 7 – grifos do autor) Em outras palavras, se a arquitetura pressupõe a exatidão do cálculo que está no centro do pensamento da engenharia, e deve considerá-la, vai além dela; enquanto a matemática utilizada pelo engenheiro é uma matemática exata, voltada aos aspectos puramente práticos, de construção das edificações e das máquinas, a matemática do arquiteto é uma matemática utilizada visando também a produzir efeitos de ordem sensorial (o que nada têm a ver com os “estilos” definidores da prática dos arquitetos da época): A ARQUITETURA é um fato de arte, um fenômeno de emoção, fora das questões de construção, além delas. A construção É PARA SUSTENTAR; a arquitetura É PARA EMOCIONAR. A emoção arquitetural, existe quando a obra soa em você ao diapasão de um universo cujas leis sofremos, reconhecemos e admiramos. Quando são atingidas certas relações, somos apreendidos pela obra. Arquitetura consiste em “relações”, é “pura criação do espírito”. (CORBUSIER, 2004, p.10 – grifos do autor)
  • 30. 30 Para o arquiteto, portanto, economia e cálculo, bases do pensamento do engenheiro, devem estar unidos à ousadia e à imaginação, bases do pensamento do arquiteto. Porém, ousadia e imaginação emocionam quando operadas pelo cálculo, pela matemática subjacente à geometria das formas simples. Ou seja, a arquitetura vai além do cálculo, mas deve encontrar nele sua origem. “Máquina de habitar” e “máquina de emocionar” são as duas expressões usadas por Corbusier para definir sua concepção da casa e da arquitetura: as funções prática e mítica serão satisfeitas pela construção de edifícios rigorosamente projetados segundo a economia, o cálculo, a fim de responder a necessidades humanas de habitação e de emoção plástica, garantida pela clareza das formas simples, da geometria. Enquanto máquina, a casa não pode ser concebida a partir de uma gramática pré-estabelecida; deve ser resultado de um problema bem colocado e equacionado, levando-se em conta, além do programa arquitetônico (necessidades humanas em relação ao espaço a ser construíco), questões de ordem econômica, social, urbana. Não é casual, portanto, a opção de João Cabral pelo título dado à sua terceira obra, O engenheiro, assim como não é casual a epígrafe de Le Corbusier. Para Benedito Nunes, A epígrafe mesma de O engenheiro, tomada a Le Corbusier, ”... machine à emouvoir”, indica-nos que o autor já atribui a esse fazer poético a natureza de um ato de construção. Pois a feitura do poema, que se qualifica de máquina de comover, obedecerá analogicamente à mesma razão construtiva e geométrica que gera o projeto técnico de uma máquina e a planta de um edifício, traçados a lápis e a esquadro numa folha de papel.7 (NUNES, 1971, p.41) Se o fazer poético tem a mesma natureza de uma ato de construção, é a partir da razão construtiva do engenheiro que ela se realiza. As características pessoais e profissionais do 7 O crítico continua o parágrafo afirmando que “como tôda máquina se constrói pela função que a define e que lhe determina o tipo de trabalho a executar, o edifício e o poema se corresponderão, de acôrdo com o ideal de O engenheiro, na ordem funcional que os aproxima, sendo o primeiro máquina de habitar e o segundo máquina de comover.” (NUNES, 1971, p. 41). Não é isso, a nosso ver, que propõe Le Corbusier. Pelo contrário, o arquiteto é claro ao afirmar, em Por uma arquitetura, que não é apenas a atenção à função prática que define a arquitetura, mas a atenção às duas funções, prática e mítica: Quando uma coisa responde a uma necessidade, ela não é bela, ela satisfaz toda uma parte de nosso espírito, a primeira parte, aquela sem a qual não há satisfações ulteriores possíveis; (...). A arquitetura tem um outro significado e outros fins que acusar as construções e responder às necessidades (necessidades tomadas no sentido, aqui subentendido, de utilidade, de conforto, de disposição prática). A ARQUITETURA é a arte por excelência, que atinge o estado de grandeza platônica, ordem matemática, especulação, percepção da harmonia pelas relações comoventes. Eis aí o FIM da arquitetura. (CORBUSIER, 2004, p. 73)
  • 31. 31 engenheiro exaltado por Le Corbusier, que podemos ver ecoando na obra de Cabral, vêm tanto da utilização de materiais e técnicas modernas de construção como da economia, objetividade e funcionalidade que regem seu exercício profissional. Além disso, se, num primeiro momento, nos perguntamos por que a figura do engenheiro e não a do arquiteto é usada no título, já que a epígrafe remete ao arquiteto franco-suiço, a leitura dos poemas que integram a obra permite reconhecer que há, nesse momento do processo projetual e construtivo da poética cabralina, a afirmação de um fazer poético que se aproxima do fazer da engenharia, em que prevalece o estudo das características dos materiais utilizados, das condições do terreno (orientação, topografia, incidência dos ventos), do destino da construção e o dimensionamento e especificação da estrutura. Nessa obra, é a construção em si que está em jogo e ela é vista pelo prisma do engenheiro. Podemos estabelecer uma relação de homologia envolvendo os termos “poema”, “construção”, “poeta” e “engenheiro”: o poema está para a construção civil assim como o poeta está para o engenheiro (poema : construção :: poeta : engenheiro). O olhar do arquiteto e sua preocupação com a organização