SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 399
Descargar para leer sin conexión
THOMAS HARRIS



HANNIBAL
Esta Obra foi digitalizada e revista por: V.C

Tradução de Maria Emília Moura

notícias
editorial
Capítulo   um
Iria pensar-se que um tal dia temeria começar..

O Mustang de Clarice Starling subiu velozmente a rampa de acesso do BATF na Massachussetts
Avenue, uma sede alugada ao reverendo Sun Myung Moon, no interesse da economia.

A brigada aguardava em três veículos, uma carrinha particular em mau estado na frente e duas
carrinhas pretas da SWAT           2 atrás, a postos e paradas na enorme garagem.


Starling tirou o saco de equipamento do carro e correu até junto do primeiro veículo, uma suja
carrinha branca com letreiros publicitários da Marcell’s Crab House dos dois lados.

Através das portas da retaguarda abertas da carrinha, quatro homens observavam a aproximação
de Starling. Parecia esbelta com o uniforme e movia-se rapidamente sob o peso do equipamento,
com o cabelo brilhando àquela luz fantasmagórica.

- Mulheres. Sempre atrasadas! - comentou um agente D                        C. O agente   especial da BATF
John Brigham tinha a operação a seu cargo.

- Não está atrasada. Só lhe mandei o beep quando recebemos a informação - retorquiu Brigham. -
Deve ter voado de Quantico... Ei, Starling, passe-me o saco.

- Olá, John - respondeu Starling erguendo a mão de polegar para cima numa rápida saudação.

Brigham dirigiu-se ao rude agente disfarçado que se encontrava ao volante da carrinha e o veículo
pôs-se em andamento antes das Iniciais de Burcau of Alcohol, Tobacco and Firearms - Bureau de álcool, Tabaco e
Armas de Fogo. (N. da T)

2 Iniciais de Special Weapons and Trachs - Armas e Táctica Especiais, uma equipa policial que
usa uniformes e armas de ataque militares, utilizada em acções que exigem coordenação e força
extraordinárias. (N. da T)
3D.C. - District of Columbia. (N. da T)
10      THOMAS HARRIS

portas de trás se fecharem, desaparecendo na agradável tarde de Outono.

Clarice Starling, uma veterana em carrinhas de vigilância, passou por baixo do ocular do periscópio e
ocupou um lugar na retaguarda o mais perto possível do bloco de gelo seco de 75 quilos que servia de ar
condicionado, sempre que tinham de montar guarda com o motor desligado.

A velha carrinha emanava o odor a medo e suor que nunca sai. já ostentara muitos e diferentes letreiros.
Aquelas sujas e apagadas letras nas portas tinham trinta minutos de uso. Os buracos de balas tapados com
Bond-0 eram mais velhos.

As janelas de trás tinham um espelho de sentido único devidamente opaco. Starling conseguia observar as
grandes carrinhas pretas da SWAT atrás deles. Esperava que não fossem passar horas pregados nas
carrinhas.

Os agentes olhavam-na, sempre que virava o rosto na direcção da janela.

A agente especial do FBI Clarice Starling, de 32 anos, aparentava a idade que tinha e fazia com que a
aparência fosse agradável, mesmo de uniforme.

Brigham retirou a prancheta do banco de passageiros da frente.
- Como é que se arranja para lhe irem sempre parar às mãos estas tretas, Starling? - inquiriu, sorrindo.

- Porque insiste em chamar-me - respondeu.

- Preciso de si para isto. No entanto, vejo-a a passar autorizações para brigadas de assalto. Não pergunto,
mas acho que há alguém em Buzzard’s Point que a odeia. Devia vir trabalhar comigo. Estes são os meus
rapazes, os agentes Marquez Burke e John Hare e este é o agente Bolton do Departamento da Polícia de
D.C.

Uma brigada de ataque composta por elementos do BATE do DEA1 da SWAT e do FBI constituía o
produto final de restrições de orçamento numa altura em que a própria Academia do FBI estava encerrada
por falta de fundos.

Burke e Hare pareciam agentes. O polícia Bolton, do D.C., tinha ar de xerife. Era um homem na casa dos
45 anos, pesado e viscoso.

O prefeito de Washington, desejoso de parecer rígido quanto às drogas depois dele próprio ter sofrido uma
condenação, insistia em que a polícia de D.C. colhesse louvores por todas as rusgas importantes na cidade
de Washington. Daí, a presença de Bolton.

- O bando drumgo está a tramá-las hoje - informou Brigham.
- Evelda Drumgo. Eu sabia - replicou Starling sem entusiasmo.

Drug Enforcement Administration. (N. da T.)
HANNIBAL       - Abriu uma fábrica de gelo ao lado do Feliciana Fish Market,

junto ao rio. O nosso homem diz que ela está a preparar um fornecimento de cristal, hoje. E tem reservas
para o Grand Cayman esta noite. Não podemos esperar.

A metafetamina em cristal, conhecida por «gelo» nas ruas, provoca um breve e poderoso speed e uma
perigosa dependência.

- A droga é da alçada do DEA, mas estamos de olho em Evelda por transporte interestadual de armas
Classe 111. O mandado especifica algumas submetralhadoras Beretta e algumas Mac 10 e ela sabe onde
há mais. Quero que se concentre em Evelda, Starling. Já lidou com ela antes. Estes tipos dão-lhe cobertura.

- Ficamos com o trabalho fácil - comentou o agente Bolton com uma certa satisfação.

- Acho melhor falar-lhes de Evelda, Starling - sugeriu Brigham. Starling esperou, enquanto a carrinha
passava por cima de uns trilhos de caminho de ferro e depois pronunciou-se: - Evelda vai dar luta. Não dá
essa sensação, era modelo, mas dará luta. É a viuva de Dijon Drumgo. Prendi-a por duas vezes com
mandados, a primeira juntamente com Dijon.

- Desta última vez trazia na bolsa uma 9 ram com três cartuchos e um Mace e uma navalha de ponta e mola
no soutien. Não sei o que trará agora.

- Na segunda detenção, pedi-lhe delicadamente que se entregasse e fê-lo. Depois, na prisão, matou uma
companheira de cela chamada Marsha Valentine com o cabo de uma colher. Portanto, nunca se sabe... é
difícil ler-lhe no rosto. O júri considerou que tinha sido em legítima defesa.

- Ela venceu a primeira alegação e recorreu da outra. Algumas acusações relativas às armas foram retiradas
porque tinha filhos ainda pequenos e o marido acabara de ser morto na Pleasant Avenue, talvez pelos
Spliffs.

- Vou pedir-lhe que se entregue. Espero que o faça. Vamos dar-lhe uma oportunidade. Mas ouçam-me
bem... se tivermos de dominar Evelda Drumgo, quero ajuda a sério. Para lá da cobertura, quero peso em
cima dela. Não pensem, meus senhores, que vão ver-me a lutar com Evelda na lama.

já tinha havido uma altura em que Starling condescenderia diante destes homens. Não estavam a gostar
deste seu discurso, mas vira demasiado na vida para lhe importar.

- Evelda Drumgo está ligada aos Trey-Eight Crips através de Dijon - replicou Brigham. - Conta com a
protecção deste gang, segundo garante o nosso homem e eles são distribuidores na costa. É

Spray autoprotector (N. da T)
12     THOMAS HARRIS

sobretudo uma protecção contra os Spliffs. Ignoro o que farão os Críps quando virem que somos nós.
Sempre que podem evitar, não se metem com o FBI.

- Há algo que devem saber - prosseguiu Starling. - Evelda é seropositiva. Dijon transmitiu-lhe o vírus
através de uma seringa. Ela descobriu quando foi detida e passou-se. Nesse dia, matou Marsha Valentine e
lutou contra os guardas da prisão. Se não estiver armada e lutar, podem contar ser atingidos com todos os
fluidos de que dispuser. Cuspirá e morderá, vai urinar e defecar-vos em cima se tentarem derrubá-la,
portanto as luvas e máscaras são indispensáveis. Se a meterem num carro-patrulha, quando lhe empurrarem
a cabeça, não esqueçam a hipótese de uma agulha no meio do cabelo e amarrem-lhe os pés.

Os rostos de Burke e Hare ensombraram-se e o agente Bolton parecia descontente. Apontou com o queixo
pregueado na direcção do revólver de Starling, um Colt.45 que usava num coldre por cima da anca direita. -
Anda sempre com essa coisa engatilhada? - quis saber.

- Engatilhada e travada em cada minuto do meu dia - elucidou Starling.

- Perigoso! - comentou Bolton.

- Apareça num campo de tiro e explico-lhe, agente.

- Bolton, fui eu que treinei Starling quando ela ganhou o campeonato de tiro entre Serviços há três anos -
replicou Brigham, interrompendo a discussão. - Não se preocupe com a arma dela. Como é que passaram a
chamar-lhe esses tipos do Hostage Rescue Team, os Velcro Cowboys, depois de lhes ter dado uma lição,
Starling? Anme Oakley?

- Venenosa Oakley - respondeu, olhando pela janela. Starling sentia-se observada e sozinha nesta carrinha
de vigilância malcheirosa a abarrotar de homens. Chaps, Brut, Old Spice, suor e cabedal. O medo invadiu-a
com o sabor de uma moeda debaixo da língua. Uma imagem mental: o pai, que cheirava a tabaco e a
sabonete, descascando uma laranja com o canivete, a ponta da lâmína em ãngulo recto, partilhando a
laranja com ela na cozinha. As luzes traseiras da camioneta do pai a desaparecerem quando saiu naquela
patrulha de xerifes que o matou. A roupa dele no armário. A camisa dele. Algumas roupas bonitas no
roupeiro dela e que nunca usava. Triste vestuárío festívo em cabides, semelhantes a brinquedos num sótão.

- Mais uns dez minutos - anunciou o condutor.

Brigham olhou através do pára-brisas e consultou o relógio. é este o esquema - disse, enquanto exibia um
diagrama desenhado
Brigada de Salvamento de Reféns (N. da T)
HANNIBAL               13

rapidamente com uma ponta de feltro e um plano esborratado que lhe fora enviado por fax pelo
Departamento da Construção. - O edifício do mercado de peixe situa-se numa fila de armazéns ao longo da
margem do rio. A Parcell Street acaba na Riverside Avenue, desembocando nesta praceta em frente do
mercado de peixe.

- Vejam bem. O edifício do mercado de peixe está de costas para a água. Há uma doca que se estende ao
longo das traseiras, aqui. junto ao mercado de peixe, no rés-do-chão fica o laboratório de Evelda. A entrada
é pela frente, mesmo ao lado do toldo do mercado de peixe.

- Evelda terá os vigias cá fora enquanto estiver a preparar a droga, pelo menos numa área de três
quarteirões - prosseguiu. -
- já antes lhe deram a dica com tempo bastante para que se desfizesse do produto. Portanto, um grupo de
incursão normal da DEA que está na terceira carrinha vai entrar de um barco de pesca, pelo lado da doca,
às quinze horas. Podemos aproximar-nos mais do que alguém desta carrinha da porta que dá para a rua, uns
minutos antes da rusga. Se Evelda sair pela frente, apanhamo-la. Se ficar lá dentro, atacamos por esta porta,
depois deles atacarem pelo outro lado. A segunda carrinha é o nosso reforço, com sete tipos que entram às
quinze horas, excepto se formos nós primeiro.

- E como vai ser com a porta? - inquiriu Starling.

- Se tudo parecer calmo, forçamos - respondeu Burke. - Se houver clarões ou disparos, passamos ao Avon
calling - acrescentou, com uma pequena palmada na sua espingarda.

Starling já assistira a este tipo de actuação: Avon calling é uma Magnum de sete e meio carregada com
pólvora fina destinada a fazer explodir a fechadura, sem atingir as pessoas que se encontram no interior.

- Os miúdos de Evelda? Onde estão? - interessou-se Starling.
- O nosso informador viu-a deixá-los na creche - replicou Brigham. - O nosso informador está próximo da
situação da família, tão próximo quanto é possível estar através de sexo em segurança.

O rádio de Brigham deu sinal no auscultador e ele perscrutou a parte do céu que conseguia avistar pela
janela da retaguarda. Talvez esteja só a controlar o trânsito - falou para o microfone de pescoço, após o que
se dirigiu ao condutor. - Strike Two detectou um helicóptero há um minuto. Viste alguma coisa?

Não. É bom que esteja a controlar o trânsito. Agora, vamos lá equipar-nos.

Setenta e cinco quilos de gelo não chegam para manter quatro homens frescos na retaguarda de uma
carrinha de metal num dia quente, sobretudo se se encontrarem metidos numa armadura. Quando
Bolton ergueu os braços, demonstrou que uma aplicação de Canoe não produz o mesmo efeito de um
duche.

Clarice Starling tinha cosido ombreiras por dentro da camisa do uniforme a fim de aguentarem o peso do
colete Kevlar, segundo esperava é à prova de balas. O colete tinha o peso adicional de uma placa de
cerâmica nas costas e uma outra na frente.

A experiência feita tragédia ensinara o valor da placa nas costas. Liderar um ataque de surpresa com um
grupo que não se conhece, de pessoas com vários níveis de treino, é um empreendimento perigoso. O Fogo
dos próprios amigos pode danificar a espinha dorsal quando se segue na frente de uma coluna inexperiente
e assustada.

A cerca de três quilómetros do rio, a terceira carrinha desapareceu, a fim de levar o grupo de incursão DEA
ao encontro do barco de pesca e a carrinha de reforço parou a uma distância discreta atrás da carrinha
branca de disfarce.

A paisagem começava a adquirir um tom descuidado. Um terço dos edifícios estava tapado com tábuas e
carros destruídos assentavam em caixotes junto às curvas. Homens jovens preguiçavam nas esquinas em
frente de bares e pequenos quiosques. Crianças brincavam à volta de um colchão incendiado no passeio.

Se a segurança de Evelda estava cá fora, dissimulara-se bem no meio dos transeuntes vulgares. Junto às
lojas de bebidas e nos parques de estacionamento dos pequenos mercados, havia homens sentados dentro
de carros, conversando.

Um descapotável baixo Impala com quatro jovens afro-americanos meteu-se pelo escasso trânsito e
avançou atrás da carrinha. Os passageiros subiam o passeio em benefício das raparigas junto de quem
passavam e o som ensurdecedor da aparelhagem estéreo repercutia-se no metal da carrinha.

Observando através do espelho de sentido único da janela da retaguarda, Starling apercebeu-se que os
jovens do descapotável não constituíam uma ameaça - um carro de ataque dos Crips é quase sempre um
poderoso e enorme carro fechado ou station, suficientemente antigo para se fundir nos arredores e as
janelas de trás descem por completo. Transporta uma tripulação de três, por vezes quatro elementos. Uma
equipa de basquetebol num Buick pode parecer sinistra, se não se tiver a consciência tranquila.

Enquanto aguardavam junto a um semáforo, Brigham retirou a lente ocular do periscópio e deu uma
palmada no joelho de Bolton.
- Olhe em volta e veja se há algumas celebridades locais no passeio - ordenou Brigham

A lente objectiva do periscópio está dissimulada num ventilador no tejadilho. Só alcança os passeios.
HANNIBAL               15

Bolton fez uma rotação completa e parou, esfregando os olhos.

- Tudo estremece demasiado com o motor a trabalhar - queixou-se. Brigham contactou pela rádio com a
equipa do barco. - Quatrocemtos metros rio abaixo e aproximando-se - repetiu para a sua equipa na
carrinha.

A carrinha apanhou um semáforo vermelho um quarteirão mais à frente em Parcell Street e parou de frente
para o mercado durante o que pareceu uma eternidade. O condutor virou-se como que a inspeccionar o
espelho da direita e dirigiu-se a Brigham pelo canto da boca: - Não parece haver muita gente a comprar
peixe. Cá vamos nós.

A luz do semáforo mudou e às catorze horas e cinquenta e sete minutos em ponto, exactamente três
minutos antes da hora zero, a carrinha de disfarce em mau estado parou diante do Feliciana Fisli Market,
num bom lugar junto à curva.

Lá atrás, ouviram o ruído quando o motorista puxou o travão de mão. Brigham cedeu o periscópio a
Starling. - Verifique - disse, Starling moveu o periscópio de forma a apanhar a fachada do edifício. Mesas e
balcões de peixe no gelo brilhavam sob um toldo de oleado no passeio. Peixe das margens de Carolina,
apresentava-se artisticamente disposto em gelo moído, caranguejos moviam as patas em caixotes abertos e
lagostas trepavam umas por cima das outras num reservatório. O vivaço vendedor colocara pedaços de gelo
por cima dos olhos do peixe maior, a fim de que se mantivessem brilhantes até à chegada da fornada de
donas de casa espertalhonas nascidas nas Caraíbas que vinham sempre cheirar e espreitar.

O sol desenhava um arco-íris no jorro de água da mesa de limpeza do peixe lá fora, onde um homem de
aparência latina e musculosos antebraços, cortava um tubarão às postas com golpes experientes e graciosos
da sua faca curva e regava o enorme peixe com uma poderosa mangueira de mão. A água ensanguentada
escoava para a sarjeta e Starling conseguia ouvi-la a correr por baixo da carrinha.

Starling observou o motorista a falar com o peixeiro, dirigindo-lhe uma pergunta. O homem consultou o
relógio, encolheu os ombros e apontou para um pequeno café local. O motorista deambulou um minuto
pelo mercado, acendeu um cigarro e afastou-se na direcção do estabelecimento.

De um altifalante no mercado os sons de La Macarena chegavam nitidamente aos ouvidos de Starling, na
carrinha; nunca mais na vida conseguiria suportar aquela música.

A porta que interessava situava-se à direita, uma porta dupla de metal emoldurada também em metal e com
um único degrau em simétrico.

Starling preparava-se para se afastar do periscópio quando a porta se abriu e deu passagem a um homem
branco e enorme de camisa
16     THOMAS HARRIS


florida e sandálias. Trazia uma sacola pendurada e segurava-a com uma das mãos atrás das
costas. Um negro magro surgiu por detrás dele, vestido com uma gabardina.

- Cabeças para cima! - ordenou Starling.

Atrás dos dois homens, com o seu alto pescoço e o rosto gracioso visível acima dos ombros
destacava-se Evelda Drumgo.

- Evelda vem atrás de dois tipos e parece que ambos estão de partida - informou Starling.

Não conseguiu largar o periscópio com a rapidez bastante para impedir que Brigham fosse de
encontro a ela. Starling colocou o capacete.

Brigham ditava ordens para a rádio: - Força Um a todas as unidades. Ataquem. Ataquem. Ela saiu
por este lado. Vamos mover-nos.
- Ponha-os em terra o mais rapidamente possível - retorquiu

Brigham, enquanto destravava a arma. - O barco estará aqui dentro de trinta segundos. Vamos.

Starling foi a primeira a descer e as tranças de Evelda esvoaçaram quando virou a cabeça na sua
direcção. Starling teve consciência dos homens ao seu lado, de armas aperreadas, gritando: -
Deitem-se no chão, deitem-se no chão!

Evelda saiu do meio dos dois homens.

Evelda transportava uma criança num porta-bebés que tinha à volta do pescoço.

- Esperem, esperem. Não quero problemas - indicou aos homens, que se encontravam ao lado
dela. - Esperem. - Deu um passo em frente, muito direita, segurando o bebé na frente até onde o
porta-bebés podia esticar-se, com a fralda pendurada.

Dar-lhe um sítio para onde ir. Starling tocou na arma e levantou os braços de mãos abertas. -
Evelda! Entregue-se. Venha até mim.
- Atrás de Starling, o ruído de um grande V-8 e o guinchar de pneus. Não podia virar-se. Sê o
reforço.

Ignorando-a, Evelda avançou na direcção de Brigham e a fralda esvoaçou quando a MAC 10
disparou por trás dela e Brigham caiu por terra, com a protecção do rosto coberta de sangue.

O homem branco e corpulento deixou cair a sacola. Burke detectou a metralhadora e levantou
uma onda de pó inofensivo com os disparos da sua arma. Voltou a carregá-la, mas não a tempo. O
robusto adversário disparou uma rajada trespassando o ventre de Burke por baixo do colete e
virando-se para Starling no momento em que ela o atingia mesmo a meio da camisa colorida, sem
lhe dar tempo a ripostar.

Tiros nas costas de Starling, O negro magro tirou a arma de baixo da gabardine e refugiou-se no
edifício, ao mesmo tempo que um golpe semelhante a um soco nas costas impelia Starling para
diante, cortando-lhe a respiração.
HANNIBAL               17

Girou sobre os calcanhares e avistou o carro dos Crip na rua,

um Cadillac preto, de vidros descidos, com dois atiradores sentados ao estilo Cheyerme nas
janelas da direita disparando pelo tejadilho e um terceiro do banco das traseiras. Fumo e fogo de
três canos, balas varrendo os ares à sua volta.

Starling mergulhou entre dois carros estacionados e avistou Burke contorcendo-se no chão.
Brighan mantinha-se imóvel, com um fio de sangue escoando do capacete. Hare e Bolton
disparavam do meio de carros algures do outro lado da rua, de onde voavam vidros estilhaçados
que aterravam na estrada e um pneu explodiu ao mesmo tempo que o fogo das automáticas do
Cadillac os pregava ao chão. Starling, com um dos pés na sarjeta, levantou a cabeça para
espreitar.

Dois atiradores, sentados nas janelas, disparando pelo tejadilho do automóvel, enquanto o
condutor despejava um revólver com a mão que lhe restava livre. Um quarto homem, no banco da
retaguarda, tinha a porta aberta e puxava Evelda com o bebé para o interior.

Evelda agarrava na sacola. Eles disparavam contra Bolton e Hare do outro lado da rua, os pneus
de trás do Cadillac deitavam fumo e o carro começou a afastar-se.

Starling pôs-se de pé, apontou e atingiu o condutor num dos lados da cabeça. Disparou duas vezes
contra o atirador sentado na janela da frente e ele caiu de costas. Starling retirou o cartucho vazio
da 45 e substituiu-o por outro antes que o vazio chegasse ao chão, sem desviar os olhos do carro.

o Cadillac aflorou de raspão uma fila de carros estacionados do outro lado da rua e acabou por
embater estrondosamente contra eles. Starling avançava agora na direcção do Cadillac. Um
atirador continuava sentado na janela da retaguarda, de olhos injectados e as mãos fazendo força
de encontro ao tejadilho, com o peito comprimido entre o Cadillac e um carro estacionado. A
arma escorregou pelo tejadilho. Mãos vazias apareceram pela janela da retaguarda, ao lado. Um
homem com uma camisa florida azul esfarrapada saiu de mãos erguidas e começou a correr.
Starling ignorou-o.

Tiros da direita e o corredor mergulhou, rastejando de rosto colado ao chão e tentando enfiar-se
debaixo de um carro. As pás de um helicóptero roncando por cima dela.

Alguém gritando no mercado de peixe. - Não se levantem. Não se levantem. - Gente debaixo dos
balcões e a água da mesa de limpeza abandonada jorrando para o ar.

Starling aproximando-se do Cadillac. Movimento nas traseiras do automóvel. Movimento no
Cadillac. o carro balançando. o bebé chorando no interior. Disparos e os vidros da janela da
retaguarda estilhaçados e espalhados.
18     THOMAS HARRIS

Starling ergueu o braço e gritou, sem se virar: - PAREM. Parem o fogo. Vigiem a porta. Atrás de mim.
Vigiem a porta do mercado.
- Evelda! - Movimento nas traseiras do carro. o bebé chorando no interior. - Evelda. Ponha as mãos fora da
janela.

Evelda Drumgo estava agora a sair. o bebé num choro gritado e La Macarena ribombando nos altifalantes
do mercado de peixe. Evelda estava cá fora e caminhava na direcção de Starling, com a bela cabeça baixa e
os braços à volta do bebé. Burke contorcia-se no chão que as separava. Golpes mais pequenos do seu corpo
sangravam. La Macarena acompanhava o ritmo de Burke, prostrado no chão. Alguém, correndo encolhido,
conseguiu chegar junto dele, deitou-se ao seu lado e comprimiu a ferida.

