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U NI V E R S I D A DE DE TA UB AT É

            L u í s Fe r n a n d o N a s c i me n t o




A [RE ]CONSTRUÇÃO DA IDE NT I DADE INDÍ GENA
              PE LA LIT E RAT URA:

     M unduruku e o diá logo co m a Tra dição




                      Ta u b a t é – S P

                             2010
L u í s Fe r n a n d o N a s c i me n t o




A [RE ]CONSTRUÇÃO DA IDE NT I DADE INDÍ GENA
                    PE LA LITERAT URA:

     M unduruku e o diá logo co m a Tra dição

                                              Trabalho de Conclusão de Curso de
                                              Graduação        apresentado        ao
                                              Departamento de Ciências Sociais e
                                              Letras da Universidade de Taubaté,
                                              como parte dos requisitos para
                                              colação de grau no curso de Letras.

                                              Orientadora:     Professora     Mestre
                                              Isabelita Maria Crosariol.




                                 U NI TA U

      D e p a r t a me n t o d e Ci ê n c i a s S o c i a i s e L e t r a s

                              Ta u b a t é – S P

                                    2010



                                                                                  5
N244r Nascimento, Luís Fernando

          A [re] construção da identidade indígena

      pela Literatura: Munduruku e o diálogo com a

      Tradição./Luís Fernando Nascimento. - 2010.

           51f.

          Monografia (graduação) - Universidade de Taubaté,

       Departamento de Ciências Sociais e Letras, 2010.

          Orientação: Profª Ms. Isabelita Maria Crosariol

       Departamento de Ciências Sociais e Letras.




                                                              7
Luís Fernando Nascimento


A [RE]CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA PELA LITERATURA:


Munduruku e o diálogo com a Tradição


                   Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação apresentado ao
                   Departamento de Ciências Sociais e Letras da Universidade de Taubaté,
                   como parte dos requisitos para colação de grau no curso de Letras.



Data:____________________




Resultado: ________________


BANCA EXAMINADORA




Professora Mestre Isabelita Maria Crosariol (orientadora)




_________________________________________________________




Professor Mestre Luzimar Goulart Gouvêa




__________________________________________________________




Professora Mestre Rachel Duarte Abdala




__________________________________________________________




                                                                                      8
A todos aqueles que se deixam penetrar por

diálogos multiculturais.


A Adriana de Oliveira Alves Corrêa e tantos

outros que trilharão os caminhos da literatura

indígena.




                                            9
AGRADECIMENTOS




A Jesus e Maria, por simplesmente amar.




Ao meu pai, Wanderley Rodrigues do Nascimento, e minha mãe, Marilva Silva do Nascimento,

pelo apoio, conselhos e muitos “puxões de orelha”.


A Lívia Maira do Nascimento Oliveira, minha irmã, e Dione Figueiredo B. de Souza, minha

professora de Literatura no Ensino Médio, por serem o impulso que precisava para ingressar

nesse curso.


À minha segunda família, Geração Adoradora, por me entenderem nas muitas vezes que me

ausentei para prosseguir em minha carreira acadêmica, também pelo apoio incondicional.


A todos do Colégio O Mensageiro, pelo apoio e paciência em tantos momentos difíceis que

passei durante o curso.


A William Toledo Ferreira, pela recomendação de sua monografia e outras leituras.


À Profª. Ms. Rachel Duarte Abdala, pela valiosa sugestão de leitura e por aceitar tão

gentilmente participar de minha banca.


À Profª. Drª. Eveline Mattos Tápias Oliveira, Profª. Drª. Vera Lúcia Batalha de Siqueira Renda,

Profª. Ms. Luciete Valota Fernandes e Profª. Ms. Ana Beatriz Rodrigues Pelógia, que também

se destacaram entre todos os outros professores que tive durante o curso.


A todos os colegas e amigos do DCSL, em especial à terceira família que conquistei durante

esses 4 anos:


- Janaína de Fátima Melo, pelo apoio, carinho, e por ser minha amiga desde o início;




                                                                                            10
- Renata Janaína de Carvalho Brunelli, por se emocionar ao me ver evoluir no curso, e torcer

por meu sucesso;


- Germano Sene dos Santos, meu grande irmão, presente em (causa até de) muitos momentos de

alegria que tive neste curso. Germanorum scintilat!


- Adriana Prezoto dos Santos (Gata Seca), minha grande irmã conquistada durante o curso, que

suportou, entendeu, deu apoio e aconselhou em tantos momentos de alegria e dor, em especial

por suportar minha aflição durante a entrega dos documentos necessários para a conclusão do

Estágio Curricular Supervisionado I. Valeu Dri!


- Isabelita Maria Crosariol, minha orientadora. Obrigado pela sugestão desse tema tão

instigante, pela excelente orientação e, sobretudo, pela confiança e amizade. Bastou um ano, e

você se tornou minha inesquecível grande amiga! Valeu Isa!


– Profª. Ms. Teresinha de Jesus Cardoso e Cunha, por acreditar em mim desde o início e por

dizer: “Esse menino cresceu”! Muito obrigado, magistra amata!


– Cláudia Roberta Ribeiro da Silva, por ser seu orgulho e filho adotivo;


e


– Luzimar Goulart Gouvêa, o “gran-mestre” das aulas de Literatura que tive durante esses 4

anos, pelo apoio, afeto, orientações. Exemplo de professor, exemplo de pessoa. Valeu Paizão!




A todos vocês da minha terceira família, o meu muito obrigado! Todos foram fulcrais para que

eu alcançasse o fim de minha primeira monografia, marco de um novo tempo pra mim.




                                                                                           11
“Você vai me dizer: o índio está falando, mas é

selvagem. Selvagem é você, milhões de anos

estudando e nunca aprendeu a ser civilizado.

Para que você está estudando? Para destruir a

natureza e no fim destruir a própria vida?”


                             José Luiz Xavantes




                                              12
RESUMO




Nesta monografia discute-se a representação do índio na literatura brasileira, de modo a ressaltar
a importância da perspectiva indígena, em meio a tantas outras expressões nas quais a imagem
do índio se faz presente. Para isso, foram analisados três textos indigenistas, ou seja, textos nos
quais a imagem do índio é concebida a partir de uma perspectiva branca, a fim de verificar se
realmente as imagens que eles apresentam são fiéis à cultura indígena, e qual é a
intencionalidade sugerida nessas criações imagéticas. Após essas análises, procurou-se destacar
a literatura indígena, ressaltando que, nessa literatura, é o índio que fala de si mesmo, e não o
branco que constrói sua imagem. Por fim, analisou-se o livro Sinal do Pajé, de Daniel
Munduruku, com a intenção de nele perceber qual é o compromisso estabelecido com a cultura
indígena, e de que forma o autor desconstrói as imagens feitas pelas literaturas indigenistas.
Percebeu-se, enfim, a referência não só a sua cultura, como também o convite a um diálogo
multicultural. Concluiu-se, desse modo, que a literatura indígena é importante por apresentar a
cultura indígena, segundo o olhar de um de seus membros, e por ressaltar questões fulcrais
como tolerância, respeito e diálogo entre as culturas.




Palavras-chave: índio, indigenismo, literatura indígena, multiculturalismo, Daniel Munduruku.




                                                                                                13
ABSTRACT




In this monograph the representations of the Indians in Brazilian literature are discussed, in a
way to emphasize the importance of the Indian perspective, amid many other expressions in
which the Indian image is. For this, three indigenist texts were analyzed, in other words, texts in
which the image of the Indian is conceived from a white man perspective in order to verify if
the image they present is really faithful to the Indian culture, and what intentionality is
suggested in these imagistic creations. After such analysis, the Indian literature was suggested to
be highlighted, emphasizing that, in this literature, the Indian is the one who tells about himself,
not the white man. Finally, the book Sinal do Pajé, written by Daniel Munduruku, was analyzed
with the intention of noticing the engagement established with the Indian culture and how the
author deconstructs the image created by the indigenist texts. Finally, not only the reference to
such culture was realized, but also the calling to a multicultural dialogue. It was concluded,
thereby, that the Indian literature is important for presenting the Indian culture, through the eyes
of one of its members, and for emphasizing key issues as tolerance, respect and dialogue among
cultures.




Keywords: Indian, indigenism, Indian literature, multiculturalism, Daniel Munduruku




                                                                                                 14
SUMÁRIO




Introdução...................................................................................................................   12

Capítulo 1 – O “selvagem” de Carta..........................................................................                    14

Capítulo 2 – Iracema e a miscigenação......................................................................                     21

Capítulo 3 – O índio “herói” em Macunaíma.............................................................                          30

Capítulo 4 – Por que Literatura Indígena?..................................................................                     39

Capítulo 5 – Sinal do Pajé e o compromisso com a Tradição....................................                                   45

Considerações finais...................................................................................................         55

Referências..................................................................................................................   57




                                                                                                                                15
INTRODUÇÃO


       Esta monografia tem por objetivo perceber a diferença da abordagem do índio e
de sua cultura nos textos indigenistas, ou seja, de apresentação do índio pelo branco, e
na literatura indígena, em que o próprio índio fala sobre si mesmo e sua cultura, de
modo a ressaltar a visão desse índio, uma vez que, imerso em sua cultura, apresenta
outra visão da mesma.
       O índio, desde o “descobrimento”, vem sendo visto por muitos como o
“selvagem” e “atrasado”, o que incide no tratamento dado a ele por tantos anos, que
implicou a supressão de sua língua, de sua cultura e, até mesmo, a morte dos índios que
contrariavam o ideal de ensino branco que supostamente os tiraria do “atraso
ideológico”. Essa abordagem é fruto não só daqueles primeiros textos de informação,
nos quais se pretendia analisar a terra “recém-descoberta” para descobrir se a terra era
habitável, se havia nativos e quem eram. De fato, essa análise é superficial e, portanto,
imperfeita, o que implica em certos equívocos, sobretudo quando se trata do autóctone
da terra “descoberta”.
       Entretanto, já no século XVI, com o texto, por exemplo, do chefe Mamboré-
uaçu, em que o mesmo conta o que viu com seus olhos, história de promessas e
desencantos, e, sobretudo, no início do século XXI, em que se promulgou a lei
11.645/2008, que obriga os bancos escolares a tratar da História e Cultura indígenas, há
a necessidade de os próprios índios se valerem da língua que aprenderam, a portuguesa,
para apresentar aos brancos outra visão de si mesmos e de sua cultura, de forma que os
brancos os valorizem e entendam que nos autóctones não há atraso ou selvageria, mas
outra cultura diversa e que, descontextualizada, gera o estranhamento e o conflito.
       Para tanto, esse trabalho, tendo como pergunta de pesquisa “Por que Literatura
Indígena?”, analisa não só os textos indigenistas, de forma a perceber a construção, em
diferentes momentos da história, da imagem e da cultura do nativo, notando os acertos e
incongruências, como também a literatura indígena, percebendo se há valorização de
fato da cultura e da identidade do índio.
       Assim, no primeiro capítulo, “O selvagem de Carta”, analisa-se o texto gênese
de toda a construção da imagem do índio pelo branco, Carta, de Pero Vaz de Caminha,
percebendo algumas características da colonização na descrição do nativo e dos traços
de sua cultura percebidos pelo viajante, e, desse modo, no que essa abordagem


                                                                                      16
justificou a história de massacre e silenciamento que assolou por tantos anos os povos
indígenas.
       Dando um “salto” significativo na história, o segundo capítulo, “Iracema e a
miscigenação”, analisa uma das obras mais significativas da construção da imagem
indígena, tido, muitas vezes, por enaltecida, no romance Iracema, de José de Alencar.
Esse romance foi selecionado para análise, pois, além do indígena “enaltecido”, há, pela
primeira vez, a intenção da construção da imagem do índio como imagem da nação.
Partindo de considerações sobre o momento de produção de Alencar, o Romantismo,
avalia-se o enaltecimento do indígena no romance, se essa exaltação partiu de
experiências – se aconteceram – do autor com os índios e sua cultura, ou de
características enaltecedoras advindas da cultura europeia, e qual é a intenção nesse
enaltecimento, percebendo também o papel da cultura europeia no romance.
       No terceiro capítulo, “O índio ‘herói’ em Macunaíma”, baseando-se, assim
como se fez na análise de Iracema, em considerações sobre o contexto de produção de
Mário de Andrade, analisa-se, pode-se dizer, a única obra literária pós-romântica a tratar
novamente o índio como personagem principal, o romance-rapsódia Macunaíma, com o
foco na construção da imagem do índio, percebendo também a busca de Mário pela
“brasilidade”, ou seja, a imagem da nação, desligando-se do enaltecimento estabelecido
no Romantismo e, sobretudo, no Parnasianismo.
       No quarto capítulo, “Por que Literatura Indígena?”, estabelece-se um cotejo
entre as literaturas indígenistas analisadas nos capítulos anteriores, explicando o porquê
de somente existir literatura indígena quando o índio a fizer, apresentando também
características relevantes de sua cultura, e a importância da literatura do autóctone para
estabelecer o diálogo entre sua cultura e as outras, em especial com a cultura do branco.
       No quinto capítulo, “Sinal do Pajé e o compromisso com a Tradição”, analisa-se
a abordagem do índio e de sua cultura em Sinal do Pajé, um dos livros infanto-juvenis
do escritor indígena Daniel Munduruku, percebendo qual é a inovação presente nessa
abordagem, e como Munduruku lida com questões tão pertinentes como tolerância,
respeito e diálogo entre as culturas dentro de seu livro.
       Espera-se que este trabalho seja de grande valia para o leitor, especialmente para
os futuros professores que desejam incutir em seu alunos o respeito e o diálogo com
outras culturas.




                                                                                       17
1 O “SELVAGEM” DE CARTA


                                                Ai, palavras, ai, palavras,
                                                que estranha potência, a vossa!
                                                (Cecília Meireles)


        Para começar este estudo, é importante ressaltar que, segundo a visão de Bosi
(1999, p. 13), a literatura produzida na época do “descobrimento” é definida como
“textos de informação”, porque os textos produzidos naquele período, incluindo de seu
autor mais relevante, Caminha, tinham cunho de relatório primário da nova terra. Para
Bosi, nesses textos, “a Colônia é, de início, o objeto de uma cultura, o ‘outro’ em
relação à metrópole” (1999, p. 11). Portanto, ainda não se via a terra achada como
nação, mas como terra a ser conquistada, porque colônia, de modo que os textos de
informação trazem considerações sobre a terra recém-descoberta para Portugal.
        Entretanto, é importante que se analisem os textos de informação, mesmo que
não seja como palavra-arte, mas “como reflexo da visão de mundo e da linguagem que
nos legaram os primeiros observadores do país” (BOSI, 1999, p. 13). Para que se
compreenda as imagens posteriores do índio 1, é preciso que se analise suas primeiras
imagens, presentes nos textos de informação. Mais precisamente, Caminha, sendo,
segundo William Toledo Ferreira (1996, p. 9), o iniciador da pré-historiografia
brasileira, traz, em Carta, documento destinado a D. Manuel, rei de Portugal, essas
primeiras imagens (BOSI, 1999, p. 13). Pode-se partir, então, para a análise dessas
imagens sobre o autóctone.
        Em um primeiro momento, após terem atracado as embarcações, Caminha relata
as primeiras características do homem habitante da terra: “pardos, todos nus, sem
nenhuma roupa que lhes cobrisse suas vergonhas” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p.
12). Bosi afirma ser essa abordagem ingênua “no sentido de um realismo sem pregas”
(1999, p. 14), o que indica que, para os colonizadores portugueses, mesmo que lhes
fosse peculiar alguma característica do habitante da terra achada, ela deveria ser exposta
dentro dos textos para que se tivesse o máximo de impressões possível da terra a ser
colonizada. Do ponto de vista da análise contextual, é importante salientar também que
1
 O termo índio, para Brás de Oliveira França (1999 apud VIEIRA, 2006, p. 42-45), do povo Baré, assim
como para muitos habitantes de outras tribos, representa toda a história de massacre dos europeus à sua
história, ao seu povo, à sua cultura e sua língua. De fato, há muitas outras questões problemáticas que
envolvem esse termo, e algumas serão expostas no quarto capítulo. Resta saber que a palavra índio será
usada neste trabalho de forma meramente didática, para fácil identificação e acesso.


                                                                                                    18
a exposição das características da cor da pele, e, principalmente da nudez dos índios,
como elucidam Luciene Costa e Tânia Faria (2007, p. 40-42), se faz em contraste com o
modus vivendi, ou seja, o habitual dos colonizadores, acostumados, por exemplo, a
tantas roupas, por causa de seu clima frio, sua cor da pele, branca, e a sua religião, o
cristianismo (mais especificamente, o catolicismo).
       Isso justifica, de certa forma, a ênfase que Caminha apresenta na falta de
vestimenta dos índios e o fato de ele afirmar que “a inocência desta gente é tal que a de
Adão não seria maior quanto à vergonha” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 23):


                        A feição deles é serem pardos, quase avermelhados, de rostos
                        regulares e narizes bem feitos; andam nus sem nenhuma cobertura;
                        nem se importam de cobrir nenhuma coisa, nem de mostrar suas
                        vergonhas. E sobre isto são tão inocentes, como em mostrar o rosto.
                        (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 13)


       Caminha ainda traz outras características do índio encontrado, de forma a traçar
bem a imagem do mesmo para o leitor, ressaltando o que o incomoda:


                        Traziam, ambos, os beiços de baixo furados e, cada um, metido neles
                        ossos de osso mesmo, brancos, medindo uma mão travessa e da
                        grossura de um fuso de algodão e agudo na ponta, como furador. (...)
                        E de tal maneira o trazem ali encaixado que os não magoa, nem
                        estorva a fala, nem o comer ou o beber. (apud VOGT e LEMOS,
                        1982, p. 13, grifo nosso)

       Há outro fragmento dessa carta que também é importante destacar, pois se trata
de um dos pontos mais conhecidos, quando o índio mostra, segundo Caminha, onde se
encontra o ouro na terra:

                        O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, com
                        uma alcatifa aos pés, por estrado, e bem vestido com um colar de ouro
                        muito grande ao pescoço. (...) Um deles viu o colar do Capitão e
                        começou a acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como
                        a dizer-nos que havia ouro em terra. (apud VOGT e LEMOS, 1982, p.
                        14)


       Sobre esse ponto, Costa e Faria (2007) comentam que, visto a filosofia cultural
europeia embutida em Caminha, como a Europa carecia de metais preciosos, exigência
de sua atividade comercial, o cronista ressaltou a curiosidade diante do colar, da mesma
forma que a falta de vestimenta nos índios.



