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201Revista do CAAP | Belo Horizonte
n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012
O Estado na Condição de Consumidor
The State as a Consumer
Rosana Ribeiro Felisberto
Ariane Shermam Morais Vieira
RESUMO: Nos últimos anos o direito brasileiro promo-
veu um avanço considerável na proteção e defesa do con-
sumidor, organizando sistemas de defesa e promulgando
legislação para regulamentar o assunto. A abrangência da
proteção conferida pelo ordenamento jurídico, contudo, faz
surgir questionamentos acerca de alguns pontos específicos
como, por exemplo, a classificação do Estado como consu-
midor diante da norma insculpida no caput do artigo 2º do
Código de Proteção e Defesa do Consumidor. O questiona-
mento surge a partir da fundamentação da defesa do consu-
midor na vulnerabilidade em confronto com os princípios
da Administração Pública e demais prerrogativas do Estado.
PALAVRA-CHAVE: Estado – consumidor – vulnerabili-
dade
ABSTRACT: In recent years the Brazilian law has pro-
moted a considerable advance in the consumer protection,
organizing defense systems and enacting legislation to re-
gulate the issue. The scope of protection afforded by the
legal system, however, raised doubts about some specific
points, for example, the classification of the State as a con-
sumer before the sculptured standard in the caput of Article
2 of the Código de Defesa do Consumidor. The question arises
from the grounds of consumer vulnerability in confronta-
tion with the principles of Public Administration and other
State prerogatives.
KEYWORDS: State – consumer – vulnerability]
SUMÁRIO: Introdução. 1.Definição de Consumidor: Es-
tado como consumidor. 2 Vulnerabilidade. 2.1 Do cabimen-
to da classificação do Estado como vulnerável. 3 Conclu-
são. 4 Referências
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O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR
Introdução
A Constituição da República de 1988, de maneira expressa já no
artigo 5º, XXXII, traz para o Estado a obrigação de promover a defesa
do consumidor, confirmando essa perspectiva ao elencar como princípio
a ser observado pela ordem econômica a defesa do consumidor, no inciso
V do artigo 170.
Seguindo a orientação constitucional, foi criado o Código de
Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90; CDC – traçando as diretrizes
gerais de um sistema nacional e legislativo de proteção ao consumidor.
Segundo os autores do anteprojeto do CDC, este código foi criado tendo
como fundamento a perspectiva que o consumidor é parte vulnerável na
relação jurídica em nossa sociedade, devendo então existir a intervenção
estatal para reequilibrar a situação entre as partes:
Se antes fornecedor e consumidor encontravam-se em uma situação de re-
lativo equilíbrio de poder de barganha (até porque se conheciam), agora é
o fornecedor (fabricante, produtor, construtor, importador ou comercian-
te) que, inegavelmente, assume a posição de força na relação de consumo
e que, por isso mesmo, “dita as regras”. E o Direito não pode ficar alheio
a tal fenômeno.1
Diante deste contexto de criação da legislação consumerista e
da atuação do Estado no sentido de proteger o consumidor, de modo a
reequilibrar a relação jurídica, tem-se que tal proteção se justifica em ra-
zão da vulnerabilidade do consumidor. Sendo a vulnerabilidade um ponto
central ao se tratar do tema, surge o questionamento se o Estado poderia
ou não ser considerado consumidor e, o sendo, se gozaria das garantias e
prerrogativas previstas para este, uma vez que o Estado também possui
prerrogativas oriundas do regramento do Direito Administrativo.
É a tentativa de elucidar esses questionamentos propostos que
orienta a exposição do presente artigo, como se segue.
1.	 Definição de Consumidor: Estado como Consumidor
Para responder ao questionamento de se o Estado poderia ou
não ser enquadrado como consumidor, é necessário, primeiro, definir o
conceito de consumidor para o nosso ordenamento jurídico.
1	 GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do
anteprojeto. 8ªed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p.6.
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Rosana Ribeiro Felisberto e Ariane Shermam Morais Vieira
O artigo 2º do CDC traz a definição de consumidor como qual-
quer pessoa, física ou jurídica que adquire ou utiliza um produto como
destinatário final. Partindo de uma interpretação mais ligeira sobre o dis-
positivo legal, pode-se incluir o Estado na categoria de consumidor quan-
do, por exemplo, adquire móveis para uma secretaria. Neste caso, o Estado
é o destinatário final, aquele que frui, consome os móveis adquiridos no
mercado e o CDC autoriza expressamente que a pessoa jurídica seja en-
quadrada como consumidora.
Entretanto, se o fundamento da proteção ao consumidor é a vul-
nerabilidade deste, alguns teóricos questionam a possibilidade de se tratar
o Estado como consumidor, uma vez que este possui prerrogativas que
o distinguem dos demais consumidores, colocando-o em pé de igualdade
ou mesmo em posição privilegiada em sua relação com os fornecedores.
O CDC é silente em relação ao Estado, não dispondo expres-
samente sobre seu enquadramento ou não como consumidor. Diante da
disposição geral de que a pessoa jurídica pode ser consumidora, o Estado
seria consumidor, desde que cumpra dois outros requisitos: o produto ser
retirado do mercado; vulnerabilidade.
Retirar o produto do mercado implica romper a cadeia de for-
necedores, de maneira que o último a compor essa cadeia não pode mais
ser considerado fornecedor, pois o produto ou serviço não se destina a
sua própria atividade comercial. Assim, se um órgão municipal de saúde
adquire produtos de limpeza para conservar suas dependências, estaria
realizando uma relação de consumo, pois o produto é destinado ao seu
uso e fruição. De outra forma, contudo, se o mesmo órgão municipal de
saúde adquire medicamentos a serem distribuídos para a população, não se
caracterizaria, nesta relação, como consumidor, pois o produto tem outro
destinatário final que não o próprio órgão.
Na outra ponta da relação de consumo, dispõe o artigo 3º do
CDC que a atividade do fornecedor é caracterizada pela “produção, mon-
tagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, dis-
tribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”. O
consumidor se coloca em relação jurídica com o fornecedor, sendo desti-
natário final do produto ou serviço.
Assim, toda vez que o Estado adquire um produto e o utiliza em
suas atividades de modo a fruí-lo e consumi-lo, coloca-se no último grau
da cadeia o que, por definição, o retira da categoria de fornecedor.
204 Revista do CAAP | Belo Horizonte
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O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR
Já em relação ao outro requisito, a vulnerabilidade, não se pode
dizer que o Estado é caracterizado por ser vulnerável. Regra geral o Es-
tado não está em posição de desvantagem em relação ao fornecedor. Em
grande parte dos casos, pode-se verificar que o Estado está mais bem
municiado na relação jurídica que realiza com aquele que lhe fornece o
produto ou serviço.