física e estética do espaço, em função do homem que o habitará, surgirá em obras posteriores, como veremos adiante. Vale a pena, porém, determo-nos um pouco nesta oposição entre engenheiros e arquitetos e acompanhar as reflexões de Le Corbusier acerca desta questão. Em La Maison des hommes, François de Pierrefeu e Le Corbusier apresentam um esquema que resume o que, para eles compõe a natureza e a missão do “mestre-de-obra” (Cf. PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942). A fim de rever as bases da arquitetura da nova civilização maquinista, os autores resgatam esse termo medieval - “mestre-de-obra” -, não apenas para restituir sua dignidade, mas, sobretudo, para, na busca de sua definição, traçar as linhas-mestras do profissional que deveria ser o responsável pelas obras que a vida moderna exigia. As novas técnicas aplicadas à construção devolveram a ela a posição de destaque que ocupava no passado, quando a construção de uma catedral exigia do mestre-de-obra um grande conjunto de conhecimentos que abarcavam desde o conhecimento do homem “real” e de suas necessidades até um profundo conhecimento das leis físicas e dos recursos tecnológicos cada vez mais avançados que possibilitavam as soluções desejadas. Com o tempo, esses conhecimentos acabaram por levar a uma dupla polarização, distanciando arquitetos e engenheiros que
  • 32. 32 assumiram posturas diferenciadas (e quase opostas) em relação à construção: de um lado o arquiteto, privilegiando o conhecimento do homem e da arte; de outro lado o engenheiro, dando maior relevo e importância ao conhecimento técnico. Essa tendência foi agravada pelo direcionamento dado à formação acadêmica que, especializada e especializadora, dirigia a formação profissional ou para a estética pura ou para a matemática pura, representando, respectivamente, segundo os autores, o “perigo das Belas Artes” e o “perigo da politécnica”: “la façade préférée au logis” e “le kilowatt préférée au muscle” (PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p 114). Resgatar o sentido medieval do “mestre-de-obra” significava, assim, reunir os dois pólos de conhecimento e transformá-los nos suportes da construção moderna. Na junção dos dois tipos de conhecimento estaria, pois, “o segredo e a razão de ser do mestre-de-obras”: Le maître d’œuvre idéal serait um humaniste, qui composerait en lui- même, pour les animer de son souffle, deux acteurs distincts, un architecte et un engénieur. (PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 108) O esquema em duas cores proposto pelos autores traz, assim, os diversos aspectos da missão do mestre-de-obras, que resulta da integração entre os dois pólos de conhecimento e premissas construtivas: a do arquiteto e a do engenheiro.
  • 33. 33 fonte: PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 117 Estamos diante de um esquema em duas cores, azul e vermelho, em que arquiteto e
  • 34. 34 engenheiro estão representados por dois círculos, colocados respectivamente acima e abaixo de uma faixa horizontal central, que representa, por sua vez, um inventário de edificações. A cor azul simboliza o “conhecimento do homem”: necessidades espirituais, intelectuais, cívicas, sociais, familiares, fisiológicas, materiais. A cor vermelha simboliza o “conhecimento das leis da física” (empírico e científico): conhecimento dos materiais, da lei da gravidade e da estática, da resistência dos materiais, o conhecimento das hipóteses matemáticas de cálculo. É relevante observar que o círculo superior, que representa as predisposições técnicas e a cultura do arquiteto, tem a maior parte de sua área em azul e apenas uma faixa em vermelho, enquanto no círculo inferior, que representa as predisposições e a cultura do engenheiro, a proporção é inversa. Segundo os autores, Sensibilité et technique doivent figurer en effect, sous des dosages différents mais fondues ensemble inséparablement, dans l’une et l’autre discipline. (PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 118) A faixa horizontal central, que representa um inventário das edificações, é dividida em nove setores8 , dispostos da esquerda para a direita, de acordo com uma seqüência determinada pela função prática das edificações: 1- templo ou monumentos (religiosos ou patrióticos); 2- hotéis, bibliotecas, teatros etc. (lazer e cultura); 3- hospitais, casas de repouso, sanatórios (saúde); 4- estádio de esportes, clubes, escolas etc. (esporte e educação); 5- a casa (família); 6- edifícios de administração, públicos ou privados, escritórios (trabalho - serviços); 7- oficinas e pequenas fábricas (trabalho – artesanato e manufaturas); 8- indústrias e empresas (trabalho - indústrias); 9- pontes, estradas, barragens etc. (obras de infra-estrutura). Duas setas partem do centro do inventário (da casa), em diagonal, uma para a direita, definindo um gradiente crescente do que chamam “homem econômico”, e outra para a esquerda, definindo um gradiente crescente do que chamam “homem espiritual”. Essas setas diagonais dividem cada um dos vários setores do inventário das edificações inventariadas em dois triângulos, um azul e um vermelho. 8 Os autores alertam que o inventário das edificações contém apenas nove setores, apesar da complexidade das edificações efetivamente construídas, apenas por uma questão de economia e clareza da exposição.