                                                                                          19
Retomando a análise da inocência dos índios relatada em Carta, há um momento
em que o capitão das naus “mandou dar, a cada um, camisas novas e também carapuças
vermelhas e dois rosários de contas brancas de osso” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p.
14). Nesse ponto, percebem-se os primeiros traços de colonização que os europeus
desejavam para a terra. Mais do que começar pela exploração da natureza em busca das
riquezas das Índias Ocidentais (como era conhecido o continente americano no século
XVI), o colonizador tem, pela sua visão de mundo, de certa forma, o dever de fazer o
que ele considerava certo para começar uma convivência com o habitante encontrado.
Bosi também compreende alguns dos aspectos da colonização como reafirmação da
própria cultura, ou seja, usando os termos de Carl Siger, uma “válvula de segurança” da
cultura europeia (apud BOSI, 2006, p. 22).
       É importante, aqui, destacar a noção da ambivalência no discurso colonial,
segundo a qual os elementos da cultura do nativo, como usar adereços diferentes e andar
nus, “que não precisam de prova, não pudessem na verdade ser provados jamais no
discurso” (BHABHA, 1998, p. 105). Ou seja, enquanto o colonizador percebe essas
características e as relata, no mesmo momento ele as rejeita e tenta as modificar,
segundo sua cultura, demonstrando, nos dizeres de Bhabha, uma postura narcisista.
       Ainda segundo o teórico, a força da ambivalência garante, ao discurso colonial,


                        [...] sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas
                        mutantes; embasa suas estratégias de individualização e
                        marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística e
                        predictabilidade que [...] deve estar sempre em excesso do que pode
                        ser provado empiricamente ou explicado logicamente. (1998, p. 106,
                        grifo nosso)


       Assim, ao ressaltar, a cada nova descrição, aquilo que, no nativo, estranha ao
europeu, garante-se a fixação do estereótipo, principal estratégia discursiva da fixidez do
discurso colonial, que “conota rigidez e ordem imutável como também desordem,
degeneração e repetição demoníaca” (1998, p. 105). Contudo, muito além do ressaltar a
diferença, é preciso que se “amanse” a característica conquistadora do discurso colonial,
uma vez que, detectada a diferença, é necessária a reafirmação da própria cultura.
       Dessa forma, “em 1556, quando já se difundia na Europa cristã a leyenda negra
da colonização ibérica, decreta-se na Espanha a proibição oficial do uso das palavras
conquista e conquistadores, que são substituídas por descubrimiento e pobladores, isto
é, colonos” (BOSI, 2006, p. 12). Entendendo a gênese de colonizador, isto é, aquele que


                                                                                        20
“toma conta de” (BOSI, 2006, p. 12), essa palavra, de certa forma, “amansa” o
verdadeiro intuito da ida das naus até a nova terra: a conquista, que tem conotação mais
agressiva, pois, como já foi dito, eles não se viam como conquistadores, muito menos
como exterminadores de uma cultura, mas como colonizadores, ou seja, aqueles que
cuidam, que têm a cultivar, nos nativos que encontram, algo “bom”.
       É importante notar que os colonizadores não reconheciam nos índios alguma
cultura relevante, já que os julgavam “inocentes” e “receptivos”, ao mesmo tempo que
“selvagens” e “aqueles que precisam de salvação”:


                       Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala
                       e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem
                       crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados
                       que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não
                       duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão
                       cristãos e hão de crer na nossa santa fé, a qual, praza a Nosso Senhor
                       que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de bela
                       simplicidade. (...) E Ele nos por aqui trouxe, creio que não foi sem
                       causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa
                       fé católica, deve cuidar da salvação deles. E praza a Deus, que com
                       pouco trabalho seja assim! (apud VOGT e LEMOS, 1982, p.21,
                       grifos nossos)


       Sobre esse trecho, ressalta-se que os degredados, ou seja, os prisioneiros
políticos de Portugal, são tratados também como missionários da “santa fé”, uma vez
que, segundo o que foi relatado por Caminha, a sua permanência na “nova terra” fará
cristãos os nativos, uma vez qualificados bons e de bela simplicidade.
       Indo além, pode-se afirmar que há no discurso colonial também o fetiche, no
sentido de que há no discurso colonial a necessidade de provar toda e qualquer atitude
que, até então, se repudiaria na cultura do colonizador (nesse caso, o que se recusaria
entre os europeus). Então, uma vez que a ambivalência do discurso colonial permite
que, usando da “cópula é” (SAID apud BHABHA, 1998, p. 112), se considere o índio
como ainda selvagem, o fetiche permite que se use de toda prática, como a violência
corporal e sexual, refutável entre os europeus, porém aceitável para com os nativos, uma
vez que necessitam da mão do branco para se purificar. Dessa forma, “estava decretado
o genocídio, o etnocídio, os massacres e as operações dirigidos àqueles que passaram a
ser chamados de índios” (FRANÇA apud VIEIRA, 2006, p. 42).
       Retomando na análise do trecho citado, sobretudo, percebe-se que Caminha
apresenta grande desejo de acrescentar à dita gente boa a fé católica, uma vez que


                                                                                          21
explicita claramente, como já foi dito, a visão missionária que os europeus têm sobre si
mesmos, já que não foi sem causa que o Senhor os trouxe até a terra dos índios. A visão
missionária dos europeus é que, fulcralmente, vai outorgar todo tipo de prática de
conquista, vista para eles como colonização, cultivo, algo que seria necessário para que
os nativos aderissem à santa fé católica.
       Para refletir um pouco mais sobre o papel da fé no discurso colonial, se faz
fulcral analisar a percepção do europeu da atitude indígena frente ao ritual religioso
católico relatado por Caminha. Segundo Eneida Leal Cunha, é a cena da primeira missa
“que põe em cena todos os elementos instituintes da história colonial” (2006, p. 121),
uma vez que é, para ela, “a estampa originária da dependência” (2006, p. 122).


                        E, chantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que
                        primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse
                        missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já
                        ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta
                        deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao
                        Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas,
                        eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se
                        chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando
                        levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram
                        assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal
                        maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita
                        devoção. (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 22, grifos nossos)


       Esse trecho traz claramente o índio (eles) e o europeu (nós) na forma de
comparação, que é metonímica, porque os separa (eles como nós), e é metafórica, pois
reafirma a cultura europeia (“E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos,
eles se puseram assim como nós) (BHABHA, 1998, p. 122), o que levanta uma outra
questão: a da fantasia, uma vez que se instaura a esperança e necessidade de que o índio
assimile a cultura e religião branca, e instaura todos como inocentes e bons.


                        Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala
                        e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem
                        crença alguma, segundo as aparências. E portanto [...], não duvido que
                        eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão
                        de crer na nossa santa fé, a qual, praza a Nosso Senhor que os traga
                        porque, na verdade, esta gente é boa e de bela simplicidade (apud
                        VOGT e LEMOS, 1982, p.21)




                                                                                            22
Assim, o papel da religião é claramente levantar essa fantasia, para que se
estabeleça uma noção geral do nativo, segundo a cultura europeia, para que assim se
reafirme essa cultura e mostre a cultura do autóctone como passiva.


                         As representações plásticas da “Primeira Missa” [...] recortam a
                         imagem congelada dos índios: pacíficos, atentos, reverentes,
                         integrados e submetidos ao fascínio do ritual civilizado, os olhares
                         convergidos para o centro, para a cruz sob a qual estão o altar e o
                         celebrante. (CUNHA, 2006, p. 122)


       Dessa forma, mais do que o relato pré-historiográfico e construção da imagem
dos povos achados, a intenção de Caminha em dar suas primeiras impressões ao rei de
Portugal tinha o intuito de descobrir o que precisava ser mudado e o que neles era útil
ao colonizador, no sentido de descobrir quais características eram interessantes para
ressaltar a diferença.
       Para Bhabha, “é a visibilidade dessa separação que, ao negar ao colonizado a
capacidade de se autogovernar, a independência, os modos de civilidade ocidentais,
confere autoridade à versão e missão oficiais do poder colonial” (1998, p. 127).
Portanto, esse discurso, além de deixar bem clara a posição de degredados e imitadores,
permite, como já dito, ao europeu, quaisquer atitudes civilizatórias necessárias para
amansar o índio, uma vez que “o melhor fruto que nela [na terra achada] se pode fazer,
me parece que será salvar esta gente; e esta deve ser a principal semente que Vossa
Alteza nela deve lançar” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 23).
       Para concluir este capítulo, a análise de Carta pode refletir as intenções do
discurso colonial como um todo. Essas intenções, conforme essa análise, de certa forma,
mostra, podem se desconstruir em três formas: a dominação pela cultura, pelo povo e
pela fé. Entende-se a primeira como toda e qualquer dominação dentro da cultura do
colonizado, envolvendo também a língua, “que é social em sua essência” (SAUSSURE,
1972, p. 27); a segunda refere-se à dominação que envolva a conquista propriamente
dita, isto é, o uso da força, da violência, de forma a fazê-los se purificar pelos castigos; a
terceira, por fim, abrange a sobreposição da religião do colonizador sobre o colonizado,
e esta é a dominação fulcral do discurso colonial, uma vez que reafirma as outras duas.
       Indo mais além, já que na língua indígena faltava as letras l, f e r, o intuito dos
colonizadores seria dar aos índios lei (o signo da dominação pelos costumes sociais, já
que, para os portugueses, eram selvagens sem cultura), fé (o signo da dominação pela
religião, “visto que não têm nem entendem crença alguma” (apud VOGT e LEMOS,

                                                                                           23
1982, p. 21)), e rei (o signo da dominação pelo povo, uma vez que os portugueses se
denominam o povo civilizado, enquanto o outro é o que precisa da intervenção do
branco para adquirir a civilidade).
       Como já se abrangeu o que era interessante para este primeiro capítulo, pode-se
prosseguir para a análise da obra Iracema, de José de Alencar, em que se pode ver se há
exaltação real do índio brasileiro ou não.




                                                                                    24
2 IRACEMA E A MISCIGENAÇÃO

                                           Ora, a história é a matéria-prima para as ideologias
                                           nacionalistas ou étnicas ou fundamentalistas [...]. O
                                           passado é um elemento essencial, talvez o
                                           elemento essencial nessas ideologias. Se não há
                                           nenhum passado satisfatório, sempre é possível
                                           inventá-lo.
                                           (Eric J. Hobsbawm)


       Para introduzir este segundo capítulo, é necessário afirmar que, antes do período
do Romantismo (século XIX), não havia literatura genuinamente nacional (BOSI, 1999,
p. 12-13), uma vez que, como já se havia dito antes na análise de Carta, o Brasil ainda
era visto como colônia. A literatura anterior ao Romantismo dialogava com o contexto
português (em Padre Antônio Vieira, por exemplo (BOSI, 1999, p. 44-46)), ou com
outros contextos da Europa (como em Gregório de Matos, do período Seiscentista, que
estabelecia contato com a grande poesia do Barroco espanhol (BOSI, 1999, p. 39)).
       Isso posto, Graziely da Silva Santos afirma que:


                        Com a elevação do país a Reino Unido de Portugal e Algarve e a
                        abertura dos portos, não cabiam mais as estruturas do Pacto Colonial
                        [...]. A elite, inclinada a aceitar o interesse inglês, que apoiava as
                        independências, [...] acaba por decretar a independência, com o apoio
                        de D. Pedro, que renuncia ao trono português e se torna Imperador do
                        Brasil. (2005, p. 15)


       Assim,


                        Na metade do século XIX, o Brasil já se havia desvencilhado
                        politicamente dos portugueses. A sensação de ufanismo se infiltra em
                        cada um e nas artes não poderia ter sido diferente. Já havia passado a
                        hora, o momento de formar uma literatura mais próxima de nossas
                        características, de nossos costumes, de nossos heróis (?), uma
                        literatura genuinamente brasileira (SILVEIRA, 2009, p. 11)


       Por isso, essa literatura brasileira teria de mostrar um país moderno, de natureza
exuberante, e de gigante potencial (SILVEIRA, 2009, p. 12). Dessa forma, segundo
Silva Santos, “durante todo o século XIX, vai haver uma discussão em torno das ideias
sobre um projeto de Brasil” (2005, p. 15). Entretanto, Silveira já ressalta que, uma vez o
branco ligado à nação colonizadora, sua presença como imagem nacional seria hipótese
descartada (2009, p. 17).


                                                                                             25
José de Alencar, inserido nesse contexto de independência, como já mencionado,
almejava compor, em sua obra, um panorama do Brasil. Alfredo Bosi, ao mencionar o
prefácio a Sonhos d’ Ouro, romance escrito por Alencar em 1872, afirma que o escritor
“traçou um quadro retrospectivo da sua ficção, onde se mostrava consciente de ter
abraçado todas as grandes etapas da vida brasileira” (1999, p. 136).
       No prefácio, Alencar afirma que a literatura daquele período apresentava três
fases. A primeira fase, chamada de primitiva, ou aborígene, era composta por “lendas e
mitos da terra selvagem e conquistada” (apud BOSI, 1999), e nela se incluía o romance
Iracema, literatura “cheia de santidade e enlevo” (apud BOSI, 1999, p. 136); a segunda,
chamada de histórica, apreende o lento nascimento do povo americano, que devia
deixar a “origem” lusa, para continuar na nova terra “as gloriosas tradições de seu
progenitor” (apud BOSI, 1999), terminando com a Independência, pertencendo essa
fase os romances O Guarani e As Minas de Prata; e a terceira, por fim, aborda o
nascimento da literatura de gosto “nacional”, que, primeiramente, vai tratar da ligação
com o passado, em Tronco do Ipê, Til e O Gaúcho, e, em seguida, a adolescência, que
luta entre “o espírito conterrâneo e a invasão estrangeira” (apud BOSI, 1999, p. 137),
em Lucíola, Diva, A Pata da Gazela e Sonhos d’Ouro.
       Da classificação feita por Alencar, a fase que mais interessa a este trabalho é, de
fato, a primeira, pois ela possibilita problematizar se, em Iracema, o fato de uma índia
aparecer como protagonista revela o desejo de valorização da cultura indígena, ou o que
se verifica, na verdade, é somente a exposição de um “novo tipo” de imagem colonizada
do índio.
       Com essa questão inserida é que se pode iniciar a análise do romance proposto,
com o objetivo de não só respondê-la, mas, sobretudo, de perceber as intencionalidades
de Alencar ao reconstruir a imagem do índio.
       Primeiramente, a personagem principal do romance, Iracema, possui
características de notável beleza. O romance começa a descrevendo como:


                       Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros
                       que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
                       O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia
                       no bosque como seu hálito perfumado.
                       Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as
                       matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação
                       tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia
                       que vestia a terra com as primeiras águias. (ALENCAR, 1991, p. 14)



                                                                                           26
As orações adjetivas elencadas sobre a personagem Iracema, de certa forma,
espelham uma imagem de beleza e santidade. A construção da personagem sempre com
base na fauna e flora brasileiras, as quais são projetadas de forma edênica no romance,
faz com que as personagens indígenas (e também a branca, Martim, como se
argumentará mais adiante) sejam projetadas da mesma forma, como frutos do Éden, ou
seja, perfeitos (característica que será questionada mais adiante). Ao comentar sobre a
necessidade de “fundar” o Brasil nos romances românticos, Cassio Silveira afirma que:


                          O Brasil de verdade seria fundado agora [...]. Porém, é claro que, hoje
                         sabemos, esse Brasil “de verdade” possui muito de ficção, pois o
                         Brasil de verdade fornecido pelos primeiros escritores nacionalistas
                         era o Brasil esplendoroso, de matas, rios e céus incomparáveis, cujo
                         clima agradável parecia abençoar as pessoas que viviam unidas e
                         felizes, pois habitavam uma espécie de novo Jardim do Éden na Terra,
                         gigante e encantador pela própria natureza (!). (2009, p. 14)


       Ainda segundo Silveira, a comparação das personagens com a natureza, sendo
ela uma “pré-metáfora”, é “um grande achado do escritor cearense” (2009, p. 44). Isso
porque muitos documentos do século XVI relatam que era comum, para os índios, a
definição dos elementos a sua volta por meio da metáfora. Assim, nos dizeres do
pesquisador, é nos “incontáveis exemplos de comparação com a natureza [que] o autor
parece estar ainda mais próximo dos indígenas, dando-lhes uma espécie de
‘autonomia’” (SILVEIRA, 2009, p. 44).
       Contudo, como adverte Silveira, a união dos elementos por meio da metáfora
pode até recordar “o que ocorre, na visão do romance, entre o colonizador e o indígena:
eles se ligam, se unem, a partir de um termo em comum, para que o colonizador
continue sendo ele mesmo, mas com a influência do aborígene e vice-versa” (2009, p.
46). Portanto, essa ligação entre índio e branco por meio da linguagem metafórica, que
permite ao colonizador permanecer com sua cultura e suas crenças, mas integrando-se
com o indígena, segundo Silveira (2009), não pode ser descartada.
       Entretanto, mesmo que aconteça a ligação entre o autóctone e o europeu a partir
de um ponto comum, como a linguagem, a presença do branco sempre se sobressairá à
do índio. Ao discorrer sobre a relação entre Martim, o branco, e Iracema, a indígena,
Silveira assevera que:


                         É a relação entre o sol e a lua, que estão sempre ligados um ao outro,
                         mas sempre distantes: “A luz brilhante do sol empalideceu a virgem


                                                                                              27
do céu, como o amor do guerreiro desmaia as faces da esposa”. A
                       descrição acima, que não é apenas a descrição do entardecer,
                       demonstra a ligação entre o português Martim e sua amada Iracema.
                       Primeiramente, ele é o guerreiro branco que ilumina, ele é o agente,
                       aquele que faz, é a fonte de luz e da ação, enquanto Iracema se
                       encontra no papel de paciente, objeto, aquele que sofre a ação do
                       outro. [...] Portanto, o guerreiro é o Sol, é aquele que ilumina, dá vida,
                       clareia os caminhos, enquanto a índia, a virgem do céu, a lua,
                       romântica [...]. (SILVEIRA, 2009, p. 101, grifos do autor)


       Dessa forma,


                       Na configuração romântica da origem, o encontro entre índio e
                       europeu é deslocado da circunstância religiosa [...] para ser
                       representado no plano mais produtivo da conjunção familiar,
                       legitimada pelo afeto. Na reapresentação corrigida da origem,
                       entretanto, são os mesmos elementos em cena: a atividade do
                       colonizador, a receptividade do índio e um projeto de Estado que, para
                       se efetivar, necessita da interação, mesmo que apenas no simbólico
                       instituído, das duas partes em confronto [...]. As novas representações
                       da origem estão marcadas pelo sentido mais puro de corrigir, que não
                       suporta rupturas ou alterações de fundo. (CUNHA, 2006, p. 124)


       Pode-se notar, então, a total submissão de Iracema a Martim, a qual se evidencia
ainda mais no momento em que, ao ver seu já amado ser ameaçado pela tribo dela que a
veio buscar dos campos dos pitiguaras (tribo de Poti, amigo e irmão de Martim), a índia
afirmar ser capaz de assassinar Caubi (seu irmão) para que as mãos de Martim não se
maculassem:


                       Iracema, unida ao flanco de seu guerreiro e esposo, viu de longe Caubi
                       e falou assim:
                       — Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o
                       sangue do filho de Araquém. Se o guerreiro Caubi tem de morrer,
                       morra ele por esta mão, não pela tua.
                       [...]
                       — Iracema antes quer que o sangue de Caubi tinja sua mão que a tua;
                       porque os olhos de Iracema vêem a ti, e a ela não. (ALENCAR, 1991,
                       p. 48)


       Assim,

                       [...] sabemos que a personagem-título não abandona seu amado
                       Martim, mesmo sabendo que nunca mais estará junto de sua família e
                       (pior) que será obrigada a conviver exatamente com os pitiguaras,
                       inimigos de sua nação. É certo que Iracema não é tão servil quanto
                       Peri, [...] mas os sentimentos e ideais também são inabaláveis,
                       principalmente em relação ao seu amado. (SILVEIRA, 2009, p. 47)



                                                                                              28
Interessante notar, também, que, assim como a tribo de Iracema (tabajaras) é
inimiga da tribo do fiel amigo de Martim (Poti) e vice-versa, a tribo de Poti também é
inimiga dos tupinambás e dos guaraciabas, seus aliados. Esse comportamento dos
personagens frente a outras tribos, além do fato que todos os índios relatados são
guerreiros e foram feitos, de certa forma, para o combate, de tal modo que, uma vez que
não pode mais combater, se lamenta por estar incapaz (ALENCAR, 1991, p. 61-62),
pode ser comparado à cultura guerrilheira que regia os romanos e também os
conquistadores na Idade Média. Segundo Pereira (apud SILVEIRA, 2009, p. 48),
“Alencar vai lhe atribuir [ao índio] valores heroicos e honras de cavaleiro medieval,
próprios à tradição das noções colonialistas”. Adianta-se que isso embate com a cultura
real dos indígenas, sempre pacífica: “Para nós, que somos os irmãos maiores dos
brancos, ele deu a ordem de ficarmos calmos, vivemos unidos e de maneira pacífica”
(LANA apud VIEIRA, 2006, p. 39).
       Entretanto, ao mesmo tempo em que Alencar constrói o índio robusto e guerreiro
para com os que o ameaçam, também o caracteriza como um ser puro, ingênuo,
receptivo para com o branco, que parece não ameaçador. Segundo Silveira, “aí está uma
das grandes questões em relação às obras indianistas de Alencar: ele realmente
acreditava na nobreza do indígena ou a construiu para conciliá-la com seu objetivo de
descobrimento e exaltação de nosso país recém-independente” (SILVEIRA, 2009, p.
48)? Para compreender esse objetivo, é necessário analisar o papel do europeu no
romance de Alencar.
       Assim, retomando ao início do romance, Martim chega a ser atacado com uma
flecha na fronte por Iracema. Contudo, quando ela percebe que ele não “ameaça”, a
índia o recebe prontamente dizendo: “Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos
tabajaras” (ALENCAR, 1991, p. 16). Ao entrar na cabana do pajé da tribo, Martim
também é prontamente recebido, até profeticamente, quando Iracema diz: “Ele veio,
pai”. Isso se confirma quando o mesmo pajé, Araquém, o recebe: “É Tupã que traz o
hóspede à cabana de Araquém” (1991, p. 17) e diz: “O estrangeiro é senhor na cabana
de Araquém” (1991, p. 17). E, como tal, Martim, em toda a sua estadia na tribo de
Iracema é muito bem protegido pelo Pajé e Caubi, irmão de Iracema e grande guerreiro,
e da mesma forma amparado por Iracema, a “filha de Araquém”, e as outras mulheres
da tribo – e esse amparo ainda não incluía a relação sexual, uma vez que Iracema devia
permanecer virgem, por ser a guardiã dos segredos da jurema, o que pode simbolizar
também que Iracema seria a natureza virgem (o Brasil) e Martim, aquele que a