Ainda que o Estado esteja representado na relação por um órgão
de um pequeno município do interior diante de uma empresa multina-
cional, esta situação por si só não caracteriza a vulnerabilidade do órgão,
pois este é regido por princípios próprios, expressos e/ou reconhecidos,
da Administração Pública, que lhe garantem algumas prerrogativas em re-
lação ao setor privado. São exemplos disso o princípio da legalidade e o
princípio da continuidade de serviços públicos.
Diante disto, chega-se ao ponto chave da discussão aqui travada:
questiona-se se faltando ao Estado o requisito da vulnerabilidade diante
do fornecedor e se este requisito é tido como fundamento da proteção ao
consumidor, poderia o Estado ser enquadrado na legislação consumerista
de modo a exercer os direitos nela previstos.
2.	 Vulnerabilidade
Feitas as considerações acima cabe agora tecer comentários a res-
peito da vulnerabilidade nos contratos de consumo. Fala-se em contratos,
neste caso específico, pois o direito do consumo trabalha com conceitos
essencialmente relacionais; só se fala em consumidor onde está presente
o fornecedor de produtos e/ou serviços, e vice-versa. A relação jurídica
básica entabulada entre esses dois entes se dá por meio dos contratos.
Efetivamente, como já foi dito, nas relações de consumo, tra-
balha-se com uma noção de desequilíbrio entre contratantes, e, por esta
razão, o ordenamento jurídico dispõe normas protetivas do consumidor,
parte mais vulnerável nas relações retro mencionadas.
De fato, a vulnerabilidade serviu não apenas como um dos ele-
mentos que fundamentaram o surgimento de um sistema de defesa e pro-
teção do consumidor. Para alguns autores, a vulnerabilidade do consu-
midor em relação ao fornecedor é um dado de realidade que justifica a
adoção de uma série de normas protetivas pelo ordenamento jurídico.
A vulnerabilidade seria, então, uma realidade pré-jurídica, ou seja, não se
trataria de um conceito do direito, mas um conceito reconhecido por ele.
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Rosana Ribeiro Felisberto e Ariane Shermam Morais Vieira
Assim, hoje se tem o entendimento de que o individuo é vulnerável pelo
simples fato de ser consumidor. 2
Como se percebe, por fazer parte da construção do conceito de
consumidor, a vulnerabilidade não apenas é um fundamento que justifica a
proteção, como também se configura presunção favorável ao consumidor
quando verificada a relação consumerista. A presunção de vulnerabilida-
de, contudo, não pode ser tomada de maneira taxativa ou absoluta. Nesse
sentido:
Entendemos que a verificação da ocorrência da vulnerabilidade é a regra
estabelecida na lei, ficando a verificação das eventuais exceções a cargo da
prudente apreciação do magistrado, interpretando tais normas cum grano
salis, tendo aqui cabimento a preocupação externada no inciso III, do ar-
tigo 4º, do CDC (...). 3
Com efeito, as normas esposadas no Código de Proteção e
Defesa do Consumidor visam mitigar ou corrigir situações de flagrante
desequilíbrio advindas das relações travadas entre consumidores e
fornecedores.
Importante observar ainda que, no âmbito das relações de con-
sumo, utiliza-se em larga escala a técnica de contratação consubstanciada
nos denominados “contratos de adesão”. Essa técnica caracteriza-se pela
substancial redução da esfera de negociabilidade dos ditos contratos, le-
gando ao consumidor, na esmagadora maioria das vezes, apenas a opção
de “pegar ou largar”, isto é, ou o contratante-consumidor aceita o contra-
to com o conteúdo previamente disposto pelo fornecedor de produtos e/
ou serviços ou deixa de contratar, indo procurar outro fornecedor que se
adéqüe melhor a suas demandas.
A partir desta dinâmica de contratação, vê-se que, conforme já
foi dito em linhas anteriores, o consumidor assume posição flagrantemen-
te mais vulnerável na relação que trava com o fornecedor de produtos e/
ou serviços e, deste modo, por ser o pólo mais fraco da relação contratual
faz jus à incidência das normas protetivas contidas no diploma legal con-
sumerista. Destarte, de acordo com a lição de Cláudia Lima Marques, em
sua obra Contratos no Código de Defesa do Consumidor, “este desequilíbrio de
forças entre os contratantes é a justificação pra a um tratamento desequili-
2	 COSTA, Ângelo Brandelli. HENNINGEN, Inês. Processos de subjetivação nas políticas de defesa do
consumidor: Vulnerabilidade e cidadania em questão. Psico. V. 41, n. 3, pp.406-413. p.408.
3	 CORRÊA, Luís Fernando Nigro. CORRÊA, Osíris Leite. Código de Defesa do Consumidor: aspectos
relevantes. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 228p. p.27.
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O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR
brado e desigual dos contratantes, protegendo o direito àquele na posição
mais fraca, o vulnerável, o que é desigual fática e juridicamente”. 4
O diploma consumerista tem como escopo, portanto, a busca
pelo equilíbrio contratual. Deste modo, não há, pelo menos a principio,
como aplicar as normas protetivas do Código de Defesa do Consumi-
dor às relações contratuais travadas entre dois profissionais. Isso porque
entre esses dois entes não é possível visualizar, pelo menos de antemão,
qualquer vulnerabilidade que justifique a incidência das normas protetivas
do diploma legal consumerista. Não há, entre eles, vulnerabilidade auto-
rizadora da aplicação de tutela especial, que afaste a efetivação de normas
do direito civil e do direito comercial. O conceito de profissional, neste
ramo especializado do direito privado, remete àquela pessoa que possui
conhecimento técnico específico e que entabula relações no mercado de
forma habitual, como reflexo de sua atividade. No entanto, é possível en-
trever exceções à regra geral que presume a ausência de vulnerabilidade
nos contratos celebrados entre profissionais – imagine-se, por exemplo,
um advogado que se vê impelido a celebrar contrato abusivo com o único
fornecedor legal de computadores na região em que ele atua, confiando
que nada lhe ocorrerá de errado.
Ainda quanto à concepção de vulnerabilidade cabe reproduzir
aqui outra valiosa lição de Claudia Lima Marques, que, remetendo a estu-
dos de autores europeus sobre este termo específico, diz o seguinte:
[...] procuram distingui-la de sua fonte ou base filosófica, a igualdade ou
desigualdade entre sujeitos. Isso porque, a igualdade é uma visão macro,
do homem e da sociedade, noção mais objetiva e consolidada, onde a
desigualdade se aprecia sempre pela comparação de situações e pessoas,
como fizemos acima: aos iguais, trata-se igualmente, aos desiguais, trata-
-se desigualmente para alcançar à Justiça. Já a vulnerabilidade é filha deste
princípio, mas noção flexível e não consolidada, que apresenta traços de
subjetividade, que a caracterizam: a vulnerabilidade não necessita sempre
de uma comparação entre situações e sujeitos.5
Vulnerabilidade é, então, nesta linha de pensamento, condição da
pessoa, que a coloca em estado inerente de risco nas relações entabuladas
no mercado de consumo. Essa vulnerabilidade pode ser permanente ou
provisória, entendida a partir de um viés individual ou coletivo. É essa
4	 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações
contratuais. 4ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.268.