  • 35. 35 Dois eixos coordenados permitem comparar as edificações inventariadas: no eixo horizontal, temos o gradiente de importância das coerções dos materiais, das exigências da física e do cálculo; no eixo vertical, o gradiente da a liberdade de criação e do direito à beleza. A casa ocupa a posição central do inventário de edificações e é representada por dois triângulos iguais, um azul e um vermelho, mostrando que, na casa, “raison et sensibilité y concourent à parts égales” (PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 118). As edificações colocadas à esquerda da casa requerem uma predominância do arquiteto sobre o engenheiro. Nesses casos, dizem os autores, o “mestre-de-obra” será um arquiteto. Por outro lado, as edificações colocadas à direita do eixo central exigem uma predominância do engenheiro sobre o arquiteto e, nesses casos, o “mestre-de-obra” será um engenheiro, embora, lembram os autores, a contribuição do arquiteto não seja dispensada nem mesmo se a obra for inteiramente técnica, como uma barragem. Assim, a epígrafe Le Corbusier, ao mesmo tempo em que evoca as propostas do arquiteto franco-suiço, anuncia, junto com o título, não apenas o ideal construtivo almejado, mas sobretudo o tipo de edificação a ser construída e o “mestre-de-obra” encarregado de sua construção. Talvez possamos nos valer do esquema proposto por Pierrefeu e Corbusier para entender as várias expressões utilizadas indiferentemente para qualificar o poeta: “poeta-engenheiro”, ”poeta- arquiteto”, ”poeta-construtor” ou ”pedreiro do verso”. Essas expressões contêm, mesmo que à revelia de quem as usa, uma concepção (acertada ou equivocada, dependendo do caso) acerca das predisposições, cultura, formação técnica específica dos vários profissionais. Embora as expressões sejam próximas ou afins, como afirma Eucanaã Ferraz (2000, p.21), uma vez que todos os profissionais arrolados participam da atividade construtiva, elas não são sinônimas e apontam para diferenças significativas na maneira de definir seu objeto e seu método de atuação. O que não quer dizer, obviamente, que um profissional seja melhor do que os outros; significa, apenas, que há diferenças na relação que estabelecem com seu objeto (qualquer que seja a natureza da edificação a ser construída) e que cada construção ou etapa da construção convoca um determinado profissional. Em Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo, Le Corbusier coloca o problema da seguinte forma: Coloquei o engenheiro em primeiro plano. Por uma arquitetura (meu primeiro livro, 1920-21, l’Esprit Nouveau) era-lhe dedicado em grande parte e
  • 36. 36 constituía, até certo ponto, uma antecipação. Em breve eu iria pressentir o “construtor”, “o novo homem dos novos tempos”. O engenheiro é análise e aplicação dos cálculos; o construtor é síntese e criação. (LE CORBUSIER, 2004, p.45) Outro aspecto ligado ao título da obra e dos poemas que a integram deve ser observado. Trata-se da identidade sintática da construção dos títulos dos poemas que compõem o livro, cuja constância reiterativa, afirma Eucanaã Ferraz, revela-se como um aspecto construtivo significativo (Cf. FERRAZ, 2000). Entre os vinte e dois poemas que compõem a obra, os dezesseis primeiros têm os respectivos títulos construídos por artigo definido + substantivo. Nos cinco poemas seguintes a construção de base é: preposição a + nome de um homenageado. E no último poema, adjetivo + substantivo + adjetivo. Se, por um lado, essa constância reiterativa faz eco a mais um dos postulados de Le Corbusier, o do módulo construtivo, já que a mesma fórmula (não se trata de fôrma, salientamos, mas de constante matemático-formal) é tomada como base para a construção dos títulos, por outro lado, esse recurso construtivo revela um modo de aproximação e de estudo do objeto tomado como fonte de interesse. Como salienta Ferraz, no primeiro e maior grupo de poemas aproximados pela construção dos títulos, o artigo definido indica que o substantivo é um ser conhecido do leitor ou ouvinte, seja por ter sido mencionado antes, seja por ser objeto de um conhecimento pela experiência. (FERRAZ, 2000, p.116) Dessa forma, segundo o ensaísta, ao pressupor um conhecimento prévio partilhado com o leitor, os títulos dos poemas propõem um diálogo com o leitor, que é “convidado à leitura, à interpretação das coisas do mundo”. Se há na construção dos títulos uma busca de aproximação entre o texto e o leitor, e não negamos que haja, não podemos deixar de observar também que há uma declaração de intenção (um termo de compromisso?) de exploração cognitiva, de aproximação e compreensão do construtor em relação aos objetos que se põe a estudar e construir. Tal postura investigativa nos remete novamente às idéias corbusianas, agora no que diz respeito à formulação do problema a ser solucionado: o poema responde a um problema