                                                                                    29
desbrava. Portanto, por ser recém-chegado, ainda não era o momento de Martim
conquistar Iracema por completo, já que ainda era estranho.
       Prosseguindo, os índios defendem o europeu de tal modo que lutam uns contra
os outros para que Martim esteja a salvo:


                       Araquém viu entrar em sua cabana o grande chefe da nação tabajara, e
                       não se moveu. Sentado na rede, com as pernas cruzadas, escutava
                       Iracema. A virgem referia os sucessos da tarde; avistando a figura
                       sinistra de Irapuã, saltou sobre o arco e uniu-se ao flanco do jovem
                       guerreiro branco.
                       Martim a afastou docemente de si, e promoveu o passo.
                       A proteção, de que o cercava a ele guerreiro a virgem tabajara, o
                       desgostava.
                       — Araquém, a vingança dos tabajaras espera o guerreiro branco;
                       Irapuã veio buscá-lo.
                       — O hóspede é amigo de Tupã; quem ofender o estrangeiro ouvirá
                       rugir o trovão.
                       — O estrangeiro foi quem ofendeu a Tupã, roubando a sua virgem,
                       que guarda os sonhos da jurema. (ALENCAR, 1991, p. 28)


       Nesse ponto, pode-se perguntar: Por que tanta afeição a um estrangeiro mal
chegado à tribo? A resposta parece bastante clara: Não só simplesmente por ser o
europeu, “filho de Tupã”, mas por ser a peça-chave da intenção nacionalista do
romance: a miscigenação.
       De certa forma, pode-se afirmar que Iracema não seria a personagem principal
do romance, e sim Martim, uma vez que a índia o defende, o ampara e o atende (e não o
contrário), assim como os amigos índios do europeu. Ele, que, no início do romance é
“a sombra, o escuro, que oculta a visão de Iracema, é o intruso, é aquele que invade sem
ser percebido e tapa os olhares para as belezas naturais que estão por toda a parte”
(SILVEIRA, 2009, p. 96), pouco a pouco, conforme se entranha nos costumes e
preceitos dos indígenas, passa a utilizar a mesma linguagem deles, aquela por meio de
metáforas: “Teu hóspede fica, virgem dos olhos negros: ele fica para ver abrir em tuas
faces a flor da alegria, e para sorver, como o colibri, o mel de teus lábios” (ALENCAR,
1991, p. 28). Martim chega a “renunciar” às raízes de sua terra para aderir aos costumes
da nova terra, sendo pintado e batizado com o nome de Coatiabo. Sobre esse ponto,
Silveira afirma:


                       Martim é [...] o rio, a água, o meio pelo qual saiu de sua terra natal e
                       chegou ao Novo Mundo, é o meio de ligação entre o europeu e o
                       selvagem, para formar um novo povo. [...]


                                                                                            30
Assim, mesmo com o “batismo”, momento simbólico da passagem de
                        Martim do caráter europeu para o caráter pitiguara, que ocorrera
                        momentos antes, Martim não se esquece de sua terra natal. Logo,
                        Martim não é mais completamente um português, pois adquiriu até
                        mesmo um nome entre os índios (Coatiabo), vive a par dos costumes
                        indígenas, graças ao seu amor por Iracema, mas, ao mesmo tempo,
                        não é completamente um indígena, pois não pode desprezar toda a sua
                        vida do outro lado do oceano. (SILVEIRA, 2009, p. 97)


       Por esse motivo, um capítulo depois do “batismo” de Martim, ele começa a
olhar, da praia, para o mar, e lhe bate a nostalgia de suas terras, de tal modo que ele se
esquece quase completamente de seu amor por Iracema, ao ponto de ela mesma
perceber o desprezo:


                        Uma vez o cristão ouviu dentro em sua alma o soluço de Iracema:
                        seus olhos buscaram em torno e não a viram.
                        A filha de Araquém estava além, entre as verdes moitas de ubaia,
                        sentada na relva. O pranto desfiava de seu belo semblante; e as gotas
                        que rolavam a uma e uma caíam sobre o regaço, onde já palpitava e
                        crescia o filho do amor. Assim caem as folhas da árvore viçosa antes
                        que amadureça o fruto.
                        — O que espreme as lágrimas do coração de Iracema?
                        — Chora o cajueiro quando fica tronco seco e triste. Iracema perdeu
                        sua felicidade, depois que te separaste dela.
                        — Não estou eu junto a ti?
                        — Teu corpo está aqui; mas tua alma voa à terra de teus pais, e busca
                        a virgem branca, que te espera. (ALENCAR, 1991, p. 74)


       Desse ponto, pode-se concluir que Martim, na verdade, mesmo que essa não
fosse a intenção do autor, somente tinha a função de ser essa ponte entre o europeu e a
nova terra, de forma a gerar, nessa ponte, o “Brasil”. Silveira (2009, p. 99-100) até
mesmo sugere que o nome do europeu (MARtim), mesmo que seja ligado a um
personagem histórico (Martim Afonso), está ligado à sua dicotomia: Europa versus
Novo Mundo.
       Sobre essa integração, faz-se mister refletir que, após a Independência do Brasil,
quem tomou o poder foi a elite branca, representada por D. Pedro I, e não uma elite
autóctone, ainda vista como “atrasada” e “selvagem”. Portanto, era necessário que o
europeu se integrasse à nova terra, e que essa integração fosse enaltecida, para se
construir a imagem perfeita pensada por essa elite: um Brasil belo, puro, heroico, mas
branco.
       Entretanto, como se pode ver em Graziely da Silva Santos (2005, p. 24-25), o
objetivo do romance de Alencar, de acordo com as tendências da época, era usar o índio


                                                                                          31
(na pureza e robustez) e o europeu (na civilidade, religiosidade, língua, entre outros)
como matrizes na formação de um “bem maior”: no caso, o primeiro cearense. Sendo
esse cearense o novo herói do novo mundo, o predestinado, esse seria o plano perfeito
da criação da imagem de uma identidade nacional, uma vez que, mesmo que o europeu
se integrasse à cultura indígena, ele ainda seria o europeu, o estrangeiro. O cearense,
filho da índia – símbolo, como já se discorreu, da terra a ser desbravada, une os genes
da nova terra, que é edênica e heroica, com o sangue da Europa, “civilizada por
excelência” na ótica da elite brasileira.
       Segundo Bosi,


                         À medida que nossos narradores iam aclimando à paisagem e ao meio
                         nacional os esquemas de surpresa e de fim feliz dos modelos
                         europeus, o mesmo público acrescia ao prazer da urdida o do
                         reconhecimento ou da auto-idealização.
                         Vistos sob esse ângulo, são exemplares os romances [...] de Alencar,
                         que respondem, cada um a seu modo, às exigências mais fortes de tais
                         leitores: reencontrar a própria e convencional realidade e projetar-se
                         como herói ou heroína em peripécias com que não se depara a média
                         dos mortais(1999, p. 128).


       Assim, o nascimento de Moacir, filho de Iracema e Martim, dá ao Brasil o
caráter de predestinado, fruto da coragem, beleza e robustez do índio e da civilidade,
decência e racionalidade europeia: “O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da
terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?” (ALENCAR, 1991, p. 86)
       Por fim, é interessante transpor alguns trechos do último capítulo de Iracema,
para perceber o fim último dessa análise: perceber a europeização do índio, mostrada
como prática desejável, indício de seus primeiros passos rumo à civilização.


                         O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias
                         do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel.
                         [...]
                         Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para
                         fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua
                         religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem.
                         Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria
                         ele que nada mais o separasse de seu irmão branco; por isso quis
                         tivessem ambos um só deus, como tinham um só coração.
                         Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei,
                         a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos irmãos.
                         Sua fama cresceu, e ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele viu a luz
                         primeiro.
                         A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará,
                         medrou. A palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem; e


                                                                                             32
o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá. (ALENCAR,
                       1991, p. 86-87)


       Vê-se que, como ilustra esse último capítulo, o fim foi muito semelhante ao do
texto de Caminha. Embora o europeu antes se entranhasse quase completamente na
cultura dos indígenas, ao voltar de sua terra natal, trouxe outros europeus consigo com a
mesma finalidade: fazer os europeus e índios possuírem “um só coração”. Percebe-se,
também, que Poti se fez o primeiro “amansado” pelos europeus, por sua fidelidade a
Martim, que se tornou eterna. Sobre esse ponto, Eneida Leal Cunha, discorre que,
mesmo que o encontro tenha se deslocado para a relação familiar (a fidelidade de
Iracema a Martim até a morte da mesma), o narrador utiliza a mesma cena da
colonização que Caminha relatou: “a atividade do colonizador, a receptividade do índio
e um projeto de Estado que, para se efetivar, necessita da interação, mesmo que apenas
no simbólico constituído, das duas partes em confronto” (2006, p. 124). Desse modo,
constata-se que, nesse contexto,

                       [...] é a si mesmos, enquanto escritores e enquanto herdeiros dos
                       colonizadores, que é preciso legitimar. Nesta perspectiva, a família
                       original composta por europeu e índia – ou vice-versa – passa a ser
                       vista prioritariamente como a montagem de uma ascendência ideal,
                       purificadora e particularizadora, que aplaca a conturbação posta por
                       duas evidências: a primeira, de que, a rigor, se é intelectualmente tão
                       europeu quanto os que aqui celebraram a primeira missa; a segunda,
                       que a matriz para ser europeu aqui é ocupar o lugar do habitante da
                       terra na primeira missa: ser receptivo aos rituais que o imaginário
                       colonizador produz, contemplá-los mais ou menos a distância, repeti-
                       los incessantemente, sem interferir na sua lógica própria e já dada.
                       (CUNHA, 2006, p. 124-125)


        Concordando com as palavras de Eneida, por fim, pode-se concluir essa análise
com a última frase de Iracema: “Tudo passa sobre a terra” (ALENCAR, 1991, p. 87).
Esse último trecho exprime toda a experiência de Martim nas terras cearenses. Todo o
amor que ele cultivou já não passa de doces lembranças “de uma noite de verão”.




                                                                                           33
3 O ÍNDIO “HERÓI” EM MACUNAÍMA

                                           Tem uma música do Caetano, tem uma poesia dele
                                           que fala disso, o nativo levanta o braço e pega um
                                           caju. As pessoas estão preferindo em nome do
                                           progresso instalar aquelas casas com aquelas
                                           placas luminosas e distribuir Coca-Cola na praia.
                                           (Aílton Krenak)


       Primeiramente, faz-se importante expor os objetivos dos autores modernistas da
“fase heroica”, da qual Mário de Andrade, autor de Macunaíma, fazia parte. Para Daniel
Faria (2006), dois outros escritores do período, Oswald e Paulo Prado buscavam a
reconstrução do conceito de brasilidade.

       Conforme analisado no subcapítulo anterior, a imagem de brasilidade para os
românticos consistia em suprimir os sofrimentos de um Brasil em construção de
independência para construir um Brasil idealizado, em que todos se vissem como
“predestinados” na criação de uma nova nação, “desligada” de Portugal. No movimento
modernista, porém, segundo a ótica de Paulo Prado e Oswald de Andrade, a
preocupação estava em encontrar a “brasilidade”, isto é, a imagem da nação, num
âmbito muito maior, no sentido de que a mentalidade brasileira era vista por eles como
dualista, ou seja, ao mesmo tempo em que os brasileiros expressavam, nas ruas, uma
cultura singular, também era visto como intelectual o brasileiro fortemente ligado à
cultura europeia.

       O movimento modernista buscava romper com as imagens construídas no
parnasianismo, pois esse último não buscava, de certa forma, compromisso social. Não
foram poucas as críticas produzidas no período contra o Parnasianismo. Para
exemplificar, Ronald de Carvalho, na semana de 22, grande marco que revolucionou as
bases do Modernismo brasileiro, declamou o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira,
“sob um coro de coaxos e apupos” (ANDRADE, 1999, p. 166), no qual o sapo
representava os parnasianos.


                       As inovações atingem os vários estratos da linguagem literária, desde
                       os caracteres materiais da pontuação e do traçado gráfico do texto até
                       as estruturas fônicas, léxicas e sintáticas do discurso. Um poema da
                       Paulicéia Desvairada ou [...] uma passo qualquer extraído de
                       Macunaíma (...) nos dão de chofre a impressão de algo novo em



                                                                                          34
relação a toda a literatura anterior a 22: eles ferem a intimidade da
                           expressão artística, a corrente dos significantes.
                           Vista sob esse ângulo, a “fase heroica” do Modernismo foi
                           especialmente rica de aventuras experimentais tanto no terreno poético
                           como no da ficção. (BOSI, 1999, p. 345)


        Mário, não obstante a seu tempo, inovou não só as estruturas da linguagem
literária, ao explorar elementos da fauna, flora e ambiência brasileiras – assim como
José de Alencar, a quem considerava “patrono santo da língua brasileira” (PROENÇA,
1969, p. 47) –, mas também no caráter sintático da linguagem. A rapsódia 2 mais
significativo de Mario foi inteiramente construída na linguagem falada do Brasil, e é
repleta de expressões, provérbios, danças e cantigas (o único momento que Mário muda
sua linguagem do informal para o formal é no capítulo “Carta pras Icamiabas”, clara
paródia ao parnasianismo, segundo Bosi (1999) e Proença (1969)). Feitas essas
observações, pode-se adentrar para a análise da imagem do índio na obra e sua relação
com o contexto apresentado.
        Primeiramente, o livro se passa “no fundo da mata virgem”, numa abertura que,
segundo Bosi (1999, p. 353), é feita em estilo solene, lendário, e nela nasce Macunaíma,
“preto retinto e filho do medo da noite” e “uma criança feia” (ANDRADE, 1999, p. 13).
Nesse ponto, Daniel Faria, ao analisar um dos adjetivos dados para Macunaíma, afirma
que “o herói de nossa gente nasceu num tempo e espaço não históricos: é filho de uma
noite absoluta. Não pertencendo a uma tradição qualquer, tem com seu nascimento um
começo, uma origem também significada pela ausência do Pai” (2006, p. 10). Segundo
Cavalcanti Proença, não tendo ele um pai, “nasce, como verdadeiros herois, de mãe
virgem” (1969, p. 160). A abertura também diverge da feita em Iracema, “virgem dos
lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna” (ALENCAR,
1991, p. 14).
        Mais adiante, a narrativa de Mário assume um estilo jocoso, cômico, de crônica:

                           Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de
                           seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:

2
  O próprio Mário de Andrade chegou a cogitar o nome rapsódia para sua obra, sendo “emprestado”,
usando o termo de Bosi (1999), o nome “romance” para concorrer a um prêmio literário. Contudo, todos
os teóricos estudados são unânimes em caracterizar Macunaíma como rapsódia. Segundo Bosi (1999, p.
353), esse nome seria pela grande capacidade da obra de articular entre o estilo de lenda, o cômico e o
paródico. Já Cavalcanti Proença (1969, p. 11) afirma que “Macunaíma apresenta como as rapsódias
musicais uma variedade de motivos populares, a que Mário de Andrade seriou, de acordo com as
afinidades existentes entre eles”. Portanto, a obra Macunaíma aqui será abordada como rapsódia.



                                                                                                    35
- Ai! Que preguiça!....
                         e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de
                         paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois
                         manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem
                         (ANDRADE, 1999, p. 13).


       Já se nota desde o primeiro capítulo que o índio apresentado, embora herói, é, no
mínimo, uma figura desconcertante. A imagem de um índio preguiçoso rompia com o
ideal de “mancebo” viril e ativo, construído pelo romance de Alencar.
       Koch-Grünberg, ao relatar a lenda de Makunaíma oriunda dos povos arecuná e
taulipang, afirma que “ainda era menino, porém mais safado que todos os outros
irmãos” (apud ANDRADE, 1999, p. 168), o que realmente pode ser comprovado no
heroi de Mário, já que, toda vez em que a cunhada Sofará o leva para o campo para
passear, “brincam”, mesmo sendo pequeno, e, quando já maior, têm relações com Iriqui,
outra mulher de Jiguê.
       Outro ponto a se notar são as transformações de Macunaíma, que pode se
transformar em qualquer animal ou planta desejada, o que confirma o dito por Nestor
Victor sobre o espaço-tempo de Macunaíma: “Como nós sonhamos à noite, assim
vivem os seus personagens de dia. Tudo em torno desses imaginados seres é sonho e
sonho (...). Para essa fauna supostamente humana o espaço e tempo em que vivemos
sujeitos não existem” (apud BOSI, 2003, p. 189-190). Bosi ainda acrescenta que:


                         Em Macunaíma, como no pensamento selvagem, tudo vira tudo. O
                         ventre da mãe-índia vira cerro macio; Ci-Mãe do Mato, companheira
                         do herói, vira Beta do Centauro; o filho de ambos vira planta de
                         guaraná; a boiúna Capei vira Lua. (1999, p. 352)


       É importante ressaltar que, na primeira parte da rapsódia, assim como já
elucidado por Daniel Faria, os lugares citados pelo narrador têm nomes como “Cafundó
do Judas” e “Campo das Flores”, e não nomes convencionais como Salvador e Roraima,
o que alude, segundo o pesquisador, às ruas de Itacoatiara, cidade dos sonhos de Mário,
produto de suas experiências com a natureza do norte do país:

                         De acordo com o diário de viagem, na noite de 3 de junho Mário de
                         Andrade sonhou com uma cidade encantada, Itacoatiara. A cidade
                         tinha setecentos palácios triangulares de granito, com uma única porta
                         vermelha. Itacoatiara era composta por ruas líquidas, nas quais o
                         modo de locomoção era o peixe-boi, para os homens, e o boto, para as
                         mulheres [...]. As ruas da cidade tinham nomes idílicos, como rua do
                         Meu Bem, rua da Rainha do Café e rua das Meninas [...]. Assim, a


                                                                                            36
Itacoatiara do sonho de Mário de Andrade era uma cidade utópica, no
                      sentido de que punha fim aos conflitos políticos, às limitações
                      mundanas, sendo a concretização dos anseios estéticos do autor.
                      Esteticamente, a cidade encantada despertava as mesmas sensações
                      que a beleza sublime da natureza amazônica. Em Itacoatiara o mundo
                      natural, o social e o político estavam harmonizados. (FARIA, 2006, p.
                      268)


       Pode-se inferir que era essa mesma Itacoatiara se faz presente na primeira
Uraricoeira, onde Macunaíma não tinha preocupações com sua vida, somente se
ocupava de dormir, “brincar” e aprontar com seus irmãos. Tanto que, nesse período,
Macunaíma torna-se Imperador do Mato Virgem ao “possuir”, nos termos de Koch-
Grünberg (apud PROENÇA, 1969), Ci, líder das amazonas. Assim como no romance
Iracema, Ci chega a gerar filhos de Macunaíma. Entretanto, enquanto Iracema morre
para Moacir a substituir, Macunaíma não tem herdeiros, já que seus filhos morrem após
sugar muito pouco do que Ci tinha, devido ao assalto de uma cobra sugadora de leite, e
ela, após cumprir sua função, também morre, virando a constelação Beta do Centauro.
       Até esse ponto, relacionou-se várias características em que Macunaíma diverge
de Iracema, e o ambiente criado era idealizado para que Macunaíma não se preocupasse
com outra coisa a não ser continuar preguiçoso. Contudo, ao se direcionar para São
Paulo em busca da muiraquitã perdida, o ambiente transforma-se, e muitas outras
características de Macunaíma podem ser notadas em suas peripécias na cidade grande.
       Antes disso, Macunaíma, com seus irmãos, no caminho para São Paulo, encontra
uma gruta com um poço.