5	 Ibid., p.269.
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Rosana Ribeiro Felisberto e Ariane Shermam Morais Vieira
noção de vulnerabilidade, em suma, que justifica a incidência das normas
protetivas do Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
Ainda de acordo com os ensinamentos de Cláudia Lima Marques
cabe estabelecer a existência de três tipos principais de vulnerabilidade: a
técnica, a jurídica e a fática.6
Fala-se, portanto, em vulnerabilidade técnica quando o con-
sumidor não possui conhecimentos técnicos específicos sobre o produto
ou serviço que adquire no mercado e, deste modo, encontra-se em situa-
ção propícia ao engano acerca das características e utilidade deste bem. A
vulnerabilidade técnica do consumidor não profissional é presumida pelo
sistema normativo do Código do Consumidor; por outro lado, a vulnera-
bilidade técnica do profissional, quando este retira bem do mercado para
consumo como destinatário final, deve ser aferida no caso concreto. Deve
ser salientado, todavia, que o artigo 2º do diploma legal consumerista não
faz qualquer menção à ideia de conhecimento técnico específico da pessoa
natural ou jurídica que retira produto ou serviço do mercado enquanto
destinatária final. Assim sendo, não cabe, pelo menos a principio, restringir
o âmbito de aplicação das normas consumeristas quando se estiver diante
de pessoa jurídica ou natural que possa ser categorizada como profissio-
nal, mormente quando ela retira produtos ou serviços do mercado de con-
sumo como destinatária final.
Com efeito, em tese se poderia questionar a existência de vulne-
rabilidade do Estado quando este frui o bem ou serviço como destinatário
final, tendo a seu dispor uma equipe técnica capaz de avaliar o serviço
ou produto. Entretanto, como a legislação não restringe expressamente a
vulnerabilidade nesta situação, tal fato, por si só, não seria suficiente para
excluir o Estado do rol de consumidores.
O mesmo vale para a denominada vulnerabilidade jurídica ou
científica, que se relaciona à falta de acesso a conhecimentos jurídicos,
econômicos e contábeis específicos, necessários à celebração e execução
equilibrada dos contratos de consumo. Também neste caso se presume a
vulnerabilidade do consumidor, pessoa natural ou jurídica, ainda que seja
mais difícil visualizar essa espécie de posição fragilizada da pessoa jurídica
profissional que retira produtos ou serviços do mercado como destinatária
final. Nesta hipótese é de se presumir que a pessoa jurídica profissional há
6	 A autora inclui em versões mais recentes de sua obra a denominada vulnerabilidade informacional,
considerada de extrema importância, por revelar o défict de informações que coloca o consumidor em posição
desvantajosa em face do fornecedor de produtos e/ou serviços.
208 Revista do CAAP | Belo Horizonte
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O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR
de estar amparada em instrumental jurídico e técnico capaz de permitir a
melhor realização de seus fins econômicos.
Lembre-se, contudo, como já foi dito anteriormente, a lei consu-
merista não faz qualquer distinção entre pessoa natural e pessoa jurídica
para incidência de seus comandos protetivos e, mais ainda, não há menção,
para fins de aplicação do conceito de consumidor, à ideia de profissiona-
lidade. Assim sendo, vale a presunção de vulnerabilidade, em qualquer de
suas modalidades, do consumidor pessoa natural ou jurídica, profissional
ou não. Cabe dizer, entretanto, que essa presunção de vulnerabilidade do
consumidor pode ser afastada, a partir da análise cuidadosa das caracterís-
ticas de cada caso concreto, tendo em vista que não é absoluta.
Neste ponto, ao se tratar do Estado, cabe observar que o mesmo
também está submetido às regras e princípios que regem a Administração
pública, dentre eles o da legalidade. Neste sentido, regra geral o Estado
conta com assessoria jurídica e econômica própria, em muitos casos por
exigência legal, o que descaracterizaria este aspecto da vulnerabilidade.
Mais uma vez, contudo, a descaracterização da presunção de vulnerabili-
dade, por esse aspecto, não exclui, isoladamente, o Estado da classificação
de consumidor.
Por fim, há a vulnerabilidade fática ou socioeconômica, a
partir da qual se presume a posição de fragilidade do consumidor em face
do poderio econômico do fornecedor de produtos e/ou serviços, do mo-
nopólio que ele exerce em determinada esfera da economia ou da essen-
cialidade do produto ou serviço que ele oferece no mercado. Também
neste aspecto da vulnerabilidade, em muitos casos, se verifica a inexistên-
cia da presunção aplicável ao Estado.
Realizada a delimitação dos conceitos de cada um dos tipos de
vulnerabilidade e deixando de lado, em razão da brevidade deste artigo,
as discussões acerca de até em qual ponto eles influenciam no alargamen-
to ou na redução da concepção de consumidor, vale a discussão sobre
quando o Estado pode ser considerado vulnerável em suas relações de
consumo.
2.1. 	Do Cabimento da Classificação do Estado como
Vulnerável
Pontue-se que o Estado, aqui, é visto na figura das entidades e
órgãos da Administração Pública Direta e Indireta - excluídas as empresas
209Revista do CAAP | Belo Horizonte
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Rosana Ribeiro Felisberto e Ariane Shermam Morais Vieira
estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista) exploradoras
de atividades econômicas, que atuam sob um regime predominantemente
de direito privado. De fato, o que se enfoca neste trabalho é o Estado
como contratante/consumidor fora dos casos legais em que ele deve se-
guir necessariamente os procedimentos legais de licitação e contratação,
com destaque para as previsões da Lei n. 8.666/1993 (Licitações e Con-
tratos) e Lei n. 10.520/ 2002 (Pregão). Isto porque, nestes procedimentos,
o Estado conta com uma série de regras e princípios estabelecidos, por
exemplo, no caput do artigo 3o da Lei n. 8.666/1993, que lhe garantem
uma “posição de vantagem” em relação ao contratante particular, em pres-
tígio do princípio administrativo da supremacia do interesse público sobre
o interesse privado. Neste trabalho, interessam, portanto, as hipóteses le-
gais que contêm permissivo para que o Estado adquira bens ou serviços
no mercado de consumo sem se submeter ao procedimento licitatório.