  • 37. 37 formulado (colocado) no título. É o que encontramos no poema “O engenheiro”, homônimo ao título da obra, em que os ecos da lucidez da fala de Raimundo, de Os três mal-amados, se expandem em uma nítida tomada de posição a favor de valores ao mesmo tempo éticos e estéticos característicos do fazer do engenheiro, como exaltado por Le Corbusier: a construção buscada e empreendida a partir do cálculo e da economia, em prol do bem comum9 . Nos poemas seguintes, o módulo construtivo é preposição a + nome de um homenageado. Como aponta Ferraz, O endereçamento pressupõe o termo precedente (o poema), subentendido, e sublinha seu destinatário, aqui também o próprio motivo da escrita. (FERRAZ, 2000, p.117) Se nos poemas anteriores o que prevalecia era a busca de aproximação e compreensão dos objetos de estudo, ou de um certo fazer artístico generalizado pela profissão do construtor, como no caso de “O engenheiro”, nesse grupo de poemas-homenagem o que prevalece é a aproximação em relação às premissas que presidem os modos de conceber e fazer - poético, pictórico, futebolístico – de seus homenageados, individualizados agora pela nomeação. O estudo do fazer dos homenageados permite reconhecer afinidades e divergências e evidencia a necessidade de definir e explicitar ainda mais rigorosa e claramente as premissas que devem reger a sua própria ação construtiva. Essa busca de definição e explicitação de uma dicção própria está presente, também, no último poema da obra, “Pequena ode mineral”. Neste poema, porém, a aproximação não se dá a partir do fazer de um homenageado, como no grupo anterior de poemas, mas a partir da própria tradição literária. O título do poema tem a seguinte construção sintática: adjetivo + substantivo + adjetivo. O centro da construção do título, o substantivo “ode”, remete para o próprio poema, uma vez que o termo, de origem grega – oidê, canto - designa uma forma poética tradicional, destinada ao canto com acompanhamento musical. Trata-se, portanto, de um metapoema, que, enquanto tal, põe em questão os valores subjacentes à forma poética da tradição lírica, apontando para uma nova maneira de encarar a feitura do poema. 9 Não podemos nos esquecer da utopia corbusiana segundo a qual os novos princípios construtivos da máquina e, sobretudo, da arquitetura, quando feita a partir da racionalidade do cálculo, da economia e da produção em série, teria um alcance revolucionário: “O equilíbrio da sociedade é uma questão de construção. Concluímos com esse dilema defensável: arquitetura ou revolução. (LE CORBUSIER, 2004, p.168)
  • 38. 38 No plano do conteúdo, o substantivo “ode” é qualificado e especificado pelos adjetivos que o ladeiam: “pequena” define a extensão dimensional do substantivo e “mineral” define a natureza do objeto a ser construído. No plano da expressão, os dois adjetivos que envolvem graficamente o substantivo “ode” (pela posição anterior e posterior em relação ao substantivo) funcionam como uma espécie de “contorno” gráfico-visual que mantém o substantivo sob controle físico, definindo-lhe a tamanho (pequena) e matéria (mineral). A “ode” surge, assim, como “material sólido natural, inorgânico, de composição química definida e estrutura interna regular” (Cf. HOUAISS, 2001, p. 1926), substância que ocupa lugar no espaço, sujeita a receber determinada forma ou sobre a qual pode atuar algum agente. A posição dos adjetivos do título afirma e reitera a espacialidade implícita nos signos “pequena” e “mineral”. Ao mesmo tempo, o núcleo sêmico dos signos “ode” e “mineral” apontam, respectivamente, para a musicalidade e regularidade eufóricas, culturalmente obtidas, e para a solidez inorgânica e regular, naturais do mineral. A oposição entre natureza e cultura presente no título do poema anuncia, pois, a intenção de aderir a fazer poético que toma como modelo um elemento da natureza – o mineral - e sua constituição formal, sobrepondo espacialidade à musicalidade. Os adjetivos circunscrevem o substantivo, determinando os limites de sua “área”, podendo ser comparados às paredes que definem o espaço interior de uma construção arquitetônica. Embora se encontre num espaço interior criado por esse “contorno”, a espacialidade criada não revela, porém, um caráter plenamente arquitetônico, pois, ainda que exista espaço interior, esse espaço é bidimensional, planar e gráfico, no qual estão dispostos os elementos a serem problematizados e a maneira segundo a qual serão manipulados. Ou seja, o foco de atenção não é, ainda, o espaço em si, mas a matéria a ser enformada, o modo e o processo de construção. Se a existência de espaço interior é condição sine qua non para que a edificação seja identificada como arquitetura, se o caráter essencial da arquitetura “está no fato de agir com um vocabulário tridimensional que inclui o homem”, como nos ensina Bruno Zevi (1978, p. 17), podemos verificar que o volume que é edificado no poema não é ainda aquele em que “o homem penetra e caminha”, que tem o homem como seu habitante e que atualiza a dimensão sensível do corpo que experimenta o espaço e suas qualidades ou as dimensões do próprio espaço que,