                      Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era a marca do
                      pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de
                      Jesus pra indianada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava
                      branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E
                      ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta
                      dos Tapanhumas. (ANDRADE, 1999, p. 40)


     Há certa paródia nesse trecho de Macunaíma, já que, segundo Cavalcanti Proença
(1969, p. 188), Sumé seria acrônimo de São Tomé, e, conforme ele mesmo relata, há
uma lenda de que São Tomé teria feito uma peregrinação apostólica no Brasil. Ora, no
fenômeno do índio se tornar branco ao se lavar nas águas do poço de Sumé, se indaga o
conceito de puro que os europeus têm, já constatado no desejo de conversão dos índios
em Caminha e na criação do “predestinado” Moacir em Alencar. Aqui há a referência




                                                                                         37
clara à ótica de embranquecimento 3 que se tinha – e ainda se tem – no Brasil. Assim, a
intenção do batismo, do “plano de salvação” dos índios, nada mais era que uma
tentativa de “embranquecimento” do indígena, o que seria uma forma de intolerância.
Na afirmação do narrador de que “ninguém não seria capaz de indicar nele um filho da
tribo retinta dos Tapanhumas”, pode-se perceber que o batismo, naquela concepção,
destitui o índio de sua cultura, fazendo com que ele se torne um branco, um “ser-outro”.
        Quando Macunaíma chega à cidade de São Paulo, Macunaíma percebe que o
dinheiro que usava na Terra do Mato Virgem já não serviria mais, e que teria de arranjar
trabalho, mas, como era preguiçoso, larga a empresa que o contratou e vive com o que
conseguiu na troca do seu dinheiro com a moeda local. Então Macunaíma entra em
contato com uma São Paulo envolvida na promessa das máquinas e no brasileiro com
ânsias de europeu. A ligação com as máquinas era tanta que Macunaíma pensa-a ser um
deus, tenta “brincar” com a máquina para ser imperador também do povo de São Paulo,
ao passo que as pessoas zombam de sua atitude. Segundo elas:

                          [...] isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e
                          que com a máquina não brinca porque ela mata. A máquina não era
                          deus não, nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava
                          tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo
                          com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da
                          natureza [...].
                          Macunaíma passou então uma semana [...] só maquinando nas brigas
                          sem vitórias dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era
                          que matava os homens porém os homens é que mandavam na
                          Máquina... [...]. Até que uma noite, suspenso no terraço dum
                          arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu:
                          - Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles
                          nessa luta. Há empate. (ANDRADE, 1999, p. 42- 43)


        A conclusão de Macunaíma é emblemática não só por demonstrar que a
máquina, mesmo submissa à mão do homem, o submetia também, não só pelo medo,
mas, pode-se concluir pela característica do período, pelo fascínio e esperança de uma
São Paulo mais moderna.
        É a característica do paulista de ser ligado com o moderno que Mário parodiza
na “Carta pras Icamiabas”, em que brinca não só com a linguagem parnasiana,


3
  O embranquecimento, aqui, reflete algo que ainda caracteriza o Brasil: a visão do negro como alguém
sujo, impuro, que as “águas do batismo” irão purificá-lo da mácula da outra origem. Mário de Andrade,
não obstante a outros autores anteriores, como Padre Vieira e Santa Rita Durão, também carrega esse
estereótipo em sua rapsódia. Essa é uma das grandes críticas feitas pela comunidade negra a essa
rapsódia.



                                                                                                  38
mesclando português arcaico com certos deslizes de linguagem, (PROENÇA, 1969),
mas com o fascínio do paulista pelo estrangeiro moderno, ao Macunaíma afirmar
“admirado” que, ao mesmo tempo em que fala um dialeto “bárbaro” (BOSI, 1999, p.
80) e “desprezível” (1999, p. 80), ao escrever, este dialeto se torna uma língua tal que
pode ser nominada “língua de Camões” (ANDRADE, 1999). A personagem ainda se
espanta ao afirmar que “á grande e quasi total maioria, nem essas duas línguas bastam,
senão se enriquecem do mais lídimo italiano” (ANDRADE, 1999, p. 80).
       Contudo, mesmo que tenha feito essa paródia com o dualismo dos paulistas,
Macunaíma também é, em São Paulo, de certa forma, dual. Bosi afirma que, enquanto
Macunaíma era “descrito como luxurioso, ávido, preguiçoso e sonhador” (1999, p. 353)
enquanto vivia no Mato Virgem, ao entrar em contato com a “metrópole nova [...] funde
instinto e asfalto, primitivismo e modernismo” (1999, p. 353).,Enquanto consegue, em
episódios anteriores, se relacionar com as moças, se disfarçar de francesa para negociar
com Venceslau Pietro Pietra, e, posteriormente, de pintor para embarcar para a Europa,
Macunaíma também mantêm suas raízes “primitivas” ao associar seus grandes inimigos
de São Paulo, ao conhecê-los, antes mesmo de sua carta às amazonas, com monstros da
mitologia indígena, sendo Venceslau o gigante Piaimã e sua mulher, Ceuci, uma
caipora. Como já posto, embora crítica social, tudo na rapsódia gira em torno do
fantástico, da fábula.
       Esse ponto se confirma também no espaço-tempo em São Paulo. Se na mata
virgem, como já foi dito, o índio vivia em lugares com nomes relacionados ao sonho de
Itacoatiara de Mário, em São Paulo, eles recebem seus devidos nomes, mas a locomoção
mágica é semelhante. Assim, na rapsódia, Macunaíma interpreta, além de São Paulo, o
Brasil como “sua selva”, mesmo sem ter dominado a Máquina na sua chegada a São
Paulo. Para exemplificar, quando, disfarçado de francesa, tentou fugir do cesto em que
Venceslau Pietro Pietra o tinha colocado,

                         [...] assoprou raiz de cumacá em pó que bambeia cordas, bambeou o
                         amarrilho do cesto e pulou pra fora. Ia saindo quando topou com o
                         jaguara do gigante, que chamava Xaréu, nome de peixe pra não ficar
                         hidrófobo. O herói teve medo e desembestou numa chispada mãe
                         parque a dentro. O cachorro correu atrás. Correram correram.
                         Passaram lá rente à Ponta do Calabouço [Rio de Janeiro], tomaram
                         rumo de Guajará Mirim [fronteira de Mato Grosso e Amazonas] e
                         voltaram pra leste. Em Itamaracá [Pernambuco] Macunaíma passou
                         um pouco folgado e teve tempo de comer uma dúzia de maga-jasmim
                         que nasceu do corpo de dona Sancha, dizem. Rumaram pra sudoeste e
                         nas alturas de Barbacena [Minas Gerais] o fugitivo avistou uma vaca


                                                                                         39
no alto duma ladeira calçada com pedras pontudas. Lembrou de tomar
                       leite (ANDRADE, 1999, p. 53-54, adendos nossos).


                       Macunaíma chega a São Paulo quando o Brasil é uma república, mas
                       durante as suas correrias encontra João Ramalho dos primórdios da
                       fundação de Santo André da Borda do Campo, conversa com Maria
                       Pereira que está viva ainda hoje e amofumbada num grotão da beira
                       do São Francisco, desde o tempo da invasão holandesa; convida
                       Bartolomeu de Gusmão para viajar com ele no dorso de um tuiuiú, e o
                       padre voador, que morreu na Espanha, está caminhando e suando num
                       areal do Maranhão (PROENÇA, 1969, p. 11-12).


       Portanto, como já se afirmou anteriormente, mesmo estando em uma cidade
civilizada, o que se nota nas nominações padrão dos lugares por onde passa, Macunaíma
ainda transita no mítico, o que lhe permite não só deslocar de um estado a outro
rapidamente, também dialoga naturalmente com personagens de tempos diferentes do
atual da narrativa. Retomando a questão do trânsito rápido entre os lugares, essa
“desregionalização” acontece também em diversos pontos em que o narrador enumera
fauna e flora de diversas regiões do país que Macunaíma pratica, mesmo antes de sua
vinda a São Paulo, quando habitava a “Terra do Mato Virgem”. Segundo o próprio
Mário de Andrade, essa desregionalização foi intencional. Nas palavras do autor,

                       Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a
                       fauna e a flora geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a
                       criação ao mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber
                       literariamente o Brasil como entidade homogênea um conceito étnico
                       nacional geográfico (apud FARIA, 2006, p. 271).


       Ao analisar a rapsódia, a “concepção literária de Brasil” acontecia em um outro
sentido não muito diverso no próprio Macunaíma. Remetendo ao início do livro, ao ser
chamado de “herói de nossa gente” e “batizado” no poço de Sumé, durante sua ida a
São Paulo, Macunaíma representava não só a sua tribo Tapanhumas, mas toda a nação.
Essa característica não só o aproxima do Moacir de Iracema, mas também, como será
argumentado mais adiante, o faz “tomar posição” em defesa do seu território, que já não
se chamará mais “Terra do Mato Virgem”, mas Uraricoera, palco de disputas coloniais.
       Continuando a análise da narrativa, ao conseguir recuperar a muiraquitã de
Venceslau Pietro Pietra, já que este foi morto por Macunaíma, após cômica disputa, ao
ser jogado em um caldeirão de macarronada fervente, e retorna ao seu lugar de origem,
transformando São Paulo num grande bicho preguiça de pedra. Quando retorna ao Mato



                                                                                         40
Virgem, ele já o chama de Uraricoera. Nota-se que, nesse ponto da narrativa,
Macunaíma já não vê mais a Beta do Centauro no céu, que era Ci, a Mãe do Mato.
       Nesse local, ele primeiro fica doente de impaludismo (malária), mas não chega a
progredir na doença nem espalhá-la. Contudo, ao fazer maldição num anzol feito de
presa de sucuri, infecta o irmão Jiguê com a lepra, e esse o infecta também, e
Macunaíma, por meio da associação metafórica das formigas com os índios, que “já foi
gente que nem nós” (ANDRADE, 1999, p. 146), dissemina a lepra por toda a sua tribo.
       Após sua tribo toda morrer de lepra, Macunaíma vai ao vale de Lágrimas, para
afogar seus desejos, já que não há mais ninguém. Encontra com Uiara (Iara) e, seduzido
por ela, vai ao seu encontro e é despedaçado por ela, perdendo sua muiraquitã
definitivamente. Como já perdeu sua muiraquitã e a proteção de Ci, está sozinho e já
não tem pra onde ir, desiste da vida e vai para o céu virar a constelação Ursa Maior.
       Mário de Andrade, ao comentar sobre o final da rapsódia em carta a um de seus
amigos, afirma que pouco lhe importou se foram cômicas certas partes do livro, mas ver
o herói desistir de toda sua vida lhe causou comoção muito grande, a ponto de ele se
recusar a o ler novamente “não porque ache ruim, mas porque detesto sentimentalmente
ele” (apud BOSI, 2003, p. 206).
       Para Bosi, essa confissão de Mário


                        [...] não poderia ter sido mais franca nem mais patética. A evasão
                        mágica que sela o livro é mais um exemplo de aproveitamento em
                        chave crítica de uma narrativa mitológica. É a multiplicidade do ser, é
                        a fratura insanável do “eu sou trezentos”, é enfim a instabilidade
                        comum ao poeta e ao herói que tem por efeito a renúncia aos seus
                        modos-de-existir passados ou recentes [...]. O seu destino [...] vem a
                        ser precisamente este: não assumir nenhuma identidade constante
                        (2003, p. 206).


       Macunaíma, portanto, vira uma estrela por não possuir identidade nenhuma
(BOSI, 2003), por ser tão plural, assumindo identidades tão diversas, como índio,
mágico, brasileiro, uma francesa, entre outras.
       Daniel Faria vai um pouco mais além. Faz-se mister, aqui, explicitar sua análise
sobre o texto de Koch-Grünberg, cujo personagem principal, Makunaima, foi base para
a construção do Macunaíma de Mário. Daniel, ao comentar sobre a situação da região
do rio Uraricoera, afirma que
                        Se o antropólogo lá esteve entre 1911 e 1913, vale notar que
                        (obviamente naquilo que concernia a ingleses e brasileiros) apenas em
                        1904 as fronteiras de Roraima com a Guiana inglesa foram

                                                                                            41
delimitadas. Vinte e quatro anos antes de Macunaíma aparecer como
                        “herói de nossa gente”, o mato virgem estava em pleno litígio
                        colonial. Além disso, se Koch-Grünberg lá esteve como cientista, a
                        região já vinha sendo visitada, descrita e estudada por burocratas,
                        missionários, enfim, uma série de escritores que tinham relações bem
                        mais evidentes com as guerras coloniais. Sendo assim, o próprio
                        estatuto dado a indígenas como povos “naturais”, sem lei nem rei,
                        fazia parte da disputa territorial (FARIA, 2006, p. 274).


       Ainda, o fato de Daniel Faria ter ressaltado a definição de indígenas “como
povos ‘naturais’” foi para que se percebesse o tema central: “a estetização da natureza
como resposta romântica a conflitos políticos específicos” (2006, p. 275). Portanto, não
só o espaço da narrativa, como também o próprio Macunaíma representavam uma
natureza mágica, descompromissada com a realidade em si. Quando Macunaíma é
interrogado a verdadeiramente tomar uma posição, a sobreviver, no sentido de que a
sobrevida seria o lutar para conquistar sua identidade, ele resolve ir ao céu e se tornar
uma constelação. Mesmo que não exista mais a mágica Uraricoera em que habitava
dantes, Macunaíma procura viver com Ci, e ter, na imensidão do céu estrelado, o seu
lugar de refúgio das tensões.
       Logo, para Daniel,


                        Longe de ser um brilho inútil, porém, a Ursa Maior ganhava no texto
                        uma rica sobreposição de sentidos: a promessa da magia natural do
                        mato virgem, a advertência à brasilidade no sentido de que não se
                        deixasse levar pelo caos da civilização (2006, p. 278)


       Isso significa que o índio de Macunaíma, muito além de ser preguiçoso,
brincalhão e luxurioso, por meio dessa mesma preguiça, silencia uma série de conflitos
que assolavam as fronteiras, e as tribos que lá habitavam, e, mesmo que seja tão plural
na sua cultura, assume uma posição de brasilidade, no sentido de que espera que o
Brasil não se deixe vencer pelos inúmeros conflitos ou influências exteriores, mas passe
a viver por si mesmo, e busque no seu território, de natureza tão bela e plural, a sua
fonte de inspiração.




                                                                                         42
4 POR QUE LITERATURA INDÍGENA?

                                         O texto segundo se organiza a partir de uma
                                         meditação silenciosa e traiçoeira sobre o primeiro
                                         texto, e o leitor, transformado em autor, tenta
                                         surpreender o modelo original nas suas [...]
                                         lacunas, desarticula-o e o rearticula de acordo com
                                         as suas intenções, segundo sua própria direção
                                         ideológica, sua visão do tema apresentado desde o
                                         início pelo original.
                                         (Silviano Santiago)



       Primeiramente, para se compreender, de certa forma, a razão de existência da
literatura indígena e porque a ler, é mister discorrer sobre os pontos principais
levantados dos textos analisados nos três capítulos anteriores, já que é necessário
compreender a situação da imagem do índio produzida por eles, para se compreender
em que pontos a literatura indígena dialoga com esses textos e se reforça por meio dos
mesmos.
       Uma primeira questão a se ressaltar sobre esses textos é que todos são
indigenistas, ou seja, é o branco que discorre sobre o índio, que apresenta e define o
autóctone e sua cultura. Posto isso, pode-se relembrar o que se constatou nos três
capítulos anteriores, para retomar as características dos autóctones retratados em cada
um dos textos indigenistas analisados neste trabalho.
       Na obra de Caminha, o que se notou foi não só o índio mancebo, robusto e
amistoso, mas, principalmente, o índio facilmente domesticável que Caminha relata.
Ora, essa leitura simplista que Caminha faz do caráter de compreensão multicultural do
índio é, sobretudo, na intenção de torná-lo um cristão, um colaborador. Concordando
com Eneida Leal Cunha, a cena da primeira missa presente em Carta é mister para toda
a construção da imagem “dócil” e “receptiva do selvagem”, pois, ao colocar “em cena
todos os elementos instituintes da história colonial” (2006, p. 121), o texto enfatiza a
facilidade do índio em, por meio da cópia, incorporar a cultura europeia. Assim,
Caminha afirma que, quando entendessem a cultura do branco (tomada como padrão),
os índios “seriam logo cristãos” (1817, p. 21). Mais especificamente, Carta explicita a
tentativa de embranquecer a cultura indígena, como já se discutiu em Macunaíma.
       Luzimar Goulart Gouvêa, no resumo de sua dissertação de mestrado entitulada
O homem caipira nas obras de Lobato e Mazzaropi, corrobora as possibilidades da



                                                                                         43
construção na literatura do “não ser e do ser outro” (2001, p. 15). Tais conceitos podem
ser relacionados, segundo o autor, respectivamente à construção de um estereótipo da
imagem – como no caso de Lobato, que, conforme a análise de Gouvêa, apresenta o
caipira como praga do campo em Velha Praga e Urupês, sendo que “o lugar social de
fato e de fala em Lobato não promove aproximações, nem trocas” (2001, p. 55) –, e a
construção da imagem como outra, no sentido de, no caso do caipira de Jeca Tatuzinho,
transformá-lo em capitalista americano, saudável, que fala inglês, veste os animais e
trabalha para ganhar dinheiro, não para o sustento, transformando-se “num legítimo
‘estranja’, adepto a novas tecnologias” (2001, p. 116, grifo do autor).
        Esse último conceito, isto é, de ser outro, ou “estranja”, pode ser justaposto à
intenção de Caminha em catequizar o índio, como também (e mais claramente) na cena
ilustrada em Iracema, quando Poti (“filho” da tribo pitiguara e amigo fiel de Martim, o
guerreiro branco) é batizado. Nesse momento, na perspectiva de Alencar, os dois, isto é,
Martim e Poti, se tornam, pode-se dizer, irmãos, uma vez que comungam da mesma fé.
Ora, essa irmandade explicitada na obra não ocorre mediante a permanência das duas
culturas como são, mas na sobreposição da cultura daquele considerado mais forte, no
caso, o branco.
       Ainda nesse romance alencariano, constata-se que a imagem que do índio não é
mais de alguém sem crença, já que a narrativa traz imagens de deuses panteístas como
Tupã. Alencar que, para Mário de Andrade, seria o “patrono santo da língua brasileira”
(apud PROENÇA, 1969, p. 47), também é, pode-se dizer, o primeiro escritor a usar
elementos do próprio Brasil em sua narrativa, mesmo que não ousasse na linguagem
como Mário. Dessa forma, a obra indianista de Alencar não pode ser desprezada. Mais
ainda, como já foi constatado, para Alencar, o índio seria o protótipo “perfeito” de
imagem do Brasil “origem”, e não o europeu, já que é o habitante primeiro da terra
achada, e era conhecido por ser guerreiro, robusto e belo, além de não ser como o negro:
escravo e “sem alma”.
       Entretanto, além da afirmação de que o índio seria a imagem do Brasil ser
questionável, uma vez que ele tem de defender o branco para ser enaltecido, esse
mesmo índio não professava a religião cristã e não comungava da mesma “civilidade” e
“cultura” do branco, o que era incompatível com o ideal de construção do Brasil
projetado pela elite. A meta, portanto, era juntar o selvagem com o civilizado, o branco,
para que o fruto dos dois fosse um brasileiro, belo, robusto, guerreiro e, ao mesmo
tempo, cristão, culto e nativo na língua portuguesa.