Trata-se da hipótese, por exemplo, em que o Estado realiza compras ou
contrata serviços com dispensa – necessariamente motivada - do procedi-
mento licitatório, conforme disposição do inciso II do artigo 24 da Lei de
Licitações (lei n. 8.666/1993)
O que se observa, deste modo, é que o Estado pode se inserir
regularmente nas relações de consumo, se colocando como destinatário
final do serviço ou produto disponibilizado no mercado pela cadeia de
fornecedores. Uma vez colocado nesta situação, caberia verificar a existên-
cia ou não dos aspectos da vulnerabilidade em relação ao Estado.
Destarte, cabe ainda analisar se existe a aplicação de algum prin-
cípio, norma especial ou garantia de outro ramo do Direito, a que o Es-
tado faça jus pelo ordenamento jurídico, por se tratar de Poder Público.
Somente depois de verificados todos estes pontos é possível responder se
o Estado pode ou não ser considerado consumidor.
De fato, quando destituído de seu poder de império, que lhe
confere posição de destacada ascendência nas relações travadas com os
particulares, o Estado pode adquirir produtos ou serviços no mercado na
condição de consumidor. Nestes casos é que incidirão sobre ele (o Estado)
as normas protetivas garantidoras do equilíbrio da relação consumidor/
fornecedor, pois, sendo consumidor, há que ser reconhecida ao Estado a
condição de vulnerabilidade, presumida para os consumidores em geral.
Lembrando-se que a presunção pode ser descaracterizada, mas
somente se forem descaracterizada em seus três aspectos.
210 Revista do CAAP | Belo Horizonte
n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012
O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR
Nesse sentido, cabe indagar em quais tipos de vulnerabilidade
o Estado, enquanto destinatário final de produtos e serviços postos no
mercado de consumo, regra geral, pode se enquadrar.
Em principio não há que se excluir do âmbito da proteção do
consumidor, ainda que seja este o Estado, qualquer tipo de característica
intrínseca de vulnerabilidade. Mas cabe perquirir se nas situações concre-
tas essa presunção de vulnerabilidade persiste, mormente quando se sabe
que o consumidor em questão é dotado de estrutura fática e jurídica hábil
a colocá-lo em posição de destacada vantagem em face dos particulares
com os quais ele celebra contratos.
Não se pode excluir de plano, contudo, a possibilidade de que o
Estado possa sim estar em condição de vulnerabilidade técnica em face de
determinado fornecedor de produtos ou serviços.
Não só é possível, como até mesmo provável, que o Estado, em
determinada situação concreta, se encontre em posição mais frágil em re-
lação a determinado fornecedor de produtos ou serviços no mercado de
consumo, especialmente quando falte a ele conhecimentos mais específi-
cos sobre as características e utilidade das mercadorias (produtos ou ser-
viços) adquiridas.
Por disposições jurídicas de ramos do Direito diferentes do con-
sumerista, certo é que o Estado deve estar provido de pessoal técnico apto
a avaliar as condições de produtos ou serviços adquiridos no mercado
de consumo. Entretanto, com fulcro no princípio da razoabilidade, não é
possível exigir conhecimento técnico detalhado e imune a erros do ente
estatal que adquire produtos ou serviços no mercado de consumo, espe-
cialmente quando estes produtos ou serviços constituírem novidades do
mercado e sobre eles ainda não houver se consolidado certo conhecimen-
to quanto ao alcance de suas características e utilidade.
Nesta mesma linha de pensamento, é possível prever, ainda que
com mais dificuldade, a vulnerabilidade do Estado quanto a conhecimen-
tos jurídicos, econômicos e contábeis específicos, necessários à celebração
e execução equilibrada de contratos de consumo.
Por fim, é possível vislumbrar a condição de vulnerabilidade fá-
tica ou socioeconômica do Estado, no momento em que ele trava suas
relações de consumo. Com efeito, não se olvida que determinado ente
estatal - um pequeno município, por exemplo - se veja em posição de
vulnerabilidade frente a certo fornecedor de produtos ou serviços que
detenha significativo poderio econômico ou que exerça monopólio em de-
211Revista do CAAP | Belo Horizonte
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Rosana Ribeiro Felisberto e Ariane Shermam Morais Vieira
terminada área da economia, comprometendo sua autonomia de escolha e
a diversidade dos produtos e/ou serviços ofertados no mercado.
Diante de tudo o exposto, pode-se afirmar que, uma vez colo-
cado na relação com fornecedores como destinatário final de um serviço
ou produto, o Estado é considerado, e assim deve ser considerado, con-
sumidor, com todas as proteções legislativas pertinentes. Tal posição de
consumidor, tendo em vista que é decorrente de uma presunção legislativa
de vulnerabilidade, somente pode ser descaracterizada se for também des-
caracterizada no caso concreto a vulnerabilidade, integralmente em seus
três aspectos – técnico, jurídico e econômico.
3.	 Conclusão
Como se viu nos parágrafos anteriores, a partir do momento em
que é reconhecida ao Estado a condição de consumidor deve-se também,
como corolário deste reconhecimento, aceitar a posição de vulnerabilida-
de em que ele se coloca ao travar relações no mercado com os fornecedo-
res de produtos e/ou serviços.
Esse reconhecimento da possibilidade de o Estado ser classi-
ficado como vulnerável nas relações de consumo abre espaço para que
outros questionamentos sejam feitos, como, por exemplo: Em que medida
o reconhecimento dessa vulnerabilidade do Estado no âmbito do direito
consumerista se estende ao campo do direito processual? Isto porque se
sabe que o ordenamento jurídico dispõe de mecanismos como a inversão
do ônus da prova e modificação de foro de competência, em hipóteses
previamente delimitadas, como instrumentos de garantia da efetividade da
proteção ao consumidor, conforme as particularidades de cada caso con-
creto. Além disso, seriam estas medidas inteiramente aplicáveis ao Estado
consumidor? Trata-se de questões relevantes, que merecem investigação
mais profunda, ainda que não constituam objeto de análise específica nes-
te trabalho.
Por fim, é pertinente relembrar que a presunção de vulnerabili-
dade do consumidor de produtos e serviços não é absoluta. Essa posição
de fragilidade do consumidor, seja ele o Estado ou um particular, perante
o fornecedor, nas relações entabuladas no mercado de consumo, somente
poderá ser afastada através de uma análise mais acurada do caso concreto,
sempre em consonância com o sistema normativo formado pelas normas
consumeristas.
212 Revista do CAAP | Belo Horizonte
n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012
O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR
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Brasília: Diário Oficial da União. Disponível em <http://www.planalto.gov.
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BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consu-
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CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21ª ed.
