1. Se falar já é um problema
para quem é gago, cantar
deveria ser um desastre. Surpresa:
se você não sabia, o cantor Nélson
Gonçalves, com aquela dicção
perfeita, era gago.
homem não é o único animal que produz
sons para se comunicar, mas é o único que
o faz com tanto requinte e riqueza de sons,
e com somente um lado do cérebro. O que
lhe vale a honra de ser o único que, às ve-
zes, gagueja1
: parece que isso é o que acon-
tece quando o outro lado do cérebro resol-
ve se meter na conversa!
A fala foi a primeira função superior a ter
sua localização cerebral desvendada, 140
anos atrás. Para falar, é preciso ter intacta uma porção do cérebro
situada sob a têmpora - mas basta a do lado esquerdo do cérebro.
Se for lesada a porção correspondente do lado direito, a fala não é
afetada; falar é uma especialidade do hemisfério cerebral esquerdo.
Se outras funções, como os sentidos, se dividem entre os dois la-
dos do cérebro, por que outras, como a fala, seriam lateralizadas?
Uma explicação é que essas funções são importantes demais para
que os dois hemisférios tenham que se entender antes de gerar o
comando.
Uma descoberta feita em 1996 apoia essa explicação: quem ga-
gueja tem os dois lados do cérebro ativos ao mesmo tempo na ho-
ra de falar. É como se os dois lados disputassem quem vai de fato
produzir a fala - e acabassem se enrolando.
A observação foi feita pela equipe do neurocientista americano
Peter Fox, no Texas, usando o imageamento da atividade do cére-
bro por tomografia de emissão de pósitrons. A técnica consiste em
misturar um pequeno volume de água ou glicose radioativa ao
sangue de voluntários, e acompanhar o trajeto da radioatividade no
cérebro enquanto a pessoa faz alguma tarefa - como ler em voz al-
ta, no caso desse estudo. Como o fluxo sanguíneo e o metabolismo
aumentam nas áreas mais ativas do cérebro, a radioatividade se
concentra nessas áreas, tornando-as visíveis aos sensores do tomó-
grafo – até que a pequena quantidade de radioatividade desapare-
ça por completo, em alguns minutos.
Os pesquisadores esperavam resolver entre três teorias alternati-
vas para a origem da gagueira. Uma propõe que a gagueira aconte-
ce quando a dominância normal do hemisfério esquerdo não se
estabelece durante o desenvolvimento, e o lado direito também
tenta participar durante a fala. Uma segunda teoria é mais específi-
ca, e implica o sistema de geração da fala fluente, quer dizer, com
palavras encadeadas em frases. Já a terceira propõe que gaguejar é
devido a problemas auditivos, impedindo a monitoração normal da
fala. Para distinguir entre as três possibilidades, Peter Fox e seus co-
laboradores compararam a ativação no cérebro de dez voluntários
de fala normal à de outros dez que gaguejavam desde a infância.
Quando voluntários normais leram um parágrafo em voz alta du-
rante a tomografia, ficaram evidentes os circuitos envolvidos na fala
normal: zonas que controlam os movimentos da boca, a geração de
programas motores, quer dizer, de seqüências de movimentos, e a
monitoração auditiva da fala, todas predominantemente no lado
esquerdo do cérebro. Além, é claro, das zonas visuais, estas nos dois
lados do cérebro.
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Se gaguejar é o resultado de insubordinação cerebral, deve então ser um problema
que só aparece em animais que vocalizam com apenas um lado do cérebro. Os pássa-
ros oferecem um bom teste para essa idéia, já que alguns pássaros canoros usam pre-
dominantemente (mas não somente) um lado do cérebro para cantar, e outros usam
os dois. O canário é um exemplo de canto com um lado do cérebro. E de fato, parece
que canários com problemas de audição podem gaguejar, repetindo a mesma sílaba
da canção que antes cantavam sem problemas. Mas um piu-piu-piu gaguejado não
parece prova muito convincente de que usar um lado só do cérebro para falar pode
ser problemático quando o outro lado se insubordina. Precisa-se de um teste pra va-
ler, com outro animal que diga palavras de verdade com um só lado do cérebro. Um
papagaio, claro! Alguém aí conhece um papagaio gago?
Em comparação, quando voluntários gagos leram o mesmo pará-
grafo em voz alta, os sistemas motores ficaram muito mais ativos do
lado direito do que do lado esquerdo do cérebro, apoiando a teoria
da falta de lateralização da fala. Mas não foi só isso: o sistema auditi-
vo do lado esquerdo, que deveria estar monitorando a fala, quase
não mostrou ativação. Além disso, outra área do hemisfério esquer-
do, envolvida diretamente na fluência verbal, estava desativada
quando os voluntários gaguejavam. Gaguejar, portanto, não é uma
simples falha da fala, mas sim de um complexo de funções que con-
tribuem para a fala fluente.
Se falar já é um problema para quem é gago, cantar deveria ser um
desastre. Surpresa: se você não sabia, o cantor Nélson Gonçalves,
com aquela dicção perfeita, era gago. Na verdade, a gagueira parece
se limitar à fala normal. Cantar, ler deeevaaagaaar, ler rit-ma-da-men-
te, sussurrar, GRITAR, e ler em coro são remédios capazes de fazer
desaparecer até a pior das gagueiras. Claro que os pesquisadores
estudaram o que acontece no cérebro nessas condições: será que
tudo volta ao normal?
Lendo em coro sem gaguejar, o sistema motor hiperativado se acal-
mou, ainda que o lado direito continuasse mais ativo do que o es-
querdo; o sistema de monitoração auditiva foi ativado, embora do la-
do errado; e a desativação do sistema de fluência verbal foi revertida.
Quer dizer: resolve-se a gagueira, mas não a predominância de ati-
vidade no lado normalmente não-falante do cérebro. Isso sugere
que o problema da lateralização é anterior aos outros, já que não é
corrigido junto com a gagueira. É possível mesmo que essa insubor-
dinação de um lado do cérebro acabe acarretando as falhas de ati-
vação dos sistemas de monitoração e fluência - mas essa idéia ainda
precisa ser testada.
Como um erro de lateralização poderia provocar a gagueira? Nor-
malmente, o lado esquerdo do cérebro manda sozinho na fala. É fácil
imaginar que se o lado direito resolve se manifestar, a fala ficará atra-
sada, ou empacada, até que os dois lados cheguem a um acordo
sobre qual dos dois assume o controle. Com a ajuda da música, seja
pelo ritmo ou pela melodia, entram em cena mecanismos de super-
visão que aplacam a briga e permitem o acionamento normal dos
sistemas de fluência verbal. No papel, é um esqueminha bem boni-
tinho. Resta descobrir se na prática é assim que (não) funciona.
Dentre os voluntários do estudo havia casos mais amenos e mais
graves de gagueira. Mas os resultados foram semelhantes. O que
determina a gravidade da gagueira, então? E na gagueira ocasional,
aquela causada pelo nervosismo, será também o lado direito do cé-
rebro querendo se manifestar?
*(Fonte: Suzana Herculano-Houzel. O Cérebro Nosso de Cada Dia.
Rio de Janeiro, Vieira & Lent, 2001.) COMPRE O LIVRO
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