Starling tinha a arma apontada para o chão em frente de Evelda.
- Mostre-me as mãos, Evelda. Vá lá, por favor. Mostre-me as mãos. Um alto na fralda. Evelda, de tranças e
olhos negros egípcios, ergueu a cabeça e fitou Starling.

É então você, Starling! - exclamou. Não faça isso, Evelda. Pense no bebé. Vamos lá trocar fluidos
corporais, cabra.

A fralda esvoaçou e o ar estremeceu. Starling atingiu Evelda Drumgo através do lábio superior,
desfazendo-lhe a nuca.

Starling mantinha-se como que sentada com uma dor aguda num dos lados da cabeça e sem fôlego. Evelda
também estava sentada no chão, caída para a frente sobre as pernas, enquanto o sangue lhe jorrava da boca
para o bebé cujo choro saía sufocado pelo peso do corpo dela.

Starling rastejou até junto de Evelda e puxou as fivelas do porta-bebés. Tirou a navalha de ponta e mola do
soutien de Evelda, abriu-a sem a olhar e cortou a correia que prendia o bebé. o corpinho era escorregadio,
vermelho e difícil de agarrar.

Starling pegou-lhe e ergueu os olhos, angustiada. Avistava a água que se erguia num jorro proveniente do
mercado de peixe e correu nessa direcção, transportando a criança ensanguentada. Afastou as facas e as
entranhas de peixe e pousou a criança no balcão onde se cortavam as postas, virando o forte jacto de mão
na sua direcção. o bebé negro estava ali deitado num balcão branco no meio das facas e das entranhas de
peixe com a cabeça do tubarão ao lado dele, a ser lavado do sangue contaminado com o vírus do HIV,
enquanto o próprio sangue de Starling se derramava sobre ele, correndo num fluxo comum com o sangue
de Evelda, tão salgado como a água do mar.

A água correndo, um arremesso de arco-íris da Promessa de Deus no jorro. Starling não detectava qualquer
orifício na criança. o som estrondoso de La Macarena pelos altifalantes, uma sucessão de flashes até Hare
arrastar o fotógrafo para longe dali.
capítulo dois
Um beco sem saída num bairro operário de Arlington, Virgínia, pouco depois da meia-noite. É
uma quente noite de Outono depois de uma chuvada. o ar move-se inquieto diante de uma frente
fria. No meio do cheiro a terra molhada e folhas, um grilo entoa uma melodia. Cala-se no
momento em que se apercebe de uma enorme vibração, o som abafado de um Mustang de 5 litros
com carburadores de aço a virar para o beco, seguido do carro de um xerife. Os dois veículos
sobem o acesso a um simpático duplex e param. o Mustang ainda estremece um pouco. Quando o
motor se silencia, o grilo aguarda um momento e retoma a melodia, a última antes da geada, a
última de sempre.

Um xerife fardado sai do banco do condutor do Mustang. Dá a volta ao carro e abre a porta do
lado dos passageiros a Clarice Starling. Ela sai. Tem uma ligadura branca à volta da cabeça por
cima da orelha. o castanho alaranjado do Betadine mancha-lhe o pescoço por cima da bata verde
de hospital que usa em vez de uma camisa.

Transporta os objectos pessoais num saco de plástico com fecho de correr: rebuçados de mentol e
chaves, a identificação como agente especial do Federal Bureau of Investigation, um carregador
com cinco cartuchos e um spray de autoprotecção Mace. juntamente com o saco traz um cinto e
um coldre vazio.

o xerife estende-lhe as chaves do carro.
- Obrigada, Bobby

- Quer que eu e o Pharon entremos e fiquemos um bocado? Prefere que vá buscar a Sandra? Ela
espera sempre por mim levantada. Trago-a para aqui um pouco. Precisa de companhia...

- Não. Fico bem. A Ardelia estará em casa dentro em pouco. Obrigada, Bobby
20      THOMAS HARRIS

O xerife entra no carro onde o parceiro o aguarda e depois de se certificar que Starling está a salvo dentro
de casa, o carro federal arranca.

O quarto das lavagens da casa de Starling está quente e cheira a amaciador de roupa. Os tubos das
máquinas de lavar e de secar estão seguros com anilhas de plástico. Starling pousa os objectos pessoais em
cima da máquina de lavar. As chaves do carro produzem um ruído estridente no tampo metálico.

Starling retira uma carga de roupa da máquina de lavar e mete-a na de secar. Despe as calças do uniforme,
enfia-as na máquina de lavar juntamente com a bata de hospital e o soutien manchado de sangue e põe a
máquina a trabalhar. Está em peúgas e cuecas e tem uma Especial de calibre 38 num coldre preso ao
tornozelo. Ressaltam nódoas negras nas costas e costelas e uma escoriação no cotovelo. O olho e a face
direita estão inchados.

A máquina de lavar está a aquecer e começa a encher. Starling enrola-se numa grande toalha de praia e
entra na sala de estar. Regressa com cinco centímetros de Jack Daniels puro num copo. Senta-se no tapete
de borracha diante da máquina de lavar e encosta-se-lhe, enquanto a máquina estremece e se enche de água.
Senta-se no chão com o rosto virado para cima e emite alguns soluços secos antes das lágrimas brotarem.
Lágrimas escaldantes nas faces, caindo pelas faces.

O acompanhante de Ardelia Mapp trouxe-a a casa por volta da meia-noite e quarenta e cinco depois de uma
longa viagem de carro de Cape May e ela desejou-lhe boa-noite à porta, Mapp estava na casa de banho
quando ouviu a água a correr e o estremecer dos canos, enquanto a máquina de lavar prosseguia o
programa.

Dirigiu-se às traseiras da casa e acendeu as luzes da cozinha que partilhava com Starling. De onde estava
via a lavandaria. Avistou Starling, sentada no chão, com a ligadura à volta da cabeça.

- Starling! Oh, pobre querida! - exclamou, ajoelhando-se ao lado dela. - O que aconteceu?

- Um tiro atravessou-me a orelha, Ardelia. Trataram-me em Walter Reed. Não acendas a luz, okay?

- Tudo bem. Vou preparar-te qualquer coisa. Não dei por nada... estávamos a ouvir cassetes no gravador do
carro... Conta-me.

- O John morreu, Ardelia.

- Não o Johnny Brígham! - Mapp e Starling tinham tido um fraco por Brigham no tempo em que ele era
instrutor de tiro na Academia do FBI. Tinham tentado ler-lhe a tatuagem através da manga da camisa.

Starling esboçou um aceno afirmativo e limpou os olhos com as costas da mão, como uma criança. - Evelda
Drumgo e alguns Crips.
HANNIBAL              21

Evelda abateu-o. Também atingiram Burke, Marquez Burke, do BATE Fomos todos. Evelda recebeu a dica
antes e a equipa do telejornal chegou lá ao mesmo tempo que nós. Evelda era minha, Não se entregou,
Ardelia. Não se entregou e tinha o bebé ao colo. Disparámos uma contra a outra. Ela está morta.

Era a primeira vez que Mapp via Starling chorar.
- Hoje matei cinco pessoas, Ardelia.

Mapp sentou-se no chão ao lado de Starling e rodeou-lhe o ombro com o braço. Encostaram-se as duas à
máquina de lavar em funcionamento. - E o bebé de Evelda?

- Lavei-lhe o sangue e, tanto quanto vi, não tinha nenhuma ferida. O hospital afirma que fisicamente está
bem, Vão entregá-lo à mãe de Evelda daqui a uns dias. Sabes a última coisa que Evelda me disse, Ardelia?
Disse-me. «Vamos lá trocar fluidos corporais, cabra».

- Deixa-me preparar-te qualquer coisa - replicou Mapp.
- O quê? - retorquiu Starling.
capítulo três
Com o alvorecer cinzento chegaram os jornais e os primeiros telejornais.

Mapp apareceu com biscoitos quentes quando se apercebeu que Starling começara a andar de um
lado para o outro e pregaram os olhos no ecrã. A CNN e todos os outros canais haviam comprado
a cópia filmada pela câmara do helicóptero da estação televisiva WFUL. Era uma filmagem
fantástica efectuada directamente por cima do cenário.

Starling observou uma vez. Tinha de certificar-se que fora Evelda a primeira a disparar. Fixou o
rosto de Mapp e detectou-lhe raiva no rosto de pele castanha.

Depois Starling levantou-se a correr para ir vomitar.

- É difícil de ver - comentou Starling quando voltou, pálida e com as pernas a tremer.

Mapp, como de costume, foi direita ao assunto: - O teu problema reside no que sentes em ter
morto aquela afro-americana com a criança ao colo. Aqui tens a resposta. Ela disparou primeiro.
Quero que estejas viva. Pensa, Starling, em quem é o responsável por toda esta política de
loucura. Que raio de linha de pensamento idiota te colocou e a Evelda Drumgo juntas naquele
sítio lúgubre para resolverem o problema da droga entre as duas com umas malditas armas? O
que tem isso de esperteza? Espero que reflictas se queres continuar a estar debaixo da pata deles. -
Mapp serviu um pouco de chá a nível de pausa. - Queres que fique contigo? Tiro um dia.

- Obrigada. Não precisas de o fazer. Telefona-me.

O National Tattler, primeiro beneficiário do boom dos tablóides na década de 90, fez uma edição
especial que era extraordinária até a nível dos padrões por que se regia. Alguém o atirou para a
porta da casa a meio da manhã. Starling encontrou-o quando foi até lá fora ver como estava o
golpe. Esperava o pior e assim aconteceu: «ANJO
HANNIBAL               23

DA MORTE: A ARMA MORTIFERA DO FBI» anunciava o título do National Tattler em
parangonas a itálico. As três fotos da primeira página eram: Clarice Starling, de uniforme,
disparando uma pistola de calibre 45 numa atitude de competição, Evelda Drumgo dobrada sobre
o bebé no chão, com a cabeça de lado semelhante à de uma Madonna de Cimabui, de miolos
estoirados, e novamente Starling, pousando um bebé negro e nu em cima de um balcão de cortar
peixe no meio de facas, entranhas de peixe e a cabeça de um tubarão.

A legenda por baixo das fotografias dizia: «A agente especial do FBI, Clarice Starling, que
eliminou o serial killerjame Gumb, acrescenta, pelo menos, cinco entalhes à sua arma. Mãe com
o bebé nos braços e dois agentes da polícia entre os mortos após uma rusga de droga falhada. »

A notícia de fundo referia as carreiras de traficantes de Evelda e Dijon Drumgo e o aparecimento
do gang Crip no cenário devastado de Washington D.C. Referia-se de passagem o serviço militar
do agente abatido John Brigham e citavam-se as suas condecorações.

Starling teve direito a uma coluna lateral por baixo de uma simples fotografia de Starling num
restaurante com um vestido de decote redondo e uma expressão animada.

Claríce Starling, agente especial do FBI, teve os seus quinze minutos de fama quando abateu a
tiro o serial killerjame Gumb, o assassino «Buffalo Bill», na casa dele, há sete anos. Agora, pode
enfrentar acusações departamentais e responsabilidades civis na morte de quinta-feira de uma
mãe de Washington acusada do fabrico de anfetaminas ilegais (ver história na primeira página.

«Isto pode significar ofinal da sua carreira», afirmou umafonte do Bureau of Alcohol, Tobacco
and Fireams, a co-agência do FBI. Desconhecemos todos os pormenores do que aconteceu, mas
John Brigham deveria estar vivo, Era a última coisa de que o FBI precisava depois de Ruby
Ridge, declarou a fonte que recusou identificar-se.

A movimentada carreira de Clarice Starlíng ínicíou-se pouco depois de ter chegado à Academia
do FBI como estagiária. Licenciada com distinção pela Universidade de Virginia em Psicologia
e Criminología, foi indigitada para entrevistar o louco assassino Dr Hannibal Lecter. apelidado
por este jornal de «Hanníbal, o Canibal» e dele recebeu informações que foram importantes na
busca de Jame Gumb e salvação do seu ref Catherine Martin, filha da ex-senadora cle
Tennessee.

A agente Starling foi campeã de torneios de tiro interserviços durante três anos, antes de se
retirar da competição. Ironicamente, o agente Brigham, que morreu ao lado dela, era ínstrutor
de armas de fogo em Quantico quando Starling praticou ali e seu treinador em competição,

Um porta-voz do FBI declarou que a agente Starling será dispensada do activo, com um salário
dependendo do resultado da investigação interna
24      THOMAS HARRIS

do FBI. Espera-se um interrogatório ainda esta semana antes do Departamento de Responsabilidade
Profissional, a temida inquisição do próprio FBI.

Parentes da falecida Evelda Drumgo afirmaram que vão reclamar indemnizações ao governo americano e
à pessoa de Starling por casos de morte ilegítima.

O bebé de Drumgo, de três meses, visto nos braços da mãe nasfotografias dramáticas do tiroteio, saiu
ileso.

O advogado Telford Higgins, que defendeu afamília Drumgo em inúmeros processos crime, alegou que a
arma da agente Starling, um Colt 45 semi-automático adaptado, não obedecia às normas de aplicação da
lei da cidade de Washington. «É um instrumento letal e perigoso e inadequado na aplicação da lei»,
declarou Híggins. O seu uso corresponde a pôr em perigo a vida humana», acrescentou ofamoso advogado
de defesa.

O Tattler comprara o número de telefone de casa de Clarice Starling a um dos seus informadores e a
campainha soou insistentemente até Starling retirar o auscultador do descanso e passar a servir-se do
telemóvel do FBI para falar para o departamento.

Starling não sentia muitas dores na orelha e no lado inchado da cara, desde que não tocasse na ligadura.
Pelo menos, não latejava. Aguentou-se com dois Tylenol. Não precisava do Percoset que o médico lhe
receitara. Passou pelo sono, encostada à cabeceira da cama, enquanto o Washington Post deslizava para o
chão. Havia resíduos de pólvora nas mãos e de lágrimas secas nas faces.
Capítulo   quatro
Apaixonamo-nos pelo Bureau,

mas o Bureau não se apaixona por nós.
MáXIMA DA CONSULTORIA DE DELIGAMENTO DO FBI

O ginásio do FBI no edifício J. Edgar Hoover estava praticamente vazio a esta hora matutina. Dois
homens de meia-idade corriam na pista interior. O ruído de uma máquina de pesos num canto
afastado e os ressaltos da bola de um jogo com raquetas ecoavam no salão.

As vozes dos corredores não se ouviam. Jack Crawford corria com o director do FBI, Tunberry, a
pedido do director. Tinham percorrido três quilómetros e começavam a arquejar.

- Blaylock, do ATF, tem de dar tudo por tudo pela Waco. Não vai acontecer para já, mas está
acabado e tem consciência disso - replicou o director. - Bem podia comunicar ao reverendo Moon
que vai desocupar as instalações. - O facto do Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms alugar
escritórios em Washington ao reverendo Sun Myung Moon é uma fonte de divertimento para o
FBI.

- E Farriday está de olho em Ruby Ridge - prosseguiu o director.
- Não me parece - objectou Crawford. - Trabalhara em Nova Iorque com Farriday na década de
70, quando a malta ocupava os escritórios do FBI na Third Avenue e na 69th Street. - Farriday é
bom homem. Não elaborou as regras de admissão.

- Falei-lhe ontem de manhã.

- E que tal? - interessou-se Crawford.

- Digamos que defende os seus benefícios. Tempos perigosos estes, Jack.

Os dois homens corriam com a cabeça para trás. Aceleraram um pouco o passo. Pelo canto do
olho, Crawford. apercebeu-se que o director avaliava a sua condição física.

- Tens quantos, Jack? 56?
- Exacto.
26      THOMAS HARRIS

- Falta-te um ano para a reforma obrigatória. Muitos tipos saem aos 48, 50, enquanto ainda podem arranjar
emprego, Nunca quiseste fazê-lo. Quiseste manter-te ocupado depois da morte de Bella.

Quando Crawford correu meia volta sem lhe dar resposta, o director percebeu que cometera uma gafe.

- Não pretendo encarar o assunto de ânimo leve, Jack. No outro dia, Doreen referia-se a quanto...

- Ainda há umas coisas a tratar em Quantico. Viste no orçamento que queremos dinamizar o VICAP para
que qualquer polícia possa utilizá-lo.

- Alguma vez quiseste ser director, Jack?

- Nunca achei que fosse o tipo de trabalho que se me adequasse.

- E não é, Jack. Não és um tipo político. Nunca poderias ter sido director. Nunca poderias ter sido um
Eisenhower, Jack, ou um Ornar Bradlcy - Fez sinal a Crawford para que parassem e detiveram-se,
ofegantes, junto à pista. Poderias, contudo, ter sido um Patton, Jack. És homem para os guiar através do
inferno e conseguir que te amem. É um dom que me falta. Tenho de empurrá-los. - Tunberry olhou
rapidamente em redor, apanhou a sua toalha de cima de um banco e enrolou-a à volta dos ombros, como se
se tratasse da toga de um juiz de pena capital. Os olhos brilhavam-lhe.

«Há pessoas que precisam de despoletar a raiva para serem duros», reflectiu Crawford, atento aos
movimentos da boca de Tunberry
- No caso da falecida Mistress Drumgo com a MAC-10 e o laboratório de metanfetaminas, abatida a tiro
com o bebé ao colo: a Polícia Judiciária quer um sacrifício de carne. Carne fresca e jovem. E os media
também. O DEA tem de lhes atirar um pedaço de carne. O ATF também. E nós idem. Mas, no nosso caso
talvez se satisfaçam com criação. Kendler acha que podemos entregar-lhes Clarice Starling e deixam-nos
em paz. Concordo com ele. O ATF e o DEA aceitam as culpas por planearem a rusga. Starling puxou o
gatilho.

- Contra uma assassina de polícias que disparou primeiro.
- É o quadro, Jack. Não estás a topar, pois não? O público não viu quando Evelda Drumgo abateu John
Brigham. Nem viu Evelda a ser a primeira a disparar contra Starling. Não se vê, caso não se saiba para o
que se está a olhar. Duzentos milhões de pessoas, um décimo das quais vota, viram Evelda drumgo sentada
no chão numa postura protectora sobre o bebé, de miolos estoirados. Não me interrompas, Jack... Sei que
por um tempo julgaste que Starling seria a tua protégé. Mas ela fala de mais Jack e começou mal com
algumas pessoas...

1 Violent Apprehension Program. (N. da T)
HANNIBAL                27

- Kendler é um chato.

- Ouve-me bem e não digas nada até eu chegar ao fim. De qualquer forma, a carreira de Starling estava
parada. Receberá uma dispensa administrativa sem danos e a papelada será a de uma vulgar suspensão...
conseguirá arranjar emprego. És responsável por um trabalho de monta no FBI, a Secção de Ciência
Comportamental. Muita gente é de opinião que se tivesses defendido mais os teus interesses, serias muito
mais do que um chefe de secção, que mereces muito mais. Serei o primeiro a declará-lo. Vais reformar-te
como director-adjunto, Jack. Tens a minha palavra.

- Se me mantiver fora disto, queres dizer?

- No curso normal dos acontecimentos, Jack. Com paz por todo o reino, é o que acontecerá. Olha para
mim, Jack.

- Sim, director Tunberry?

- Não estou a pedir-te, estou a dar-te uma ordem directa. Mantem-te afastado. Não desperdices
oportunidades, Jack. Às vezes, é preciso virar a cara. já o fiz. Ouve bem. Sei que é difícil e acredita que sei
como te sentes.

- Como me sinto? Sinto que preciso de um duche - replicou Crawford.
Capítulo   cinco
Starling era uma dona de casa eficiente, mas não meticulosa. O seu lado do duplex estava limpo
e conseguia encontrar tudo, mas as coisas tendiam a amontoar-se: roupa lavada e por separar e
mais revistas do que sítios onde arrumá-las. Engomava tudo à última hora e não precisava
ataviar-se, portanto tudo bem.

Quando precisava de ordem, dirigia-se à cozinha comum do lado do duplex de Ardelia Mapp. Se
Ardelia estava presente, beneficiava dos seus conselhos, que eram sempre úteis, embora por vezes
mais pormenorizados do que desejaria. Se Ardelia não estava, era ponto assente que Starling
podia instalar-se na absoluta ordem esquematizada por Mapp, desde que não deixasse nada. E foi
exactamente o que fez nesse dia. Naquele tipo de casa que parece conter sempre o ocupante, quer
ele esteja ou não.

Starling sentou-se a observar a apólice do seguro de vida da avó de Mapp, pendurada na parede
numa moldura feita à mão, como sempre estivera na herdade da avó e depois no apartamento dos
Mapp, durante a infância de Ardelia. A avó dela vendera legumes e flores do jardim e
economizara o suficiente para pagar os prémios do seguro e conseguira pedir empréstimos sobre a
apólice para ajudar Ardelia quando ela trabalhava e ao mesmo tempo tirava o curso. Havia ainda
uma fotografia da pequena e idosa senhora, que não fazia qualquer esforço para sorrir sobre a
gola engomada, com os olhos negros emanando uma antiga sabedoria sob a aba do chapéu de
palha.

Ardelia estava consciente do seu passado e era nele que recolhia forças para o dia-a-dia. Agora,
era Starling que tentava recompor-se. O Lar Luterano de Bozeman alimentara-a, vestira-a e dera-
lhe um padrão decente de comportamento, mas para o que precisava nesse momento, tinha de
apelar ao sangue.
HANNIBAL               29

O que se tem, quando se é originário de uma família branca e

pobre? E se se nasceu de gente muitas vezes apelidada nas cidades universitárias como pobretanas,
trabalhadores rurais ou, condescendentemente, mão-de-obra ou brancos pobres dos Apalaches? E quando a
delicadeza incerta do Sul, que não atribui qualquer dignidade ao trabalho físico, se refere à nossa família
como sucateiros... em que tradição se recolhem exemplos? No facto de os termos vencido em Bull Run? Ou
do bisavó ter feito uma bela figura em Vicksburg ou ainda por um pedaço de Shiloh se ter transformado em
Yazoo City?

Há muito mais honra e sentido em se ter obtido sucesso com o legado, feito algo com os malditos 40 acres
e uma mula, mas há que ver isso com os próprios olhos.

Starling saíra-se bem no treino do FBI porque não tinha um passado a apoiá-la. Sobreviveu a maior parte da
vida em instituições, respeitando-as e seguindo as normas. Nunca deixara de seguir em frente, obtivera a
bolsa e ingressara na equipa. A impossibilidade de progredir no FBI depois de um começo brilhante
constituía uma nova e terrível experiência. Embatia contra o tecto de vidro, como uma abelha dentro de
uma garrafa.

Dispusera de quatro dias para fazer o luto por John Brigham, abatido a tiro na sua frente. Há muito tempo,
John Brigham fizera-lhe um pedido e respondera-lhe que não. E depois ele perguntara-lhe se podiam ser
amigos e estava a ser sincero, ele respondera que sim e era verdade.

Aceitara a realidade de que ela própria tinha morto cinco pessoas no Feliciana Fish Market. Ocorriam-lhe
flashes sucessivos do membro do gang Crip com o peito esmagado entre os carros, agarrando-se ao
tejadilho do carro, enquanto a arma lhe escorregava para longe.

Uma vez e para aliviar a consciência foi ao hospital para examinar o bebé de Evelda. A mãe de Evelda
estava presente, com a criança ao colo, preparando-se para a levar para casa. Reconheceu Starling das
fotografias dos jornais, entregou o bebé à enfermeira e, sem dar tempo a que Starling se apercebesse das
suas intenções, esbofeteou-a com força no lado da cara coberto pela ligadura.

Starling não ripostou, mas imobilizou a mulher mais velha com um golpe de gancho de encontro à janela da
ala da maternidade até ela deixar de lutar, com o rosto distorcido junto ao vidro sujo de espuma e de cuspo.
O sangue corria pelo pescoço de Starling e a dor estonteava-a. Coseram-lhe novamente a orelha na sala de
urgências e recusou-se a apresentar queixa. Uma auxiliar da sala de urgências deu uma dica ao TattIer e
recebeu trezentos dólares.