                                                                                      44
Por fim, em Macunaíma, o índio Macunaíma perde seu caráter de indígena e
passa a ser a imagem do próprio Brasil, que se encontrava perdido em tantas culturas e,
ao final da rapsódia, clama para que o Brasil “esqueça” os conflitos exteriores e
interiores e busque na natureza tão bela e tranquila, ilustrada na Itacoatiara dos sonhos
de Mário, a sua identidade, protegido por Macunaíma, que “banza [...] no campo vasto
do céu” (1999, p. 159), tão vasto quanto a natureza brasileira sonhada por Mário.
       Dessa forma, compreendendo um pouco melhor as narrativas indigenistas
analisadas, pode-se notar um ponto que as une: as três foram construídas por autores
brancos que não tomaram contato com a cultura indígena. Mesmo Alencar e Mário, que
construíram suas narrativas por meio de relatos de outros viajantes, também construíam
seus relatos conforme aquilo que lhes interessava. Além disso, a situação cultural
indígena, quer seja um ritual ou uma contação de histórias, por exemplo, relatada por
esses viajantes era reduzida, e essa redução era lida por Mário e Alencar. Assim,
conclui-se que, provavelmente, muitas características importantes, que seriam notadas
na experiência com a cultura indígena, foram tolhidas antes da construção dessas
narrativas, e elas, tomando contato com os relatos tolhidos, cortavam ainda mais, o que
provocou equívocos e, até mesmo, preconceitos quanto à cultura indígena.
       Nesse capítulo, portanto, o que se questiona é a visão da cultura indígena nas
narrativas analisadas - mesmo na de Mário, apesar de seu estudo acurado de tantas obras
históricas. Embora Macunaíma tivesse apresentado tantas cantigas, costumes e ditados
do Brasil, por que não ousou da mesma forma abordando a diversidade de culturas
indígenas presentes no Brasil? Por que, se Alencar e Mário leram a tantas obras de
análise da cultura indígena feitas por etnólogos, antropólogos e historiadores, não
perceberam que havia uma diversidade literária e cultural riquíssima entre os povos
indígenas?
       Maria Andrade Vieira, ao analisar o conceito de cultura, afirma que o termo
“compreende do seu estado mais concreto (ação, processo ou efeito de cultivar a terra) à
relação do homem com a terra que, a partir do momento em que deixa seu hábito
nômade, começa a plantar raízes próprias em um determinado local” (2006, p. 12).


                       A partir desse momento, o homem começa a plantar tanto seu
                       alimento físico, como também passa a cultivar princípios morais.
                       Esses princípios morais, permeados de juízos de valor, farão com que
                       ele perceba o mundo através da forma própria daquele “meio de
                       cultivo”, tecendo um conjunto de padrões de comportamento, crenças,



                                                                                        45
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A [re]construção da identidade indígena pela literatura munduruku e o diálogo com a tradição