  • 39. 39 tornado corpo, projeta-se nos planos que o delimitam, como veremos adiante nos poemas de Quaderna. Pelo contrário, o que se encontra no interior desse espaço não é o homem em sua corporeidade espacializada, mas a delimitação bidimensional de um produto de seu fazer, o poema. Trata-se, portanto, de uma etapa preliminar de projeto, na qual estão sendo estabelecidas as premissas materiais, construtivas e plásticas da edificação a ser projetada e executada. Ou seja, a fase de definição do que em arquitetura denominaríamos “programa arquitetônico” (condicionantes espaciais, funcionais, materiais, estruturais, econômicas etc.) e, principalmente, “partido arquitetônico” (intenção plástica) que têm como premissas a economia, despojamento, exatidão, ordem, contundência e silêncio. Assim, embora o substantivo “ode” esteja em posição interior na construção do título e possa ser relacionado com o que Zevi chama de “jóia arquitetônica” (o espaço interior habitável), que está delimitada e contida dentro da caixa formada pelos adjetivos, a leitura do poema leva a perceber que o que se constrói não é, até esse momento, o espaço em si, mas a constituição de uma maneira de construir. Ainda no título, a opção pela figura da “ode” instala uma musicalidade que é negada pelas figuras a ela relacionadas: “pequena” espacializa ao determinar a sua dimensão, enquanto “mineral” petrifica e emudece, afastando a “ode”, forma poética da tradição literária, de sua natureza musical. No título, a espacialidade que se sobrepõe à musicalidade da lírica tradicional não significa, é claro, ausência de sonoridade. O que podemos reconhecer nesta construção é a negação da sonoridade tradicional e a busca de uma sonoridade de outra natureza: no lugar de uma musicalidade cantante e efêmera, a mineralidade silenciosa e permanente da “voz do silêncio”. Antonio Carlos Secchin nos mostra a natureza desse silêncio, proposto também no poema “A Paul Valéry”: Mas não se trata de um silêncio metafísico, que poderia carrear perquirições sobre a impotência da linguagem; ao contrário, será a resposta organizada contra o “apetite” da impulsividade, da escrita a qualquer preço e a qualquer verso. (SECCHIN, 1985, p.42) Ambas as figuras – “pequena” e “mineral” – apontam, assim, para a qualidade corpórea, material, espacial e permanente do poema (e da poética) que se pretende construir. Porém, o foco
  • 40. 40 de atenção não se volta para o espaço geográfico ou sobre o espaço arquitetônico propriamente dito; a atenção está voltada para espaço cultural (e literário) e para as implicações estéticas da construção de uma “pequena-ode-mineral”. O poema é dividido em doze estrofes de quatro versos e pode ser segmentado em duas partes, cada uma com seis estrofes. Na primeira parte encontramos a negação das qualidades poéticas indesejáveis da lírica tradicional – desordem, leveza, fugacidade, temporalidade. As figuras “alma”, “nuvem“, “fumaça”, por exemplo, atualizam os valores disfóricos ligados à forma lírica da “ode” e contrários aos instalados pela imagem-base explicitada no título. Esses valores disfóricos da desordem, da ausência de forma definida (“informe”), da efemeridade (palavras ditas que, abundantes, se perdem e morrem) e da temporalidade são negados na segunda parte, que se inicia com a exortação à “ordem” (duplamente colocada no primeiro verso da sétima estrofe: ordem dada pelo modo verbal – imperativo – e ordem como objeto de busca), primeiro dos valores eufóricos instalado no texto. Além da afirmação da ordem em oposição à desordem, temos a permanência em oposição à efemeridade, a atemporalidade em oposição à temporalidade, o silêncio em oposição ao canto. A obtenção desses valores resultará na possibilidade de atingir uma construção poética que se expressa por meio do “silêncio / que imóvel fala”. Ao invés de “palavras ditas”, “voz de silêncio”. A relação canto x silêncio deve ser vista, porém, com cuidado, uma vez que o silêncio, como vimos anteriormente, não implica ausência de sonoridade ou recusa à possibilidade de expressão pela linguagem; pelo contrário, o