Teve de sair mais duas vezes, a fim de cumprir as últimas disposições de John Brigham e assistir ao seu
funeral no Arlington National
30      THOMAS HARRIS

Cemetery Os parentes de Brigham eram poucos e afastados e, nos seus últimos pedidos por escrito, ele
nomeava Starling para se ocupar dele.

A extensão dos seus danos no rosto exigia um caixão fechado, mas ela cuidara da aparência dele o melhor
que conseguira. Deitara-o vestido com o seu fato azul de fuzileiro, a estrela de prata e outras
condecorações.

Depois da cerimónia, o superior de Brigham entregou a Starling uma caixa com as armas pessoais de John
Brigham, os distintivos e alguns objectos da sua secretária sempre desarrumada, incluindo o estúpido
pássaro que bebia de um copo.

Cinco dias depois, Starling enfrentou um interrogatório que podia destrui-la. É excepção de uma mensagem
de Jack Crawford, o seu telefone de trabalho mantivera-se silencioso e deixara de poder falar com Brigham

Telefonou para o seu representante na Associação de Agentes do FBI e ele aconselhou-a a que não se
apresentasse com brincos de pendentes ou sapatos abertos na frente no interrogatório.

A televisão e os jornais pegavam diariamente na história da morte de Evelda Drumgo e sacudiam-na como
a um rato.

Aqui, na ordem impecável da casa de Mapp, Starling tentava alinhar ideias.

O verme que nos destrói é a tentação de concordar com os críticos, de conseguir a aprovação deles.

Um barulho estava a interferir.

Starling tentava lembrar-se das palavras exactas pronunciadas na carrinha de disfarce. «Teria dito mais do
que o necessário?». Um barulho estava a interferir.

Brigham indicara-lhe que informasse os outros sobre Evelda. «Teria deixado escapar alguma hostilidade,
feito qualquer crítica. Um barulho estava a interferir.

Voltou à realidade e apercebeu-se que estava a ouvir a campainha da porta. Provavelmente um repórter.
Também esperava uma intimação civil. Afastou a cortina da janela da frente e ao espreitar lá para fora
avistou o carteiro que regressava à furgoneta. Abriu a porta da frente e apanhou-o, virando as costas ao
carro da imprensa que se encontrava do outro lado da rua, de lente atestada, enquanto assinava o recibo do
correio expresso.

O envelope era violeta, com laivos de seda no bonito papel de linho. Apesar da sua distracção, recordava-
lhe algo. No interior da casa e a salvo de olhares indiscretos, examinou a morada. Uma bela caligrafia.

Um aviso disparou, sobrepondo-se ao permanente zumbido de medo no espírito de Starling. Sentiu que a
pele do estômago tremia, como se tivesse deixado cair qualquer coisa fria em cima.
HANNIBAL               31

Starling pegou no envelope pelas pontas e levou-o para a cozinha.

Tirou da bolsa as luvas brancas de recolha de provas que nunca a abandonavam. Premiu o
envelope sobre a superfície dura da mesa da cozinha e apalpou-o todo com cuidado. Embora o
papel fosse pesado, teria detectado o volume de uma bomba de relógio pronta a fazer explodir
uma folha A-4. Sabia que deveria examiná-lo com um fluoroscópio. Caso o abrisse, podia meter-
se em sarilhos. Sarilhos. Exacto. Que se lixasse!

Abriu o envelope com uma faca de cozinha e retirou do interior a única folha de papel de seda.
Soube de imediato, antes mesmo de verificar a assinatura, quem lha escrevera.

Querida Clarice,

Acompanhei com interesse o percurso da sua infelicidade e humilhação pública. O meu nunca
me incomodou, exceptuando o incómodo de estar prisioneiro, mas é possível que lhe falte
perspectiva.

Durante as nossas discussões no calabouço, não me restaram dúvidas de que o seu pai, o
guarda-nocturno assassinado, ocupa um lugar de realce no seu sistema de valores. Julgo que o
seu sucesso em terminar com a carreira de costureiro de Jame Gumb lhe deu sobretudo prazer
por poder imaginar o seu pai a fazê-lo.

Agora, tem má reputação no FBI. Sempre imaginou o seu pai acima de si, imaginou-o um chefe
de departamento, ou - melhor ainda do que Jach Crawford - um director-adjunto, seguindo,
orgulhoso, o seu progresso? E vê-o, agora, envergonhado e esmagado pela sua desonra? O seu
fracasso? O final infeliz e mesquinho de uma carreira promissora? Vê-se a executar as tarefas
domésticas a que a sua mãe ficou reduzida, depois dos drogados terem enfiado um balázio no seu
PAI? Hummm? Será que o seu falhanço se reflectirá neles, será que as pessoas acreditarão
erradamente que os seus pais eram lixo branco de um tornado que varreu um acampamento de
roulottes? Diga-me a verdade, agente especial Starling. Reflicta um momento, antes de
prosseguirmos.

Vou referir-me a uma das suas qualidades e que a ajudará. não está cega pelas lágrimas, ainda
pode continuar a ler.

Eis um exercício que pode considerar útil. Quero que o faça fisícamente comigo:

Tem uma caçarola preta de ferro? É uma rapariga das montanhas do Sul. Não consigo imaginá-
la sem uma. Ponha-a em cima da mesa da cozinha. Acenda as luzes do tecto.

Mapp herdara a caçarola da avó e utilizava-a com frequência. Tinha uma superfície preta e
brilhante que nunca via detergente. Starling pousou-a em cima da mesa na sua frente.
32      THOMAS HARRIS

Olhe para a caçarola, Clarice. Incline-se e olhe-a. Se foi a caçarola da sua mãe, e pode muito
bem ser, conservará entre as suas moléculas as vibrações de todas as conversas realizadas na
sua presença. Todas as trocas de palavras, pequenas zangas, revelações fatais, os anúncios de
infortúnio, os queixumes e a poesia do amor

Sente-se à mesa, Clarice. Olhe para dentro da caçarola. Se estiver bem polida é um lago preto,
não é? Assemelha-se a olhar para dentro de um poço. O seu reflexo pormenorizado não está no
fundo, mas assoma nele, certo? A luz atrás de si, mostra-a a negro, com um halo luminoso à
volta da cabeça, como se os cabelos estivessem em fogo.

Todos somos produtos do carvão. Você e a caçarola, e o seu pai morto no chão, frio como a
caçarola. Ainda está tudo ali. Ouça. Como eles ainda soam realmente a vida - ouça os seus pais
a discutirem. As memórias concretas e não a imaginação que enche o seu coração.

Por que é que o seu pai não era um ajudante de xerife, ligado à gente do tribunal? Por que é que
a sua mãe se viu obrigada a limpar motéis para vos manter, embora não tivesse conseguido
mantê-los a todos juntos até serem adultos?

Qual é a sua memória mais nítida da cozinha? Não do hospital, da cozinha.

A minha mãe a lavar o sangue do chapéu do meu pai.

Qual é a sua melhor memória da cozinha?

O meu pai a descascar laranjas com o seu velho canivete de bolso e a distribuir os gomos entre
nós.

O seu pai, Claríce, era um guarda-nocturno. A sua mãe era uma criada de quartos.

Uma grande carreira federal era uma esperança sua ou deles? Até onde se curvaria o seu pai
para ser bem sucedido nafedorenta burocracía? Quantos traseiros estaria disposto a beijar?
Alguma vez na vida o viu bajular ou adular?

Os seus supervisores demonstraram qualquer valor, Clarice? E os seus pais, demonstraram
algum? Em caso afirmativo, esses valores são os mesmos? Olhe para o ferro honesto e
responda-me. Falhou perante a sua família morta? Eles desejariam que se dobrasse? Era essa a
perspectiva que tinham de coragem? Pode ter a força que quiser

É uma guerreira. Claríce. O inimigo está morto e o bebé a salvo. É uma guerreira.

Na tabela periódica, Clarice, os elementos mais estáveis aparecem classificados entre o ferro e a
prata.

Entre o ferro e a prata. Penso que isto se lhe adequa.

Hannibal Lecter
HANNIBAL              33

PS, - Ainda me deve algumas informações, sabe? Diga-me se continua a acordar ouvindo os
cordeiros. Em qualquer domingo ponha um anúncio na coluna de desaparecidos da edição
nacional do Times, do International Herald Tribune e China Mail. Dirija-o a A. A. Aaron para
que seja o primeiro e assine Hannah.

Enquanto lia, Starling ouvia as palavras na mesma voz que troçara dela e a espicaçara, perscrutara
a sua vida e a esclarecera na ala de segurança máxima da instituição psiquiátrica, quando tivera
de negociar o mais íntimo da sua vida com Hannibal Lecter em troca do seu conhecimento vital
de Buffalo Bill. O som metálico daquela voz raramente usada ainda ecoava nos seus sonhos.

Havia uma nova teia de aranha no canto do tecto da cozinha. Starling não despregava os olhos
dela, enquanto os pensamentos fluíam em turbilhão. Alegria e tristeza, tristeza e alegria. Alegria
pela ajuda, alegria por divisar uma forma de cicatrização. Alegria e tristeza pelo facto dos
serviços postais do Dr. Lecter em Los Angeles estarem a servir-se de uma ajuda vulgar - desta
vez tinham-se servido de uma caixa postal.

Jack Crawford ficaria deliciado com a carta, o mesmo acontecendo aos Serviços Postais e ao
laboratório.
Capítulo     seis

O quarto onde Mason passa a sua vida é tranquilo, mas tem um pulsar próprio, o inalar e
exalar da máquina por onde respira. Está às escuras com excepção do grande aquário onde uma
exótica moreia volteia num infindável oito, enquanto a sua sombra negra se projecta como uma
fita sobre o quarto.

O cabelo apanhado de Mason descansa numa grossa trança em cima do invólucro do respirador
que lhe cobre o peito na cama erguida. Diante dele encontra-se suspenso um emaranhado de
tubos, semelhantes a flautas.

A comprida língua de Mason desliza por entre os dentes. Enrola a língua à volta do último tubo e
sopra com a pulsação seguinte do respirador. Uma voz responde imediatamente de um altifalante
instalado na parede: - Sir?

- O Tattler. - Os dois primeiros «t»I perdem-se, mas a voz ecoa profunda e ressonante, uma voz
da rádio.

- A primeira página tem...

- Não a leias. Põe-a no ecrã. - Voltam a perder-se os primeiros sons do discurso de Mason.

Ouve-se o estalido do grande ecrã de um monitor elevado. O brilho azul-esverdeado torna-se rosa
quando o cabeçalho vermelho do Tattler surge.

«ANJO DA MORTE: A ARMA MORTíFERA DO FBI», lê Mason, através de três lentas
exalações do seu respirador. Pode aumentar o tamanho das imagens.

Apenas um dos braços está fora dos cobertores da cama. A mão executa um movimento.
Id~entica a uma pálida tenaz de santola a mão mexe-se, mais pelo movimento dos dedos do que
pela força do braço
Em inglês The Tattler. (N. da T)
HANNIBAL               35

perdido. Dado Mason não poder virar muito a cabeça para ver, o indicador e o médio apalpam como
antenas, enquanto o polegar, o anelar e o dedo mínimo arrastam a mão. Esta encontra o comando que lhe
permite aumentar e virar as páginas.

Mason lê devagar. O tubo sobre a sua única vista provoca um leve silvo duas vezes por minuto quando
espalham humidade sobre o globo ocular sem pálpebra e embacia frequentemente a lente. Leva vinte
minutos a ler o artigo principal e a coluna.

- Mostra a radiografia - ordenou ao terminar.

Levou um momento. A grande chapa da radiografia necessitava de uma mesa iluminada para se ver bem no
monitor. Aqui estava uma mão humana, aparentemente danificada. Depois, mais uma chapa, mostrando a
mão e todo o braço. Uma marca colada na radiografia mostrava uma antiga fractura no úmero, mais ou
menos a meio entre o cotovelo e o ombro.

Mason fitou-a depois de muitas exalações. - Põe a carta - disse por fim.

Uma bela caligrafia desenhou-se no ecrã com a letra absurdamente ampliada.

- «Querida Clarice», leu Mason, acompanhei com interesse o percurso da sua infelicidade e humilhação
pública... - O próprio ritmo da voz acordava velhos pensamentos no seu íntimo que o faziam girar e ao
quarto também, punham a nu os seus indizíveis pesadelos, acelerando-lhe as batidas do coração. A máquina
acusou a sua excitação e encheu-lhe os pulmões com mais rapidez.

Leu-a toda, naquele seu ritmo doloroso, lendo sobre a maquina em movimento, como se lesse montado a
cavalo. Mason não podia fechar o olho, mas quando terminou a leitura, a mente recolheu-se por detrás do
olho, a fim de meditar um pouco. O respirador abrandou e ele soprou no tubo.

- Sim, sir

- Contacta o senador Vellirior. Traz-me o auscultador. Liga o altifalante.

«Clarice Starling», disse de si para si juntamente com o próximo respirar que a máquina lhe permitiu. O
nome não tem consoantes explosivas e pronunciou-o muito bem. Não se perdeu um único som. Enquanto
aguardava a ligação, passou um pouco pelo sono com a sombra da moreia pairando sobre o lençol, o seu
rosto e o cabelo apanhado.
Capítulo   sete
Buzzard’s Point, o quartel-general do FBI para Washington e o distrito de Columbia, é escolhido
para uma reunião de abutres num hospital local da Guerra Civil.

Na reunião de hoje participam membros intermédios da administraqfto da Drug Enforcement
Agency, Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms e FBI, a fim de discutirem o destino de
Clarice Starling.

Starling encontrava-se de pé, sozinha, na espessa alcatifa do gabinete do seu chefe. Ouvia a
própria pulsação por baixo da ligadura à volta da cabeça. Acima da pulsação, ouvia as vozes de
homens, abafadas pela porta de vidro fosco de uma sala de conferências contígua.

A chancela do FBI com o lema «Fidelidade, Bravura, Integridade» encontra-se elegantemente
desenhada em folha dourada no vidro.

As vozes por detrás da chancela sobem e descem acaloradas; Starling ouvia o seu nome quando
não percebia mais nenhuma palavra. O gabinete dispunha de uma bela vista sobre a bacia com
iates

até ao Forte McNair, onde os conspiradores acusados do assassínio de Lincoln foram enforcados.

Pela mente de Starling perspassaram instantâneos de fotografias que vira de Mary Surratt,
passando junto ao seu próprio caixão e subindo os degraus do cadafalso de H. McNaír pendendo
com o capuz sobre a cabeça sobre o alçapão, com as saias atadas à volta das pernas por uma
questão de pudor, enquanto a largavam com um estrondo para o escuro.

Para lá da porta, Starling ouviu o arrastar das cadeiras quando os homens se puseram de pé.
Entravam agora neste gabinete. Reconheceu alguns dos rostos. Céus! Estava também Noonan, o
subdirector da divisão de investigação.
HANNIBAL                37

E havia a sua némesis, Paul KrendIer, do Departamento de justiça, com o enorme pescoço e as orelhas
redondas bem no cimo da cabeça, semelhantes às de uma hiena. KrendIer era um oportunista, o homem-
sombra do inspector-geral. Desde que ela o antecedera na prisão do serial hiller Buffalo Bill num famoso
caso há sete anos, KrendIer nunca perdia uma oportunidade de despejar veneno no seu dossier pessoal e
sussurava ao ouvido do Conselho de Promoções.

Nenhum destes homens alguma vez estivera numa missão com ela, executara um mandado de captura, fora
alvejado ou retirara dos cabelos estilhaços de vidro ao lado dela.

Os homens não a olharam individualmente mas em conjunto, da mesma forma que um rebanho centra de
súbito as atenções no coxo do grupo.

- Sente-se, agente Starling - pronunciou-se o seu patrão, o agente especial Clint Pearsall, esfregando o pulso
grosso, como se o relógio o magoasse.

Sem a olhar de frente, esboçou um gesto na direcção de uma cadeira de braços de frente para as janelas.
Num interrogatório, a cadeira não é o lugar de honra.

Os sete homens permaneceram de pé, as silhuetas recortadas a negro com as janelas luminosas por trás.
Agora, Starling não conseguia divisar-lhes os rostos, mas detectava-lhes as pernas e os pés, abaixo do
brilho. Cinco deles usavam os mocassins de sola grossa preferidos pelos ratos do campo que conseguiram
chegar a Washington. Um par de Thom McAnn de biqueira quadrada com solas Corfam e alguns Florsheim
também de biqueira quadrada completavam o círculo dos sete. Um cheiro a pomada intensificada por pés
quentes.

- Na eventualidade de não conhecer todos, agente Starling, este é o director-adj unto Noonan, que estou
certo de que sabe quem é; este é John Deldredge do DEA, Bob Sneed, BATF, Benny Holcomb é auxiliar
do prefeito e Larkin Wainright um examinador do nosso Gabinete de Responsabilidade Profissional -
retorquiu Pearsall. - Paul KrendIer - conhece o Paul - está aqui particularmente como membro da
Procuradoria- Geral da justiça. Paul está a fazer-nos um favor, ou seja, está aqui e não está, apenas para nos
manter a cabeça fora de água, se é que me entende.

Starling entendia perfeitamente: um examinador federal é alguém que chega ao campo de batalha depois da
batalha acabar e enfia a baioneta nos feridos.

As cabeças de algumas das silhuetas inclinaram-se num cumprimento. Os homens ergueram o pescoço e
observaram a jovem mulher por causa de quem estavam ali reunidos. Durante o espaço de umas pulsações,
ninguém falou.
38     THOMAS HARRIS

Bob Sneed quebrou o silêncio. Starling lembrava-se dele como o médico porta-voz do BATF que tentou
abafar o desastre da Divisão Davidiana em Waco. Era um comparsa de KrendIer e considerado um
oportunista.

- Viu a cobertura da imprensa e da televisão, agente Starling. Foi amplamente identificada como a atiradora
que causou a morte de Evelda Drumgo. Foi, infelizmente, como que endemoninhada. Starling não
respondeu.

- Agente Starling?

- Nada tenho a ver com o que foi noticiado, Mister Sneed.
- A mulher tinha o bebé ao colo e decerto tem consciência do problema que isso levanta.

- Não nos braços, mas num porta-bebés pendurado ao peito, enquanto mantinha os braços e as mãos por
baixo, sob uma fralda, que escondia a sua MAC-10.

- Leu o protocolo da autópsia? - retorquiu Sneed.
- Não.

- Mas nunca negou ser a atiradora.

- Julgou que o negaria, só porque não recuperou a bala? Virou-se para o seu chefe do Bureau. - Este é um
encontro amigável, certo, Mister Pearsall?

- Sem dúvida.

- Então por que é que Mister Sneed tem um microfone? Há anos que a Divisão Técnica deixou de fabricar
esses microfones de lapela. Mas ele tem um F-Bird no bolso do casaco que está a gravar tudo. Está agora
na moda usarmos microfones entre membros do mesmo departamento?

O rosto de Pearsall tornou-se escarlate. Caso Sneed tivesse, de facto, um microfone, constituía o pior tipo
de traição, mas ninguém queria ficar com a voz gravada, ordenando a Sneed que o desligasse.

- Não precisamos de qualquer atitude ou acusações da sua parte - replicou Sneed, pálido de raiva. - Todos
estamos aqui com a intenção de ajudá-la.

- Ajudar-me a fazer o quê? A sua agência telefonou para este departamento e fui destacada para o ajudar
nesta incursão. Dei duas hipóteses a Evelda Drumgo de se entregar. Ela empunhava uma MAG-10 sob a
fralda do bebé. já tinha alvejado John Brigham Gostaria que se tivesse entregue. Não o fez. Alvejou-me.
Respondi. Pode verificar o seu microfone, Mister Sneed.

- Tinha antecipado que Evelda Drumgo estaria lá? - quis saber Eldredge.

- Antecipado? O agente Brigham comunicou-me na carrinha a caminho do local que Evelda Drumgo estava
a preparar droga num
HANNIBAL                39

laboratório de metafetamina vigiado. Destacou-me para me haver com ela.

- Lembre-se que Brigham está morto - replicou KrendIer e Burke também, qualquer deles agentes
fantásticos. Não estão aqui para confirmarem ou negarem o que quer que seja.

Starling sentiu um aperto no estômago ao ouvir pronunciar o nome de John Brigham.

- Não é muito provável que eu esqueça que John Brigham está morto, Mister KrendIer, e ele era um bom
agente e um bom amigo. A verdade é que me pediu que tratasse do caso de Evelda.

- Brigham incumbiu-a dessa missão, embora soubesse que você e Evelda já tinham tido um confronto -
comentou KrendIer.

- Então, Paul - interferiu Clint Pearsall.

- Que confronto? - redarguiu Starling. - Uma detenção pacífica. já antes lutara com outros agentes por
altura de detenções. Não me enfrentou quando a prendi antes e falámos um pouco... ela era esperta.
Tratámo-nos com civismo. Esperava poder consegui-lo de novo.

- Fez a afirmação verbal de que «se encarregaria dela»? - perguntou Sneed.

- Reconheci as minhas instruções.

Holcomb, do gabinete do prefeito, inclinou-se na direcção de Sneed. Sneed ajeitou os punhos da camisa,
antes de prosseguir: - Miss Starling, fomos informados pelo agente Bolton, do Departamento de Polícia de
Washington, que pronunciou declarações acaloradas sobre Miss Drumgo na carrinha, a caminho do
confronto. Quer fazer algum comentário?

- Seguindo as instruções do agente Brigham, expliquei aos outros agentes que Evelda tinha uma história de
violência, que costumava andar armada e era seropositiva. Disse que lhe daríamos a oportunidade de se
render pacificamente. Pedi ajuda física para a dominar, se fosse caso disso. Posso afirmar que não havia
muitos voluntários.

Clint Pearsall fez um esforço e interferiu. - Quando o carro dos atiradores do gang Crip chocou e um deles
fugiu, avistou o carro a balouçar e ouviu o bebé a chorar no interior?

- A gritar - corrigiu Starling. - Ergui a mão para que todos parassem o tiroteio e avancei sem cobertura.

- O que constitui uma infracção à nossa forma de actuar observou Eldredge.

Starling ignorou-o e prosseguiu: - Aproximei-me rapidamente do carro, de arma baixa e o cano baixo. Ron
Burke estava moribundo no chão que nos separava. Alguém correu e pôs-lhe uma compressa. Evelda saiu
cá para fora com o bebé. Pedi-lhe que me mostrasse as mãos, disse-lhe qualquer coisa como: «Evelda, não
faça isso».
- Ela disparou, você disparou. Ela caiu de imediato?
40      THOMAS HARRIS

- As pernas cederam e ficou sentada no chão, inclinada sobre o bebé - confirmou Starling com um aceno de
cabeça. - Estava morta.

- Agarrou no bebé e correu para a água. Mostrou preocupação
- redarguiu Pearsall.

- Ignoro o que mostrei. Ele estava coberto de sangue. Não sei se o bebé era ou não HIV positivo, mas sabia
que ela era.

- E pensou que a sua bala pudesse ter atingido o bebé - interferiu KrendIer.

- Não. Sei para onde foi a bala. Posso falar francamente, Mister Pearsall?

Pearsall não a olhou de frente e ela continuou:

- Esta busca foi uma enorme confusão. Colocou-me numa posição em que tinha de optar entre morrer ou
alvejar uma mulher com uma criança ao colo. Optei e o que tive de fazer queima-me. Disparei contra uma
mulher com um bebé ao colo. Nem os animais irracionais o fazem. Pode verificar novamente o seu
gravador, Mister Sneed, aí mesmo onde faço a confissão. Fiquei extremamente ressentida pela posição em
que me vi. E continuo. - Ocorreu-lhe a imagem de Brigham estendido no chão de rosto para baixo e foi
longe de mais. - Tê-los visto a todos a fugirem dá-me volta ao estômago.

- Starling... - exclamou Pearsall, angustiado e fitando-a de frente pela primeira vez.

- Sei que ainda não teve oportunidade de elaborar o seu relatório - interferiu Larkin Wainwright. - Quando
o passarmos em revista...