  • 1. U NI V E R S I D A DE DE TA UB AT É L u í s Fe r n a n d o N a s c i me n t o A [RE ]CONSTRUÇÃO DA IDE NT I DADE INDÍ GENA PE LA LIT E RAT URA: M unduruku e o diá logo co m a Tra dição Ta u b a t é – S P 2010
  • 2. L u í s Fe r n a n d o N a s c i me n t o A [RE ]CONSTRUÇÃO DA IDE NT I DADE INDÍ GENA PE LA LITERAT URA: M unduruku e o diá logo co m a Tra dição Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação apresentado ao Departamento de Ciências Sociais e Letras da Universidade de Taubaté, como parte dos requisitos para colação de grau no curso de Letras. Orientadora: Professora Mestre Isabelita Maria Crosariol. U NI TA U D e p a r t a me n t o d e Ci ê n c i a s S o c i a i s e L e t r a s Ta u b a t é – S P 2010 5
  • 3. N244r Nascimento, Luís Fernando A [re] construção da identidade indígena pela Literatura: Munduruku e o diálogo com a Tradição./Luís Fernando Nascimento. - 2010. 51f. Monografia (graduação) - Universidade de Taubaté, Departamento de Ciências Sociais e Letras, 2010. Orientação: Profª Ms. Isabelita Maria Crosariol Departamento de Ciências Sociais e Letras. 7
  • 4. Luís Fernando Nascimento A [RE]CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE INDÍGENA PELA LITERATURA: Munduruku e o diálogo com a Tradição Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação apresentado ao Departamento de Ciências Sociais e Letras da Universidade de Taubaté, como parte dos requisitos para colação de grau no curso de Letras. Data:____________________ Resultado: ________________ BANCA EXAMINADORA Professora Mestre Isabelita Maria Crosariol (orientadora) _________________________________________________________ Professor Mestre Luzimar Goulart Gouvêa __________________________________________________________ Professora Mestre Rachel Duarte Abdala __________________________________________________________ 8
  • 5. A todos aqueles que se deixam penetrar por diálogos multiculturais. A Adriana de Oliveira Alves Corrêa e tantos outros que trilharão os caminhos da literatura indígena. 9
  • 6. AGRADECIMENTOS A Jesus e Maria, por simplesmente amar. Ao meu pai, Wanderley Rodrigues do Nascimento, e minha mãe, Marilva Silva do Nascimento, pelo apoio, conselhos e muitos “puxões de orelha”. A Lívia Maira do Nascimento Oliveira, minha irmã, e Dione Figueiredo B. de Souza, minha professora de Literatura no Ensino Médio, por serem o impulso que precisava para ingressar nesse curso. À minha segunda família, Geração Adoradora, por me entenderem nas muitas vezes que me ausentei para prosseguir em minha carreira acadêmica, também pelo apoio incondicional. A todos do Colégio O Mensageiro, pelo apoio e paciência em tantos momentos difíceis que passei durante o curso. A William Toledo Ferreira, pela recomendação de sua monografia e outras leituras. À Profª. Ms. Rachel Duarte Abdala, pela valiosa sugestão de leitura e por aceitar tão gentilmente participar de minha banca. À Profª. Drª. Eveline Mattos Tápias Oliveira, Profª. Drª. Vera Lúcia Batalha de Siqueira Renda, Profª. Ms. Luciete Valota Fernandes e Profª. Ms. Ana Beatriz Rodrigues Pelógia, que também se destacaram entre todos os outros professores que tive durante o curso. A todos os colegas e amigos do DCSL, em especial à terceira família que conquistei durante esses 4 anos: - Janaína de Fátima Melo, pelo apoio, carinho, e por ser minha amiga desde o início; 10
  • 7. - Renata Janaína de Carvalho Brunelli, por se emocionar ao me ver evoluir no curso, e torcer por meu sucesso; - Germano Sene dos Santos, meu grande irmão, presente em (causa até de) muitos momentos de alegria que tive neste curso. Germanorum scintilat! - Adriana Prezoto dos Santos (Gata Seca), minha grande irmã conquistada durante o curso, que suportou, entendeu, deu apoio e aconselhou em tantos momentos de alegria e dor, em especial por suportar minha aflição durante a entrega dos documentos necessários para a conclusão do Estágio Curricular Supervisionado I. Valeu Dri! - Isabelita Maria Crosariol, minha orientadora. Obrigado pela sugestão desse tema tão instigante, pela excelente orientação e, sobretudo, pela confiança e amizade. Bastou um ano, e você se tornou minha inesquecível grande amiga! Valeu Isa! – Profª. Ms. Teresinha de Jesus Cardoso e Cunha, por acreditar em mim desde o início e por dizer: “Esse menino cresceu”! Muito obrigado, magistra amata! – Cláudia Roberta Ribeiro da Silva, por ser seu orgulho e filho adotivo; e – Luzimar Goulart Gouvêa, o “gran-mestre” das aulas de Literatura que tive durante esses 4 anos, pelo apoio, afeto, orientações. Exemplo de professor, exemplo de pessoa. Valeu Paizão! A todos vocês da minha terceira família, o meu muito obrigado! Todos foram fulcrais para que eu alcançasse o fim de minha primeira monografia, marco de um novo tempo pra mim. 11
  • 8. “Você vai me dizer: o índio está falando, mas é selvagem. Selvagem é você, milhões de anos estudando e nunca aprendeu a ser civilizado. Para que você está estudando? Para destruir a natureza e no fim destruir a própria vida?” José Luiz Xavantes 12
  • 9. RESUMO Nesta monografia discute-se a representação do índio na literatura brasileira, de modo a ressaltar a importância da perspectiva indígena, em meio a tantas outras expressões nas quais a imagem do índio se faz presente. Para isso, foram analisados três textos indigenistas, ou seja, textos nos quais a imagem do índio é concebida a partir de uma perspectiva branca, a fim de verificar se realmente as imagens que eles apresentam são fiéis à cultura indígena, e qual é a intencionalidade sugerida nessas criações imagéticas. Após essas análises, procurou-se destacar a literatura indígena, ressaltando que, nessa literatura, é o índio que fala de si mesmo, e não o branco que constrói sua imagem. Por fim, analisou-se o livro Sinal do Pajé, de Daniel Munduruku, com a intenção de nele perceber qual é o compromisso estabelecido com a cultura indígena, e de que forma o autor desconstrói as imagens feitas pelas literaturas indigenistas. Percebeu-se, enfim, a referência não só a sua cultura, como também o convite a um diálogo multicultural. Concluiu-se, desse modo, que a literatura indígena é importante por apresentar a cultura indígena, segundo o olhar de um de seus membros, e por ressaltar questões fulcrais como tolerância, respeito e diálogo entre as culturas. Palavras-chave: índio, indigenismo, literatura indígena, multiculturalismo, Daniel Munduruku. 13
  • 10. ABSTRACT In this monograph the representations of the Indians in Brazilian literature are discussed, in a way to emphasize the importance of the Indian perspective, amid many other expressions in which the Indian image is. For this, three indigenist texts were analyzed, in other words, texts in which the image of the Indian is conceived from a white man perspective in order to verify if the image they present is really faithful to the Indian culture, and what intentionality is suggested in these imagistic creations. After such analysis, the Indian literature was suggested to be highlighted, emphasizing that, in this literature, the Indian is the one who tells about himself, not the white man. Finally, the book Sinal do Pajé, written by Daniel Munduruku, was analyzed with the intention of noticing the engagement established with the Indian culture and how the author deconstructs the image created by the indigenist texts. Finally, not only the reference to such culture was realized, but also the calling to a multicultural dialogue. It was concluded, thereby, that the Indian literature is important for presenting the Indian culture, through the eyes of one of its members, and for emphasizing key issues as tolerance, respect and dialogue among cultures. Keywords: Indian, indigenism, Indian literature, multiculturalism, Daniel Munduruku 14
  • 11. SUMÁRIO Introdução................................................................................................................... 12 Capítulo 1 – O “selvagem” de Carta.......................................................................... 14 Capítulo 2 – Iracema e a miscigenação...................................................................... 21 Capítulo 3 – O índio “herói” em Macunaíma............................................................. 30 Capítulo 4 – Por que Literatura Indígena?.................................................................. 39 Capítulo 5 – Sinal do Pajé e o compromisso com a Tradição.................................... 45 Considerações finais................................................................................................... 55 Referências.................................................................................................................. 57 15
  • 12. INTRODUÇÃO Esta monografia tem por objetivo perceber a diferença da abordagem do índio e de sua cultura nos textos indigenistas, ou seja, de apresentação do índio pelo branco, e na literatura indígena, em que o próprio índio fala sobre si mesmo e sua cultura, de modo a ressaltar a visão desse índio, uma vez que, imerso em sua cultura, apresenta outra visão da mesma. O índio, desde o “descobrimento”, vem sendo visto por muitos como o “selvagem” e “atrasado”, o que incide no tratamento dado a ele por tantos anos, que implicou a supressão de sua língua, de sua cultura e, até mesmo, a morte dos índios que contrariavam o ideal de ensino branco que supostamente os tiraria do “atraso ideológico”. Essa abordagem é fruto não só daqueles primeiros textos de informação, nos quais se pretendia analisar a terra “recém-descoberta” para descobrir se a terra era habitável, se havia nativos e quem eram. De fato, essa análise é superficial e, portanto, imperfeita, o que implica em certos equívocos, sobretudo quando se trata do autóctone da terra “descoberta”. Entretanto, já no século XVI, com o texto, por exemplo, do chefe Mamboré- uaçu, em que o mesmo conta o que viu com seus olhos, história de promessas e desencantos, e, sobretudo, no início do século XXI, em que se promulgou a lei 11.645/2008, que obriga os bancos escolares a tratar da História e Cultura indígenas, há a necessidade de os próprios índios se valerem da língua que aprenderam, a portuguesa, para apresentar aos brancos outra visão de si mesmos e de sua cultura, de forma que os brancos os valorizem e entendam que nos autóctones não há atraso ou selvageria, mas outra cultura diversa e que, descontextualizada, gera o estranhamento e o conflito. Para tanto, esse trabalho, tendo como pergunta de pesquisa “Por que Literatura Indígena?”, analisa não só os textos indigenistas, de forma a perceber a construção, em diferentes momentos da história, da imagem e da cultura do nativo, notando os acertos e incongruências, como também a literatura indígena, percebendo se há valorização de fato da cultura e da identidade do índio. Assim, no primeiro capítulo, “O selvagem de Carta”, analisa-se o texto gênese de toda a construção da imagem do índio pelo branco, Carta, de Pero Vaz de Caminha, percebendo algumas características da colonização na descrição do nativo e dos traços de sua cultura percebidos pelo viajante, e, desse modo, no que essa abordagem 16
  • 13. justificou a história de massacre e silenciamento que assolou por tantos anos os povos indígenas. Dando um “salto” significativo na história, o segundo capítulo, “Iracema e a miscigenação”, analisa uma das obras mais significativas da construção da imagem indígena, tido, muitas vezes, por enaltecida, no romance Iracema, de José de Alencar. Esse romance foi selecionado para análise, pois, além do indígena “enaltecido”, há, pela primeira vez, a intenção da construção da imagem do índio como imagem da nação. Partindo de considerações sobre o momento de produção de Alencar, o Romantismo, avalia-se o enaltecimento do indígena no romance, se essa exaltação partiu de experiências – se aconteceram – do autor com os índios e sua cultura, ou de características enaltecedoras advindas da cultura europeia, e qual é a intenção nesse enaltecimento, percebendo também o papel da cultura europeia no romance. No terceiro capítulo, “O índio ‘herói’ em Macunaíma”, baseando-se, assim como se fez na análise de Iracema, em considerações sobre o contexto de produção de Mário de Andrade, analisa-se, pode-se dizer, a única obra literária pós-romântica a tratar novamente o índio como personagem principal, o romance-rapsódia Macunaíma, com o foco na construção da imagem do índio, percebendo também a busca de Mário pela “brasilidade”, ou seja, a imagem da nação, desligando-se do enaltecimento estabelecido no Romantismo e, sobretudo, no Parnasianismo. No quarto capítulo, “Por que Literatura Indígena?”, estabelece-se um cotejo entre as literaturas indígenistas analisadas nos capítulos anteriores, explicando o porquê de somente existir literatura indígena quando o índio a fizer, apresentando também características relevantes de sua cultura, e a importância da literatura do autóctone para estabelecer o diálogo entre sua cultura e as outras, em especial com a cultura do branco. No quinto capítulo, “Sinal do Pajé e o compromisso com a Tradição”, analisa-se a abordagem do índio e de sua cultura em Sinal do Pajé, um dos livros infanto-juvenis do escritor indígena Daniel Munduruku, percebendo qual é a inovação presente nessa abordagem, e como Munduruku lida com questões tão pertinentes como tolerância, respeito e diálogo entre as culturas dentro de seu livro. Espera-se que este trabalho seja de grande valia para o leitor, especialmente para os futuros professores que desejam incutir em seu alunos o respeito e o diálogo com outras culturas. 17
  • 14. 1 O “SELVAGEM” DE CARTA Ai, palavras, ai, palavras, que estranha potência, a vossa! (Cecília Meireles) Para começar este estudo, é importante ressaltar que, segundo a visão de Bosi (1999, p. 13), a literatura produzida na época do “descobrimento” é definida como “textos de informação”, porque os textos produzidos naquele período, incluindo de seu autor mais relevante, Caminha, tinham cunho de relatório primário da nova terra. Para Bosi, nesses textos, “a Colônia é, de início, o objeto de uma cultura, o ‘outro’ em relação à metrópole” (1999, p. 11). Portanto, ainda não se via a terra achada como nação, mas como terra a ser conquistada, porque colônia, de modo que os textos de informação trazem considerações sobre a terra recém-descoberta para Portugal. Entretanto, é importante que se analisem os textos de informação, mesmo que não seja como palavra-arte, mas “como reflexo da visão de mundo e da linguagem que nos legaram os primeiros observadores do país” (BOSI, 1999, p. 13). Para que se compreenda as imagens posteriores do índio 1, é preciso que se analise suas primeiras imagens, presentes nos textos de informação. Mais precisamente, Caminha, sendo, segundo William Toledo Ferreira (1996, p. 9), o iniciador da pré-historiografia brasileira, traz, em Carta, documento destinado a D. Manuel, rei de Portugal, essas primeiras imagens (BOSI, 1999, p. 13). Pode-se partir, então, para a análise dessas imagens sobre o autóctone. Em um primeiro momento, após terem atracado as embarcações, Caminha relata as primeiras características do homem habitante da terra: “pardos, todos nus, sem nenhuma roupa que lhes cobrisse suas vergonhas” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 12). Bosi afirma ser essa abordagem ingênua “no sentido de um realismo sem pregas” (1999, p. 14), o que indica que, para os colonizadores portugueses, mesmo que lhes fosse peculiar alguma característica do habitante da terra achada, ela deveria ser exposta dentro dos textos para que se tivesse o máximo de impressões possível da terra a ser colonizada. Do ponto de vista da análise contextual, é importante salientar também que 1 O termo índio, para Brás de Oliveira França (1999 apud VIEIRA, 2006, p. 42-45), do povo Baré, assim como para muitos habitantes de outras tribos, representa toda a história de massacre dos europeus à sua história, ao seu povo, à sua cultura e sua língua. De fato, há muitas outras questões problemáticas que envolvem esse termo, e algumas serão expostas no quarto capítulo. Resta saber que a palavra índio será usada neste trabalho de forma meramente didática, para fácil identificação e acesso. 18
  • 15. a exposição das características da cor da pele, e, principalmente da nudez dos índios, como elucidam Luciene Costa e Tânia Faria (2007, p. 40-42), se faz em contraste com o modus vivendi, ou seja, o habitual dos colonizadores, acostumados, por exemplo, a tantas roupas, por causa de seu clima frio, sua cor da pele, branca, e a sua religião, o cristianismo (mais especificamente, o catolicismo). Isso justifica, de certa forma, a ênfase que Caminha apresenta na falta de vestimenta dos índios e o fato de ele afirmar que “a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior quanto à vergonha” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 23): A feição deles é serem pardos, quase avermelhados, de rostos regulares e narizes bem feitos; andam nus sem nenhuma cobertura; nem se importam de cobrir nenhuma coisa, nem de mostrar suas vergonhas. E sobre isto são tão inocentes, como em mostrar o rosto. (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 13) Caminha ainda traz outras características do índio encontrado, de forma a traçar bem a imagem do mesmo para o leitor, ressaltando o que o incomoda: Traziam, ambos, os beiços de baixo furados e, cada um, metido neles ossos de osso mesmo, brancos, medindo uma mão travessa e da grossura de um fuso de algodão e agudo na ponta, como furador. (...) E de tal maneira o trazem ali encaixado que os não magoa, nem estorva a fala, nem o comer ou o beber. (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 13, grifo nosso) Há outro fragmento dessa carta que também é importante destacar, pois se trata de um dos pontos mais conhecidos, quando o índio mostra, segundo Caminha, onde se encontra o ouro na terra: O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, com uma alcatifa aos pés, por estrado, e bem vestido com um colar de ouro muito grande ao pescoço. (...) Um deles viu o colar do Capitão e começou a acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como a dizer-nos que havia ouro em terra. (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 14) Sobre esse ponto, Costa e Faria (2007) comentam que, visto a filosofia cultural europeia embutida em Caminha, como a Europa carecia de metais preciosos, exigência de sua atividade comercial, o cronista ressaltou a curiosidade diante do colar, da mesma forma que a falta de vestimenta nos índios. 19
  • 16. Retomando a análise da inocência dos índios relatada em Carta, há um momento em que o capitão das naus “mandou dar, a cada um, camisas novas e também carapuças vermelhas e dois rosários de contas brancas de osso” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 14). Nesse ponto, percebem-se os primeiros traços de colonização que os europeus desejavam para a terra. Mais do que começar pela exploração da natureza em busca das riquezas das Índias Ocidentais (como era conhecido o continente americano no século XVI), o colonizador tem, pela sua visão de mundo, de certa forma, o dever de fazer o que ele considerava certo para começar uma convivência com o habitante encontrado. Bosi também compreende alguns dos aspectos da colonização como reafirmação da própria cultura, ou seja, usando os termos de Carl Siger, uma “válvula de segurança” da cultura europeia (apud BOSI, 2006, p. 22). É importante, aqui, destacar a noção da ambivalência no discurso colonial, segundo a qual os elementos da cultura do nativo, como usar adereços diferentes e andar nus, “que não precisam de prova, não pudessem na verdade ser provados jamais no discurso” (BHABHA, 1998, p. 105). Ou seja, enquanto o colonizador percebe essas características e as relata, no mesmo momento ele as rejeita e tenta as modificar, segundo sua cultura, demonstrando, nos dizeres de Bhabha, uma postura narcisista. Ainda segundo o teórico, a força da ambivalência garante, ao discurso colonial, [...] sua repetibilidade em conjunturas históricas e discursivas mutantes; embasa suas estratégias de individualização e marginalização; produz aquele efeito de verdade probabilística e predictabilidade que [...] deve estar sempre em excesso do que pode ser provado empiricamente ou explicado logicamente. (1998, p. 106, grifo nosso) Assim, ao ressaltar, a cada nova descrição, aquilo que, no nativo, estranha ao europeu, garante-se a fixação do estereótipo, principal estratégia discursiva da fixidez do discurso colonial, que “conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca” (1998, p. 105). Contudo, muito além do ressaltar a diferença, é preciso que se “amanse” a característica conquistadora do discurso colonial, uma vez que, detectada a diferença, é necessária a reafirmação da própria cultura. Dessa forma, “em 1556, quando já se difundia na Europa cristã a leyenda negra da colonização ibérica, decreta-se na Espanha a proibição oficial do uso das palavras conquista e conquistadores, que são substituídas por descubrimiento e pobladores, isto é, colonos” (BOSI, 2006, p. 12). Entendendo a gênese de colonizador, isto é, aquele que 20
  • 17. “toma conta de” (BOSI, 2006, p. 12), essa palavra, de certa forma, “amansa” o verdadeiro intuito da ida das naus até a nova terra: a conquista, que tem conotação mais agressiva, pois, como já foi dito, eles não se viam como conquistadores, muito menos como exterminadores de uma cultura, mas como colonizadores, ou seja, aqueles que cuidam, que têm a cultivar, nos nativos que encontram, algo “bom”. É importante notar que os colonizadores não reconheciam nos índios alguma cultura relevante, já que os julgavam “inocentes” e “receptivos”, ao mesmo tempo que “selvagens” e “aqueles que precisam de salvação”: Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, a qual, praza a Nosso Senhor que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de bela simplicidade. (...) E Ele nos por aqui trouxe, creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E praza a Deus, que com pouco trabalho seja assim! (apud VOGT e LEMOS, 1982, p.21, grifos nossos) Sobre esse trecho, ressalta-se que os degredados, ou seja, os prisioneiros políticos de Portugal, são tratados também como missionários da “santa fé”, uma vez que, segundo o que foi relatado por Caminha, a sua permanência na “nova terra” fará cristãos os nativos, uma vez qualificados bons e de bela simplicidade. Indo além, pode-se afirmar que há no discurso colonial também o fetiche, no sentido de que há no discurso colonial a necessidade de provar toda e qualquer atitude que, até então, se repudiaria na cultura do colonizador (nesse caso, o que se recusaria entre os europeus). Então, uma vez que a ambivalência do discurso colonial permite que, usando da “cópula é” (SAID apud BHABHA, 1998, p. 112), se considere o índio como ainda selvagem, o fetiche permite que se use de toda prática, como a violência corporal e sexual, refutável entre os europeus, porém aceitável para com os nativos, uma vez que necessitam da mão do branco para se purificar. Dessa forma, “estava decretado o genocídio, o etnocídio, os massacres e as operações dirigidos àqueles que passaram a ser chamados de índios” (FRANÇA apud VIEIRA, 2006, p. 42). Retomando na análise do trecho citado, sobretudo, percebe-se que Caminha apresenta grande desejo de acrescentar à dita gente boa a fé católica, uma vez que 21
  • 18. explicita claramente, como já foi dito, a visão missionária que os europeus têm sobre si mesmos, já que não foi sem causa que o Senhor os trouxe até a terra dos índios. A visão missionária dos europeus é que, fulcralmente, vai outorgar todo tipo de prática de conquista, vista para eles como colonização, cultivo, algo que seria necessário para que os nativos aderissem à santa fé católica. Para refletir um pouco mais sobre o papel da fé no discurso colonial, se faz fulcral analisar a percepção do europeu da atitude indígena frente ao ritual religioso católico relatado por Caminha. Segundo Eneida Leal Cunha, é a cena da primeira missa “que põe em cena todos os elementos instituintes da história colonial” (2006, p. 121), uma vez que é, para ela, “a estampa originária da dependência” (2006, p. 122). E, chantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção. (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 22, grifos nossos) Esse trecho traz claramente o índio (eles) e o europeu (nós) na forma de comparação, que é metonímica, porque os separa (eles como nós), e é metafórica, pois reafirma a cultura europeia (“E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós) (BHABHA, 1998, p. 122), o que levanta uma outra questão: a da fantasia, uma vez que se instaura a esperança e necessidade de que o índio assimile a cultura e religião branca, e instaura todos como inocentes e bons. Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E portanto [...], não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, a qual, praza a Nosso Senhor que os traga porque, na verdade, esta gente é boa e de bela simplicidade (apud VOGT e LEMOS, 1982, p.21) 22