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CORRÊA, Luís Fernando Nigro. CORRÊA, Osíris Leite. Código de Defesa do
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GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de defesa do consumidor: comenta-
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MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo
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NORAT, Markus Samuel Leite. Evolução Histórica do Direito do Consumidor. Re-
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O Estado como consumidor e a questão da vulnerabilidade

  • 1. 201Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 O Estado na Condição de Consumidor The State as a Consumer Rosana Ribeiro Felisberto Ariane Shermam Morais Vieira RESUMO: Nos últimos anos o direito brasileiro promo- veu um avanço considerável na proteção e defesa do con- sumidor, organizando sistemas de defesa e promulgando legislação para regulamentar o assunto. A abrangência da proteção conferida pelo ordenamento jurídico, contudo, faz surgir questionamentos acerca de alguns pontos específicos como, por exemplo, a classificação do Estado como consu- midor diante da norma insculpida no caput do artigo 2º do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. O questiona- mento surge a partir da fundamentação da defesa do consu- midor na vulnerabilidade em confronto com os princípios da Administração Pública e demais prerrogativas do Estado. PALAVRA-CHAVE: Estado – consumidor – vulnerabili- dade ABSTRACT: In recent years the Brazilian law has pro- moted a considerable advance in the consumer protection, organizing defense systems and enacting legislation to re- gulate the issue. The scope of protection afforded by the legal system, however, raised doubts about some specific points, for example, the classification of the State as a con- sumer before the sculptured standard in the caput of Article 2 of the Código de Defesa do Consumidor. The question arises from the grounds of consumer vulnerability in confronta- tion with the principles of Public Administration and other State prerogatives. KEYWORDS: State – consumer – vulnerability] SUMÁRIO: Introdução. 1.Definição de Consumidor: Es- tado como consumidor. 2 Vulnerabilidade. 2.1 Do cabimen- to da classificação do Estado como vulnerável. 3 Conclu- são. 4 Referências
  • 2. 202 Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR Introdução A Constituição da República de 1988, de maneira expressa já no artigo 5º, XXXII, traz para o Estado a obrigação de promover a defesa do consumidor, confirmando essa perspectiva ao elencar como princípio a ser observado pela ordem econômica a defesa do consumidor, no inciso V do artigo 170. Seguindo a orientação constitucional, foi criado o Código de Defesa do Consumidor – Lei nº 8.078/90; CDC – traçando as diretrizes gerais de um sistema nacional e legislativo de proteção ao consumidor. Segundo os autores do anteprojeto do CDC, este código foi criado tendo como fundamento a perspectiva que o consumidor é parte vulnerável na relação jurídica em nossa sociedade, devendo então existir a intervenção estatal para reequilibrar a situação entre as partes: Se antes fornecedor e consumidor encontravam-se em uma situação de re- lativo equilíbrio de poder de barganha (até porque se conheciam), agora é o fornecedor (fabricante, produtor, construtor, importador ou comercian- te) que, inegavelmente, assume a posição de força na relação de consumo e que, por isso mesmo, “dita as regras”. E o Direito não pode ficar alheio a tal fenômeno.1 Diante deste contexto de criação da legislação consumerista e da atuação do Estado no sentido de proteger o consumidor, de modo a reequilibrar a relação jurídica, tem-se que tal proteção se justifica em ra- zão da vulnerabilidade do consumidor. Sendo a vulnerabilidade um ponto central ao se tratar do tema, surge o questionamento se o Estado poderia ou não ser considerado consumidor e, o sendo, se gozaria das garantias e prerrogativas previstas para este, uma vez que o Estado também possui prerrogativas oriundas do regramento do Direito Administrativo. É a tentativa de elucidar esses questionamentos propostos que orienta a exposição do presente artigo, como se segue. 1. Definição de Consumidor: Estado como Consumidor Para responder ao questionamento de se o Estado poderia ou não ser enquadrado como consumidor, é necessário, primeiro, definir o conceito de consumidor para o nosso ordenamento jurídico. 1 GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 8ªed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p.6.
  • 3. 203Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 Rosana Ribeiro Felisberto e Ariane Shermam Morais Vieira O artigo 2º do CDC traz a definição de consumidor como qual- quer pessoa, física ou jurídica que adquire ou utiliza um produto como destinatário final. Partindo de uma interpretação mais ligeira sobre o dis- positivo legal, pode-se incluir o Estado na categoria de consumidor quan- do, por exemplo, adquire móveis para uma secretaria. Neste caso, o Estado é o destinatário final, aquele que frui, consome os móveis adquiridos no mercado e o CDC autoriza expressamente que a pessoa jurídica seja en- quadrada como consumidora. Entretanto, se o fundamento da proteção ao consumidor é a vul- nerabilidade deste, alguns teóricos questionam a possibilidade de se tratar o Estado como consumidor, uma vez que este possui prerrogativas que o distinguem dos demais consumidores, colocando-o em pé de igualdade ou mesmo em posição privilegiada em sua relação com os fornecedores. O CDC é silente em relação ao Estado, não dispondo expres- samente sobre seu enquadramento ou não como consumidor. Diante da disposição geral de que a pessoa jurídica pode ser consumidora, o Estado seria consumidor, desde que cumpra dois outros requisitos: o produto ser retirado do mercado; vulnerabilidade. Retirar o produto do mercado implica romper a cadeia de for- necedores, de maneira que o último a compor essa cadeia não pode mais ser considerado fornecedor, pois o produto ou serviço não se destina a sua própria atividade comercial. Assim, se um órgão municipal de saúde adquire produtos de limpeza para conservar suas dependências, estaria realizando uma relação de consumo, pois o produto é destinado ao seu uso e fruição. De outra forma, contudo, se o mesmo órgão municipal de saúde adquire medicamentos a serem distribuídos para a população, não se caracterizaria, nesta relação, como consumidor, pois o produto tem outro destinatário final que não o próprio órgão. Na outra ponta da relação de consumo, dispõe o artigo 3º do CDC que a atividade do fornecedor é caracterizada pela “produção, mon- tagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, dis- tribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”. O consumidor se coloca em relação jurídica com o fornecedor, sendo desti- natário final do produto ou serviço. Assim, toda vez que o Estado adquire um produto e o utiliza em suas atividades de modo a fruí-lo e consumi-lo, coloca-se no último grau da cadeia o que, por definição, o retira da categoria de fornecedor.