- Tive sim, sir - arguiu Starling. - Vai uma cópia a caminho do Gabinete de Responsabilidade Profissional.
Tenho uma cópia comigo, se não quiser esperar. Escrevi tudo o que fiz e vi. Como vê, Mister Sneed, teve
sempre tudo em seu poder.

A visão de Starling estava um pouco clara de mais, um sinal de perigo que reconheceu e a levou a baixar
conscientemente o tom de voz:

- Esta rusga correu mal por uma série de motivos. O informador do BATF mentiu quanto à localização do
bebé porque o informador queria desesperadamente que a rusga falhasse - antes do encontro com o júri
federal em Illinois. E Evelda Drumgo sabia que íamos aparecer. Surgiu com o dinheiro num saco e o
produto na outra. O beep ainda indicava o número da estação televisiva WFUL. Recebeu o beep cinco
minutos antes da nossa chegada. O helicóptero da WFUL apareceu ao mesmo tempo que nós. Intime os
telefonistas da WFUL e verifique quem é culpado da fuga de informação. É alguém com interesses locais,
meus senhores. Se a fuga de informação
HANNIBAL             41

fosse do BATF, como aconteceu em Waco, ou do DEA, tê-lo-iam feito à imprensa nacional e não
à televisão local.

Benny Holcomb falou em nome da cidade: - Não há prova de que alguém do governo local ou do
departamento da polícia de Washington tenha deixado escapar qualquer informação.

- Proceda à intimação e verá - insistiu Starling.
- Tem o beeper de Drumgo? - quis saber Pearsall.

- Está selado e na sala de património da Academia de Quantico, o beeper do director-adj unto
Noonan fez-se ouvir. Franziu o sobrolho ao verificar o número e ausentou-se da sala, pedindo
desculpa. Momentos depois, chamou Pearsall para que fosse juntar-se-lhe lá fora.

Wainwright, Eldredge e Holcomb olhavam através da janela na direcção do Fort McNair, com as
mãos enfiadas nos bolsos. Poderiam estar à espera em qualquer unidade de cuidados intensivos.
Paul Krendier trocou um olhar com Sneed e incitou-o a que se aproximasse de Starling.

Sneed pousou a mão no espaldar da cadeira de Starling e inclinou-se sobre ela. - Se testemunhar
no interrogatório que, enquanto se encontrava em missão para o FBI, a sua arma matou Evelda
Drumgo, o BATF está disposto a assinar uma declaração de que Brigham lhe pediu que
prestasse... atenção especial a Evelda, a fim de a deter pacificamente. Foi a sua arma que a matou
e é nesse ponto que o seu departamento tem de assumir responsabilidades. Não ocorrerá uma
desagradável disputa entre agências quanto às regras de envolvimento e não seremos obrigados a
apresentar quaisquer declarações acaloradas ou hostis que tenha feito na carrinha sobre o tipo de
pessoa que ela era.

Starling divisou, por instantes, Evelda Drumgo transpondo a ombreira da porta, a sair do carro,
divisou-lhe a cabeça e, mal-grado a idiotice e a perda da vida de Evelda, apercebeu-se da decisão
que a tomava de levar a criança e enfrentar os carrascos em vez de fugir.

Starling aproximou-se mais do microfone colocado na gravata de Sneed e declarou num tom de
voz nítido: - Tenho o maior prazer em reconhecer o tipo de pessoa que ela era, Mister Sneed. Era
melhor do que o senhor.

Pearsall regressou ao gabinete sem Noonan e fechou a porta atrás de si. - O director-adj unto
Noonan voltou ao seu escritório. Terei que interromper esta reunião, meus senhores, e mais tarde
contacto-vos individualmente por telefone - esclareceu Pearsall.

KrendIer ergueu a cabeça. Pairava no ar um cheiro a política que o alertou.

- Temos de tomar algumas decisões - replicou Sneed.
- Não, não temos.

- Mas...
42       THOMAS HARRIS

- Acredita, Bob, que não temos de decidir seja o que for. já volto a falar consigo. E Bob?

- Sim?

Pearsall agarrou no fio que passava por detrás da gravata de Sneed, puxando-o com força,
arrancando botões da camisa de Sneed e despegando-lhe o microfone do corpo. - Se voltar a
aparecer com uma coisa destas, dou-lhe um pontapé no traseiro.

Nenhum deles olhou para Starling quando saíram, exceptuando KrendIer. Avançando na direcção
da porta e arrastando os pés para não ter de usar a vista, serviu-se do enorme pescoço para a
enfrentar, como uma hiena se postaria na orla de um rebanho, fixando uma candidata a vítima.
Um misto de desejos estampou-se-lhe no rosto. da natureza de KrendIer não se dissociava a
apreciação das pernas de Starling e a melhor forma de lhe imobilizar o tendão.
Capítulo   oito
Ciência Comportamental é a secção do FBI que trata de casos de assassínios em série. Situado no
rés-do-chão do edifício da Academia dispõe de uma atmosfera fresca e tranquila. Nos últimos
anos, alguns decoradores tentaram dar mais cor ao espaço subterrâneo. O resultado não foi
superior ao dos cosméticos utilizados por agências funerárias.

O gabinete do chefe da secção mantém o castanho torrado original com as cortinas cor de café
nas janelas altas. Ali, rodeado dos seus dossiers infernais, Jack Crawford estava sentado a
trabalhar à secretária.

Uma pancada na porta e, ao erguer os olhos, Crawford deparou com uma imagem que lhe
agradou: Clarice Starling de pé, junto à ombreira da porta.

Crawford sorriu e levantou-se da cadeira. Ele e Starling conversavam muitas vezes, de pé; era
uma das tácitas formalidades que tinham imposto na sua relação. Não precisavam trocar um
aperto de mão.

- Ouvi dizer que foi ao hospital - disse Starling. - Lamento o desencontro.

- Fiquei contente por lhe terem dado alta tão rapidamente.
- E a sua orelha? Está bem?

- óptima para quem gosta de couve-flor. Garantem-me que vai desinchar. - Tinha a orelha tapada
pelo cabelo e não se ofereceu para a mostrar.

Um breve silêncio.

- Levaram-me a assumir responsabilidades pela rusga, Mister Crawford. Pela morte de Evelda
Drumgo, por tudo. Eram como hienas e depois repentinamente tudo parou e escapuliram-se. Algo
os afastou.
44      THOMAS HARRIS

- Talvez tenha um anjo, Starling.

- Talvez tenha. O que lhe custou, Mister Crawford?

Crawford abanou a cabeça. - Feche a porta, por favor, Starling
- pediu, ao mesmo tempo que descobriu um Kleenex amachucado no bolso e se pôs a limpar as lentes. - Tê-
lo-ia feito, se pudesse. Não era o caso. Se o senador Martin ainda estivesse ao serviço, teria disposto de
alguma cobertura... Perderam John Brigham nessa incursão
- desperdiçaram-no pura e simplesmente. Teria sido uma vergonha se a perdessem a si como perderam
John. Era como se estivesse a empilhar os vossos corpos num jeep.

As faces de Crawford ruborizaram-se e ela recordou-se da expressão do rosto dele, batida pelo vento
agreste, sobre a sepultura de John Brigham. Crawford nunca lhe falara da sua guerra.

- Fez algo, Mister Crawford.

- Fiz algo - concordou com um aceno de cabeça. - Não sei até que ponto ficará satisfeita. É uma
incumbência.

Uma incumbência. «Incumbência» era uma palavra positiva no seu léxico particular. Significava uma tarefa
específica e imediata e desanuviava a atmosfera. Sempre que era possível evitá-lo, nunca se referiam à
complicada burocracia central do Federal Bureau of Investigation. Crawford e Starling assemelhavam-se a
missionários médicos, com pouca paciência para teologia, cada um deles concentrando-se no que tinham
pela frente, conscientes, sem o dizerem, que Deus não faria uma única coisa divina para os ajudar. Que não
se incomodaria a fazer chover para salvar a vida de 50 mil crianças com o vírus de Ebola.

- De forma indirecta, Starling, o seu benfeitor é o seu recente correspondente.

- O Doutor Lecter - Há muito que se apercebera do desagrado de Crawford quanto a pronunciar o nome.

- Sim, esse mesmo. Iludiu-nos durante todo este tempo... conseguiu pôr-se a são e salvo... e escreve-lhe
uma carta. Porquê? Tinham passado sete anos desde que o Dr. Hannibal Lecter, um famoso assassino de
nove pessoas, escapara da prisão em Menfis, tirando mais cinco vidas nesse processo.

Era como se Lecter se tivesse esfumado da superfície da Terra. O caso mantinha-se aberto no FBI e assim
permaneceria eternamente, ou até ele ser apanhado. Aplicava-se o mesmo a Termessee e outras jurisdições,
mas deixara de existir uma força destacada para o perseguir, embora familiares das suas vítimas tivessem
derramado lágrimas de raiva ante a legislatura do estado de Temessee e exigido actuação.

Volumes inteiros de conjecturas eruditas sobre a sua mentalidade encontravam-se disponíveis, a maior
parte da autoria de psicólogos,
HANNIBAL              45

que nunca tinham sido confrontados pessoalmente com o Doutor. Surgiram algumas obras
escritas por psiquiatras que ele criticara duramente em revistas da especialidade e agora se
achavam em segurança para se exporem. Vários afirmavam que as suas aberrações o levariam
inevitavelmente ao suicídio e que era provável que já estivesse morto.

Pelo menos no ciberespaço, o interesse pelo Dr. Lecter mantinha-se muito vivo. Do chão da
Internet brotavam teorias Lecter como cogumelos e os sites do Doutor rivalizavam em número
com os de Elvis. impostores infestavam as «chat-rooms» e no pântano da clandestinidade
contrabandeavam-se a coleccionadores de mistérios de horrores fotografias da polícia dos seus
ataques de violência. Ocupavam o segundo lugar de popularidade somente ultrapassado pela
execução de Fou-Tchou-Li.

Uma pista do Doutor, decorridos sete anos: a sua carta a Clarice Starling quando ela estava a ser
crucificada pelos tablóides.

A carta não acusava impressões digitais, mas o FBI possuía uma razoável certeza de que era
genuína. Clarice Starling tinha a certeza absoluta.

- Por que é que ele o fez, Starling?- inquiriu Crawford, quase parecendo irritado com ela. - Nunca
dei a entender que o compreendia melhor do que esses estúpidos psiquiatras. Explique-me.

- Ele pensou que o que me aconteceu... destruiria, me desiludiria quanto ao Bureau e ele gosta de
assistir à destruição da fé, é do que mais gosta. Assemelha-se aos desmoronamentos de igrejas
que costumava coleccionar. Adorou a pilha de destroços em Itália quando a fachada da igreja caiu
sobre todas as avós naquela missa especial e alguém espetou uma árvore de Natal no cimo da
pilha. Eu divirto-o, brinca comigo. Quando o entrevistei, deu-lhe imenso gozo apontar falhas na
minha educação, acha-me muito ingénua.

Crawford era porta-voz da sua própria idade e solidão ao sugerir. - Já alguma vez pensou que ele
pudesse gostar de si, Starling?
- Acho que o divirto. As coisas ou o divertem ou não. Se não...
- Alguma vez sentiu que ele gostava de si? - perguntou Crawford, insistindo na distinção entre
pensar e sentir, tal como um Baptista insiste no baptismo por imersão total.

- Durante o nosso breve conhecimento, disse-me várias coisas sobre mim que eram verdadeiras.
Penso que é fácil confundir compreensão com empatia - desejamos tanto a empatia. Talvez
aprender a fazer essa distinção faça parte do crescimento. É difícil e horrível saber que alguém
pode compreender-nos sem mesmo gostar de nós. Quando se encara a compreensão meramente
usada como o instrumento de um predador, é o pior. Não... não faço ideia do que o Doutor Lecter
sente a meu respeito.
46      THOMAS HARRIS

- Que tipo de coisas lhe disse, se é que não se importa de se abrir?
- Disse-me que eu era uma provinciana ambiciosa e desenvolta e os meus olhos brilhavam como pedras
zodiacais baratas. Disse-me que usava sapatos baratos, mas tinha gosto, um pouco de gosto.
- Achou que era verdade?

- Sim. Talvez ainda seja. Comprei sapatos de melhor qualidade.
- Acha, Starling, que ele pudesse estar interessado em verificar se o denunciaria, caso lhe mandasse uma
carta de encorajamento?
- Sabia que o denunciaria, faria melhor em sabê-lo.

- Ele matou seis, depois do tribunal o condenar - replicou Crawford. - Matou Miggs na instituição
psiquiátrica por lhe atirar sémen para o rosto e mais cinco, quando fugiu. Na actual situação política, se o
Doutor for apanhado, receberá uma injecção letal - redarguiu Crawford, com um sorriso ante a ideia.

Crawford fora o pioneiro do estudo de serial killers. Agora estava sob reforma compulsiva e o monstro que
mais o desafiara, continuava em liberdade. A perspectiva de morte para o Dr. Lecter agradava-lhe
enormemente.

Starling sabia que Crawford tinha mencionado a atitude de Migg para lhe fulcrar a atenção, para a fazer
remontar aqueles dias horríveis em que tentava interrogar Hannibal, o Canibal no subterrâneo do Hospital
Estadual para os Criminosamente Insanos de Baltimore. Na época em que Lecter se divertia com ela,
enquanto uma jovem se agachava na cova de Jame Gunib, à espera de morrer. Crawford tinha por hábito
agudizar a atenção quando se aproximava do âmago da questão, como era agora o caso.

- Sabia, Starling, que uma das primeiras vítimas do Doutor Lecter ainda está viva?

- O tal que era rico. A família ofereceu uma recompensa.
- Exacto. Mason Verger. Encontra-se num respirador, em Maryland. O pai morreu este ano e deixou-lhe a
fortuna de acondicionamento de carnes. O velho Verger deixou igualmente a Mason um congressista e um
membro do Comité de Supervisão Judiciária que não conseguiam equilibrar o orçamento sem ele. Mason
afirma que está de posse de algo que pode ajudar-nos a encontrar o Doutor. Quer falar consigo.

- Comigo!

- Consigo. É o que Mason pretende e, de súbito, todos acham que é, de facto, uma boa ideia.

É o que Mason pretende depois de lho ter sugerido?

Iam expulsá-la, Starling, livrar-se de si como se fosse um esfregão. Seria desperdiçada, tal como John
Brigham Apenas para salvar a pele de alguns burocratas do BATF Medo. Pressão. É a linguagem que
entendem. Mandei alguém meter uma moeda para falar com
HANNIBAL               47

Mason e informá-lo de até que ponto a caçada a Lecter ficaria prejudicada, se você fosse dentro. O que
aconteceu em seguida, a quem quer que Mason possa ter telefonado depois, nem quero saber,
provavelmente ao deputado VolImer.

Há um ano, Crawford não teria feito esta jogada. Starling perscrutou-lhe o rosto em busca de qualquer
ataque de loucura temporária que muitas vezes ataca os reformados iminentes. Não conseguiu detectá-la,
mas ele parecia cansado.

- Mason não é bonito, Starling, e não me refiro somente aos traços físicos. Descubra o que tem em seu
poder. Traga-me o que quer que seja e iremos trabalhá-lo aqui. Finalmente.

Starling sabia que há anos, desde que se formara pela Academia do FBI, que Crawford tentava destacá-la
para a Ciência Comportamental.

Agora que era uma veterana do Bureau, veterana de muitas missões secundárias, apercebia-se que o seu
primeiro triunfo na captura do serial híller Jame Gumb, fazia parte da sua ruína no Bureau. Era uma estrela
em ascensão que emperrara na subida. No processo de apanhar Gumb, arranjara pelo menos um inimigo
poderoso e provocara a inveja de uma série de colegas.

Tudo isso e uma certa dose de irritabilidade levara a anos de brigadas de assalto e de brigadas encarregues
de assaltos a bancos, anos de mandados de captura, a ver Newark por um canudo. Por fim, rotulada de
demasiado irascível para trabalhar em equipa, era uma agente técnica, que colocava sob escuta telefones e
carros de gangster e pedófilos, ou fazia vigias solitárias de transmissões. E podia ser requisitada sempre
que uma agência do Bureau precisava de uma pessoa de confiança numa rusga. Era robusta, rápida e
cuidadosa no manejo de armas.

Crawford. apercebeu-se que ela tinha aqui a sua oportunidade. Presupôs que ela sempre quisera caçar
Lecter. A verdade não era assim tão simples.

Nesse momento Crawford perscrutava-a. - Nunca chegou a apagar os vestígios de pólvora do rosto.

Grãos de pólvora seca do revólver do falecido Jame Gurrib marcavam-lhe a face com um sinal preto.

- Nunca tive tempo - arguiu Starling.

- Sabe o que os franceses chamam a um sinal de beleza, um Mouche como esse, na face? Conhece o
significado? - inquiriu Crawford, que era dono de uma biblioteca considerável sobre tatuagens, simbologia
corporal e mutilação ritual.

Starling sacudiu a cabeça.

- Chamam-lhe «coragem» - prosseguiu Crawford. - Pode usá-lo. Eu mantinha-o, se estivesse no seu lugar.
Capítulo   nove
Muskrat Farrn, a mansão da família Verger, junto ao rio Susquehanna, a norte de Maryland
possui uma beleza mágica. A dinastia Verger, de acondicionadores de carne, comprou-a na
década de
30, quando se mudaram da parte oriental de Chicago para ficarem mais perto de Washington e
bem podiam dar-se a esse luxo. Os negócios aliados à perspicácia política tinham permitido aos
Vergers firmarem vantajosos contratos de carne com o Exército Americano desde a Guerra Civil.

O escândalo da «carne embalsamada» durante a Guerra Hispano-Americana quase não afectou os
Vergers. Quando Upton Sinclair e os funcionários de casos de corrupção investigaram condições
perigosas de acondicionamento de carne em algumas fábricas, concluíram que alguns empregados
haviam sido inadvertidamente transformados em banha, enlatados e vendidos como Durharns
Pure Leaf Lard, uma banha da preferência dos padeiros. A culpa não foi imputada aos Vergers. O
assunto não lhes custou um único contrato com o governo.

Os Vergers furtaram-se a estas complicações políticas e muitas outras, dando dinheiro aos
políticos, tendo sofrido como único contratempo a aprovação da Lei da Inspecção da Carne de
1906.

Hoje em dia, os Vergers abatem 86 mil cabeças de gado por dia e cerca de 36 mil porcos, um
número que varia ligeiramente com a estação do ano.

Os relvados recentemente aparados de Muskrat Farm, a profusão dos seus lilazes ao vento, não
cheiram de forma alguma a matadouro. Os únicos animais são póneis para as crianças que visitam
o local e simpáticos bandos de gansos, pastando nos relvados, abanando as caudas e de cabeças
enfiadas na relva. Não há cães. A casa, o celeiro e os terrenos encontram-se próximo do centro de
seis quilómetros
HANNIBAL              49

de floresta nacional e ali se manterão eternamente a coberto de uma isenção especial concedido pelo
Ministério do Interior.

À semelhança de muitos enclaves dos abastados, Muski---at Farm não é muito fácil de encontrar numa
primeira vez. Clarice Starling tomou por uma saída mais à frente na auto-estrada. Regressando pela estrada
nacional, encontrou primeiro a entrada de serviço, um portão enorme com uma corrente e cadeado na
elevada vedação que cercava a floresta. Para lá do portão, um atalho perdia-se ao longo das árvores
arqueadas. Não havia cabine telefónica. Quatro quilómetros mais à frente, descobriu a casa do guarda,
recuada a uns 100 metros num elegante acesso. O guarda uniformizado tinha o nome num cartão.

Mais quatro quilómetros de uma estrada cuidada levaram-na até à herdade.

Starling parou o retumbante Mustang para dar passagem a um bando de gansos. Avistou uma fila de
crianças montadas em encorpados póneis Shetland, saindo de um bonito celeiro, a uns quatrocentos metros
da casa. O edifício principal que tinha diante dos olhos era uma mansão de estilo Stanford-White
graciosamente construída entre montes baixos. O lugar parecia sólido e fecundo, nascente de sonhos
agradáveis. Starling sentiu-se atraída.

Os Vergers; tinham tido a sensatez de deixar a casa como estava, à excepção de um único acréscimo que
Starling ainda não podia divisar, uma ala moderna que desponta da elevação a oriente, semelhante a um
limbo extra ligado a uma grotesca experiência médica.

Starling estacionou sob o alpendre central. Quando desligou o motor, conseguia ouvir o som da própria
respiração. Ao olhar pelo retrovisor, avistou alguém que se aproximava a cavalo. Agora, os cascos ecoavam
no pavimento ao lado do carro, quando Starling saiu.

Uma pessoa de ombros largos e cabelo louro cortado curto virou-se na sela e estendeu as rédeas a um
criado, sem o olhar, - Leva-o de volta - ordenou num tom profundo e gutural.

- Sou Margot Verger, - Ante uma análise mais atenta, revelou-se uma mulher que estendia a mão, com o
braço bem esticado. Margot Verger defendia, indubitavelmente, o culto do corpo.

A malha da T-shirt ressaltava sob o pescoço musculado, e os ombros e braços robustos. Os olhos emitiam
um brilho seco e pareciam irritados, como alguém que não sabe chorar. Vestia calções de montar de sarja e
calçava botas sem esporas.

. - Que carro vem a conduzir? - perguntou. - Um Mustang antigo?

- De 88.

- Cinco litros? Do tipo do que assenta em cima dos pneus?
- sin,. é um mustang Roush.

- Agrada-lhe?
50     THOMAS HARRIS

- Muito.

- Quanto dá?

- Não sei. O suficiente, acho.
- Tem medo dele?

- Respeito-o. Diria que o uso com respeito - replicou Starling.
- já o conhecia ou comprou-o por comprar?

- Conhecia o suficiente para o comprar num leilão quando vi o que era. Aprendi mais sobre ele
depois.

- Acha que venceria o meu Porsche?

- Depende do Porsche. Preciso falar com o seu irmão, Miss Verger.
- Demorarão cerca de cinco minutos a prepará-lo. Podemos começar a dirigir-nos para lá. - Os
calções de montar de sarja roçavam nas fartas coxas de Margot Verger, enquanto ela subia as
escadas. O cabelo louro-palha caíra o suficiente nas têmporas para levar Starling a interrogar-se
sobre se ela tomava esteróides e tivera de atar o clítoris.

Aos olhos de Starling, que passou a maior parte da infância num orfanato Luterano, a casa
assemelhava-se a um museu, com todos aqueles vastos espaços e vigas pintadas sobre a sua
cabeça, e ainda as paredes exibindo retratos de gente morta de ar imponente. Os patamares eram
forrados de esmalte cloasonado e os corredores cobertos de enormes tapetes marroquinos.

Verifica-se uma brusca quebra de estilo na ala nova da mansão Verger. Impera a moderna
estrutura funcional mediante portas duplas de vidro trabalhado e incongruentes no corredor
abobadado.

Margot Verger fez uma pausa do lado de fora das portas. Fitou Starling com o seu olhar aquoso e
enraivecido.

- Algumas pessoas têm dificuldade em falar com Mason - declarou. - Se se sentir incomodada ou
não for capaz de aguentar, posso informá-la mais tarde sobre o que se tiver esquecido de lhe
perguntar.

Há uma emoção comum que todos reconhecemos e a que ainda não conseguimos dar um nome: a
feliz antecipação de ser capaz de sentir desprezo. Starling detectou-a no rosto de Margot Verger.
Starling limitou-se a um: - Obrigada.

Starling verificou, surpreendida, que a primeira divisão da ala era uma enorme e bem equipada
sala de diversões. Duas crianças afro-americanas brincavam no meio de enormes animais de
peluche, uma delas montada numa grande roda e a outra puxando um camião pelo chão. Aos
cantos havia uma série de triciclos e vagonetes e no centro aparelhos de ginástica com o chão
almofadado por baixo.