silêncio redefine o “canto”, uma vez que deve buscar a ordem que “imóvel fala” com “voz de silêncio”. Dessa forma, a passagem da desordem para a ordem, das palavras ditas e perdidas para a voz do silêncio revelam a busca da definição de uma poética própria, em que o canto é associado às noções de economia, exatidão e permanência. Se, em “Pequena ode mineral”, a identificação entre poesia e pedra ainda não foi obtida, como aponta Aguinaldo Gonçalves (Cf, GONÇALVES, 1989, p.49), não há como negar a direção apontada desde o título. Mineralidade que nega a ação das forças da subjetividade, do inconsciente, da inspiração e sela a opção pelo aprendizado do silêncio: Procura a ordem desse silêncio que imóvel fala:
  • 41. 41 silêncio puro, de pura espécie, voz de silêncio, mais do que a ausência que as vozes ferem. (OC., p.84) A negação da emotividade, da transitoriedade do ser e da poesia pela afirmação da precisão e da economia justificam a escolha de O engenheiro para título da obra e do poema homônimo: o uso do termo implica aliança entre criação, racionalidade e alto nível de conhecimento tecnológico. Ou melhor, a criação racional operada a partir da objetividade técnica e da exatidão do cálculo. O poema “O engenheiro”, transcrito abaixo, pode ser tomado como síntese da proposta construtiva presente no livro homônimo e nas obras anteriores, mesmo que ainda em germe. Além da tematização do fazer definido por métodos e valores fundamentados na racionalidade e no cálculo, o poema revela uma apropriação desses métodos e valores em termos formais e construtivos. O poema apresenta, em linhas gerais, as etapas de elaboração do projeto arquitetônico, desde sua concepção até a materialização da edificação na paisagem urbana: O engenheiro A luz, o sol, o ar livre envolvem o sonho do engenheiro. O engenheiro sonha coisas claras: superfícies, tênis, um copo de água. O lápis, o esquadro, o papel; o desenho, o projeto, o número: o engenheiro pensa o mundo justo, mundo que nenhum véu encobre. (Em certas tardes nós subíamos ao edifício. A cidade diária, como um jornal que todos liam, ganhava um pulmão de cimento e vidro.) A água, o vento, a claridade de um lado o rio, no alto as nuvens, situavam na natureza o edifício
  • 42. 42 crescendo de suas forças simples. (OC., p.69-70) Composto por quatro estrofes de quatro versos cada, o poema traz a estruturação estrófica que, embora ainda não se apresente como constante modular da estruturação poemática de todos os poemas do livro, anuncia um dos elementos que estará na base da organização formal de obras futuras: o número quatro e de seus múltiplos, a quadra e o quadrado. Essa divisão estrófica reproduz, no plano da expressão, a segmentação das etapas de elaboração do projeto e construção da obra e pode ser identificada com as quatro fases da seqüência narrativa canônica: a manipulação, a competência, a performance e a sanção. Na primeira estrofe, uma debreagem enunciva introduz um sujeito, “o engenheiro”, que se define pelo universo axiológico que o envolve (“A luz, o sol, o ar livre / envolvem o sonho do engenheiro”) e pelo desejo de construir (“O engenheiro sonha coisas claras”). Essa etapa de idealização e concepção do projeto da edificação a ser construída (de estabelecimento do “partido arquitetônico” a ser adotado) corresponde à fase da manipulação, em que um sujeito age sobre outro para levá-lo a querer ou dever fazer algo. Instalado no texto como um profissional da construção, esse sujeito encontra-se convencido pela sua formação profissional e cultural a adotar os valores da modernidade como premissas para a sua atuação profissional: racionalidade, economia, simplicidade das formas simples, o respeito à orientação solar e sua capacidade de conferir salubridade às construções, o equilíbrio com a natureza, a conquista de horizontes abertos, liberados pela construção verticalizada. As figuras da “luz”, do “sol”, do “ar livre” representam, assim, tanto os elementos concretos da natureza valorizados positivamente pela arquitetura moderna, como os valores almejados pelo homem moderno e pelo profissional encarregado de construir para ele, em alternativa à concentração populacional e de edificações das grandes cidades. Denotativamente, são portadoras das condições ideais de salubridade que os engenheiros e arquitetos da modernidade devem reconhecer e utilizar em proveito de suas construções e de seus clientes. Mas figurativizam, também, as condições propícias para a clareza do raciocínio, para a lucidez, para o cálculo e para a elaboração do projeto. Instalam, assim, tanto a claridade necessária para como a resultante da reflexão consciente e racional, exigência da modernidade.