  • 19. Assim, o papel da religião é claramente levantar essa fantasia, para que se estabeleça uma noção geral do nativo, segundo a cultura europeia, para que assim se reafirme essa cultura e mostre a cultura do autóctone como passiva. As representações plásticas da “Primeira Missa” [...] recortam a imagem congelada dos índios: pacíficos, atentos, reverentes, integrados e submetidos ao fascínio do ritual civilizado, os olhares convergidos para o centro, para a cruz sob a qual estão o altar e o celebrante. (CUNHA, 2006, p. 122) Dessa forma, mais do que o relato pré-historiográfico e construção da imagem dos povos achados, a intenção de Caminha em dar suas primeiras impressões ao rei de Portugal tinha o intuito de descobrir o que precisava ser mudado e o que neles era útil ao colonizador, no sentido de descobrir quais características eram interessantes para ressaltar a diferença. Para Bhabha, “é a visibilidade dessa separação que, ao negar ao colonizado a capacidade de se autogovernar, a independência, os modos de civilidade ocidentais, confere autoridade à versão e missão oficiais do poder colonial” (1998, p. 127). Portanto, esse discurso, além de deixar bem clara a posição de degredados e imitadores, permite, como já dito, ao europeu, quaisquer atitudes civilizatórias necessárias para amansar o índio, uma vez que “o melhor fruto que nela [na terra achada] se pode fazer, me parece que será salvar esta gente; e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar” (apud VOGT e LEMOS, 1982, p. 23). Para concluir este capítulo, a análise de Carta pode refletir as intenções do discurso colonial como um todo. Essas intenções, conforme essa análise, de certa forma, mostra, podem se desconstruir em três formas: a dominação pela cultura, pelo povo e pela fé. Entende-se a primeira como toda e qualquer dominação dentro da cultura do colonizado, envolvendo também a língua, “que é social em sua essência” (SAUSSURE, 1972, p. 27); a segunda refere-se à dominação que envolva a conquista propriamente dita, isto é, o uso da força, da violência, de forma a fazê-los se purificar pelos castigos; a terceira, por fim, abrange a sobreposição da religião do colonizador sobre o colonizado, e esta é a dominação fulcral do discurso colonial, uma vez que reafirma as outras duas. Indo mais além, já que na língua indígena faltava as letras l, f e r, o intuito dos colonizadores seria dar aos índios lei (o signo da dominação pelos costumes sociais, já que, para os portugueses, eram selvagens sem cultura), fé (o signo da dominação pela religião, “visto que não têm nem entendem crença alguma” (apud VOGT e LEMOS, 23
  • 20. 1982, p. 21)), e rei (o signo da dominação pelo povo, uma vez que os portugueses se denominam o povo civilizado, enquanto o outro é o que precisa da intervenção do branco para adquirir a civilidade). Como já se abrangeu o que era interessante para este primeiro capítulo, pode-se prosseguir para a análise da obra Iracema, de José de Alencar, em que se pode ver se há exaltação real do índio brasileiro ou não. 24
  • 21. 2 IRACEMA E A MISCIGENAÇÃO Ora, a história é a matéria-prima para as ideologias nacionalistas ou étnicas ou fundamentalistas [...]. O passado é um elemento essencial, talvez o elemento essencial nessas ideologias. Se não há nenhum passado satisfatório, sempre é possível inventá-lo. (Eric J. Hobsbawm) Para introduzir este segundo capítulo, é necessário afirmar que, antes do período do Romantismo (século XIX), não havia literatura genuinamente nacional (BOSI, 1999, p. 12-13), uma vez que, como já se havia dito antes na análise de Carta, o Brasil ainda era visto como colônia. A literatura anterior ao Romantismo dialogava com o contexto português (em Padre Antônio Vieira, por exemplo (BOSI, 1999, p. 44-46)), ou com outros contextos da Europa (como em Gregório de Matos, do período Seiscentista, que estabelecia contato com a grande poesia do Barroco espanhol (BOSI, 1999, p. 39)). Isso posto, Graziely da Silva Santos afirma que: Com a elevação do país a Reino Unido de Portugal e Algarve e a abertura dos portos, não cabiam mais as estruturas do Pacto Colonial [...]. A elite, inclinada a aceitar o interesse inglês, que apoiava as independências, [...] acaba por decretar a independência, com o apoio de D. Pedro, que renuncia ao trono português e se torna Imperador do Brasil. (2005, p. 15) Assim, Na metade do século XIX, o Brasil já se havia desvencilhado politicamente dos portugueses. A sensação de ufanismo se infiltra em cada um e nas artes não poderia ter sido diferente. Já havia passado a hora, o momento de formar uma literatura mais próxima de nossas características, de nossos costumes, de nossos heróis (?), uma literatura genuinamente brasileira (SILVEIRA, 2009, p. 11) Por isso, essa literatura brasileira teria de mostrar um país moderno, de natureza exuberante, e de gigante potencial (SILVEIRA, 2009, p. 12). Dessa forma, segundo Silva Santos, “durante todo o século XIX, vai haver uma discussão em torno das ideias sobre um projeto de Brasil” (2005, p. 15). Entretanto, Silveira já ressalta que, uma vez o branco ligado à nação colonizadora, sua presença como imagem nacional seria hipótese descartada (2009, p. 17). 25
  • 22. José de Alencar, inserido nesse contexto de independência, como já mencionado, almejava compor, em sua obra, um panorama do Brasil. Alfredo Bosi, ao mencionar o prefácio a Sonhos d’ Ouro, romance escrito por Alencar em 1872, afirma que o escritor “traçou um quadro retrospectivo da sua ficção, onde se mostrava consciente de ter abraçado todas as grandes etapas da vida brasileira” (1999, p. 136). No prefácio, Alencar afirma que a literatura daquele período apresentava três fases. A primeira fase, chamada de primitiva, ou aborígene, era composta por “lendas e mitos da terra selvagem e conquistada” (apud BOSI, 1999), e nela se incluía o romance Iracema, literatura “cheia de santidade e enlevo” (apud BOSI, 1999, p. 136); a segunda, chamada de histórica, apreende o lento nascimento do povo americano, que devia deixar a “origem” lusa, para continuar na nova terra “as gloriosas tradições de seu progenitor” (apud BOSI, 1999), terminando com a Independência, pertencendo essa fase os romances O Guarani e As Minas de Prata; e a terceira, por fim, aborda o nascimento da literatura de gosto “nacional”, que, primeiramente, vai tratar da ligação com o passado, em Tronco do Ipê, Til e O Gaúcho, e, em seguida, a adolescência, que luta entre “o espírito conterrâneo e a invasão estrangeira” (apud BOSI, 1999, p. 137), em Lucíola, Diva, A Pata da Gazela e Sonhos d’Ouro. Da classificação feita por Alencar, a fase que mais interessa a este trabalho é, de fato, a primeira, pois ela possibilita problematizar se, em Iracema, o fato de uma índia aparecer como protagonista revela o desejo de valorização da cultura indígena, ou o que se verifica, na verdade, é somente a exposição de um “novo tipo” de imagem colonizada do índio. Com essa questão inserida é que se pode iniciar a análise do romance proposto, com o objetivo de não só respondê-la, mas, sobretudo, de perceber as intencionalidades de Alencar ao reconstruir a imagem do índio. Primeiramente, a personagem principal do romance, Iracema, possui características de notável beleza. O romance começa a descrevendo como: Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira tribo da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águias. (ALENCAR, 1991, p. 14) 26
  • 23. As orações adjetivas elencadas sobre a personagem Iracema, de certa forma, espelham uma imagem de beleza e santidade. A construção da personagem sempre com base na fauna e flora brasileiras, as quais são projetadas de forma edênica no romance, faz com que as personagens indígenas (e também a branca, Martim, como se argumentará mais adiante) sejam projetadas da mesma forma, como frutos do Éden, ou seja, perfeitos (característica que será questionada mais adiante). Ao comentar sobre a necessidade de “fundar” o Brasil nos romances românticos, Cassio Silveira afirma que: O Brasil de verdade seria fundado agora [...]. Porém, é claro que, hoje sabemos, esse Brasil “de verdade” possui muito de ficção, pois o Brasil de verdade fornecido pelos primeiros escritores nacionalistas era o Brasil esplendoroso, de matas, rios e céus incomparáveis, cujo clima agradável parecia abençoar as pessoas que viviam unidas e felizes, pois habitavam uma espécie de novo Jardim do Éden na Terra, gigante e encantador pela própria natureza (!). (2009, p. 14) Ainda segundo Silveira, a comparação das personagens com a natureza, sendo ela uma “pré-metáfora”, é “um grande achado do escritor cearense” (2009, p. 44). Isso porque muitos documentos do século XVI relatam que era comum, para os índios, a definição dos elementos a sua volta por meio da metáfora. Assim, nos dizeres do pesquisador, é nos “incontáveis exemplos de comparação com a natureza [que] o autor parece estar ainda mais próximo dos indígenas, dando-lhes uma espécie de ‘autonomia’” (SILVEIRA, 2009, p. 44). Contudo, como adverte Silveira, a união dos elementos por meio da metáfora pode até recordar “o que ocorre, na visão do romance, entre o colonizador e o indígena: eles se ligam, se unem, a partir de um termo em comum, para que o colonizador continue sendo ele mesmo, mas com a influência do aborígene e vice-versa” (2009, p. 46). Portanto, essa ligação entre índio e branco por meio da linguagem metafórica, que permite ao colonizador permanecer com sua cultura e suas crenças, mas integrando-se com o indígena, segundo Silveira (2009), não pode ser descartada. Entretanto, mesmo que aconteça a ligação entre o autóctone e o europeu a partir de um ponto comum, como a linguagem, a presença do branco sempre se sobressairá à do índio. Ao discorrer sobre a relação entre Martim, o branco, e Iracema, a indígena, Silveira assevera que: É a relação entre o sol e a lua, que estão sempre ligados um ao outro, mas sempre distantes: “A luz brilhante do sol empalideceu a virgem 27
  • 24. do céu, como o amor do guerreiro desmaia as faces da esposa”. A descrição acima, que não é apenas a descrição do entardecer, demonstra a ligação entre o português Martim e sua amada Iracema. Primeiramente, ele é o guerreiro branco que ilumina, ele é o agente, aquele que faz, é a fonte de luz e da ação, enquanto Iracema se encontra no papel de paciente, objeto, aquele que sofre a ação do outro. [...] Portanto, o guerreiro é o Sol, é aquele que ilumina, dá vida, clareia os caminhos, enquanto a índia, a virgem do céu, a lua, romântica [...]. (SILVEIRA, 2009, p. 101, grifos do autor) Dessa forma, Na configuração romântica da origem, o encontro entre índio e europeu é deslocado da circunstância religiosa [...] para ser representado no plano mais produtivo da conjunção familiar, legitimada pelo afeto. Na reapresentação corrigida da origem, entretanto, são os mesmos elementos em cena: a atividade do colonizador, a receptividade do índio e um projeto de Estado que, para se efetivar, necessita da interação, mesmo que apenas no simbólico instituído, das duas partes em confronto [...]. As novas representações da origem estão marcadas pelo sentido mais puro de corrigir, que não suporta rupturas ou alterações de fundo. (CUNHA, 2006, p. 124) Pode-se notar, então, a total submissão de Iracema a Martim, a qual se evidencia ainda mais no momento em que, ao ver seu já amado ser ameaçado pela tribo dela que a veio buscar dos campos dos pitiguaras (tribo de Poti, amigo e irmão de Martim), a índia afirmar ser capaz de assassinar Caubi (seu irmão) para que as mãos de Martim não se maculassem: Iracema, unida ao flanco de seu guerreiro e esposo, viu de longe Caubi e falou assim: — Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue do filho de Araquém. Se o guerreiro Caubi tem de morrer, morra ele por esta mão, não pela tua. [...] — Iracema antes quer que o sangue de Caubi tinja sua mão que a tua; porque os olhos de Iracema vêem a ti, e a ela não. (ALENCAR, 1991, p. 48) Assim, [...] sabemos que a personagem-título não abandona seu amado Martim, mesmo sabendo que nunca mais estará junto de sua família e (pior) que será obrigada a conviver exatamente com os pitiguaras, inimigos de sua nação. É certo que Iracema não é tão servil quanto Peri, [...] mas os sentimentos e ideais também são inabaláveis, principalmente em relação ao seu amado. (SILVEIRA, 2009, p. 47) 28
  • 25. Interessante notar, também, que, assim como a tribo de Iracema (tabajaras) é inimiga da tribo do fiel amigo de Martim (Poti) e vice-versa, a tribo de Poti também é inimiga dos tupinambás e dos guaraciabas, seus aliados. Esse comportamento dos personagens frente a outras tribos, além do fato que todos os índios relatados são guerreiros e foram feitos, de certa forma, para o combate, de tal modo que, uma vez que não pode mais combater, se lamenta por estar incapaz (ALENCAR, 1991, p. 61-62), pode ser comparado à cultura guerrilheira que regia os romanos e também os conquistadores na Idade Média. Segundo Pereira (apud SILVEIRA, 2009, p. 48), “Alencar vai lhe atribuir [ao índio] valores heroicos e honras de cavaleiro medieval, próprios à tradição das noções colonialistas”. Adianta-se que isso embate com a cultura real dos indígenas, sempre pacífica: “Para nós, que somos os irmãos maiores dos brancos, ele deu a ordem de ficarmos calmos, vivemos unidos e de maneira pacífica” (LANA apud VIEIRA, 2006, p. 39). Entretanto, ao mesmo tempo em que Alencar constrói o índio robusto e guerreiro para com os que o ameaçam, também o caracteriza como um ser puro, ingênuo, receptivo para com o branco, que parece não ameaçador. Segundo Silveira, “aí está uma das grandes questões em relação às obras indianistas de Alencar: ele realmente acreditava na nobreza do indígena ou a construiu para conciliá-la com seu objetivo de descobrimento e exaltação de nosso país recém-independente” (SILVEIRA, 2009, p. 48)? Para compreender esse objetivo, é necessário analisar o papel do europeu no romance de Alencar. Assim, retomando ao início do romance, Martim chega a ser atacado com uma flecha na fronte por Iracema. Contudo, quando ela percebe que ele não “ameaça”, a índia o recebe prontamente dizendo: “Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos tabajaras” (ALENCAR, 1991, p. 16). Ao entrar na cabana do pajé da tribo, Martim também é prontamente recebido, até profeticamente, quando Iracema diz: “Ele veio, pai”. Isso se confirma quando o mesmo pajé, Araquém, o recebe: “É Tupã que traz o hóspede à cabana de Araquém” (1991, p. 17) e diz: “O estrangeiro é senhor na cabana de Araquém” (1991, p. 17). E, como tal, Martim, em toda a sua estadia na tribo de Iracema é muito bem protegido pelo Pajé e Caubi, irmão de Iracema e grande guerreiro, e da mesma forma amparado por Iracema, a “filha de Araquém”, e as outras mulheres da tribo – e esse amparo ainda não incluía a relação sexual, uma vez que Iracema devia permanecer virgem, por ser a guardiã dos segredos da jurema, o que pode simbolizar também que Iracema seria a natureza virgem (o Brasil) e Martim, aquele que a 29
  • 26. desbrava. Portanto, por ser recém-chegado, ainda não era o momento de Martim conquistar Iracema por completo, já que ainda era estranho. Prosseguindo, os índios defendem o europeu de tal modo que lutam uns contra os outros para que Martim esteja a salvo: Araquém viu entrar em sua cabana o grande chefe da nação tabajara, e não se moveu. Sentado na rede, com as pernas cruzadas, escutava Iracema. A virgem referia os sucessos da tarde; avistando a figura sinistra de Irapuã, saltou sobre o arco e uniu-se ao flanco do jovem guerreiro branco. Martim a afastou docemente de si, e promoveu o passo. A proteção, de que o cercava a ele guerreiro a virgem tabajara, o desgostava. — Araquém, a vingança dos tabajaras espera o guerreiro branco; Irapuã veio buscá-lo. — O hóspede é amigo de Tupã; quem ofender o estrangeiro ouvirá rugir o trovão. — O estrangeiro foi quem ofendeu a Tupã, roubando a sua virgem, que guarda os sonhos da jurema. (ALENCAR, 1991, p. 28) Nesse ponto, pode-se perguntar: Por que tanta afeição a um estrangeiro mal chegado à tribo? A resposta parece bastante clara: Não só simplesmente por ser o europeu, “filho de Tupã”, mas por ser a peça-chave da intenção nacionalista do romance: a miscigenação. De certa forma, pode-se afirmar que Iracema não seria a personagem principal do romance, e sim Martim, uma vez que a índia o defende, o ampara e o atende (e não o contrário), assim como os amigos índios do europeu. Ele, que, no início do romance é “a sombra, o escuro, que oculta a visão de Iracema, é o intruso, é aquele que invade sem ser percebido e tapa os olhares para as belezas naturais que estão por toda a parte” (SILVEIRA, 2009, p. 96), pouco a pouco, conforme se entranha nos costumes e preceitos dos indígenas, passa a utilizar a mesma linguagem deles, aquela por meio de metáforas: “Teu hóspede fica, virgem dos olhos negros: ele fica para ver abrir em tuas faces a flor da alegria, e para sorver, como o colibri, o mel de teus lábios” (ALENCAR, 1991, p. 28). Martim chega a “renunciar” às raízes de sua terra para aderir aos costumes da nova terra, sendo pintado e batizado com o nome de Coatiabo. Sobre esse ponto, Silveira afirma: Martim é [...] o rio, a água, o meio pelo qual saiu de sua terra natal e chegou ao Novo Mundo, é o meio de ligação entre o europeu e o selvagem, para formar um novo povo. [...] 30
  • 27. Assim, mesmo com o “batismo”, momento simbólico da passagem de Martim do caráter europeu para o caráter pitiguara, que ocorrera momentos antes, Martim não se esquece de sua terra natal. Logo, Martim não é mais completamente um português, pois adquiriu até mesmo um nome entre os índios (Coatiabo), vive a par dos costumes indígenas, graças ao seu amor por Iracema, mas, ao mesmo tempo, não é completamente um indígena, pois não pode desprezar toda a sua vida do outro lado do oceano. (SILVEIRA, 2009, p. 97) Por esse motivo, um capítulo depois do “batismo” de Martim, ele começa a olhar, da praia, para o mar, e lhe bate a nostalgia de suas terras, de tal modo que ele se esquece quase completamente de seu amor por Iracema, ao ponto de ela mesma perceber o desprezo: Uma vez o cristão ouviu dentro em sua alma o soluço de Iracema: seus olhos buscaram em torno e não a viram. A filha de Araquém estava além, entre as verdes moitas de ubaia, sentada na relva. O pranto desfiava de seu belo semblante; e as gotas que rolavam a uma e uma caíam sobre o regaço, onde já palpitava e crescia o filho do amor. Assim caem as folhas da árvore viçosa antes que amadureça o fruto. — O que espreme as lágrimas do coração de Iracema? — Chora o cajueiro quando fica tronco seco e triste. Iracema perdeu sua felicidade, depois que te separaste dela. — Não estou eu junto a ti? — Teu corpo está aqui; mas tua alma voa à terra de teus pais, e busca a virgem branca, que te espera. (ALENCAR, 1991, p. 74) Desse ponto, pode-se concluir que Martim, na verdade, mesmo que essa não fosse a intenção do autor, somente tinha a função de ser essa ponte entre o europeu e a nova terra, de forma a gerar, nessa ponte, o “Brasil”. Silveira (2009, p. 99-100) até mesmo sugere que o nome do europeu (MARtim), mesmo que seja ligado a um personagem histórico (Martim Afonso), está ligado à sua dicotomia: Europa versus Novo Mundo. Sobre essa integração, faz-se mister refletir que, após a Independência do Brasil, quem tomou o poder foi a elite branca, representada por D. Pedro I, e não uma elite autóctone, ainda vista como “atrasada” e “selvagem”. Portanto, era necessário que o europeu se integrasse à nova terra, e que essa integração fosse enaltecida, para se construir a imagem perfeita pensada por essa elite: um Brasil belo, puro, heroico, mas branco. Entretanto, como se pode ver em Graziely da Silva Santos (2005, p. 24-25), o objetivo do romance de Alencar, de acordo com as tendências da época, era usar o índio 31
  • 28. (na pureza e robustez) e o europeu (na civilidade, religiosidade, língua, entre outros) como matrizes na formação de um “bem maior”: no caso, o primeiro cearense. Sendo esse cearense o novo herói do novo mundo, o predestinado, esse seria o plano perfeito da criação da imagem de uma identidade nacional, uma vez que, mesmo que o europeu se integrasse à cultura indígena, ele ainda seria o europeu, o estrangeiro. O cearense, filho da índia – símbolo, como já se discorreu, da terra a ser desbravada, une os genes da nova terra, que é edênica e heroica, com o sangue da Europa, “civilizada por excelência” na ótica da elite brasileira. Segundo Bosi, À medida que nossos narradores iam aclimando à paisagem e ao meio nacional os esquemas de surpresa e de fim feliz dos modelos europeus, o mesmo público acrescia ao prazer da urdida o do reconhecimento ou da auto-idealização. Vistos sob esse ângulo, são exemplares os romances [...] de Alencar, que respondem, cada um a seu modo, às exigências mais fortes de tais leitores: reencontrar a própria e convencional realidade e projetar-se como herói ou heroína em peripécias com que não se depara a média dos mortais(1999, p. 128). Assim, o nascimento de Moacir, filho de Iracema e Martim, dá ao Brasil o caráter de predestinado, fruto da coragem, beleza e robustez do índio e da civilidade, decência e racionalidade europeia: “O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predestinação de uma raça?” (ALENCAR, 1991, p. 86) Por fim, é interessante transpor alguns trechos do último capítulo de Iracema, para perceber o fim último dessa análise: perceber a europeização do índio, mostrada como prática desejável, indício de seus primeiros passos rumo à civilização. O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do Ceará, levando no frágil barco o filho e o cão fiel. [...] Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar com ele a mairi dos cristãos. Veio também um sacerdote de sua religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem. Poti foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho; não sofria ele que nada mais o separasse de seu irmão branco; por isso quis tivessem ambos um só deus, como tinham um só coração. Ele recebeu com o batismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei, a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na língua dos novos irmãos. Sua fama cresceu, e ainda hoje é o orgulho da terra, onde ele viu a luz primeiro. A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. A palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem; e 32
  • 29. o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá. (ALENCAR, 1991, p. 86-87) Vê-se que, como ilustra esse último capítulo, o fim foi muito semelhante ao do texto de Caminha. Embora o europeu antes se entranhasse quase completamente na cultura dos indígenas, ao voltar de sua terra natal, trouxe outros europeus consigo com a mesma finalidade: fazer os europeus e índios possuírem “um só coração”. Percebe-se, também, que Poti se fez o primeiro “amansado” pelos europeus, por sua fidelidade a Martim, que se tornou eterna. Sobre esse ponto, Eneida Leal Cunha, discorre que, mesmo que o encontro tenha se deslocado para a relação familiar (a fidelidade de Iracema a Martim até a morte da mesma), o narrador utiliza a mesma cena da colonização que Caminha relatou: “a atividade do colonizador, a receptividade do índio e um projeto de Estado que, para se efetivar, necessita da interação, mesmo que apenas no simbólico constituído, das duas partes em confronto” (2006, p. 124). Desse modo, constata-se que, nesse contexto, [...] é a si mesmos, enquanto escritores e enquanto herdeiros dos colonizadores, que é preciso legitimar. Nesta perspectiva, a família original composta por europeu e índia – ou vice-versa – passa a ser vista prioritariamente como a montagem de uma ascendência ideal, purificadora e particularizadora, que aplaca a conturbação posta por duas evidências: a primeira, de que, a rigor, se é intelectualmente tão europeu quanto os que aqui celebraram a primeira missa; a segunda, que a matriz para ser europeu aqui é ocupar o lugar do habitante da terra na primeira missa: ser receptivo aos rituais que o imaginário colonizador produz, contemplá-los mais ou menos a distância, repeti- los incessantemente, sem interferir na sua lógica própria e já dada. (CUNHA, 2006, p. 124-125) Concordando com as palavras de Eneida, por fim, pode-se concluir essa análise com a última frase de Iracema: “Tudo passa sobre a terra” (ALENCAR, 1991, p. 87). Esse último trecho exprime toda a experiência de Martim nas terras cearenses. Todo o amor que ele cultivou já não passa de doces lembranças “de uma noite de verão”. 33
  • 30. 3 O ÍNDIO “HERÓI” EM MACUNAÍMA Tem uma música do Caetano, tem uma poesia dele que fala disso, o nativo levanta o braço e pega um caju. As pessoas estão preferindo em nome do progresso instalar aquelas casas com aquelas placas luminosas e distribuir Coca-Cola na praia. (Aílton Krenak) Primeiramente, faz-se importante expor os objetivos dos autores modernistas da “fase heroica”, da qual Mário de Andrade, autor de Macunaíma, fazia parte. Para Daniel Faria (2006), dois outros escritores do período, Oswald e Paulo Prado buscavam a reconstrução do conceito de brasilidade. Conforme analisado no subcapítulo anterior, a imagem de brasilidade para os românticos consistia em suprimir os sofrimentos de um Brasil em construção de independência para construir um Brasil idealizado, em que todos se vissem como “predestinados” na criação de uma nova nação, “desligada” de Portugal. No movimento modernista, porém, segundo a ótica de Paulo Prado e Oswald de Andrade, a preocupação estava em encontrar a “brasilidade”, isto é, a imagem da nação, num âmbito muito maior, no sentido de que a mentalidade brasileira era vista por eles como dualista, ou seja, ao mesmo tempo em que os brasileiros expressavam, nas ruas, uma cultura singular, também era visto como intelectual o brasileiro fortemente ligado à cultura europeia. O movimento modernista buscava romper com as imagens construídas no parnasianismo, pois esse último não buscava, de certa forma, compromisso social. Não foram poucas as críticas produzidas no período contra o Parnasianismo. Para exemplificar, Ronald de Carvalho, na semana de 22, grande marco que revolucionou as bases do Modernismo brasileiro, declamou o poema Os Sapos, de Manuel Bandeira, “sob um coro de coaxos e apupos” (ANDRADE, 1999, p. 166), no qual o sapo representava os parnasianos. As inovações atingem os vários estratos da linguagem literária, desde os caracteres materiais da pontuação e do traçado gráfico do texto até as estruturas fônicas, léxicas e sintáticas do discurso. Um poema da Paulicéia Desvairada ou [...] uma passo qualquer extraído de Macunaíma (...) nos dão de chofre a impressão de algo novo em 34