Num dos cantos da sala, um homem alto fardado de enfermeiro estava sentado num sofá a ler a
Vogue. Havia câmaras de vídeo montadas nas paredes, umas mais altas e outras à altura dos
olhos.
HANNIBAL               51

Uma das que se encontrava no alto, a um canto, detectou Starling e Margot Verger e logo a lente
rodou para posição de focagem.

Starling já não se deixava afectar pela visão de uma criança de cor, mas tomou perfeita
consciência destas crianças. Era agradável ver como brincavam alegremente, quando atravessou a
sala acompanhada por Margot Verger.

- Mason gosta de observar as crianças - informou Margot Verger. - Elas assustam-se ao vê-lo,
excepto os mais pequenos, por isso adopta este processo. Depois vão montar os póneis. São
crianças que frequentam instituições de beneficência de Baltimore durante o dia.

O acesso ao quarto de Mason Verger apenas se faz através da sua casa de banho, uma instalação
digna de uma estância, a toda a largura da ala. Tem um aspecto institucional, toda em aço
cromado e alcatifada, com duches de portas largas, banheiras de aço inoxidável e aparelhos de
elevação, tubos laranja de duche espiralados, sauna e amplos armários de unguentos da farmácia
de Santa Maria Novella, em Florença. O ar na casa de banho ainda estava cheio de vapor devido a
uso recente e pairavam os aromas a bálsamo e óleo de gualtéria.

Starling avistava luz por baixo da porta do quarto de Mason Verger. Apagou-se, mal a irmã tocou
na maçaneta.

Uma área de convívio a um canto do quarto de Mason Verger recebia uma forte iluminação do
tecto. Por cima do sofá estava pendurada uma gravura de The Ancient of Days de William Blake -
Deus medindo com os seus compassos. O quadro apresentava uma fita negra em honra do recente
falecimento do patriarca Verger. O resto da divisão encontrava-se às escuras.

Do escuro chegava-lhe o som de uma máquina a funcionar ritmicamente, suspirando a cada
pancada.

- Boa tarde, agente Starling. - Uma voz ressonante, amplificada mecanicamente, com o princípio
fricativo da palavra «tarde» engolido.
- Boa tarde, Mister Verger - replicou Starling no escuro, com a luz intensa sobre a cabeça. A tarde
ficava num outro lugar. A tarde não entrava aqui.

- Sente-se.

«Vou ter de fazer isto. É bom. É necessárío».

- A nossa troca de palavras, Mister Verger, terá forma de depoimento e precisarei de gravar. Tudo
bem para si?

- Seguramente. - A voz ouvia-se por entre os sopros da máquina, com a sibilante «s» retirada da
palavra. - Acho que podes deixar-nos, Margot.

Margot Verger saiu com um roçar dos calções de montar, sem um olhar para Starling.
52     THOMAS HARRIS

- Mister Verger, gostaria de prender este microfone à sua roupa ou à sua almofada, se não se importar, ou
também posso chamar uma enfermeira, caso prefira.

- Faz favor - redarguiu, sem pronunciar os «f». Ficou a aguardar que o sopro seguinte da máquina lhe desse
forças. - Pode fazê-lo, agente Starling. Estou mesmo aqui.

Starling não conseguiu encontrar quaisquer interruptores de imediato. Concluiu que veria melhor com a
própria vista e aventurou-se pelo escuro, colocando uma mão na frente, na direcção do odor a gualtéria e
bálsamo.

Quando ele acendeu a luz, estava mais próximo da cama do que julgava.

A expressão de Starling permaneceu imutável. A mão que segurava o microfone de lapela recuou um
pouco, talvez uns dois centímetros e meio.

O seu primeiro pensamento formulou-se em separado do que lhe ia no peito e no estômago; foi a
conscencialização de que as anomalias da fala resultavam da ausência total de lábios. O segundo
pensamento foi a verificação de que ele não era cego. O seu único olho azul fitava-a através de uma espécie
de monóculo com um tubo preso que mantinha o olho humedecido, pois faltava-lhe uma pálpebra. Quanto
ao resto, há anos que os cirurgiões tinham feito o que podiam a esticar a pele com enxertos por cima dos
ossos.

Mason Verger, sem nariz nem lábios, sem tecido mole a cobrir-lhe o rosto era todo dentes, semelhante a
uma criatura das profundezas dos oceanos. Dado estarmos habituados a máscaras, o choque de uma tal
visão protela-se. O choque instala-se com a percepção de que existe um rosto humano com uma mente por
detrás. Fica-se siderado com o movimento do mesmo, a articulação do maxilar, a procura com aquele olho.
A procura do nosso rosto normal.

O cabelo de Mason Verger é bonito e, estranhamente, o mais difícil de contemplar. Preto salpicado de
cinzento, encontra-se apanhado num rabo de cavalo com tamanho suficiente para chegar ao chão, se for
puxado para trás da almofada. Hoje, o cabelo apanhado está preso num grande rolo no peito por cima do
respirador em forma de concha de tartaruga. Cabelo humano por baixo dos destroços, uma trança brilhando
como escamas amontoadas.

Sob os lençóis, o corpo há muito paralizado de Mason Verger, reduzido a nada na cama de hospital
elevada.

Diante do rosto estava o comando que se assemelhava a flautas de Pá ou uma harmónica de plástico.
Enrolou a língua como um tubo em redor da boca de um tubo e exalou com o sopro seguinte do respirador.
A cama reagiu com um sussurro, virou-o um pouco para ficar de frente para Starling e aumentou a elevação
da cabeça.
HANNIBAL                53

- Agradeço a Deus o que aconteceu - disse Verger. - Foi a minha salvação. Acredita em Jesus, Miss
Starling? Tem fé?

- Fui criada num ambiente muito religioso, Mister Verger. Tenho o que quer que nos resta nesse caso -
respondeu Starling. Agora, se não se importa, vou prender-lhe isto à sua almofada. Não o incomoda aqui,
pois não? - A voz saiu-lhe num tom mais acelerado e protector do que pretendia.

A mão dela junto à sua cabeça, a visão daquelas duas carnes juntas, não ajudava Starling, nem tão pouco a
pulsação dele nos vasos esticados sobre os ossos da face para lhe fornecer sangue, a dilatação dos mesmos
assemelhava-se a vermes engolindo.

Ajeitou o microfone e recuou até junto da mesa, do seu gravador e do microfone separado.

- Fala a agente especial Clarice Starling, do FBI, número 5143690, recolhendo o depoimento de Mason
R.Verger, número de Segurança Social 475989823, em casa dele, na data acima indicada, sob juramento e
autenticada. Mister Verger está a par que lhe foi concedida imunidade de acusação pelo promotor público
do distrito 36 e pelas autoridades locais num memorando junto, sob juramento e autenticado.

- Agora, Mister Verger...

- Quero falar-lhe do acampamento - interrompeu com o sopro seguinte. - Foi uma maravilhosa experiência
de infância que revivi na essência.

- Podemos chegar lá, Mister Verger, mas julguei que...

- Olhe! Podemos chegar lá agora, Miss Starling. Tudo se resume a dar à luz, sabe? Foi como conheci Jesus
e nunca lhe direi nada mais importante. - Fez uma pausa para que a máquina deixasse sair o ar.
- Era um acampamento cristão que o meu pai pagou. Pagou tudo, todos os cento e vinte e cinco campistas
junto ao lago Michigan. Alguns deles eram uns infelizes e fariam tudo por uma barra de chocolate. Talvez
me tivesse aproveitado, talvez os tratasse com dureza quando não aceitavam o chocolate e não faziam o que
eu queria... Não estou a esconder nada, porque agora está tudo certo.

- Mister Verger, examinemos algum material com o mesmo... Ele não a ouvia e esperava apenas que a
maquina lhe desse fôlego.

- Tenho imunidade, Miss Starling, e está tudo certo, agora. Tenho uma concessão de imunidade de Jesus.
Tenho imunidade do promotor público dos EUA, tenho imunidade do promotor público de Owing Mills,
aleluia! Estou livre, Miss Starling, e está tudo certo. Estou bem com Ele e está tudo certo. Ele é Jesus
Ressuscitado e no acampamento chamávamos-lhe O Ressuscitado. Ninguém o vence. Tornámo-lo actual,
sabe? Servi-o em África, aleluia, servi-o, em Chicago,
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal
Thomas Harris   Hannibal

Más contenido relacionado

La actualidad más candente

Revista Literatura e Música Ano II v. 10- Joana D'Arc
Revista Literatura e Música Ano II v. 10- Joana D'ArcRevista Literatura e Música Ano II v. 10- Joana D'Arc
Revista Literatura e Música Ano II v. 10- Joana D'ArcRaquel Alves
 
Barbara delinsky -_amea%c3%a7as_e_promessas_(threats_and_promises)_-_rainha_d...
Barbara delinsky -_amea%c3%a7as_e_promessas_(threats_and_promises)_-_rainha_d...Barbara delinsky -_amea%c3%a7as_e_promessas_(threats_and_promises)_-_rainha_d...
Barbara delinsky -_amea%c3%a7as_e_promessas_(threats_and_promises)_-_rainha_d...Gaabi0
 
Alistair maclean depois de navarone
Alistair maclean   depois de navaroneAlistair maclean   depois de navarone
Alistair maclean depois de navaroneAriovaldo Cunha
 
A festa de casamento stephen king
A festa de casamento   stephen kingA festa de casamento   stephen king
A festa de casamento stephen kingProfFernandaBraga
 
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
3   érico veríssimo - o arquipélago vol. 13   érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 1Jerônimo Ferreira
 
Joed Venturini - Contos Reunidos
Joed Venturini - Contos ReunidosJoed Venturini - Contos Reunidos
Joed Venturini - Contos ReunidosSammis Reachers
 
Kafka um medico_de_aldeia
Kafka um medico_de_aldeiaKafka um medico_de_aldeia
Kafka um medico_de_aldeiaLuis Taborda
 
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)Niele Maria
 
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
2   érico veríssimo - o retrato vol. 22   érico veríssimo - o retrato vol. 2
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2Jerônimo Ferreira
 
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renatosilvartes
 
Mais profundo que a meia noite midnight breed 9
Mais profundo que a meia noite midnight breed 9Mais profundo que a meia noite midnight breed 9
Mais profundo que a meia noite midnight breed 9Niele Maria
 
O porto secreto jack higgins
O porto secreto   jack higginsO porto secreto   jack higgins
O porto secreto jack higginspauloweimann
 
O caso do voo 302
O caso do voo 302O caso do voo 302
O caso do voo 302Jean Souza
 

La actualidad más candente (19)

Revista Literatura e Música Ano II v. 10- Joana D'Arc
Revista Literatura e Música Ano II v. 10- Joana D'ArcRevista Literatura e Música Ano II v. 10- Joana D'Arc
Revista Literatura e Música Ano II v. 10- Joana D'Arc
 
Barbara delinsky -_amea%c3%a7as_e_promessas_(threats_and_promises)_-_rainha_d...
Barbara delinsky -_amea%c3%a7as_e_promessas_(threats_and_promises)_-_rainha_d...Barbara delinsky -_amea%c3%a7as_e_promessas_(threats_and_promises)_-_rainha_d...
Barbara delinsky -_amea%c3%a7as_e_promessas_(threats_and_promises)_-_rainha_d...
 
Alistair maclean depois de navarone
Alistair maclean   depois de navaroneAlistair maclean   depois de navarone
Alistair maclean depois de navarone
 
A festa de casamento stephen king
A festa de casamento   stephen kingA festa de casamento   stephen king
A festa de casamento stephen king
 
72479838 charlies-mykes
72479838 charlies-mykes72479838 charlies-mykes
72479838 charlies-mykes
 
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
3   érico veríssimo - o arquipélago vol. 13   érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
3 érico veríssimo - o arquipélago vol. 1
 
112
112112
112
 
E book portrait_of_my_heart
E book portrait_of_my_heartE book portrait_of_my_heart
E book portrait_of_my_heart
 
Joed Venturini - Contos Reunidos
Joed Venturini - Contos ReunidosJoed Venturini - Contos Reunidos
Joed Venturini - Contos Reunidos
 
Kafka um medico_de_aldeia
Kafka um medico_de_aldeiaKafka um medico_de_aldeia
Kafka um medico_de_aldeia
 
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)
Estrela da noite vol 5 (série:Os Imortais)
 
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
2   érico veríssimo - o retrato vol. 22   érico veríssimo - o retrato vol. 2
2 érico veríssimo - o retrato vol. 2
 
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato
»A lenda da cova encantada de sintra tomas e renato
 
LEITURA CRÍTICA DO VIDEO CLIPE
LEITURA CRÍTICA DO VIDEO CLIPELEITURA CRÍTICA DO VIDEO CLIPE
LEITURA CRÍTICA DO VIDEO CLIPE
 
Mais profundo que a meia noite midnight breed 9
Mais profundo que a meia noite midnight breed 9Mais profundo que a meia noite midnight breed 9
Mais profundo que a meia noite midnight breed 9
 
O porto secreto jack higgins
O porto secreto   jack higginsO porto secreto   jack higgins
O porto secreto jack higgins
 
Luís Vaz de Camões - Sonetos
Luís Vaz de Camões - SonetosLuís Vaz de Camões - Sonetos
Luís Vaz de Camões - Sonetos
 
67
6767
67
 
O caso do voo 302
O caso do voo 302O caso do voo 302
O caso do voo 302
 

Más de Alex Tosta

Defesa de Doutorado - PROTOCOLO DE SECAGEM DE FRUTOS E ESTABELECIMENTO IN VIT...
Defesa de Doutorado - PROTOCOLO DE SECAGEM DE FRUTOS E ESTABELECIMENTO IN VIT...Defesa de Doutorado - PROTOCOLO DE SECAGEM DE FRUTOS E ESTABELECIMENTO IN VIT...
Defesa de Doutorado - PROTOCOLO DE SECAGEM DE FRUTOS E ESTABELECIMENTO IN VIT...Alex Tosta
 
Defesa do Mestrado - TOLERÂNCIA AO DÉFICE HÍDRICO E EFICIÊNCIA DO USO DE ÁGUA...
Defesa do Mestrado - TOLERÂNCIA AO DÉFICE HÍDRICO E EFICIÊNCIA DO USO DE ÁGUA...Defesa do Mestrado - TOLERÂNCIA AO DÉFICE HÍDRICO E EFICIÊNCIA DO USO DE ÁGUA...
Defesa do Mestrado - TOLERÂNCIA AO DÉFICE HÍDRICO E EFICIÊNCIA DO USO DE ÁGUA...Alex Tosta
 
Super Livro De Receitas
Super Livro De ReceitasSuper Livro De Receitas
Super Livro De ReceitasAlex Tosta
 
Origami De Animais
Origami De AnimaisOrigami De Animais
Origami De AnimaisAlex Tosta
 
Cultivo Da Mamona
Cultivo Da MamonaCultivo Da Mamona
Cultivo Da MamonaAlex Tosta
 
Macro E Micronutrientes ImportâNcia
Macro E Micronutrientes   ImportâNciaMacro E Micronutrientes   ImportâNcia
Macro E Micronutrientes ImportâNciaAlex Tosta
 
Pivo Central - Irrigacao
Pivo Central - IrrigacaoPivo Central - Irrigacao
Pivo Central - IrrigacaoAlex Tosta
 

Más de Alex Tosta (8)

Defesa de Doutorado - PROTOCOLO DE SECAGEM DE FRUTOS E ESTABELECIMENTO IN VIT...
Defesa de Doutorado - PROTOCOLO DE SECAGEM DE FRUTOS E ESTABELECIMENTO IN VIT...Defesa de Doutorado - PROTOCOLO DE SECAGEM DE FRUTOS E ESTABELECIMENTO IN VIT...
Defesa de Doutorado - PROTOCOLO DE SECAGEM DE FRUTOS E ESTABELECIMENTO IN VIT...
 
Defesa do Mestrado - TOLERÂNCIA AO DÉFICE HÍDRICO E EFICIÊNCIA DO USO DE ÁGUA...
Defesa do Mestrado - TOLERÂNCIA AO DÉFICE HÍDRICO E EFICIÊNCIA DO USO DE ÁGUA...Defesa do Mestrado - TOLERÂNCIA AO DÉFICE HÍDRICO E EFICIÊNCIA DO USO DE ÁGUA...
Defesa do Mestrado - TOLERÂNCIA AO DÉFICE HÍDRICO E EFICIÊNCIA DO USO DE ÁGUA...
 
Edital Mda
Edital MdaEdital Mda
Edital Mda
 
Super Livro De Receitas
Super Livro De ReceitasSuper Livro De Receitas
Super Livro De Receitas
 
Origami De Animais
Origami De AnimaisOrigami De Animais
Origami De Animais
 
Cultivo Da Mamona
Cultivo Da MamonaCultivo Da Mamona
Cultivo Da Mamona
 
Macro E Micronutrientes ImportâNcia
Macro E Micronutrientes   ImportâNciaMacro E Micronutrientes   ImportâNcia
Macro E Micronutrientes ImportâNcia
 
Pivo Central - Irrigacao
Pivo Central - IrrigacaoPivo Central - Irrigacao
Pivo Central - Irrigacao
 