  • 43. 43 O aproveitamento da iluminação solar é um princípio-chave da arquitetura moderna, pois o sol é fonte de luz e de salubridade. Coerentemente, a claridade envolve “o sonho do engenheiro”, que “sonha coisas claras”, facilmente visíveis em seus contornos sem ambigüidades: “superfícies, tênis, um copo de água”. O universo simples do cotidiano natural e construído, definido pela escolha vocabular se reflete na construção sintática direta e clara, impede a ligação do termo “sonho” com o universo onírico (predominante em Pedra do sono) e vincula o “sonho” não com o que é visto ou desejado durante o sono ou devaneio, mas com o que é imaginado como ideal a ser buscado conscientemente. (croqui de Le Corbusier para ilustrar a implantação ideal do edifício na cidade-jardim. Fonte: PIERREFEU; LE CORBUSIER, 1942, p. 95) A presença da luz, instalada no texto como valor positivo da luminosidade, da salubridade e do regime diurno de imaginação (do racionalismo e rigor presentes no encadeamento entre sonho, pensamento e projeto), pressupõe o seu contrário, a sombra, que, embora não seja figurativizada explicitamente no poema, está implícita pela pressuposição lógica e carrega o valor negativo da obscuridade noturna do sonho e do sono e da visibilidade dificultada pela mediação da emoção e da subjetividade, negadas no poema pela afirmação da inexistência de obstáculos (figurativizado pelo “véu”) entre observador e observado: “o engenheiro pensa o mundo justo, / que nenhum véu encobre”. Do sonho idealizado (imaginado ou visualizado através do pensamento consciente), o sujeito passa, na terceira estrofe, ao processo de elaboração do projeto (“o engenheiro pensa o
  • 44. 44 mundo justo”), realizado com o auxílio dos instrumentos de trabalho típicos da engenharia e da arquitetura do século XX - lápis, esquadro, papel. Essa etapa de elaboração do projeto por meio do desenho pode ser identificada com a fase da seqüência narrativa chamada de competência, em que o sujeito do fazer é dotado de um saber e/ou poder fazer. Traçando à lápis e esquadro sobre o papel, o “engenheiro” sabe e pode calcular e projetar o “edifício” ou “mundo justo” que quer construir. Cabe lembrar que o termo “justo” é tomado tanto no sentido de “exatidão de cálculo” como no sentido de “justiça social”, como postulava Corbusier: O engenheiro, inspirado pela lei da economia e conduzido pelo cálculo, nos põe em acordo com as leis do universo. Atinge a harmonia. (LE CORBUSIER, 2004a, p. 3. Grifo do autor.) Se arrancarmos do coração e do espírito os conceitos imóveis da casa, e se encararmos a questão de um ponto de vista crítico e objetivo, chegaremos à casa-instrumento, casa em série acessível a todos, incomparavelmente mais sadia que a antiga (e moralmente também) e bela pela estética dos instrumentos de trabalho que acompanham nossa existência (LE CORBUSIER, 2004a, p. 166) Trata-se, portanto, do problema central para a época, segundo o arquiteto franco-suiço: o direito à habitação e à cidade humanas, simples, funcionais, limpas e saudáveis. Le Corbusier chega a afirmar que “o equilíbrio da sociedade é uma questão de construção”, concluindo com a defesa da famosa frase “arquitetura ou revolução.” (LE CORBUSIER, 2004a, p. 168). Temos, pois, nas duas primeiras estrofes as aspirações técnicas, éticas e estéticas do sujeito do fazer, cuja habilidade para realizar sua performance está fora de dúvida. Além de compor o título do poema, a figura do engenheiro é repetida por mais três vezes nessas duas estrofes (novamente o número quatro...), numa gradação que vai da função de adjunto adnominal indicador de posse, em “o sonho do engenheiro”, a sujeito da ação, em “o engenheiro sonha” e em “o engenheiro pensa”. A construção do ator “engenheiro’ destaca por pressuposição lógica a oposição entre a atualidade e racionalidade que rege o fazer do engenheiro e o atraso e retrocesso em que se encontrava a arquitetura no início do século XX, embora o texto não traga a figura do arquiteto explicitamente colocada. Nas palavras de Le Corbusier,
  • 45. 45 Os engenheiros constroem os instrumentos de seu tempo. Há uma grande escola nacional de arquitetos e há em todos os países, escolas nacionais, regionais, municipais, de arquitetos, que embrulham inteligências jovens e lhes ensinam o falso, o artifício e as obsequiosidades dos cortesãos. Os engenheiros são viris e saudáveis, úteis e ativos, morais e alegres. Os arquitetos são desencantados e desocupados, faladores ou lúgubres. (CORBUSIER, 2004a, p. 6) Em suma, a arquitetura é “uma das mais urgentes necessidades do homem” (CORBUSIER, 2004a, p. 5), mas se encontra em “penosa regressão”, e a engenharia avança sintonizada com a tecnologia e necessidades de seu tempo; é preciso aprender a lição técnica, estética e ética dos engenheiros. A oposição estabelecida entre o fazer do arquiteto e o do engenheiro instala, nas duas primeiras estrofes, a oposição entre a tradição ultrapassada e a modernidade, entre o ornamento fútil e a funcionalidade socialmente consciente. Nessas duas estrofes, portanto, a descrição eufórica do fazer do engenheiro faz eco à utopia construtiva e social presente nas propostas arquitetônicas