  • 31. relação a toda a literatura anterior a 22: eles ferem a intimidade da expressão artística, a corrente dos significantes. Vista sob esse ângulo, a “fase heroica” do Modernismo foi especialmente rica de aventuras experimentais tanto no terreno poético como no da ficção. (BOSI, 1999, p. 345) Mário, não obstante a seu tempo, inovou não só as estruturas da linguagem literária, ao explorar elementos da fauna, flora e ambiência brasileiras – assim como José de Alencar, a quem considerava “patrono santo da língua brasileira” (PROENÇA, 1969, p. 47) –, mas também no caráter sintático da linguagem. A rapsódia 2 mais significativo de Mario foi inteiramente construída na linguagem falada do Brasil, e é repleta de expressões, provérbios, danças e cantigas (o único momento que Mário muda sua linguagem do informal para o formal é no capítulo “Carta pras Icamiabas”, clara paródia ao parnasianismo, segundo Bosi (1999) e Proença (1969)). Feitas essas observações, pode-se adentrar para a análise da imagem do índio na obra e sua relação com o contexto apresentado. Primeiramente, o livro se passa “no fundo da mata virgem”, numa abertura que, segundo Bosi (1999, p. 353), é feita em estilo solene, lendário, e nela nasce Macunaíma, “preto retinto e filho do medo da noite” e “uma criança feia” (ANDRADE, 1999, p. 13). Nesse ponto, Daniel Faria, ao analisar um dos adjetivos dados para Macunaíma, afirma que “o herói de nossa gente nasceu num tempo e espaço não históricos: é filho de uma noite absoluta. Não pertencendo a uma tradição qualquer, tem com seu nascimento um começo, uma origem também significada pela ausência do Pai” (2006, p. 10). Segundo Cavalcanti Proença, não tendo ele um pai, “nasce, como verdadeiros herois, de mãe virgem” (1969, p. 160). A abertura também diverge da feita em Iracema, “virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna” (ALENCAR, 1991, p. 14). Mais adiante, a narrativa de Mário assume um estilo jocoso, cômico, de crônica: Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: 2 O próprio Mário de Andrade chegou a cogitar o nome rapsódia para sua obra, sendo “emprestado”, usando o termo de Bosi (1999), o nome “romance” para concorrer a um prêmio literário. Contudo, todos os teóricos estudados são unânimes em caracterizar Macunaíma como rapsódia. Segundo Bosi (1999, p. 353), esse nome seria pela grande capacidade da obra de articular entre o estilo de lenda, o cômico e o paródico. Já Cavalcanti Proença (1969, p. 11) afirma que “Macunaíma apresenta como as rapsódias musicais uma variedade de motivos populares, a que Mário de Andrade seriou, de acordo com as afinidades existentes entre eles”. Portanto, a obra Macunaíma aqui será abordada como rapsódia. 35
  • 32. - Ai! Que preguiça!.... e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem (ANDRADE, 1999, p. 13). Já se nota desde o primeiro capítulo que o índio apresentado, embora herói, é, no mínimo, uma figura desconcertante. A imagem de um índio preguiçoso rompia com o ideal de “mancebo” viril e ativo, construído pelo romance de Alencar. Koch-Grünberg, ao relatar a lenda de Makunaíma oriunda dos povos arecuná e taulipang, afirma que “ainda era menino, porém mais safado que todos os outros irmãos” (apud ANDRADE, 1999, p. 168), o que realmente pode ser comprovado no heroi de Mário, já que, toda vez em que a cunhada Sofará o leva para o campo para passear, “brincam”, mesmo sendo pequeno, e, quando já maior, têm relações com Iriqui, outra mulher de Jiguê. Outro ponto a se notar são as transformações de Macunaíma, que pode se transformar em qualquer animal ou planta desejada, o que confirma o dito por Nestor Victor sobre o espaço-tempo de Macunaíma: “Como nós sonhamos à noite, assim vivem os seus personagens de dia. Tudo em torno desses imaginados seres é sonho e sonho (...). Para essa fauna supostamente humana o espaço e tempo em que vivemos sujeitos não existem” (apud BOSI, 2003, p. 189-190). Bosi ainda acrescenta que: Em Macunaíma, como no pensamento selvagem, tudo vira tudo. O ventre da mãe-índia vira cerro macio; Ci-Mãe do Mato, companheira do herói, vira Beta do Centauro; o filho de ambos vira planta de guaraná; a boiúna Capei vira Lua. (1999, p. 352) É importante ressaltar que, na primeira parte da rapsódia, assim como já elucidado por Daniel Faria, os lugares citados pelo narrador têm nomes como “Cafundó do Judas” e “Campo das Flores”, e não nomes convencionais como Salvador e Roraima, o que alude, segundo o pesquisador, às ruas de Itacoatiara, cidade dos sonhos de Mário, produto de suas experiências com a natureza do norte do país: De acordo com o diário de viagem, na noite de 3 de junho Mário de Andrade sonhou com uma cidade encantada, Itacoatiara. A cidade tinha setecentos palácios triangulares de granito, com uma única porta vermelha. Itacoatiara era composta por ruas líquidas, nas quais o modo de locomoção era o peixe-boi, para os homens, e o boto, para as mulheres [...]. As ruas da cidade tinham nomes idílicos, como rua do Meu Bem, rua da Rainha do Café e rua das Meninas [...]. Assim, a 36
  • 33. Itacoatiara do sonho de Mário de Andrade era uma cidade utópica, no sentido de que punha fim aos conflitos políticos, às limitações mundanas, sendo a concretização dos anseios estéticos do autor. Esteticamente, a cidade encantada despertava as mesmas sensações que a beleza sublime da natureza amazônica. Em Itacoatiara o mundo natural, o social e o político estavam harmonizados. (FARIA, 2006, p. 268) Pode-se inferir que era essa mesma Itacoatiara se faz presente na primeira Uraricoeira, onde Macunaíma não tinha preocupações com sua vida, somente se ocupava de dormir, “brincar” e aprontar com seus irmãos. Tanto que, nesse período, Macunaíma torna-se Imperador do Mato Virgem ao “possuir”, nos termos de Koch- Grünberg (apud PROENÇA, 1969), Ci, líder das amazonas. Assim como no romance Iracema, Ci chega a gerar filhos de Macunaíma. Entretanto, enquanto Iracema morre para Moacir a substituir, Macunaíma não tem herdeiros, já que seus filhos morrem após sugar muito pouco do que Ci tinha, devido ao assalto de uma cobra sugadora de leite, e ela, após cumprir sua função, também morre, virando a constelação Beta do Centauro. Até esse ponto, relacionou-se várias características em que Macunaíma diverge de Iracema, e o ambiente criado era idealizado para que Macunaíma não se preocupasse com outra coisa a não ser continuar preguiçoso. Contudo, ao se direcionar para São Paulo em busca da muiraquitã perdida, o ambiente transforma-se, e muitas outras características de Macunaíma podem ser notadas em suas peripécias na cidade grande. Antes disso, Macunaíma, com seus irmãos, no caminho para São Paulo, encontra uma gruta com um poço. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era a marca do pezão do Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indianada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas. (ANDRADE, 1999, p. 40) Há certa paródia nesse trecho de Macunaíma, já que, segundo Cavalcanti Proença (1969, p. 188), Sumé seria acrônimo de São Tomé, e, conforme ele mesmo relata, há uma lenda de que São Tomé teria feito uma peregrinação apostólica no Brasil. Ora, no fenômeno do índio se tornar branco ao se lavar nas águas do poço de Sumé, se indaga o conceito de puro que os europeus têm, já constatado no desejo de conversão dos índios em Caminha e na criação do “predestinado” Moacir em Alencar. Aqui há a referência 37
  • 34. clara à ótica de embranquecimento 3 que se tinha – e ainda se tem – no Brasil. Assim, a intenção do batismo, do “plano de salvação” dos índios, nada mais era que uma tentativa de “embranquecimento” do indígena, o que seria uma forma de intolerância. Na afirmação do narrador de que “ninguém não seria capaz de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas”, pode-se perceber que o batismo, naquela concepção, destitui o índio de sua cultura, fazendo com que ele se torne um branco, um “ser-outro”. Quando Macunaíma chega à cidade de São Paulo, Macunaíma percebe que o dinheiro que usava na Terra do Mato Virgem já não serviria mais, e que teria de arranjar trabalho, mas, como era preguiçoso, larga a empresa que o contratou e vive com o que conseguiu na troca do seu dinheiro com a moeda local. Então Macunaíma entra em contato com uma São Paulo envolvida na promessa das máquinas e no brasileiro com ânsias de europeu. A ligação com as máquinas era tanta que Macunaíma pensa-a ser um deus, tenta “brincar” com a máquina para ser imperador também do povo de São Paulo, ao passo que as pessoas zombam de sua atitude. Segundo elas: [...] isso de deuses era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza [...]. Macunaíma passou então uma semana [...] só maquinando nas brigas sem vitórias dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina... [...]. Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu: - Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nessa luta. Há empate. (ANDRADE, 1999, p. 42- 43) A conclusão de Macunaíma é emblemática não só por demonstrar que a máquina, mesmo submissa à mão do homem, o submetia também, não só pelo medo, mas, pode-se concluir pela característica do período, pelo fascínio e esperança de uma São Paulo mais moderna. É a característica do paulista de ser ligado com o moderno que Mário parodiza na “Carta pras Icamiabas”, em que brinca não só com a linguagem parnasiana, 3 O embranquecimento, aqui, reflete algo que ainda caracteriza o Brasil: a visão do negro como alguém sujo, impuro, que as “águas do batismo” irão purificá-lo da mácula da outra origem. Mário de Andrade, não obstante a outros autores anteriores, como Padre Vieira e Santa Rita Durão, também carrega esse estereótipo em sua rapsódia. Essa é uma das grandes críticas feitas pela comunidade negra a essa rapsódia. 38
  • 35. mesclando português arcaico com certos deslizes de linguagem, (PROENÇA, 1969), mas com o fascínio do paulista pelo estrangeiro moderno, ao Macunaíma afirmar “admirado” que, ao mesmo tempo em que fala um dialeto “bárbaro” (BOSI, 1999, p. 80) e “desprezível” (1999, p. 80), ao escrever, este dialeto se torna uma língua tal que pode ser nominada “língua de Camões” (ANDRADE, 1999). A personagem ainda se espanta ao afirmar que “á grande e quasi total maioria, nem essas duas línguas bastam, senão se enriquecem do mais lídimo italiano” (ANDRADE, 1999, p. 80). Contudo, mesmo que tenha feito essa paródia com o dualismo dos paulistas, Macunaíma também é, em São Paulo, de certa forma, dual. Bosi afirma que, enquanto Macunaíma era “descrito como luxurioso, ávido, preguiçoso e sonhador” (1999, p. 353) enquanto vivia no Mato Virgem, ao entrar em contato com a “metrópole nova [...] funde instinto e asfalto, primitivismo e modernismo” (1999, p. 353).,Enquanto consegue, em episódios anteriores, se relacionar com as moças, se disfarçar de francesa para negociar com Venceslau Pietro Pietra, e, posteriormente, de pintor para embarcar para a Europa, Macunaíma também mantêm suas raízes “primitivas” ao associar seus grandes inimigos de São Paulo, ao conhecê-los, antes mesmo de sua carta às amazonas, com monstros da mitologia indígena, sendo Venceslau o gigante Piaimã e sua mulher, Ceuci, uma caipora. Como já posto, embora crítica social, tudo na rapsódia gira em torno do fantástico, da fábula. Esse ponto se confirma também no espaço-tempo em São Paulo. Se na mata virgem, como já foi dito, o índio vivia em lugares com nomes relacionados ao sonho de Itacoatiara de Mário, em São Paulo, eles recebem seus devidos nomes, mas a locomoção mágica é semelhante. Assim, na rapsódia, Macunaíma interpreta, além de São Paulo, o Brasil como “sua selva”, mesmo sem ter dominado a Máquina na sua chegada a São Paulo. Para exemplificar, quando, disfarçado de francesa, tentou fugir do cesto em que Venceslau Pietro Pietra o tinha colocado, [...] assoprou raiz de cumacá em pó que bambeia cordas, bambeou o amarrilho do cesto e pulou pra fora. Ia saindo quando topou com o jaguara do gigante, que chamava Xaréu, nome de peixe pra não ficar hidrófobo. O herói teve medo e desembestou numa chispada mãe parque a dentro. O cachorro correu atrás. Correram correram. Passaram lá rente à Ponta do Calabouço [Rio de Janeiro], tomaram rumo de Guajará Mirim [fronteira de Mato Grosso e Amazonas] e voltaram pra leste. Em Itamaracá [Pernambuco] Macunaíma passou um pouco folgado e teve tempo de comer uma dúzia de maga-jasmim que nasceu do corpo de dona Sancha, dizem. Rumaram pra sudoeste e nas alturas de Barbacena [Minas Gerais] o fugitivo avistou uma vaca 39
  • 36. no alto duma ladeira calçada com pedras pontudas. Lembrou de tomar leite (ANDRADE, 1999, p. 53-54, adendos nossos). Macunaíma chega a São Paulo quando o Brasil é uma república, mas durante as suas correrias encontra João Ramalho dos primórdios da fundação de Santo André da Borda do Campo, conversa com Maria Pereira que está viva ainda hoje e amofumbada num grotão da beira do São Francisco, desde o tempo da invasão holandesa; convida Bartolomeu de Gusmão para viajar com ele no dorso de um tuiuiú, e o padre voador, que morreu na Espanha, está caminhando e suando num areal do Maranhão (PROENÇA, 1969, p. 11-12). Portanto, como já se afirmou anteriormente, mesmo estando em uma cidade civilizada, o que se nota nas nominações padrão dos lugares por onde passa, Macunaíma ainda transita no mítico, o que lhe permite não só deslocar de um estado a outro rapidamente, também dialoga naturalmente com personagens de tempos diferentes do atual da narrativa. Retomando a questão do trânsito rápido entre os lugares, essa “desregionalização” acontece também em diversos pontos em que o narrador enumera fauna e flora de diversas regiões do país que Macunaíma pratica, mesmo antes de sua vinda a São Paulo, quando habitava a “Terra do Mato Virgem”. Segundo o próprio Mário de Andrade, essa desregionalização foi intencional. Nas palavras do autor, Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e a flora geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea um conceito étnico nacional geográfico (apud FARIA, 2006, p. 271). Ao analisar a rapsódia, a “concepção literária de Brasil” acontecia em um outro sentido não muito diverso no próprio Macunaíma. Remetendo ao início do livro, ao ser chamado de “herói de nossa gente” e “batizado” no poço de Sumé, durante sua ida a São Paulo, Macunaíma representava não só a sua tribo Tapanhumas, mas toda a nação. Essa característica não só o aproxima do Moacir de Iracema, mas também, como será argumentado mais adiante, o faz “tomar posição” em defesa do seu território, que já não se chamará mais “Terra do Mato Virgem”, mas Uraricoera, palco de disputas coloniais. Continuando a análise da narrativa, ao conseguir recuperar a muiraquitã de Venceslau Pietro Pietra, já que este foi morto por Macunaíma, após cômica disputa, ao ser jogado em um caldeirão de macarronada fervente, e retorna ao seu lugar de origem, transformando São Paulo num grande bicho preguiça de pedra. Quando retorna ao Mato 40
  • 37. Virgem, ele já o chama de Uraricoera. Nota-se que, nesse ponto da narrativa, Macunaíma já não vê mais a Beta do Centauro no céu, que era Ci, a Mãe do Mato. Nesse local, ele primeiro fica doente de impaludismo (malária), mas não chega a progredir na doença nem espalhá-la. Contudo, ao fazer maldição num anzol feito de presa de sucuri, infecta o irmão Jiguê com a lepra, e esse o infecta também, e Macunaíma, por meio da associação metafórica das formigas com os índios, que “já foi gente que nem nós” (ANDRADE, 1999, p. 146), dissemina a lepra por toda a sua tribo. Após sua tribo toda morrer de lepra, Macunaíma vai ao vale de Lágrimas, para afogar seus desejos, já que não há mais ninguém. Encontra com Uiara (Iara) e, seduzido por ela, vai ao seu encontro e é despedaçado por ela, perdendo sua muiraquitã definitivamente. Como já perdeu sua muiraquitã e a proteção de Ci, está sozinho e já não tem pra onde ir, desiste da vida e vai para o céu virar a constelação Ursa Maior. Mário de Andrade, ao comentar sobre o final da rapsódia em carta a um de seus amigos, afirma que pouco lhe importou se foram cômicas certas partes do livro, mas ver o herói desistir de toda sua vida lhe causou comoção muito grande, a ponto de ele se recusar a o ler novamente “não porque ache ruim, mas porque detesto sentimentalmente ele” (apud BOSI, 2003, p. 206). Para Bosi, essa confissão de Mário [...] não poderia ter sido mais franca nem mais patética. A evasão mágica que sela o livro é mais um exemplo de aproveitamento em chave crítica de uma narrativa mitológica. É a multiplicidade do ser, é a fratura insanável do “eu sou trezentos”, é enfim a instabilidade comum ao poeta e ao herói que tem por efeito a renúncia aos seus modos-de-existir passados ou recentes [...]. O seu destino [...] vem a ser precisamente este: não assumir nenhuma identidade constante (2003, p. 206). Macunaíma, portanto, vira uma estrela por não possuir identidade nenhuma (BOSI, 2003), por ser tão plural, assumindo identidades tão diversas, como índio, mágico, brasileiro, uma francesa, entre outras. Daniel Faria vai um pouco mais além. Faz-se mister, aqui, explicitar sua análise sobre o texto de Koch-Grünberg, cujo personagem principal, Makunaima, foi base para a construção do Macunaíma de Mário. Daniel, ao comentar sobre a situação da região do rio Uraricoera, afirma que Se o antropólogo lá esteve entre 1911 e 1913, vale notar que (obviamente naquilo que concernia a ingleses e brasileiros) apenas em 1904 as fronteiras de Roraima com a Guiana inglesa foram 41
  • 38. delimitadas. Vinte e quatro anos antes de Macunaíma aparecer como “herói de nossa gente”, o mato virgem estava em pleno litígio colonial. Além disso, se Koch-Grünberg lá esteve como cientista, a região já vinha sendo visitada, descrita e estudada por burocratas, missionários, enfim, uma série de escritores que tinham relações bem mais evidentes com as guerras coloniais. Sendo assim, o próprio estatuto dado a indígenas como povos “naturais”, sem lei nem rei, fazia parte da disputa territorial (FARIA, 2006, p. 274). Ainda, o fato de Daniel Faria ter ressaltado a definição de indígenas “como povos ‘naturais’” foi para que se percebesse o tema central: “a estetização da natureza como resposta romântica a conflitos políticos específicos” (2006, p. 275). Portanto, não só o espaço da narrativa, como também o próprio Macunaíma representavam uma natureza mágica, descompromissada com a realidade em si. Quando Macunaíma é interrogado a verdadeiramente tomar uma posição, a sobreviver, no sentido de que a sobrevida seria o lutar para conquistar sua identidade, ele resolve ir ao céu e se tornar uma constelação. Mesmo que não exista mais a mágica Uraricoera em que habitava dantes, Macunaíma procura viver com Ci, e ter, na imensidão do céu estrelado, o seu lugar de refúgio das tensões. Logo, para Daniel, Longe de ser um brilho inútil, porém, a Ursa Maior ganhava no texto uma rica sobreposição de sentidos: a promessa da magia natural do mato virgem, a advertência à brasilidade no sentido de que não se deixasse levar pelo caos da civilização (2006, p. 278) Isso significa que o índio de Macunaíma, muito além de ser preguiçoso, brincalhão e luxurioso, por meio dessa mesma preguiça, silencia uma série de conflitos que assolavam as fronteiras, e as tribos que lá habitavam, e, mesmo que seja tão plural na sua cultura, assume uma posição de brasilidade, no sentido de que espera que o Brasil não se deixe vencer pelos inúmeros conflitos ou influências exteriores, mas passe a viver por si mesmo, e busque no seu território, de natureza tão bela e plural, a sua fonte de inspiração. 42
  • 39. 4 POR QUE LITERATURA INDÍGENA? O texto segundo se organiza a partir de uma meditação silenciosa e traiçoeira sobre o primeiro texto, e o leitor, transformado em autor, tenta surpreender o modelo original nas suas [...] lacunas, desarticula-o e o rearticula de acordo com as suas intenções, segundo sua própria direção ideológica, sua visão do tema apresentado desde o início pelo original. (Silviano Santiago) Primeiramente, para se compreender, de certa forma, a razão de existência da literatura indígena e porque a ler, é mister discorrer sobre os pontos principais levantados dos textos analisados nos três capítulos anteriores, já que é necessário compreender a situação da imagem do índio produzida por eles, para se compreender em que pontos a literatura indígena dialoga com esses textos e se reforça por meio dos mesmos. Uma primeira questão a se ressaltar sobre esses textos é que todos são indigenistas, ou seja, é o branco que discorre sobre o índio, que apresenta e define o autóctone e sua cultura. Posto isso, pode-se relembrar o que se constatou nos três capítulos anteriores, para retomar as características dos autóctones retratados em cada um dos textos indigenistas analisados neste trabalho. Na obra de Caminha, o que se notou foi não só o índio mancebo, robusto e amistoso, mas, principalmente, o índio facilmente domesticável que Caminha relata. Ora, essa leitura simplista que Caminha faz do caráter de compreensão multicultural do índio é, sobretudo, na intenção de torná-lo um cristão, um colaborador. Concordando com Eneida Leal Cunha, a cena da primeira missa presente em Carta é mister para toda a construção da imagem “dócil” e “receptiva do selvagem”, pois, ao colocar “em cena todos os elementos instituintes da história colonial” (2006, p. 121), o texto enfatiza a facilidade do índio em, por meio da cópia, incorporar a cultura europeia. Assim, Caminha afirma que, quando entendessem a cultura do branco (tomada como padrão), os índios “seriam logo cristãos” (1817, p. 21). Mais especificamente, Carta explicita a tentativa de embranquecer a cultura indígena, como já se discutiu em Macunaíma. Luzimar Goulart Gouvêa, no resumo de sua dissertação de mestrado entitulada O homem caipira nas obras de Lobato e Mazzaropi, corrobora as possibilidades da 43
  • 40. construção na literatura do “não ser e do ser outro” (2001, p. 15). Tais conceitos podem ser relacionados, segundo o autor, respectivamente à construção de um estereótipo da imagem – como no caso de Lobato, que, conforme a análise de Gouvêa, apresenta o caipira como praga do campo em Velha Praga e Urupês, sendo que “o lugar social de fato e de fala em Lobato não promove aproximações, nem trocas” (2001, p. 55) –, e a construção da imagem como outra, no sentido de, no caso do caipira de Jeca Tatuzinho, transformá-lo em capitalista americano, saudável, que fala inglês, veste os animais e trabalha para ganhar dinheiro, não para o sustento, transformando-se “num legítimo ‘estranja’, adepto a novas tecnologias” (2001, p. 116, grifo do autor). Esse último conceito, isto é, de ser outro, ou “estranja”, pode ser justaposto à intenção de Caminha em catequizar o índio, como também (e mais claramente) na cena ilustrada em Iracema, quando Poti (“filho” da tribo pitiguara e amigo fiel de Martim, o guerreiro branco) é batizado. Nesse momento, na perspectiva de Alencar, os dois, isto é, Martim e Poti, se tornam, pode-se dizer, irmãos, uma vez que comungam da mesma fé. Ora, essa irmandade explicitada na obra não ocorre mediante a permanência das duas culturas como são, mas na sobreposição da cultura daquele considerado mais forte, no caso, o branco. Ainda nesse romance alencariano, constata-se que a imagem que do índio não é mais de alguém sem crença, já que a narrativa traz imagens de deuses panteístas como Tupã. Alencar que, para Mário de Andrade, seria o “patrono santo da língua brasileira” (apud PROENÇA, 1969, p. 47), também é, pode-se dizer, o primeiro escritor a usar elementos do próprio Brasil em sua narrativa, mesmo que não ousasse na linguagem como Mário. Dessa forma, a obra indianista de Alencar não pode ser desprezada. Mais ainda, como já foi constatado, para Alencar, o índio seria o protótipo “perfeito” de imagem do Brasil “origem”, e não o europeu, já que é o habitante primeiro da terra achada, e era conhecido por ser guerreiro, robusto e belo, além de não ser como o negro: escravo e “sem alma”. Entretanto, além da afirmação de que o índio seria a imagem do Brasil ser questionável, uma vez que ele tem de defender o branco para ser enaltecido, esse mesmo índio não professava a religião cristã e não comungava da mesma “civilidade” e “cultura” do branco, o que era incompatível com o ideal de construção do Brasil projetado pela elite. A meta, portanto, era juntar o selvagem com o civilizado, o branco, para que o fruto dos dois fosse um brasileiro, belo, robusto, guerreiro e, ao mesmo tempo, cristão, culto e nativo na língua portuguesa. 44
  • 41. Por fim, em Macunaíma, o índio Macunaíma perde seu caráter de indígena e passa a ser a imagem do próprio Brasil, que se encontrava perdido em tantas culturas e, ao final da rapsódia, clama para que o Brasil “esqueça” os conflitos exteriores e interiores e busque na natureza tão bela e tranquila, ilustrada na Itacoatiara dos sonhos de Mário, a sua identidade, protegido por Macunaíma, que “banza [...] no campo vasto do céu” (1999, p. 159), tão vasto quanto a natureza brasileira sonhada por Mário. Dessa forma, compreendendo um pouco melhor as narrativas indigenistas analisadas, pode-se notar um ponto que as une: as três foram construídas por autores brancos que não tomaram contato com a cultura indígena. Mesmo Alencar e Mário, que construíram suas narrativas por meio de relatos de outros viajantes, também construíam seus relatos conforme aquilo que lhes interessava. Além disso, a situação cultural indígena, quer seja um ritual ou uma contação de histórias, por exemplo, relatada por esses viajantes era reduzida, e essa redução era lida por Mário e Alencar. Assim, conclui-se que, provavelmente, muitas características importantes, que seriam notadas na experiência com a cultura indígena, foram tolhidas antes da construção dessas narrativas, e elas, tomando contato com os relatos tolhidos, cortavam ainda mais, o que provocou equívocos e, até mesmo, preconceitos quanto à cultura indígena. Nesse capítulo, portanto, o que se questiona é a visão da cultura indígena nas narrativas analisadas - mesmo na de Mário, apesar de seu estudo acurado de tantas obras históricas. Embora Macunaíma tivesse apresentado tantas cantigas, costumes e ditados do Brasil, por que não ousou da mesma forma abordando a diversidade de culturas indígenas presentes no Brasil? Por que, se Alencar e Mário leram a tantas obras de análise da cultura indígena feitas por etnólogos, antropólogos e historiadores, não perceberam que havia uma diversidade literária e cultural riquíssima entre os povos indígenas? Maria Andrade Vieira, ao analisar o conceito de cultura, afirma que o termo “compreende do seu estado mais concreto (ação, processo ou efeito de cultivar a terra) à relação do homem com a terra que, a partir do momento em que deixa seu hábito nômade, começa a plantar raízes próprias em um determinado local” (2006, p. 12). A partir desse momento, o homem começa a plantar tanto seu alimento físico, como também passa a cultivar princípios morais. Esses princípios morais, permeados de juízos de valor, farão com que ele perceba o mundo através da forma própria daquele “meio de cultivo”, tecendo um conjunto de padrões de comportamento, crenças, 45