  • 4. 204 Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR Já em relação ao outro requisito, a vulnerabilidade, não se pode dizer que o Estado é caracterizado por ser vulnerável. Regra geral o Es- tado não está em posição de desvantagem em relação ao fornecedor. Em grande parte dos casos, pode-se verificar que o Estado está mais bem municiado na relação jurídica que realiza com aquele que lhe fornece o produto ou serviço. Ainda que o Estado esteja representado na relação por um órgão de um pequeno município do interior diante de uma empresa multina- cional, esta situação por si só não caracteriza a vulnerabilidade do órgão, pois este é regido por princípios próprios, expressos e/ou reconhecidos, da Administração Pública, que lhe garantem algumas prerrogativas em re- lação ao setor privado. São exemplos disso o princípio da legalidade e o princípio da continuidade de serviços públicos. Diante disto, chega-se ao ponto chave da discussão aqui travada: questiona-se se faltando ao Estado o requisito da vulnerabilidade diante do fornecedor e se este requisito é tido como fundamento da proteção ao consumidor, poderia o Estado ser enquadrado na legislação consumerista de modo a exercer os direitos nela previstos. 2. Vulnerabilidade Feitas as considerações acima cabe agora tecer comentários a res- peito da vulnerabilidade nos contratos de consumo. Fala-se em contratos, neste caso específico, pois o direito do consumo trabalha com conceitos essencialmente relacionais; só se fala em consumidor onde está presente o fornecedor de produtos e/ou serviços, e vice-versa. A relação jurídica básica entabulada entre esses dois entes se dá por meio dos contratos. Efetivamente, como já foi dito, nas relações de consumo, tra- balha-se com uma noção de desequilíbrio entre contratantes, e, por esta razão, o ordenamento jurídico dispõe normas protetivas do consumidor, parte mais vulnerável nas relações retro mencionadas. De fato, a vulnerabilidade serviu não apenas como um dos ele- mentos que fundamentaram o surgimento de um sistema de defesa e pro- teção do consumidor. Para alguns autores, a vulnerabilidade do consu- midor em relação ao fornecedor é um dado de realidade que justifica a adoção de uma série de normas protetivas pelo ordenamento jurídico. A vulnerabilidade seria, então, uma realidade pré-jurídica, ou seja, não se trataria de um conceito do direito, mas um conceito reconhecido por ele.
  • 5. 205Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 Rosana Ribeiro Felisberto e Ariane Shermam Morais Vieira Assim, hoje se tem o entendimento de que o individuo é vulnerável pelo simples fato de ser consumidor. 2 Como se percebe, por fazer parte da construção do conceito de consumidor, a vulnerabilidade não apenas é um fundamento que justifica a proteção, como também se configura presunção favorável ao consumidor quando verificada a relação consumerista. A presunção de vulnerabilida- de, contudo, não pode ser tomada de maneira taxativa ou absoluta. Nesse sentido: Entendemos que a verificação da ocorrência da vulnerabilidade é a regra estabelecida na lei, ficando a verificação das eventuais exceções a cargo da prudente apreciação do magistrado, interpretando tais normas cum grano salis, tendo aqui cabimento a preocupação externada no inciso III, do ar- tigo 4º, do CDC (...). 3 Com efeito, as normas esposadas no Código de Proteção e Defesa do Consumidor visam mitigar ou corrigir situações de flagrante desequilíbrio advindas das relações travadas entre consumidores e fornecedores. Importante observar ainda que, no âmbito das relações de con- sumo, utiliza-se em larga escala a técnica de contratação consubstanciada nos denominados “contratos de adesão”. Essa técnica caracteriza-se pela substancial redução da esfera de negociabilidade dos ditos contratos, le- gando ao consumidor, na esmagadora maioria das vezes, apenas a opção de “pegar ou largar”, isto é, ou o contratante-consumidor aceita o contra- to com o conteúdo previamente disposto pelo fornecedor de produtos e/ ou serviços ou deixa de contratar, indo procurar outro fornecedor que se adéqüe melhor a suas demandas. A partir desta dinâmica de contratação, vê-se que, conforme já foi dito em linhas anteriores, o consumidor assume posição flagrantemen- te mais vulnerável na relação que trava com o fornecedor de produtos e/ ou serviços e, deste modo, por ser o pólo mais fraco da relação contratual faz jus à incidência das normas protetivas contidas no diploma legal con- sumerista. Destarte, de acordo com a lição de Cláudia Lima Marques, em sua obra Contratos no Código de Defesa do Consumidor, “este desequilíbrio de forças entre os contratantes é a justificação pra a um tratamento desequili- 2 COSTA, Ângelo Brandelli. HENNINGEN, Inês. Processos de subjetivação nas políticas de defesa do consumidor: Vulnerabilidade e cidadania em questão. Psico. V. 41, n. 3, pp.406-413. p.408. 3 CORRÊA, Luís Fernando Nigro. CORRÊA, Osíris Leite. Código de Defesa do Consumidor: aspectos relevantes. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 228p. p.27.
  • 6. 206 Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR brado e desigual dos contratantes, protegendo o direito àquele na posição mais fraca, o vulnerável, o que é desigual fática e juridicamente”. 4 O diploma consumerista tem como escopo, portanto, a busca pelo equilíbrio contratual. Deste modo, não há, pelo menos a principio, como aplicar as normas protetivas do Código de Defesa do Consumi- dor às relações contratuais travadas entre dois profissionais. Isso porque entre esses dois entes não é possível visualizar, pelo menos de antemão, qualquer vulnerabilidade que justifique a incidência das normas protetivas do diploma legal consumerista. Não há, entre eles, vulnerabilidade auto- rizadora da aplicação de tutela especial, que afaste a efetivação de normas do direito civil e do direito comercial. O conceito de profissional, neste ramo especializado do direito privado, remete àquela pessoa que possui conhecimento técnico específico e que entabula relações no mercado de forma habitual, como reflexo de sua atividade. No entanto, é possível en- trever exceções à regra geral que presume a ausência de vulnerabilidade nos contratos celebrados entre profissionais – imagine-se, por exemplo, um advogado que se vê impelido a celebrar contrato abusivo com o único fornecedor legal de computadores na região em que ele atua, confiando que nada lhe ocorrerá de errado. Ainda quanto à concepção de vulnerabilidade cabe reproduzir aqui outra valiosa lição de Claudia Lima Marques, que, remetendo a estu- dos de autores europeus sobre este termo específico, diz o seguinte: [...] procuram distingui-la de sua fonte ou base filosófica, a igualdade ou desigualdade entre sujeitos. Isso porque, a igualdade é uma visão macro, do homem e da sociedade, noção mais objetiva e consolidada, onde a desigualdade se aprecia sempre pela comparação de situações e pessoas, como fizemos acima: aos iguais, trata-se igualmente, aos desiguais, trata- -se desigualmente para alcançar à Justiça. Já a vulnerabilidade é filha deste princípio, mas noção flexível e não consolidada, que apresenta traços de subjetividade, que a caracterizam: a vulnerabilidade não necessita sempre de uma comparação entre situações e sujeitos.5 Vulnerabilidade é, então, nesta linha de pensamento, condição da pessoa, que a coloca em estado inerente de risco nas relações entabuladas no mercado de consumo. Essa vulnerabilidade pode ser permanente ou provisória, entendida a partir de um viés individual ou coletivo. É essa 4 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. 4ª Edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.268. 5 Ibid., p.269.