de Le Corbusier. A simplicidade almejada e projetada pelo engenheiro opõe-se ao decorativismo supérfluo e superficial. A criação é apresentada como ato de pensamento lúcido, voluntário e calculado, que impede a intromissão da desordem, do acaso e da efusão emocional. O engenheiro busca dominar as regras de construção da sua obra, de modo a construir uma edificação sólida e resistente. Porém, esse sujeito é construído não como indivíduo, mas como profissional representante de um modo de pensar e atuar específico, baseado no conhecimento técnico dos materiais, das leis da física e das hipóteses matemáticas de cálculo, como é apresentado por Le Corbusier, em suas obras. Vale a pena ressaltar, como observa Eucanaã Ferraz (2000, p. 145-6), que o poema é dedicado ao engenheiro, urbanista e professor universitário Antônio B. Baltar, um dos pioneiros da arquitetura moderna em Recife e que elaborou, em 1951, uma proposta urbanística para a cidade: Não propomos que o engenheiro do poema, ou no poema, seja entendido como referência direta e restrita a Baltar, mais ou menos como se tivéssemos
  • 46. 46 descoberto a verdadeira identidade do “personagem”, o que seria uma redução tola. Ao contrário, entendemos que a dedicatória aponta para uma individualidade que imediatamente se dissolve num protótipo – “o engenheiro”- sugerindo, a um só tempo, um tipo ideal, utópico, idéia corbusiana convertida em criação poética, e sua contraface real, ou seja, um tipo de engenheiro em ação, reflexo material, palpável da idéia, surgindo o nome “Antônio B. Baltar”, na dedicatória, como a ponta visível de um paradigma em que se alinham Luiz Nunes, Ayrton Carvalho, Saturnino de Brito, Burle Marx, Joaquim Cardozo e o próprio Le Corbusier. (FERRAZ, 2000, p 150-1) As duas estrofes iniciais são, pois, o lugar do desejo (do sonho) e da abstração do projeto (pensamento) que permitirá a construção do edifício propriamente dito. A terceira estrofe surge destacada das demais por três procedimentos discursivos: 1) o uso de parênteses, 2) pela debreagem enunciativa que institui um sujeito em primeira pessoa e 3) pelo tempo verbal (pretérito imperfeito). Em relação ao uso dos parênteses, Evanildo Bechara (2004) nos ensina que assinalam um isolamento sintático e semântico mais completo dentro do enunciado, além de estabelecer maior intimidade entre o autor e o seu leitor. Em geral, a inserção do parêntese é assinalada por uma entonação especial. (BECHARA, 2004, p.612) Assim, o isolamento gramatical recorta e enfatiza a ação pragmática realizada nesta estrofe. Além disso, acentua o efeito de maior proximidade do sujeito da enunciação instalado pela debreagem enunciativa. A função de sujeito desempenhada pelo pronome “nós” (“Em certas tardes nós subíamos / ao edifício...”) sugere a presença de pelo menos dois atores, um dos quais o próprio “engenheiro”, e o outro podendo ser um outro profissional da construção, o cliente, um visitante (o amigo poeta?) ou todos juntos. Na verdade, temos duas ações realizadas nesta estrofe: por um lado, a ação do sujeito “engenheiro” – ação de “construir”-, que encontra-se em processo, já que a visita repetida ao edifício (“Em certas tardes nós subíamos ao edifício”) sugere a rotina de acompanhamento das atividades do canteiro de obras pelo profissional responsável por ela. Por outro lado, temos a ação do(s) outro(s) sujeito(s) que participam das visitas à obra como integrantes ou não da equipe de construção.
  • 47. 47 Essa segunda ação, a de subir freqüentemente ao edifício, compartilhada pelo sujeito coletivo “nós” possibilita a observação e leitura da paisagem circundante e da cidade onde o edifício está situado. O edifício é convertido em instrumento para a leitura do entorno, já que é a partir de sua materialidade verticalizada que o exterior (cidade e natureza) pode ser lido. A sua “altura” proporciona um olhar distanciado, e seu traçado geometrizado pela vista de cima, como se fosse desenhada “em planta”, e permite ler a cidade-texto e reconhecer nela o organismo vivo (figurativizado metonimicamente pelo “pulmão”) formado pelo conjunto de construções (“pulmão de cimento e vidro). Plasticamente, essa estrofe se destaca das demais, como se o uso dos parênteses, somado à proximidade com o enunciador e a ação repetida da visita ao edifício, criassem o efeito de tridimensionalidade. Assim como o edifício visitado, a estrofe ganha volume em relação às outras estrofes. Por sua vez, a última estrofe apresenta-se como uma espécie de conclusão, identificando-se com a etapa canônica da sanção, na qual se dá o reconhecimento da performance realizada. A edificação está finalizada e inserida na natureza: A água, o vento, a claridade de um lado o rio, no alto as nuvens, situavam na natureza o edifício crescendo de suas forças claras. Mais uma vez, estamos diante dos princípios da arquitetura moderna, o conceito de “conformidade” da construção: Conformité au but poursuivi; Conformité à la nature, morale et physique, de l’homme; Conformité au site et au contexte bâti; Conformité à la divine proportion, que la géométrie, c’est-à-dire la plus haute logique, impose à toutes formes vivantes et aux logements de celles-ci.