Thomas Harris Hannibal

  • 1. THOMAS HARRIS HANNIBAL Esta Obra foi digitalizada e revista por: V.C Tradução de Maria Emília Moura notícias editorial
  • 2. Capítulo um Iria pensar-se que um tal dia temeria começar.. O Mustang de Clarice Starling subiu velozmente a rampa de acesso do BATF na Massachussetts Avenue, uma sede alugada ao reverendo Sun Myung Moon, no interesse da economia. A brigada aguardava em três veículos, uma carrinha particular em mau estado na frente e duas carrinhas pretas da SWAT 2 atrás, a postos e paradas na enorme garagem. Starling tirou o saco de equipamento do carro e correu até junto do primeiro veículo, uma suja carrinha branca com letreiros publicitários da Marcell’s Crab House dos dois lados. Através das portas da retaguarda abertas da carrinha, quatro homens observavam a aproximação de Starling. Parecia esbelta com o uniforme e movia-se rapidamente sob o peso do equipamento, com o cabelo brilhando àquela luz fantasmagórica. - Mulheres. Sempre atrasadas! - comentou um agente D C. O agente especial da BATF John Brigham tinha a operação a seu cargo. - Não está atrasada. Só lhe mandei o beep quando recebemos a informação - retorquiu Brigham. - Deve ter voado de Quantico... Ei, Starling, passe-me o saco. - Olá, John - respondeu Starling erguendo a mão de polegar para cima numa rápida saudação. Brigham dirigiu-se ao rude agente disfarçado que se encontrava ao volante da carrinha e o veículo pôs-se em andamento antes das Iniciais de Burcau of Alcohol, Tobacco and Firearms - Bureau de álcool, Tabaco e Armas de Fogo. (N. da T) 2 Iniciais de Special Weapons and Trachs - Armas e Táctica Especiais, uma equipa policial que usa uniformes e armas de ataque militares, utilizada em acções que exigem coordenação e força extraordinárias. (N. da T) 3D.C. - District of Columbia. (N. da T)
  • 3. 10 THOMAS HARRIS portas de trás se fecharem, desaparecendo na agradável tarde de Outono. Clarice Starling, uma veterana em carrinhas de vigilância, passou por baixo do ocular do periscópio e ocupou um lugar na retaguarda o mais perto possível do bloco de gelo seco de 75 quilos que servia de ar condicionado, sempre que tinham de montar guarda com o motor desligado. A velha carrinha emanava o odor a medo e suor que nunca sai. já ostentara muitos e diferentes letreiros. Aquelas sujas e apagadas letras nas portas tinham trinta minutos de uso. Os buracos de balas tapados com Bond-0 eram mais velhos. As janelas de trás tinham um espelho de sentido único devidamente opaco. Starling conseguia observar as grandes carrinhas pretas da SWAT atrás deles. Esperava que não fossem passar horas pregados nas carrinhas. Os agentes olhavam-na, sempre que virava o rosto na direcção da janela. A agente especial do FBI Clarice Starling, de 32 anos, aparentava a idade que tinha e fazia com que a aparência fosse agradável, mesmo de uniforme. Brigham retirou a prancheta do banco de passageiros da frente. - Como é que se arranja para lhe irem sempre parar às mãos estas tretas, Starling? - inquiriu, sorrindo. - Porque insiste em chamar-me - respondeu. - Preciso de si para isto. No entanto, vejo-a a passar autorizações para brigadas de assalto. Não pergunto, mas acho que há alguém em Buzzard’s Point que a odeia. Devia vir trabalhar comigo. Estes são os meus rapazes, os agentes Marquez Burke e John Hare e este é o agente Bolton do Departamento da Polícia de D.C. Uma brigada de ataque composta por elementos do BATE do DEA1 da SWAT e do FBI constituía o produto final de restrições de orçamento numa altura em que a própria Academia do FBI estava encerrada por falta de fundos. Burke e Hare pareciam agentes. O polícia Bolton, do D.C., tinha ar de xerife. Era um homem na casa dos 45 anos, pesado e viscoso. O prefeito de Washington, desejoso de parecer rígido quanto às drogas depois dele próprio ter sofrido uma condenação, insistia em que a polícia de D.C. colhesse louvores por todas as rusgas importantes na cidade de Washington. Daí, a presença de Bolton. - O bando drumgo está a tramá-las hoje - informou Brigham. - Evelda Drumgo. Eu sabia - replicou Starling sem entusiasmo. Drug Enforcement Administration. (N. da T.)
  • 4. HANNIBAL - Abriu uma fábrica de gelo ao lado do Feliciana Fish Market, junto ao rio. O nosso homem diz que ela está a preparar um fornecimento de cristal, hoje. E tem reservas para o Grand Cayman esta noite. Não podemos esperar. A metafetamina em cristal, conhecida por «gelo» nas ruas, provoca um breve e poderoso speed e uma perigosa dependência. - A droga é da alçada do DEA, mas estamos de olho em Evelda por transporte interestadual de armas Classe 111. O mandado especifica algumas submetralhadoras Beretta e algumas Mac 10 e ela sabe onde há mais. Quero que se concentre em Evelda, Starling. Já lidou com ela antes. Estes tipos dão-lhe cobertura. - Ficamos com o trabalho fácil - comentou o agente Bolton com uma certa satisfação. - Acho melhor falar-lhes de Evelda, Starling - sugeriu Brigham. Starling esperou, enquanto a carrinha passava por cima de uns trilhos de caminho de ferro e depois pronunciou-se: - Evelda vai dar luta. Não dá essa sensação, era modelo, mas dará luta. É a viuva de Dijon Drumgo. Prendi-a por duas vezes com mandados, a primeira juntamente com Dijon. - Desta última vez trazia na bolsa uma 9 ram com três cartuchos e um Mace e uma navalha de ponta e mola no soutien. Não sei o que trará agora. - Na segunda detenção, pedi-lhe delicadamente que se entregasse e fê-lo. Depois, na prisão, matou uma companheira de cela chamada Marsha Valentine com o cabo de uma colher. Portanto, nunca se sabe... é difícil ler-lhe no rosto. O júri considerou que tinha sido em legítima defesa. - Ela venceu a primeira alegação e recorreu da outra. Algumas acusações relativas às armas foram retiradas porque tinha filhos ainda pequenos e o marido acabara de ser morto na Pleasant Avenue, talvez pelos Spliffs. - Vou pedir-lhe que se entregue. Espero que o faça. Vamos dar-lhe uma oportunidade. Mas ouçam-me bem... se tivermos de dominar Evelda Drumgo, quero ajuda a sério. Para lá da cobertura, quero peso em cima dela. Não pensem, meus senhores, que vão ver-me a lutar com Evelda na lama. já tinha havido uma altura em que Starling condescenderia diante destes homens. Não estavam a gostar deste seu discurso, mas vira demasiado na vida para lhe importar. - Evelda Drumgo está ligada aos Trey-Eight Crips através de Dijon - replicou Brigham. - Conta com a protecção deste gang, segundo garante o nosso homem e eles são distribuidores na costa. É Spray autoprotector (N. da T)
  • 5. 12 THOMAS HARRIS sobretudo uma protecção contra os Spliffs. Ignoro o que farão os Críps quando virem que somos nós. Sempre que podem evitar, não se metem com o FBI. - Há algo que devem saber - prosseguiu Starling. - Evelda é seropositiva. Dijon transmitiu-lhe o vírus através de uma seringa. Ela descobriu quando foi detida e passou-se. Nesse dia, matou Marsha Valentine e lutou contra os guardas da prisão. Se não estiver armada e lutar, podem contar ser atingidos com todos os fluidos de que dispuser. Cuspirá e morderá, vai urinar e defecar-vos em cima se tentarem derrubá-la, portanto as luvas e máscaras são indispensáveis. Se a meterem num carro-patrulha, quando lhe empurrarem a cabeça, não esqueçam a hipótese de uma agulha no meio do cabelo e amarrem-lhe os pés. Os rostos de Burke e Hare ensombraram-se e o agente Bolton parecia descontente. Apontou com o queixo pregueado na direcção do revólver de Starling, um Colt.45 que usava num coldre por cima da anca direita. - Anda sempre com essa coisa engatilhada? - quis saber. - Engatilhada e travada em cada minuto do meu dia - elucidou Starling. - Perigoso! - comentou Bolton. - Apareça num campo de tiro e explico-lhe, agente. - Bolton, fui eu que treinei Starling quando ela ganhou o campeonato de tiro entre Serviços há três anos - replicou Brigham, interrompendo a discussão. - Não se preocupe com a arma dela. Como é que passaram a chamar-lhe esses tipos do Hostage Rescue Team, os Velcro Cowboys, depois de lhes ter dado uma lição, Starling? Anme Oakley? - Venenosa Oakley - respondeu, olhando pela janela. Starling sentia-se observada e sozinha nesta carrinha de vigilância malcheirosa a abarrotar de homens. Chaps, Brut, Old Spice, suor e cabedal. O medo invadiu-a com o sabor de uma moeda debaixo da língua. Uma imagem mental: o pai, que cheirava a tabaco e a sabonete, descascando uma laranja com o canivete, a ponta da lâmína em ãngulo recto, partilhando a laranja com ela na cozinha. As luzes traseiras da camioneta do pai a desaparecerem quando saiu naquela patrulha de xerifes que o matou. A roupa dele no armário. A camisa dele. Algumas roupas bonitas no roupeiro dela e que nunca usava. Triste vestuárío festívo em cabides, semelhantes a brinquedos num sótão. - Mais uns dez minutos - anunciou o condutor. Brigham olhou através do pára-brisas e consultou o relógio. é este o esquema - disse, enquanto exibia um diagrama desenhado Brigada de Salvamento de Reféns (N. da T)
  • 6. HANNIBAL 13 rapidamente com uma ponta de feltro e um plano esborratado que lhe fora enviado por fax pelo Departamento da Construção. - O edifício do mercado de peixe situa-se numa fila de armazéns ao longo da margem do rio. A Parcell Street acaba na Riverside Avenue, desembocando nesta praceta em frente do mercado de peixe. - Vejam bem. O edifício do mercado de peixe está de costas para a água. Há uma doca que se estende ao longo das traseiras, aqui. junto ao mercado de peixe, no rés-do-chão fica o laboratório de Evelda. A entrada é pela frente, mesmo ao lado do toldo do mercado de peixe. - Evelda terá os vigias cá fora enquanto estiver a preparar a droga, pelo menos numa área de três quarteirões - prosseguiu. - - já antes lhe deram a dica com tempo bastante para que se desfizesse do produto. Portanto, um grupo de incursão normal da DEA que está na terceira carrinha vai entrar de um barco de pesca, pelo lado da doca, às quinze horas. Podemos aproximar-nos mais do que alguém desta carrinha da porta que dá para a rua, uns minutos antes da rusga. Se Evelda sair pela frente, apanhamo-la. Se ficar lá dentro, atacamos por esta porta, depois deles atacarem pelo outro lado. A segunda carrinha é o nosso reforço, com sete tipos que entram às quinze horas, excepto se formos nós primeiro. - E como vai ser com a porta? - inquiriu Starling. - Se tudo parecer calmo, forçamos - respondeu Burke. - Se houver clarões ou disparos, passamos ao Avon calling - acrescentou, com uma pequena palmada na sua espingarda. Starling já assistira a este tipo de actuação: Avon calling é uma Magnum de sete e meio carregada com pólvora fina destinada a fazer explodir a fechadura, sem atingir as pessoas que se encontram no interior. - Os miúdos de Evelda? Onde estão? - interessou-se Starling. - O nosso informador viu-a deixá-los na creche - replicou Brigham. - O nosso informador está próximo da situação da família, tão próximo quanto é possível estar através de sexo em segurança. O rádio de Brigham deu sinal no auscultador e ele perscrutou a parte do céu que conseguia avistar pela janela da retaguarda. Talvez esteja só a controlar o trânsito - falou para o microfone de pescoço, após o que se dirigiu ao condutor. - Strike Two detectou um helicóptero há um minuto. Viste alguma coisa? Não. É bom que esteja a controlar o trânsito. Agora, vamos lá equipar-nos. Setenta e cinco quilos de gelo não chegam para manter quatro homens frescos na retaguarda de uma carrinha de metal num dia quente, sobretudo se se encontrarem metidos numa armadura. Quando
  • 7. Bolton ergueu os braços, demonstrou que uma aplicação de Canoe não produz o mesmo efeito de um duche. Clarice Starling tinha cosido ombreiras por dentro da camisa do uniforme a fim de aguentarem o peso do colete Kevlar, segundo esperava é à prova de balas. O colete tinha o peso adicional de uma placa de cerâmica nas costas e uma outra na frente. A experiência feita tragédia ensinara o valor da placa nas costas. Liderar um ataque de surpresa com um grupo que não se conhece, de pessoas com vários níveis de treino, é um empreendimento perigoso. O Fogo dos próprios amigos pode danificar a espinha dorsal quando se segue na frente de uma coluna inexperiente e assustada. A cerca de três quilómetros do rio, a terceira carrinha desapareceu, a fim de levar o grupo de incursão DEA ao encontro do barco de pesca e a carrinha de reforço parou a uma distância discreta atrás da carrinha branca de disfarce. A paisagem começava a adquirir um tom descuidado. Um terço dos edifícios estava tapado com tábuas e carros destruídos assentavam em caixotes junto às curvas. Homens jovens preguiçavam nas esquinas em frente de bares e pequenos quiosques. Crianças brincavam à volta de um colchão incendiado no passeio. Se a segurança de Evelda estava cá fora, dissimulara-se bem no meio dos transeuntes vulgares. Junto às lojas de bebidas e nos parques de estacionamento dos pequenos mercados, havia homens sentados dentro de carros, conversando. Um descapotável baixo Impala com quatro jovens afro-americanos meteu-se pelo escasso trânsito e avançou atrás da carrinha. Os passageiros subiam o passeio em benefício das raparigas junto de quem passavam e o som ensurdecedor da aparelhagem estéreo repercutia-se no metal da carrinha. Observando através do espelho de sentido único da janela da retaguarda, Starling apercebeu-se que os jovens do descapotável não constituíam uma ameaça - um carro de ataque dos Crips é quase sempre um poderoso e enorme carro fechado ou station, suficientemente antigo para se fundir nos arredores e as janelas de trás descem por completo. Transporta uma tripulação de três, por vezes quatro elementos. Uma equipa de basquetebol num Buick pode parecer sinistra, se não se tiver a consciência tranquila. Enquanto aguardavam junto a um semáforo, Brigham retirou a lente ocular do periscópio e deu uma palmada no joelho de Bolton. - Olhe em volta e veja se há algumas celebridades locais no passeio - ordenou Brigham A lente objectiva do periscópio está dissimulada num ventilador no tejadilho. Só alcança os passeios.
  • 8. HANNIBAL 15 Bolton fez uma rotação completa e parou, esfregando os olhos. - Tudo estremece demasiado com o motor a trabalhar - queixou-se. Brigham contactou pela rádio com a equipa do barco. - Quatrocemtos metros rio abaixo e aproximando-se - repetiu para a sua equipa na carrinha. A carrinha apanhou um semáforo vermelho um quarteirão mais à frente em Parcell Street e parou de frente para o mercado durante o que pareceu uma eternidade. O condutor virou-se como que a inspeccionar o espelho da direita e dirigiu-se a Brigham pelo canto da boca: - Não parece haver muita gente a comprar peixe. Cá vamos nós. A luz do semáforo mudou e às catorze horas e cinquenta e sete minutos em ponto, exactamente três minutos antes da hora zero, a carrinha de disfarce em mau estado parou diante do Feliciana Fisli Market, num bom lugar junto à curva. Lá atrás, ouviram o ruído quando o motorista puxou o travão de mão. Brigham cedeu o periscópio a Starling. - Verifique - disse, Starling moveu o periscópio de forma a apanhar a fachada do edifício. Mesas e balcões de peixe no gelo brilhavam sob um toldo de oleado no passeio. Peixe das margens de Carolina, apresentava-se artisticamente disposto em gelo moído, caranguejos moviam as patas em caixotes abertos e lagostas trepavam umas por cima das outras num reservatório. O vivaço vendedor colocara pedaços de gelo por cima dos olhos do peixe maior, a fim de que se mantivessem brilhantes até à chegada da fornada de donas de casa espertalhonas nascidas nas Caraíbas que vinham sempre cheirar e espreitar. O sol desenhava um arco-íris no jorro de água da mesa de limpeza do peixe lá fora, onde um homem de aparência latina e musculosos antebraços, cortava um tubarão às postas com golpes experientes e graciosos da sua faca curva e regava o enorme peixe com uma poderosa mangueira de mão. A água ensanguentada escoava para a sarjeta e Starling conseguia ouvi-la a correr por baixo da carrinha. Starling observou o motorista a falar com o peixeiro, dirigindo-lhe uma pergunta. O homem consultou o relógio, encolheu os ombros e apontou para um pequeno café local. O motorista deambulou um minuto pelo mercado, acendeu um cigarro e afastou-se na direcção do estabelecimento. De um altifalante no mercado os sons de La Macarena chegavam nitidamente aos ouvidos de Starling, na carrinha; nunca mais na vida conseguiria suportar aquela música. A porta que interessava situava-se à direita, uma porta dupla de metal emoldurada também em metal e com um único degrau em simétrico. Starling preparava-se para se afastar do periscópio quando a porta se abriu e deu passagem a um homem branco e enorme de camisa
  • 9. 16 THOMAS HARRIS florida e sandálias. Trazia uma sacola pendurada e segurava-a com uma das mãos atrás das costas. Um negro magro surgiu por detrás dele, vestido com uma gabardina. - Cabeças para cima! - ordenou Starling. Atrás dos dois homens, com o seu alto pescoço e o rosto gracioso visível acima dos ombros destacava-se Evelda Drumgo. - Evelda vem atrás de dois tipos e parece que ambos estão de partida - informou Starling. Não conseguiu largar o periscópio com a rapidez bastante para impedir que Brigham fosse de encontro a ela. Starling colocou o capacete. Brigham ditava ordens para a rádio: - Força Um a todas as unidades. Ataquem. Ataquem. Ela saiu por este lado. Vamos mover-nos. - Ponha-os em terra o mais rapidamente possível - retorquiu Brigham, enquanto destravava a arma. - O barco estará aqui dentro de trinta segundos. Vamos. Starling foi a primeira a descer e as tranças de Evelda esvoaçaram quando virou a cabeça na sua direcção. Starling teve consciência dos homens ao seu lado, de armas aperreadas, gritando: - Deitem-se no chão, deitem-se no chão! Evelda saiu do meio dos dois homens. Evelda transportava uma criança num porta-bebés que tinha à volta do pescoço. - Esperem, esperem. Não quero problemas - indicou aos homens, que se encontravam ao lado dela. - Esperem. - Deu um passo em frente, muito direita, segurando o bebé na frente até onde o porta-bebés podia esticar-se, com a fralda pendurada. Dar-lhe um sítio para onde ir. Starling tocou na arma e levantou os braços de mãos abertas. - Evelda! Entregue-se. Venha até mim. - Atrás de Starling, o ruído de um grande V-8 e o guinchar de pneus. Não podia virar-se. Sê o reforço. Ignorando-a, Evelda avançou na direcção de Brigham e a fralda esvoaçou quando a MAC 10 disparou por trás dela e Brigham caiu por terra, com a protecção do rosto coberta de sangue. O homem branco e corpulento deixou cair a sacola. Burke detectou a metralhadora e levantou uma onda de pó inofensivo com os disparos da sua arma. Voltou a carregá-la, mas não a tempo. O robusto adversário disparou uma rajada trespassando o ventre de Burke por baixo do colete e virando-se para Starling no momento em que ela o atingia mesmo a meio da camisa colorida, sem lhe dar tempo a ripostar. Tiros nas costas de Starling, O negro magro tirou a arma de baixo da gabardine e refugiou-se no edifício, ao mesmo tempo que um golpe semelhante a um soco nas costas impelia Starling para diante, cortando-lhe a respiração.
  • 10. HANNIBAL 17 Girou sobre os calcanhares e avistou o carro dos Crip na rua, um Cadillac preto, de vidros descidos, com dois atiradores sentados ao estilo Cheyerme nas janelas da direita disparando pelo tejadilho e um terceiro do banco das traseiras. Fumo e fogo de três canos, balas varrendo os ares à sua volta. Starling mergulhou entre dois carros estacionados e avistou Burke contorcendo-se no chão. Brighan mantinha-se imóvel, com um fio de sangue escoando do capacete. Hare e Bolton disparavam do meio de carros algures do outro lado da rua, de onde voavam vidros estilhaçados que aterravam na estrada e um pneu explodiu ao mesmo tempo que o fogo das automáticas do Cadillac os pregava ao chão. Starling, com um dos pés na sarjeta, levantou a cabeça para espreitar. Dois atiradores, sentados nas janelas, disparando pelo tejadilho do automóvel, enquanto o condutor despejava um revólver com a mão que lhe restava livre. Um quarto homem, no banco da retaguarda, tinha a porta aberta e puxava Evelda com o bebé para o interior. Evelda agarrava na sacola. Eles disparavam contra Bolton e Hare do outro lado da rua, os pneus de trás do Cadillac deitavam fumo e o carro começou a afastar-se. Starling pôs-se de pé, apontou e atingiu o condutor num dos lados da cabeça. Disparou duas vezes contra o atirador sentado na janela da frente e ele caiu de costas. Starling retirou o cartucho vazio da 45 e substituiu-o por outro antes que o vazio chegasse ao chão, sem desviar os olhos do carro. o Cadillac aflorou de raspão uma fila de carros estacionados do outro lado da rua e acabou por embater estrondosamente contra eles. Starling avançava agora na direcção do Cadillac. Um atirador continuava sentado na janela da retaguarda, de olhos injectados e as mãos fazendo força de encontro ao tejadilho, com o peito comprimido entre o Cadillac e um carro estacionado. A arma escorregou pelo tejadilho. Mãos vazias apareceram pela janela da retaguarda, ao lado. Um homem com uma camisa florida azul esfarrapada saiu de mãos erguidas e começou a correr. Starling ignorou-o. Tiros da direita e o corredor mergulhou, rastejando de rosto colado ao chão e tentando enfiar-se debaixo de um carro. As pás de um helicóptero roncando por cima dela. Alguém gritando no mercado de peixe. - Não se levantem. Não se levantem. - Gente debaixo dos balcões e a água da mesa de limpeza abandonada jorrando para o ar. Starling aproximando-se do Cadillac. Movimento nas traseiras do automóvel. Movimento no Cadillac. o carro balançando. o bebé chorando no interior. Disparos e os vidros da janela da retaguarda estilhaçados e espalhados.
  • 11. 18 THOMAS HARRIS Starling ergueu o braço e gritou, sem se virar: - PAREM. Parem o fogo. Vigiem a porta. Atrás de mim. Vigiem a porta do mercado. - Evelda! - Movimento nas traseiras do carro. o bebé chorando no interior. - Evelda. Ponha as mãos fora da janela. Evelda Drumgo estava agora a sair. o bebé num choro gritado e La Macarena ribombando nos altifalantes do mercado de peixe. Evelda estava cá fora e caminhava na direcção de Starling, com a bela cabeça baixa e os braços à volta do bebé. Burke contorcia-se no chão que as separava. Golpes mais pequenos do seu corpo sangravam. La Macarena acompanhava o ritmo de Burke, prostrado no chão. Alguém, correndo encolhido, conseguiu chegar junto dele, deitou-se ao seu lado e comprimiu a ferida. Starling tinha a arma apontada para o chão em frente de Evelda. - Mostre-me as mãos, Evelda. Vá lá, por favor. Mostre-me as mãos. Um alto na fralda. Evelda, de tranças e olhos negros egípcios, ergueu a cabeça e fitou Starling. É então você, Starling! - exclamou. Não faça isso, Evelda. Pense no bebé. Vamos lá trocar fluidos corporais, cabra. A fralda esvoaçou e o ar estremeceu. Starling atingiu Evelda Drumgo através do lábio superior, desfazendo-lhe a nuca. Starling mantinha-se como que sentada com uma dor aguda num dos lados da cabeça e sem fôlego. Evelda também estava sentada no chão, caída para a frente sobre as pernas, enquanto o sangue lhe jorrava da boca para o bebé cujo choro saía sufocado pelo peso do corpo dela. Starling rastejou até junto de Evelda e puxou as fivelas do porta-bebés. Tirou a navalha de ponta e mola do soutien de Evelda, abriu-a sem a olhar e cortou a correia que prendia o bebé. o corpinho era escorregadio, vermelho e difícil de agarrar. Starling pegou-lhe e ergueu os olhos, angustiada. Avistava a água que se erguia num jorro proveniente do mercado de peixe e correu nessa direcção, transportando a criança ensanguentada. Afastou as facas e as entranhas de peixe e pousou a criança no balcão onde se cortavam as postas, virando o forte jacto de mão na sua direcção. o bebé negro estava ali deitado num balcão branco no meio das facas e das entranhas de peixe com a cabeça do tubarão ao lado dele, a ser lavado do sangue contaminado com o vírus do HIV, enquanto o próprio sangue de Starling se derramava sobre ele, correndo num fluxo comum com o sangue de Evelda, tão salgado como a água do mar. A água correndo, um arremesso de arco-íris da Promessa de Deus no jorro. Starling não detectava qualquer orifício na criança. o som estrondoso de La Macarena pelos altifalantes, uma sucessão de flashes até Hare arrastar o fotógrafo para longe dali.