  • 7. 207Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 Rosana Ribeiro Felisberto e Ariane Shermam Morais Vieira noção de vulnerabilidade, em suma, que justifica a incidência das normas protetivas do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Ainda de acordo com os ensinamentos de Cláudia Lima Marques cabe estabelecer a existência de três tipos principais de vulnerabilidade: a técnica, a jurídica e a fática.6 Fala-se, portanto, em vulnerabilidade técnica quando o con- sumidor não possui conhecimentos técnicos específicos sobre o produto ou serviço que adquire no mercado e, deste modo, encontra-se em situa- ção propícia ao engano acerca das características e utilidade deste bem. A vulnerabilidade técnica do consumidor não profissional é presumida pelo sistema normativo do Código do Consumidor; por outro lado, a vulnera- bilidade técnica do profissional, quando este retira bem do mercado para consumo como destinatário final, deve ser aferida no caso concreto. Deve ser salientado, todavia, que o artigo 2º do diploma legal consumerista não faz qualquer menção à ideia de conhecimento técnico específico da pessoa natural ou jurídica que retira produto ou serviço do mercado enquanto destinatária final. Assim sendo, não cabe, pelo menos a principio, restringir o âmbito de aplicação das normas consumeristas quando se estiver diante de pessoa jurídica ou natural que possa ser categorizada como profissio- nal, mormente quando ela retira produtos ou serviços do mercado de con- sumo como destinatária final. Com efeito, em tese se poderia questionar a existência de vulne- rabilidade do Estado quando este frui o bem ou serviço como destinatário final, tendo a seu dispor uma equipe técnica capaz de avaliar o serviço ou produto. Entretanto, como a legislação não restringe expressamente a vulnerabilidade nesta situação, tal fato, por si só, não seria suficiente para excluir o Estado do rol de consumidores. O mesmo vale para a denominada vulnerabilidade jurídica ou científica, que se relaciona à falta de acesso a conhecimentos jurídicos, econômicos e contábeis específicos, necessários à celebração e execução equilibrada dos contratos de consumo. Também neste caso se presume a vulnerabilidade do consumidor, pessoa natural ou jurídica, ainda que seja mais difícil visualizar essa espécie de posição fragilizada da pessoa jurídica profissional que retira produtos ou serviços do mercado como destinatária final. Nesta hipótese é de se presumir que a pessoa jurídica profissional há 6 A autora inclui em versões mais recentes de sua obra a denominada vulnerabilidade informacional, considerada de extrema importância, por revelar o défict de informações que coloca o consumidor em posição desvantajosa em face do fornecedor de produtos e/ou serviços.
  • 8. 208 Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR de estar amparada em instrumental jurídico e técnico capaz de permitir a melhor realização de seus fins econômicos. Lembre-se, contudo, como já foi dito anteriormente, a lei consu- merista não faz qualquer distinção entre pessoa natural e pessoa jurídica para incidência de seus comandos protetivos e, mais ainda, não há menção, para fins de aplicação do conceito de consumidor, à ideia de profissiona- lidade. Assim sendo, vale a presunção de vulnerabilidade, em qualquer de suas modalidades, do consumidor pessoa natural ou jurídica, profissional ou não. Cabe dizer, entretanto, que essa presunção de vulnerabilidade do consumidor pode ser afastada, a partir da análise cuidadosa das caracterís- ticas de cada caso concreto, tendo em vista que não é absoluta. Neste ponto, ao se tratar do Estado, cabe observar que o mesmo também está submetido às regras e princípios que regem a Administração pública, dentre eles o da legalidade. Neste sentido, regra geral o Estado conta com assessoria jurídica e econômica própria, em muitos casos por exigência legal, o que descaracterizaria este aspecto da vulnerabilidade. Mais uma vez, contudo, a descaracterização da presunção de vulnerabili- dade, por esse aspecto, não exclui, isoladamente, o Estado da classificação de consumidor. Por fim, há a vulnerabilidade fática ou socioeconômica, a partir da qual se presume a posição de fragilidade do consumidor em face do poderio econômico do fornecedor de produtos e/ou serviços, do mo- nopólio que ele exerce em determinada esfera da economia ou da essen- cialidade do produto ou serviço que ele oferece no mercado. Também neste aspecto da vulnerabilidade, em muitos casos, se verifica a inexistên- cia da presunção aplicável ao Estado. Realizada a delimitação dos conceitos de cada um dos tipos de vulnerabilidade e deixando de lado, em razão da brevidade deste artigo, as discussões acerca de até em qual ponto eles influenciam no alargamen- to ou na redução da concepção de consumidor, vale a discussão sobre quando o Estado pode ser considerado vulnerável em suas relações de consumo. 2.1. Do Cabimento da Classificação do Estado como Vulnerável Pontue-se que o Estado, aqui, é visto na figura das entidades e órgãos da Administração Pública Direta e Indireta - excluídas as empresas
  • 9. 209Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 Rosana Ribeiro Felisberto e Ariane Shermam Morais Vieira estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista) exploradoras de atividades econômicas, que atuam sob um regime predominantemente de direito privado. De fato, o que se enfoca neste trabalho é o Estado como contratante/consumidor fora dos casos legais em que ele deve se- guir necessariamente os procedimentos legais de licitação e contratação, com destaque para as previsões da Lei n. 8.666/1993 (Licitações e Con- tratos) e Lei n. 10.520/ 2002 (Pregão). Isto porque, nestes procedimentos, o Estado conta com uma série de regras e princípios estabelecidos, por exemplo, no caput do artigo 3o da Lei n. 8.666/1993, que lhe garantem uma “posição de vantagem” em relação ao contratante particular, em pres- tígio do princípio administrativo da supremacia do interesse público sobre o interesse privado. Neste trabalho, interessam, portanto, as hipóteses le- gais que contêm permissivo para que o Estado adquira bens ou serviços no mercado de consumo sem se submeter ao procedimento licitatório. Trata-se da hipótese, por exemplo, em que o Estado realiza compras ou contrata serviços com dispensa – necessariamente motivada - do procedi- mento licitatório, conforme disposição do inciso II do artigo 24 da Lei de Licitações (lei n. 8.666/1993) O que se observa, deste modo, é que o Estado pode se inserir regularmente nas relações de consumo, se colocando como destinatário final do serviço ou produto disponibilizado no mercado pela cadeia de fornecedores. Uma vez colocado nesta situação, caberia verificar a existên- cia ou não dos aspectos da vulnerabilidade em relação ao Estado. Destarte, cabe ainda analisar se existe a aplicação de algum prin- cípio, norma especial ou garantia de outro ramo do Direito, a que o Es- tado faça jus pelo ordenamento jurídico, por se tratar de Poder Público. Somente depois de verificados todos estes pontos é possível responder se o Estado pode ou não ser considerado consumidor. De fato, quando destituído de seu poder de império, que lhe confere posição de destacada ascendência nas relações travadas com os particulares, o Estado pode adquirir produtos ou serviços no mercado na condição de consumidor. Nestes casos é que incidirão sobre ele (o Estado) as normas protetivas garantidoras do equilíbrio da relação consumidor/ fornecedor, pois, sendo consumidor, há que ser reconhecida ao Estado a condição de vulnerabilidade, presumida para os consumidores em geral. Lembrando-se que a presunção pode ser descaracterizada, mas somente se forem descaracterizada em seus três aspectos.
  • 10. 210 Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR Nesse sentido, cabe indagar em quais tipos de vulnerabilidade o Estado, enquanto destinatário final de produtos e serviços postos no mercado de consumo, regra geral, pode se enquadrar. Em principio não há que se excluir do âmbito da proteção do consumidor, ainda que seja este o Estado, qualquer tipo de característica intrínseca de vulnerabilidade. Mas cabe perquirir se nas situações concre- tas essa presunção de vulnerabilidade persiste, mormente quando se sabe que o consumidor em questão é dotado de estrutura fática e jurídica hábil a colocá-lo em posição de destacada vantagem em face dos particulares com os quais ele celebra contratos. Não se pode excluir de plano, contudo, a possibilidade de que o Estado possa sim estar em condição de vulnerabilidade técnica em face de determinado fornecedor de produtos ou serviços. Não só é possível, como até mesmo provável, que o Estado, em determinada situação concreta, se encontre em posição mais frágil em re- lação a determinado fornecedor de produtos ou serviços no mercado de consumo, especialmente quando falte a ele conhecimentos mais específi- cos sobre as características e utilidade das mercadorias (produtos ou ser- viços) adquiridas. Por disposições jurídicas de ramos do Direito diferentes do con- sumerista, certo é que o Estado deve estar provido de pessoal técnico apto a avaliar as condições de produtos ou serviços adquiridos no mercado de consumo. Entretanto, com fulcro no princípio da razoabilidade, não é possível exigir conhecimento técnico detalhado e imune a erros do ente estatal que adquire produtos ou serviços no mercado de consumo, espe- cialmente quando estes produtos ou serviços constituírem novidades do mercado e sobre eles ainda não houver se consolidado certo conhecimen- to quanto ao alcance de suas características e utilidade. Nesta mesma linha de pensamento, é possível prever, ainda que com mais dificuldade, a vulnerabilidade do Estado quanto a conhecimen- tos jurídicos, econômicos e contábeis específicos, necessários à celebração e execução equilibrada de contratos de consumo. Por fim, é possível vislumbrar a condição de vulnerabilidade fá- tica ou socioeconômica do Estado, no momento em que ele trava suas relações de consumo. Com efeito, não se olvida que determinado ente estatal - um pequeno município, por exemplo - se veja em posição de vulnerabilidade frente a certo fornecedor de produtos ou serviços que detenha significativo poderio econômico ou que exerça monopólio em de-
  • 11. 211Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 Rosana Ribeiro Felisberto e Ariane Shermam Morais Vieira terminada área da economia, comprometendo sua autonomia de escolha e a diversidade dos produtos e/ou serviços ofertados no mercado. Diante de tudo o exposto, pode-se afirmar que, uma vez colo- cado na relação com fornecedores como destinatário final de um serviço ou produto, o Estado é considerado, e assim deve ser considerado, con- sumidor, com todas as proteções legislativas pertinentes. Tal posição de consumidor, tendo em vista que é decorrente de uma presunção legislativa de vulnerabilidade, somente pode ser descaracterizada se for também des- caracterizada no caso concreto a vulnerabilidade, integralmente em seus três aspectos – técnico, jurídico e econômico. 3. Conclusão Como se viu nos parágrafos anteriores, a partir do momento em que é reconhecida ao Estado a condição de consumidor deve-se também, como corolário deste reconhecimento, aceitar a posição de vulnerabilida- de em que ele se coloca ao travar relações no mercado com os fornecedo- res de produtos e/ou serviços. Esse reconhecimento da possibilidade de o Estado ser classi- ficado como vulnerável nas relações de consumo abre espaço para que outros questionamentos sejam feitos, como, por exemplo: Em que medida o reconhecimento dessa vulnerabilidade do Estado no âmbito do direito consumerista se estende ao campo do direito processual? Isto porque se sabe que o ordenamento jurídico dispõe de mecanismos como a inversão do ônus da prova e modificação de foro de competência, em hipóteses previamente delimitadas, como instrumentos de garantia da efetividade da proteção ao consumidor, conforme as particularidades de cada caso con- creto. Além disso, seriam estas medidas inteiramente aplicáveis ao Estado consumidor? Trata-se de questões relevantes, que merecem investigação mais profunda, ainda que não constituam objeto de análise específica nes- te trabalho. Por fim, é pertinente relembrar que a presunção de vulnerabili- dade do consumidor de produtos e serviços não é absoluta. Essa posição de fragilidade do consumidor, seja ele o Estado ou um particular, perante o fornecedor, nas relações entabuladas no mercado de consumo, somente poderá ser afastada através de uma análise mais acurada do caso concreto, sempre em consonância com o sistema normativo formado pelas normas consumeristas.
  • 12. 212 Revista do CAAP | Belo Horizonte n. 1 | V. XVII | p. 201 a p. 212 | 2012 O ESTADO NA CONDIÇÃO DE CONSUMIDOR Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Brasília: Diário Oficial da União. Disponível em <http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 15jun2011. BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consu- midor e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 1990. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8078.htm>. Acesso em 15jun2011. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 21ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. 1177p. COSTA, Ângelo Brandelli. HENNINGEN, Inês. Processos de subjetivação nas políticas de defesa do consumidor: Vulnerabilidade e cidadania em questão. Psico. V. 41, n. 3, pp.406-413, jul./set.2010. Disponível em <http://revistaseletronicas.pu- crs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/viewFile/8168/5863> Acesso: 27 mar. 2012. CORRÊA, Luís Fernando Nigro. CORRÊA, Osíris Leite. Código de Defesa do Consumidor: aspectos relevantes. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. 228p. GRINOVER, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de defesa do consumidor: comenta- do pelos autores do anteprojeto. 8ªed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. 1162p. MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. NORAT, Markus Samuel Leite. Evolução Histórica do Direito do Consumidor. Re- vista Cognitio Juris. João Pessoa. Ano I, n. 3, agosto de 2011. Disponível em <http://www.cognitiojuris.com/artigos/02/12.html>. Acesso: 28 mar. 2012.