  • 12. capítulo dois Um beco sem saída num bairro operário de Arlington, Virgínia, pouco depois da meia-noite. É uma quente noite de Outono depois de uma chuvada. o ar move-se inquieto diante de uma frente fria. No meio do cheiro a terra molhada e folhas, um grilo entoa uma melodia. Cala-se no momento em que se apercebe de uma enorme vibração, o som abafado de um Mustang de 5 litros com carburadores de aço a virar para o beco, seguido do carro de um xerife. Os dois veículos sobem o acesso a um simpático duplex e param. o Mustang ainda estremece um pouco. Quando o motor se silencia, o grilo aguarda um momento e retoma a melodia, a última antes da geada, a última de sempre. Um xerife fardado sai do banco do condutor do Mustang. Dá a volta ao carro e abre a porta do lado dos passageiros a Clarice Starling. Ela sai. Tem uma ligadura branca à volta da cabeça por cima da orelha. o castanho alaranjado do Betadine mancha-lhe o pescoço por cima da bata verde de hospital que usa em vez de uma camisa. Transporta os objectos pessoais num saco de plástico com fecho de correr: rebuçados de mentol e chaves, a identificação como agente especial do Federal Bureau of Investigation, um carregador com cinco cartuchos e um spray de autoprotecção Mace. juntamente com o saco traz um cinto e um coldre vazio. o xerife estende-lhe as chaves do carro. - Obrigada, Bobby - Quer que eu e o Pharon entremos e fiquemos um bocado? Prefere que vá buscar a Sandra? Ela espera sempre por mim levantada. Trago-a para aqui um pouco. Precisa de companhia... - Não. Fico bem. A Ardelia estará em casa dentro em pouco. Obrigada, Bobby
  • 13. 20 THOMAS HARRIS O xerife entra no carro onde o parceiro o aguarda e depois de se certificar que Starling está a salvo dentro de casa, o carro federal arranca. O quarto das lavagens da casa de Starling está quente e cheira a amaciador de roupa. Os tubos das máquinas de lavar e de secar estão seguros com anilhas de plástico. Starling pousa os objectos pessoais em cima da máquina de lavar. As chaves do carro produzem um ruído estridente no tampo metálico. Starling retira uma carga de roupa da máquina de lavar e mete-a na de secar. Despe as calças do uniforme, enfia-as na máquina de lavar juntamente com a bata de hospital e o soutien manchado de sangue e põe a máquina a trabalhar. Está em peúgas e cuecas e tem uma Especial de calibre 38 num coldre preso ao tornozelo. Ressaltam nódoas negras nas costas e costelas e uma escoriação no cotovelo. O olho e a face direita estão inchados. A máquina de lavar está a aquecer e começa a encher. Starling enrola-se numa grande toalha de praia e entra na sala de estar. Regressa com cinco centímetros de Jack Daniels puro num copo. Senta-se no tapete de borracha diante da máquina de lavar e encosta-se-lhe, enquanto a máquina estremece e se enche de água. Senta-se no chão com o rosto virado para cima e emite alguns soluços secos antes das lágrimas brotarem. Lágrimas escaldantes nas faces, caindo pelas faces. O acompanhante de Ardelia Mapp trouxe-a a casa por volta da meia-noite e quarenta e cinco depois de uma longa viagem de carro de Cape May e ela desejou-lhe boa-noite à porta, Mapp estava na casa de banho quando ouviu a água a correr e o estremecer dos canos, enquanto a máquina de lavar prosseguia o programa. Dirigiu-se às traseiras da casa e acendeu as luzes da cozinha que partilhava com Starling. De onde estava via a lavandaria. Avistou Starling, sentada no chão, com a ligadura à volta da cabeça. - Starling! Oh, pobre querida! - exclamou, ajoelhando-se ao lado dela. - O que aconteceu? - Um tiro atravessou-me a orelha, Ardelia. Trataram-me em Walter Reed. Não acendas a luz, okay? - Tudo bem. Vou preparar-te qualquer coisa. Não dei por nada... estávamos a ouvir cassetes no gravador do carro... Conta-me. - O John morreu, Ardelia. - Não o Johnny Brígham! - Mapp e Starling tinham tido um fraco por Brigham no tempo em que ele era instrutor de tiro na Academia do FBI. Tinham tentado ler-lhe a tatuagem através da manga da camisa. Starling esboçou um aceno afirmativo e limpou os olhos com as costas da mão, como uma criança. - Evelda Drumgo e alguns Crips.
  • 14. HANNIBAL 21 Evelda abateu-o. Também atingiram Burke, Marquez Burke, do BATE Fomos todos. Evelda recebeu a dica antes e a equipa do telejornal chegou lá ao mesmo tempo que nós. Evelda era minha, Não se entregou, Ardelia. Não se entregou e tinha o bebé ao colo. Disparámos uma contra a outra. Ela está morta. Era a primeira vez que Mapp via Starling chorar. - Hoje matei cinco pessoas, Ardelia. Mapp sentou-se no chão ao lado de Starling e rodeou-lhe o ombro com o braço. Encostaram-se as duas à máquina de lavar em funcionamento. - E o bebé de Evelda? - Lavei-lhe o sangue e, tanto quanto vi, não tinha nenhuma ferida. O hospital afirma que fisicamente está bem, Vão entregá-lo à mãe de Evelda daqui a uns dias. Sabes a última coisa que Evelda me disse, Ardelia? Disse-me. «Vamos lá trocar fluidos corporais, cabra». - Deixa-me preparar-te qualquer coisa - replicou Mapp. - O quê? - retorquiu Starling.
  • 15. capítulo três Com o alvorecer cinzento chegaram os jornais e os primeiros telejornais. Mapp apareceu com biscoitos quentes quando se apercebeu que Starling começara a andar de um lado para o outro e pregaram os olhos no ecrã. A CNN e todos os outros canais haviam comprado a cópia filmada pela câmara do helicóptero da estação televisiva WFUL. Era uma filmagem fantástica efectuada directamente por cima do cenário. Starling observou uma vez. Tinha de certificar-se que fora Evelda a primeira a disparar. Fixou o rosto de Mapp e detectou-lhe raiva no rosto de pele castanha. Depois Starling levantou-se a correr para ir vomitar. - É difícil de ver - comentou Starling quando voltou, pálida e com as pernas a tremer. Mapp, como de costume, foi direita ao assunto: - O teu problema reside no que sentes em ter morto aquela afro-americana com a criança ao colo. Aqui tens a resposta. Ela disparou primeiro. Quero que estejas viva. Pensa, Starling, em quem é o responsável por toda esta política de loucura. Que raio de linha de pensamento idiota te colocou e a Evelda Drumgo juntas naquele sítio lúgubre para resolverem o problema da droga entre as duas com umas malditas armas? O que tem isso de esperteza? Espero que reflictas se queres continuar a estar debaixo da pata deles. - Mapp serviu um pouco de chá a nível de pausa. - Queres que fique contigo? Tiro um dia. - Obrigada. Não precisas de o fazer. Telefona-me. O National Tattler, primeiro beneficiário do boom dos tablóides na década de 90, fez uma edição especial que era extraordinária até a nível dos padrões por que se regia. Alguém o atirou para a porta da casa a meio da manhã. Starling encontrou-o quando foi até lá fora ver como estava o golpe. Esperava o pior e assim aconteceu: «ANJO
  • 16. HANNIBAL 23 DA MORTE: A ARMA MORTIFERA DO FBI» anunciava o título do National Tattler em parangonas a itálico. As três fotos da primeira página eram: Clarice Starling, de uniforme, disparando uma pistola de calibre 45 numa atitude de competição, Evelda Drumgo dobrada sobre o bebé no chão, com a cabeça de lado semelhante à de uma Madonna de Cimabui, de miolos estoirados, e novamente Starling, pousando um bebé negro e nu em cima de um balcão de cortar peixe no meio de facas, entranhas de peixe e a cabeça de um tubarão. A legenda por baixo das fotografias dizia: «A agente especial do FBI, Clarice Starling, que eliminou o serial killerjame Gumb, acrescenta, pelo menos, cinco entalhes à sua arma. Mãe com o bebé nos braços e dois agentes da polícia entre os mortos após uma rusga de droga falhada. » A notícia de fundo referia as carreiras de traficantes de Evelda e Dijon Drumgo e o aparecimento do gang Crip no cenário devastado de Washington D.C. Referia-se de passagem o serviço militar do agente abatido John Brigham e citavam-se as suas condecorações. Starling teve direito a uma coluna lateral por baixo de uma simples fotografia de Starling num restaurante com um vestido de decote redondo e uma expressão animada. Claríce Starling, agente especial do FBI, teve os seus quinze minutos de fama quando abateu a tiro o serial killerjame Gumb, o assassino «Buffalo Bill», na casa dele, há sete anos. Agora, pode enfrentar acusações departamentais e responsabilidades civis na morte de quinta-feira de uma mãe de Washington acusada do fabrico de anfetaminas ilegais (ver história na primeira página. «Isto pode significar ofinal da sua carreira», afirmou umafonte do Bureau of Alcohol, Tobacco and Fireams, a co-agência do FBI. Desconhecemos todos os pormenores do que aconteceu, mas John Brigham deveria estar vivo, Era a última coisa de que o FBI precisava depois de Ruby Ridge, declarou a fonte que recusou identificar-se. A movimentada carreira de Clarice Starlíng ínicíou-se pouco depois de ter chegado à Academia do FBI como estagiária. Licenciada com distinção pela Universidade de Virginia em Psicologia e Criminología, foi indigitada para entrevistar o louco assassino Dr Hannibal Lecter. apelidado por este jornal de «Hanníbal, o Canibal» e dele recebeu informações que foram importantes na busca de Jame Gumb e salvação do seu ref Catherine Martin, filha da ex-senadora cle Tennessee. A agente Starling foi campeã de torneios de tiro interserviços durante três anos, antes de se retirar da competição. Ironicamente, o agente Brigham, que morreu ao lado dela, era ínstrutor de armas de fogo em Quantico quando Starling praticou ali e seu treinador em competição, Um porta-voz do FBI declarou que a agente Starling será dispensada do activo, com um salário dependendo do resultado da investigação interna
  • 17. 24 THOMAS HARRIS do FBI. Espera-se um interrogatório ainda esta semana antes do Departamento de Responsabilidade Profissional, a temida inquisição do próprio FBI. Parentes da falecida Evelda Drumgo afirmaram que vão reclamar indemnizações ao governo americano e à pessoa de Starling por casos de morte ilegítima. O bebé de Drumgo, de três meses, visto nos braços da mãe nasfotografias dramáticas do tiroteio, saiu ileso. O advogado Telford Higgins, que defendeu afamília Drumgo em inúmeros processos crime, alegou que a arma da agente Starling, um Colt 45 semi-automático adaptado, não obedecia às normas de aplicação da lei da cidade de Washington. «É um instrumento letal e perigoso e inadequado na aplicação da lei», declarou Híggins. O seu uso corresponde a pôr em perigo a vida humana», acrescentou ofamoso advogado de defesa. O Tattler comprara o número de telefone de casa de Clarice Starling a um dos seus informadores e a campainha soou insistentemente até Starling retirar o auscultador do descanso e passar a servir-se do telemóvel do FBI para falar para o departamento. Starling não sentia muitas dores na orelha e no lado inchado da cara, desde que não tocasse na ligadura. Pelo menos, não latejava. Aguentou-se com dois Tylenol. Não precisava do Percoset que o médico lhe receitara. Passou pelo sono, encostada à cabeceira da cama, enquanto o Washington Post deslizava para o chão. Havia resíduos de pólvora nas mãos e de lágrimas secas nas faces.
  • 18. Capítulo quatro Apaixonamo-nos pelo Bureau, mas o Bureau não se apaixona por nós. MáXIMA DA CONSULTORIA DE DELIGAMENTO DO FBI O ginásio do FBI no edifício J. Edgar Hoover estava praticamente vazio a esta hora matutina. Dois homens de meia-idade corriam na pista interior. O ruído de uma máquina de pesos num canto afastado e os ressaltos da bola de um jogo com raquetas ecoavam no salão. As vozes dos corredores não se ouviam. Jack Crawford corria com o director do FBI, Tunberry, a pedido do director. Tinham percorrido três quilómetros e começavam a arquejar. - Blaylock, do ATF, tem de dar tudo por tudo pela Waco. Não vai acontecer para já, mas está acabado e tem consciência disso - replicou o director. - Bem podia comunicar ao reverendo Moon que vai desocupar as instalações. - O facto do Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms alugar escritórios em Washington ao reverendo Sun Myung Moon é uma fonte de divertimento para o FBI. - E Farriday está de olho em Ruby Ridge - prosseguiu o director. - Não me parece - objectou Crawford. - Trabalhara em Nova Iorque com Farriday na década de 70, quando a malta ocupava os escritórios do FBI na Third Avenue e na 69th Street. - Farriday é bom homem. Não elaborou as regras de admissão. - Falei-lhe ontem de manhã. - E que tal? - interessou-se Crawford. - Digamos que defende os seus benefícios. Tempos perigosos estes, Jack. Os dois homens corriam com a cabeça para trás. Aceleraram um pouco o passo. Pelo canto do olho, Crawford. apercebeu-se que o director avaliava a sua condição física. - Tens quantos, Jack? 56? - Exacto.
  • 19. 26 THOMAS HARRIS - Falta-te um ano para a reforma obrigatória. Muitos tipos saem aos 48, 50, enquanto ainda podem arranjar emprego, Nunca quiseste fazê-lo. Quiseste manter-te ocupado depois da morte de Bella. Quando Crawford correu meia volta sem lhe dar resposta, o director percebeu que cometera uma gafe. - Não pretendo encarar o assunto de ânimo leve, Jack. No outro dia, Doreen referia-se a quanto... - Ainda há umas coisas a tratar em Quantico. Viste no orçamento que queremos dinamizar o VICAP para que qualquer polícia possa utilizá-lo. - Alguma vez quiseste ser director, Jack? - Nunca achei que fosse o tipo de trabalho que se me adequasse. - E não é, Jack. Não és um tipo político. Nunca poderias ter sido director. Nunca poderias ter sido um Eisenhower, Jack, ou um Ornar Bradlcy - Fez sinal a Crawford para que parassem e detiveram-se, ofegantes, junto à pista. Poderias, contudo, ter sido um Patton, Jack. És homem para os guiar através do inferno e conseguir que te amem. É um dom que me falta. Tenho de empurrá-los. - Tunberry olhou rapidamente em redor, apanhou a sua toalha de cima de um banco e enrolou-a à volta dos ombros, como se se tratasse da toga de um juiz de pena capital. Os olhos brilhavam-lhe. «Há pessoas que precisam de despoletar a raiva para serem duros», reflectiu Crawford, atento aos movimentos da boca de Tunberry - No caso da falecida Mistress Drumgo com a MAC-10 e o laboratório de metanfetaminas, abatida a tiro com o bebé ao colo: a Polícia Judiciária quer um sacrifício de carne. Carne fresca e jovem. E os media também. O DEA tem de lhes atirar um pedaço de carne. O ATF também. E nós idem. Mas, no nosso caso talvez se satisfaçam com criação. Kendler acha que podemos entregar-lhes Clarice Starling e deixam-nos em paz. Concordo com ele. O ATF e o DEA aceitam as culpas por planearem a rusga. Starling puxou o gatilho. - Contra uma assassina de polícias que disparou primeiro. - É o quadro, Jack. Não estás a topar, pois não? O público não viu quando Evelda Drumgo abateu John Brigham. Nem viu Evelda a ser a primeira a disparar contra Starling. Não se vê, caso não se saiba para o que se está a olhar. Duzentos milhões de pessoas, um décimo das quais vota, viram Evelda drumgo sentada no chão numa postura protectora sobre o bebé, de miolos estoirados. Não me interrompas, Jack... Sei que por um tempo julgaste que Starling seria a tua protégé. Mas ela fala de mais Jack e começou mal com algumas pessoas... 1 Violent Apprehension Program. (N. da T)
  • 20. HANNIBAL 27 - Kendler é um chato. - Ouve-me bem e não digas nada até eu chegar ao fim. De qualquer forma, a carreira de Starling estava parada. Receberá uma dispensa administrativa sem danos e a papelada será a de uma vulgar suspensão... conseguirá arranjar emprego. És responsável por um trabalho de monta no FBI, a Secção de Ciência Comportamental. Muita gente é de opinião que se tivesses defendido mais os teus interesses, serias muito mais do que um chefe de secção, que mereces muito mais. Serei o primeiro a declará-lo. Vais reformar-te como director-adjunto, Jack. Tens a minha palavra. - Se me mantiver fora disto, queres dizer? - No curso normal dos acontecimentos, Jack. Com paz por todo o reino, é o que acontecerá. Olha para mim, Jack. - Sim, director Tunberry? - Não estou a pedir-te, estou a dar-te uma ordem directa. Mantem-te afastado. Não desperdices oportunidades, Jack. Às vezes, é preciso virar a cara. já o fiz. Ouve bem. Sei que é difícil e acredita que sei como te sentes. - Como me sinto? Sinto que preciso de um duche - replicou Crawford.
  • 21. Capítulo cinco Starling era uma dona de casa eficiente, mas não meticulosa. O seu lado do duplex estava limpo e conseguia encontrar tudo, mas as coisas tendiam a amontoar-se: roupa lavada e por separar e mais revistas do que sítios onde arrumá-las. Engomava tudo à última hora e não precisava ataviar-se, portanto tudo bem. Quando precisava de ordem, dirigia-se à cozinha comum do lado do duplex de Ardelia Mapp. Se Ardelia estava presente, beneficiava dos seus conselhos, que eram sempre úteis, embora por vezes mais pormenorizados do que desejaria. Se Ardelia não estava, era ponto assente que Starling podia instalar-se na absoluta ordem esquematizada por Mapp, desde que não deixasse nada. E foi exactamente o que fez nesse dia. Naquele tipo de casa que parece conter sempre o ocupante, quer ele esteja ou não. Starling sentou-se a observar a apólice do seguro de vida da avó de Mapp, pendurada na parede numa moldura feita à mão, como sempre estivera na herdade da avó e depois no apartamento dos Mapp, durante a infância de Ardelia. A avó dela vendera legumes e flores do jardim e economizara o suficiente para pagar os prémios do seguro e conseguira pedir empréstimos sobre a apólice para ajudar Ardelia quando ela trabalhava e ao mesmo tempo tirava o curso. Havia ainda uma fotografia da pequena e idosa senhora, que não fazia qualquer esforço para sorrir sobre a gola engomada, com os olhos negros emanando uma antiga sabedoria sob a aba do chapéu de palha. Ardelia estava consciente do seu passado e era nele que recolhia forças para o dia-a-dia. Agora, era Starling que tentava recompor-se. O Lar Luterano de Bozeman alimentara-a, vestira-a e dera- lhe um padrão decente de comportamento, mas para o que precisava nesse momento, tinha de apelar ao sangue.
  • 22. HANNIBAL 29 O que se tem, quando se é originário de uma família branca e pobre? E se se nasceu de gente muitas vezes apelidada nas cidades universitárias como pobretanas, trabalhadores rurais ou, condescendentemente, mão-de-obra ou brancos pobres dos Apalaches? E quando a delicadeza incerta do Sul, que não atribui qualquer dignidade ao trabalho físico, se refere à nossa família como sucateiros... em que tradição se recolhem exemplos? No facto de os termos vencido em Bull Run? Ou do bisavó ter feito uma bela figura em Vicksburg ou ainda por um pedaço de Shiloh se ter transformado em Yazoo City? Há muito mais honra e sentido em se ter obtido sucesso com o legado, feito algo com os malditos 40 acres e uma mula, mas há que ver isso com os próprios olhos. Starling saíra-se bem no treino do FBI porque não tinha um passado a apoiá-la. Sobreviveu a maior parte da vida em instituições, respeitando-as e seguindo as normas. Nunca deixara de seguir em frente, obtivera a bolsa e ingressara na equipa. A impossibilidade de progredir no FBI depois de um começo brilhante constituía uma nova e terrível experiência. Embatia contra o tecto de vidro, como uma abelha dentro de uma garrafa. Dispusera de quatro dias para fazer o luto por John Brigham, abatido a tiro na sua frente. Há muito tempo, John Brigham fizera-lhe um pedido e respondera-lhe que não. E depois ele perguntara-lhe se podiam ser amigos e estava a ser sincero, ele respondera que sim e era verdade. Aceitara a realidade de que ela própria tinha morto cinco pessoas no Feliciana Fish Market. Ocorriam-lhe flashes sucessivos do membro do gang Crip com o peito esmagado entre os carros, agarrando-se ao tejadilho do carro, enquanto a arma lhe escorregava para longe. Uma vez e para aliviar a consciência foi ao hospital para examinar o bebé de Evelda. A mãe de Evelda estava presente, com a criança ao colo, preparando-se para a levar para casa. Reconheceu Starling das fotografias dos jornais, entregou o bebé à enfermeira e, sem dar tempo a que Starling se apercebesse das suas intenções, esbofeteou-a com força no lado da cara coberto pela ligadura. Starling não ripostou, mas imobilizou a mulher mais velha com um golpe de gancho de encontro à janela da ala da maternidade até ela deixar de lutar, com o rosto distorcido junto ao vidro sujo de espuma e de cuspo. O sangue corria pelo pescoço de Starling e a dor estonteava-a. Coseram-lhe novamente a orelha na sala de urgências e recusou-se a apresentar queixa. Uma auxiliar da sala de urgências deu uma dica ao TattIer e recebeu trezentos dólares. Teve de sair mais duas vezes, a fim de cumprir as últimas disposições de John Brigham e assistir ao seu funeral no Arlington National
  • 23. 30 THOMAS HARRIS Cemetery Os parentes de Brigham eram poucos e afastados e, nos seus últimos pedidos por escrito, ele nomeava Starling para se ocupar dele. A extensão dos seus danos no rosto exigia um caixão fechado, mas ela cuidara da aparência dele o melhor que conseguira. Deitara-o vestido com o seu fato azul de fuzileiro, a estrela de prata e outras condecorações. Depois da cerimónia, o superior de Brigham entregou a Starling uma caixa com as armas pessoais de John Brigham, os distintivos e alguns objectos da sua secretária sempre desarrumada, incluindo o estúpido pássaro que bebia de um copo. Cinco dias depois, Starling enfrentou um interrogatório que podia destrui-la. É excepção de uma mensagem de Jack Crawford, o seu telefone de trabalho mantivera-se silencioso e deixara de poder falar com Brigham Telefonou para o seu representante na Associação de Agentes do FBI e ele aconselhou-a a que não se apresentasse com brincos de pendentes ou sapatos abertos na frente no interrogatório. A televisão e os jornais pegavam diariamente na história da morte de Evelda Drumgo e sacudiam-na como a um rato. Aqui, na ordem impecável da casa de Mapp, Starling tentava alinhar ideias. O verme que nos destrói é a tentação de concordar com os críticos, de conseguir a aprovação deles. Um barulho estava a interferir. Starling tentava lembrar-se das palavras exactas pronunciadas na carrinha de disfarce. «Teria dito mais do que o necessário?». Um barulho estava a interferir. Brigham indicara-lhe que informasse os outros sobre Evelda. «Teria deixado escapar alguma hostilidade, feito qualquer crítica. Um barulho estava a interferir. Voltou à realidade e apercebeu-se que estava a ouvir a campainha da porta. Provavelmente um repórter. Também esperava uma intimação civil. Afastou a cortina da janela da frente e ao espreitar lá para fora avistou o carteiro que regressava à furgoneta. Abriu a porta da frente e apanhou-o, virando as costas ao carro da imprensa que se encontrava do outro lado da rua, de lente atestada, enquanto assinava o recibo do correio expresso. O envelope era violeta, com laivos de seda no bonito papel de linho. Apesar da sua distracção, recordava- lhe algo. No interior da casa e a salvo de olhares indiscretos, examinou a morada. Uma bela caligrafia. Um aviso disparou, sobrepondo-se ao permanente zumbido de medo no espírito de Starling. Sentiu que a pele do estômago tremia, como se tivesse deixado cair qualquer coisa fria em cima.
  • 24. HANNIBAL 31 Starling pegou no envelope pelas pontas e levou-o para a cozinha. Tirou da bolsa as luvas brancas de recolha de provas que nunca a abandonavam. Premiu o envelope sobre a superfície dura da mesa da cozinha e apalpou-o todo com cuidado. Embora o papel fosse pesado, teria detectado o volume de uma bomba de relógio pronta a fazer explodir uma folha A-4. Sabia que deveria examiná-lo com um fluoroscópio. Caso o abrisse, podia meter- se em sarilhos. Sarilhos. Exacto. Que se lixasse! Abriu o envelope com uma faca de cozinha e retirou do interior a única folha de papel de seda. Soube de imediato, antes mesmo de verificar a assinatura, quem lha escrevera. Querida Clarice, Acompanhei com interesse o percurso da sua infelicidade e humilhação pública. O meu nunca me incomodou, exceptuando o incómodo de estar prisioneiro, mas é possível que lhe falte perspectiva. Durante as nossas discussões no calabouço, não me restaram dúvidas de que o seu pai, o guarda-nocturno assassinado, ocupa um lugar de realce no seu sistema de valores. Julgo que o seu sucesso em terminar com a carreira de costureiro de Jame Gumb lhe deu sobretudo prazer por poder imaginar o seu pai a fazê-lo. Agora, tem má reputação no FBI. Sempre imaginou o seu pai acima de si, imaginou-o um chefe de departamento, ou - melhor ainda do que Jach Crawford - um director-adjunto, seguindo, orgulhoso, o seu progresso? E vê-o, agora, envergonhado e esmagado pela sua desonra? O seu fracasso? O final infeliz e mesquinho de uma carreira promissora? Vê-se a executar as tarefas domésticas a que a sua mãe ficou reduzida, depois dos drogados terem enfiado um balázio no seu PAI? Hummm? Será que o seu falhanço se reflectirá neles, será que as pessoas acreditarão erradamente que os seus pais eram lixo branco de um tornado que varreu um acampamento de roulottes? Diga-me a verdade, agente especial Starling. Reflicta um momento, antes de prosseguirmos. Vou referir-me a uma das suas qualidades e que a ajudará. não está cega pelas lágrimas, ainda pode continuar a ler. Eis um exercício que pode considerar útil. Quero que o faça fisícamente comigo: Tem uma caçarola preta de ferro? É uma rapariga das montanhas do Sul. Não consigo imaginá- la sem uma. Ponha-a em cima da mesa da cozinha. Acenda as luzes do tecto. Mapp herdara a caçarola da avó e utilizava-a com frequência. Tinha uma superfície preta e brilhante que nunca via detergente. Starling pousou-a em cima da mesa na sua frente.
  • 25. 32 THOMAS HARRIS Olhe para a caçarola, Clarice. Incline-se e olhe-a. Se foi a caçarola da sua mãe, e pode muito bem ser, conservará entre as suas moléculas as vibrações de todas as conversas realizadas na sua presença. Todas as trocas de palavras, pequenas zangas, revelações fatais, os anúncios de infortúnio, os queixumes e a poesia do amor Sente-se à mesa, Clarice. Olhe para dentro da caçarola. Se estiver bem polida é um lago preto, não é? Assemelha-se a olhar para dentro de um poço. O seu reflexo pormenorizado não está no fundo, mas assoma nele, certo? A luz atrás de si, mostra-a a negro, com um halo luminoso à volta da cabeça, como se os cabelos estivessem em fogo. Todos somos produtos do carvão. Você e a caçarola, e o seu pai morto no chão, frio como a caçarola. Ainda está tudo ali. Ouça. Como eles ainda soam realmente a vida - ouça os seus pais a discutirem. As memórias concretas e não a imaginação que enche o seu coração. Por que é que o seu pai não era um ajudante de xerife, ligado à gente do tribunal? Por que é que a sua mãe se viu obrigada a limpar motéis para vos manter, embora não tivesse conseguido mantê-los a todos juntos até serem adultos? Qual é a sua memória mais nítida da cozinha? Não do hospital, da cozinha. A minha mãe a lavar o sangue do chapéu do meu pai. Qual é a sua melhor memória da cozinha? O meu pai a descascar laranjas com o seu velho canivete de bolso e a distribuir os gomos entre nós. O seu pai, Claríce, era um guarda-nocturno. A sua mãe era uma criada de quartos. Uma grande carreira federal era uma esperança sua ou deles? Até onde se curvaria o seu pai para ser bem sucedido nafedorenta burocracía? Quantos traseiros estaria disposto a beijar? Alguma vez na vida o viu bajular ou adular? Os seus supervisores demonstraram qualquer valor, Clarice? E os seus pais, demonstraram algum? Em caso afirmativo, esses valores são os mesmos? Olhe para o ferro honesto e responda-me. Falhou perante a sua família morta? Eles desejariam que se dobrasse? Era essa a perspectiva que tinham de coragem? Pode ter a força que quiser É uma guerreira. Claríce. O inimigo está morto e o bebé a salvo. É uma guerreira. Na tabela periódica, Clarice, os elementos mais estáveis aparecem classificados entre o ferro e a prata. Entre o ferro e a prata. Penso que isto se lhe adequa. Hannibal Lecter
  • 26. HANNIBAL 33 PS, - Ainda me deve algumas informações, sabe? Diga-me se continua a acordar ouvindo os cordeiros. Em qualquer domingo ponha um anúncio na coluna de desaparecidos da edição nacional do Times, do International Herald Tribune e China Mail. Dirija-o a A. A. Aaron para que seja o primeiro e assine Hannah. Enquanto lia, Starling ouvia as palavras na mesma voz que troçara dela e a espicaçara, perscrutara a sua vida e a esclarecera na ala de segurança máxima da instituição psiquiátrica, quando tivera de negociar o mais íntimo da sua vida com Hannibal Lecter em troca do seu conhecimento vital de Buffalo Bill. O som metálico daquela voz raramente usada ainda ecoava nos seus sonhos. Havia uma nova teia de aranha no canto do tecto da cozinha. Starling não despregava os olhos dela, enquanto os pensamentos fluíam em turbilhão. Alegria e tristeza, tristeza e alegria. Alegria pela ajuda, alegria por divisar uma forma de cicatrização. Alegria e tristeza pelo facto dos serviços postais do Dr. Lecter em Los Angeles estarem a servir-se de uma ajuda vulgar - desta vez tinham-se servido de uma caixa postal. Jack Crawford ficaria deliciado com a carta, o mesmo acontecendo aos Serviços Postais e ao laboratório.
  • 27. Capítulo seis O quarto onde Mason passa a sua vida é tranquilo, mas tem um pulsar próprio, o inalar e exalar da máquina por onde respira. Está às escuras com excepção do grande aquário onde uma exótica moreia volteia num infindável oito, enquanto a sua sombra negra se projecta como uma fita sobre o quarto. O cabelo apanhado de Mason descansa numa grossa trança em cima do invólucro do respirador que lhe cobre o peito na cama erguida. Diante dele encontra-se suspenso um emaranhado de tubos, semelhantes a flautas. A comprida língua de Mason desliza por entre os dentes. Enrola a língua à volta do último tubo e sopra com a pulsação seguinte do respirador. Uma voz responde imediatamente de um altifalante instalado na parede: - Sir? - O Tattler. - Os dois primeiros «t»I perdem-se, mas a voz ecoa profunda e ressonante, uma voz da rádio. - A primeira página tem... - Não a leias. Põe-a no ecrã. - Voltam a perder-se os primeiros sons do discurso de Mason. Ouve-se o estalido do grande ecrã de um monitor elevado. O brilho azul-esverdeado torna-se rosa quando o cabeçalho vermelho do Tattler surge. «ANJO DA MORTE: A ARMA MORTíFERA DO FBI», lê Mason, através de três lentas exalações do seu respirador. Pode aumentar o tamanho das imagens. Apenas um dos braços está fora dos cobertores da cama. A mão executa um movimento. Id~entica a uma pálida tenaz de santola a mão mexe-se, mais pelo movimento dos dedos do que pela força do braço Em inglês The Tattler. (N. da T)
  • 28. HANNIBAL 35 perdido. Dado Mason não poder virar muito a cabeça para ver, o indicador e o médio apalpam como antenas, enquanto o polegar, o anelar e o dedo mínimo arrastam a mão. Esta encontra o comando que lhe permite aumentar e virar as páginas. Mason lê devagar. O tubo sobre a sua única vista provoca um leve silvo duas vezes por minuto quando espalham humidade sobre o globo ocular sem pálpebra e embacia frequentemente a lente. Leva vinte minutos a ler o artigo principal e a coluna. - Mostra a radiografia - ordenou ao terminar. Levou um momento. A grande chapa da radiografia necessitava de uma mesa iluminada para se ver bem no monitor. Aqui estava uma mão humana, aparentemente danificada. Depois, mais uma chapa, mostrando a mão e todo o braço. Uma marca colada na radiografia mostrava uma antiga fractura no úmero, mais ou menos a meio entre o cotovelo e o ombro. Mason fitou-a depois de muitas exalações. - Põe a carta - disse por fim. Uma bela caligrafia desenhou-se no ecrã com a letra absurdamente ampliada. - «Querida Clarice», leu Mason, acompanhei com interesse o percurso da sua infelicidade e humilhação pública... - O próprio ritmo da voz acordava velhos pensamentos no seu íntimo que o faziam girar e ao quarto também, punham a nu os seus indizíveis pesadelos, acelerando-lhe as batidas do coração. A máquina acusou a sua excitação e encheu-lhe os pulmões com mais rapidez. Leu-a toda, naquele seu ritmo doloroso, lendo sobre a maquina em movimento, como se lesse montado a cavalo. Mason não podia fechar o olho, mas quando terminou a leitura, a mente recolheu-se por detrás do olho, a fim de meditar um pouco. O respirador abrandou e ele soprou no tubo. - Sim, sir - Contacta o senador Vellirior. Traz-me o auscultador. Liga o altifalante. «Clarice Starling», disse de si para si juntamente com o próximo respirar que a máquina lhe permitiu. O nome não tem consoantes explosivas e pronunciou-o muito bem. Não se perdeu um único som. Enquanto aguardava a ligação, passou um pouco pelo sono com a sombra da moreia pairando sobre o lençol, o seu rosto e o cabelo apanhado.
  • 29. Capítulo sete Buzzard’s Point, o quartel-general do FBI para Washington e o distrito de Columbia, é escolhido para uma reunião de abutres num hospital local da Guerra Civil. Na reunião de hoje participam membros intermédios da administraqfto da Drug Enforcement Agency, Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms e FBI, a fim de discutirem o destino de Clarice Starling. Starling encontrava-se de pé, sozinha, na espessa alcatifa do gabinete do seu chefe. Ouvia a própria pulsação por baixo da ligadura à volta da cabeça. Acima da pulsação, ouvia as vozes de homens, abafadas pela porta de vidro fosco de uma sala de conferências contígua. A chancela do FBI com o lema «Fidelidade, Bravura, Integridade» encontra-se elegantemente desenhada em folha dourada no vidro. As vozes por detrás da chancela sobem e descem acaloradas; Starling ouvia o seu nome quando não percebia mais nenhuma palavra. O gabinete dispunha de uma bela vista sobre a bacia com iates até ao Forte McNair, onde os conspiradores acusados do assassínio de Lincoln foram enforcados. Pela mente de Starling perspassaram instantâneos de fotografias que vira de Mary Surratt, passando junto ao seu próprio caixão e subindo os degraus do cadafalso de H. McNaír pendendo com o capuz sobre a cabeça sobre o alçapão, com as saias atadas à volta das pernas por uma questão de pudor, enquanto a largavam com um estrondo para o escuro. Para lá da porta, Starling ouviu o arrastar das cadeiras quando os homens se puseram de pé. Entravam agora neste gabinete. Reconheceu alguns dos rostos. Céus! Estava também Noonan, o subdirector da divisão de investigação.
  • 30. HANNIBAL 37 E havia a sua némesis, Paul KrendIer, do Departamento de justiça, com o enorme pescoço e as orelhas redondas bem no cimo da cabeça, semelhantes às de uma hiena. KrendIer era um oportunista, o homem- sombra do inspector-geral. Desde que ela o antecedera na prisão do serial hiller Buffalo Bill num famoso caso há sete anos, KrendIer nunca perdia uma oportunidade de despejar veneno no seu dossier pessoal e sussurava ao ouvido do Conselho de Promoções. Nenhum destes homens alguma vez estivera numa missão com ela, executara um mandado de captura, fora alvejado ou retirara dos cabelos estilhaços de vidro ao lado dela. Os homens não a olharam individualmente mas em conjunto, da mesma forma que um rebanho centra de súbito as atenções no coxo do grupo. - Sente-se, agente Starling - pronunciou-se o seu patrão, o agente especial Clint Pearsall, esfregando o pulso grosso, como se o relógio o magoasse. Sem a olhar de frente, esboçou um gesto na direcção de uma cadeira de braços de frente para as janelas. Num interrogatório, a cadeira não é o lugar de honra. Os sete homens permaneceram de pé, as silhuetas recortadas a negro com as janelas luminosas por trás. Agora, Starling não conseguia divisar-lhes os rostos, mas detectava-lhes as pernas e os pés, abaixo do brilho. Cinco deles usavam os mocassins de sola grossa preferidos pelos ratos do campo que conseguiram chegar a Washington. Um par de Thom McAnn de biqueira quadrada com solas Corfam e alguns Florsheim também de biqueira quadrada completavam o círculo dos sete. Um cheiro a pomada intensificada por pés quentes. - Na eventualidade de não conhecer todos, agente Starling, este é o director-adj unto Noonan, que estou certo de que sabe quem é; este é John Deldredge do DEA, Bob Sneed, BATF, Benny Holcomb é auxiliar do prefeito e Larkin Wainright um examinador do nosso Gabinete de Responsabilidade Profissional - retorquiu Pearsall. - Paul KrendIer - conhece o Paul - está aqui particularmente como membro da Procuradoria- Geral da justiça. Paul está a fazer-nos um favor, ou seja, está aqui e não está, apenas para nos manter a cabeça fora de água, se é que me entende. Starling entendia perfeitamente: um examinador federal é alguém que chega ao campo de batalha depois da batalha acabar e enfia a baioneta nos feridos. As cabeças de algumas das silhuetas inclinaram-se num cumprimento. Os homens ergueram o pescoço e observaram a jovem mulher por causa de quem estavam ali reunidos. Durante o espaço de umas pulsações, ninguém falou.
  • 31. 38 THOMAS HARRIS Bob Sneed quebrou o silêncio. Starling lembrava-se dele como o médico porta-voz do BATF que tentou abafar o desastre da Divisão Davidiana em Waco. Era um comparsa de KrendIer e considerado um oportunista. - Viu a cobertura da imprensa e da televisão, agente Starling. Foi amplamente identificada como a atiradora que causou a morte de Evelda Drumgo. Foi, infelizmente, como que endemoninhada. Starling não respondeu. - Agente Starling? - Nada tenho a ver com o que foi noticiado, Mister Sneed. - A mulher tinha o bebé ao colo e decerto tem consciência do problema que isso levanta. - Não nos braços, mas num porta-bebés pendurado ao peito, enquanto mantinha os braços e as mãos por baixo, sob uma fralda, que escondia a sua MAC-10. - Leu o protocolo da autópsia? - retorquiu Sneed. - Não. - Mas nunca negou ser a atiradora. - Julgou que o negaria, só porque não recuperou a bala? Virou-se para o seu chefe do Bureau. - Este é um encontro amigável, certo, Mister Pearsall? - Sem dúvida. - Então por que é que Mister Sneed tem um microfone? Há anos que a Divisão Técnica deixou de fabricar esses microfones de lapela. Mas ele tem um F-Bird no bolso do casaco que está a gravar tudo. Está agora na moda usarmos microfones entre membros do mesmo departamento? O rosto de Pearsall tornou-se escarlate. Caso Sneed tivesse, de facto, um microfone, constituía o pior tipo de traição, mas ninguém queria ficar com a voz gravada, ordenando a Sneed que o desligasse. - Não precisamos de qualquer atitude ou acusações da sua parte - replicou Sneed, pálido de raiva. - Todos estamos aqui com a intenção de ajudá-la. - Ajudar-me a fazer o quê? A sua agência telefonou para este departamento e fui destacada para o ajudar nesta incursão. Dei duas hipóteses a Evelda Drumgo de se entregar. Ela empunhava uma MAG-10 sob a fralda do bebé. já tinha alvejado John Brigham Gostaria que se tivesse entregue. Não o fez. Alvejou-me. Respondi. Pode verificar o seu microfone, Mister Sneed. - Tinha antecipado que Evelda Drumgo estaria lá? - quis saber Eldredge. - Antecipado? O agente Brigham comunicou-me na carrinha a caminho do local que Evelda Drumgo estava a preparar droga num
  • 32. HANNIBAL 39 laboratório de metafetamina vigiado. Destacou-me para me haver com ela. - Lembre-se que Brigham está morto - replicou KrendIer e Burke também, qualquer deles agentes fantásticos. Não estão aqui para confirmarem ou negarem o que quer que seja. Starling sentiu um aperto no estômago ao ouvir pronunciar o nome de John Brigham. - Não é muito provável que eu esqueça que John Brigham está morto, Mister KrendIer, e ele era um bom agente e um bom amigo. A verdade é que me pediu que tratasse do caso de Evelda. - Brigham incumbiu-a dessa missão, embora soubesse que você e Evelda já tinham tido um confronto - comentou KrendIer. - Então, Paul - interferiu Clint Pearsall. - Que confronto? - redarguiu Starling. - Uma detenção pacífica. já antes lutara com outros agentes por altura de detenções. Não me enfrentou quando a prendi antes e falámos um pouco... ela era esperta. Tratámo-nos com civismo. Esperava poder consegui-lo de novo. - Fez a afirmação verbal de que «se encarregaria dela»? - perguntou Sneed. - Reconheci as minhas instruções. Holcomb, do gabinete do prefeito, inclinou-se na direcção de Sneed. Sneed ajeitou os punhos da camisa, antes de prosseguir: - Miss Starling, fomos informados pelo agente Bolton, do Departamento de Polícia de Washington, que pronunciou declarações acaloradas sobre Miss Drumgo na carrinha, a caminho do confronto. Quer fazer algum comentário? - Seguindo as instruções do agente Brigham, expliquei aos outros agentes que Evelda tinha uma história de violência, que costumava andar armada e era seropositiva. Disse que lhe daríamos a oportunidade de se render pacificamente. Pedi ajuda física para a dominar, se fosse caso disso. Posso afirmar que não havia muitos voluntários. Clint Pearsall fez um esforço e interferiu. - Quando o carro dos atiradores do gang Crip chocou e um deles fugiu, avistou o carro a balouçar e ouviu o bebé a chorar no interior? - A gritar - corrigiu Starling. - Ergui a mão para que todos parassem o tiroteio e avancei sem cobertura. - O que constitui uma infracção à nossa forma de actuar observou Eldredge. Starling ignorou-o e prosseguiu: - Aproximei-me rapidamente do carro, de arma baixa e o cano baixo. Ron Burke estava moribundo no chão que nos separava. Alguém correu e pôs-lhe uma compressa. Evelda saiu cá para fora com o bebé. Pedi-lhe que me mostrasse as mãos, disse-lhe qualquer coisa como: «Evelda, não faça isso». - Ela disparou, você disparou. Ela caiu de imediato?
  • 33. 40 THOMAS HARRIS - As pernas cederam e ficou sentada no chão, inclinada sobre o bebé - confirmou Starling com um aceno de cabeça. - Estava morta. - Agarrou no bebé e correu para a água. Mostrou preocupação - redarguiu Pearsall. - Ignoro o que mostrei. Ele estava coberto de sangue. Não sei se o bebé era ou não HIV positivo, mas sabia que ela era. - E pensou que a sua bala pudesse ter atingido o bebé - interferiu KrendIer. - Não. Sei para onde foi a bala. Posso falar francamente, Mister Pearsall? Pearsall não a olhou de frente e ela continuou: - Esta busca foi uma enorme confusão. Colocou-me numa posição em que tinha de optar entre morrer ou alvejar uma mulher com uma criança ao colo. Optei e o que tive de fazer queima-me. Disparei contra uma mulher com um bebé ao colo. Nem os animais irracionais o fazem. Pode verificar novamente o seu gravador, Mister Sneed, aí mesmo onde faço a confissão. Fiquei extremamente ressentida pela posição em que me vi. E continuo. - Ocorreu-lhe a imagem de Brigham estendido no chão de rosto para baixo e foi longe de mais. - Tê-los visto a todos a fugirem dá-me volta ao estômago. - Starling... - exclamou Pearsall, angustiado e fitando-a de frente pela primeira vez. - Sei que ainda não teve oportunidade de elaborar o seu relatório - interferiu Larkin Wainwright. - Quando o passarmos em revista... - Tive sim, sir - arguiu Starling. - Vai uma cópia a caminho do Gabinete de Responsabilidade Profissional. Tenho uma cópia comigo, se não quiser esperar. Escrevi tudo o que fiz e vi. Como vê, Mister Sneed, teve sempre tudo em seu poder. A visão de Starling estava um pouco clara de mais, um sinal de perigo que reconheceu e a levou a baixar conscientemente o tom de voz: - Esta rusga correu mal por uma série de motivos. O informador do BATF mentiu quanto à localização do bebé porque o informador queria desesperadamente que a rusga falhasse - antes do encontro com o júri federal em Illinois. E Evelda Drumgo sabia que íamos aparecer. Surgiu com o dinheiro num saco e o produto na outra. O beep ainda indicava o número da estação televisiva WFUL. Recebeu o beep cinco minutos antes da nossa chegada. O helicóptero da WFUL apareceu ao mesmo tempo que nós. Intime os telefonistas da WFUL e verifique quem é culpado da fuga de informação. É alguém com interesses locais, meus senhores. Se a fuga de informação
  • 34. HANNIBAL 41 fosse do BATF, como aconteceu em Waco, ou do DEA, tê-lo-iam feito à imprensa nacional e não à televisão local. Benny Holcomb falou em nome da cidade: - Não há prova de que alguém do governo local ou do departamento da polícia de Washington tenha deixado escapar qualquer informação. - Proceda à intimação e verá - insistiu Starling. - Tem o beeper de Drumgo? - quis saber Pearsall. - Está selado e na sala de património da Academia de Quantico, o beeper do director-adj unto Noonan fez-se ouvir. Franziu o sobrolho ao verificar o número e ausentou-se da sala, pedindo desculpa. Momentos depois, chamou Pearsall para que fosse juntar-se-lhe lá fora. Wainwright, Eldredge e Holcomb olhavam através da janela na direcção do Fort McNair, com as mãos enfiadas nos bolsos. Poderiam estar à espera em qualquer unidade de cuidados intensivos. Paul Krendier trocou um olhar com Sneed e incitou-o a que se aproximasse de Starling. Sneed pousou a mão no espaldar da cadeira de Starling e inclinou-se sobre ela. - Se testemunhar no interrogatório que, enquanto se encontrava em missão para o FBI, a sua arma matou Evelda Drumgo, o BATF está disposto a assinar uma declaração de que Brigham lhe pediu que prestasse... atenção especial a Evelda, a fim de a deter pacificamente. Foi a sua arma que a matou e é nesse ponto que o seu departamento tem de assumir responsabilidades. Não ocorrerá uma desagradável disputa entre agências quanto às regras de envolvimento e não seremos obrigados a apresentar quaisquer declarações acaloradas ou hostis que tenha feito na carrinha sobre o tipo de pessoa que ela era. Starling divisou, por instantes, Evelda Drumgo transpondo a ombreira da porta, a sair do carro, divisou-lhe a cabeça e, mal-grado a idiotice e a perda da vida de Evelda, apercebeu-se da decisão que a tomava de levar a criança e enfrentar os carrascos em vez de fugir. Starling aproximou-se mais do microfone colocado na gravata de Sneed e declarou num tom de voz nítido: - Tenho o maior prazer em reconhecer o tipo de pessoa que ela era, Mister Sneed. Era melhor do que o senhor. Pearsall regressou ao gabinete sem Noonan e fechou a porta atrás de si. - O director-adj unto Noonan voltou ao seu escritório. Terei que interromper esta reunião, meus senhores, e mais tarde contacto-vos individualmente por telefone - esclareceu Pearsall. KrendIer ergueu a cabeça. Pairava no ar um cheiro a política que o alertou. - Temos de tomar algumas decisões - replicou Sneed. - Não, não temos. - Mas...
  • 35. 42 THOMAS HARRIS - Acredita, Bob, que não temos de decidir seja o que for. já volto a falar consigo. E Bob? - Sim? Pearsall agarrou no fio que passava por detrás da gravata de Sneed, puxando-o com força, arrancando botões da camisa de Sneed e despegando-lhe o microfone do corpo. - Se voltar a aparecer com uma coisa destas, dou-lhe um pontapé no traseiro. Nenhum deles olhou para Starling quando saíram, exceptuando KrendIer. Avançando na direcção da porta e arrastando os pés para não ter de usar a vista, serviu-se do enorme pescoço para a enfrentar, como uma hiena se postaria na orla de um rebanho, fixando uma candidata a vítima. Um misto de desejos estampou-se-lhe no rosto. da natureza de KrendIer não se dissociava a apreciação das pernas de Starling e a melhor forma de lhe imobilizar o tendão.
  • 36. Capítulo oito Ciência Comportamental é a secção do FBI que trata de casos de assassínios em série. Situado no rés-do-chão do edifício da Academia dispõe de uma atmosfera fresca e tranquila. Nos últimos anos, alguns decoradores tentaram dar mais cor ao espaço subterrâneo. O resultado não foi superior ao dos cosméticos utilizados por agências funerárias. O gabinete do chefe da secção mantém o castanho torrado original com as cortinas cor de café nas janelas altas. Ali, rodeado dos seus dossiers infernais, Jack Crawford estava sentado a trabalhar à secretária. Uma pancada na porta e, ao erguer os olhos, Crawford deparou com uma imagem que lhe agradou: Clarice Starling de pé, junto à ombreira da porta. Crawford sorriu e levantou-se da cadeira. Ele e Starling conversavam muitas vezes, de pé; era uma das tácitas formalidades que tinham imposto na sua relação. Não precisavam trocar um aperto de mão. - Ouvi dizer que foi ao hospital - disse Starling. - Lamento o desencontro. - Fiquei contente por lhe terem dado alta tão rapidamente. - E a sua orelha? Está bem? - óptima para quem gosta de couve-flor. Garantem-me que vai desinchar. - Tinha a orelha tapada pelo cabelo e não se ofereceu para a mostrar. Um breve silêncio. - Levaram-me a assumir responsabilidades pela rusga, Mister Crawford. Pela morte de Evelda Drumgo, por tudo. Eram como hienas e depois repentinamente tudo parou e escapuliram-se. Algo os afastou.
  • 37. 44 THOMAS HARRIS - Talvez tenha um anjo, Starling. - Talvez tenha. O que lhe custou, Mister Crawford? Crawford abanou a cabeça. - Feche a porta, por favor, Starling - pediu, ao mesmo tempo que descobriu um Kleenex amachucado no bolso e se pôs a limpar as lentes. - Tê- lo-ia feito, se pudesse. Não era o caso. Se o senador Martin ainda estivesse ao serviço, teria disposto de alguma cobertura... Perderam John Brigham nessa incursão - desperdiçaram-no pura e simplesmente. Teria sido uma vergonha se a perdessem a si como perderam John. Era como se estivesse a empilhar os vossos corpos num jeep. As faces de Crawford ruborizaram-se e ela recordou-se da expressão do rosto dele, batida pelo vento agreste, sobre a sepultura de John Brigham. Crawford nunca lhe falara da sua guerra. - Fez algo, Mister Crawford. - Fiz algo - concordou com um aceno de cabeça. - Não sei até que ponto ficará satisfeita. É uma incumbência. Uma incumbência. «Incumbência» era uma palavra positiva no seu léxico particular. Significava uma tarefa específica e imediata e desanuviava a atmosfera. Sempre que era possível evitá-lo, nunca se referiam à complicada burocracia central do Federal Bureau of Investigation. Crawford e Starling assemelhavam-se a missionários médicos, com pouca paciência para teologia, cada um deles concentrando-se no que tinham pela frente, conscientes, sem o dizerem, que Deus não faria uma única coisa divina para os ajudar. Que não se incomodaria a fazer chover para salvar a vida de 50 mil crianças com o vírus de Ebola. - De forma indirecta, Starling, o seu benfeitor é o seu recente correspondente. - O Doutor Lecter - Há muito que se apercebera do desagrado de Crawford quanto a pronunciar o nome. - Sim, esse mesmo. Iludiu-nos durante todo este tempo... conseguiu pôr-se a são e salvo... e escreve-lhe uma carta. Porquê? Tinham passado sete anos desde que o Dr. Hannibal Lecter, um famoso assassino de nove pessoas, escapara da prisão em Menfis, tirando mais cinco vidas nesse processo. Era como se Lecter se tivesse esfumado da superfície da Terra. O caso mantinha-se aberto no FBI e assim permaneceria eternamente, ou até ele ser apanhado. Aplicava-se o mesmo a Termessee e outras jurisdições, mas deixara de existir uma força destacada para o perseguir, embora familiares das suas vítimas tivessem derramado lágrimas de raiva ante a legislatura do estado de Temessee e exigido actuação. Volumes inteiros de conjecturas eruditas sobre a sua mentalidade encontravam-se disponíveis, a maior parte da autoria de psicólogos,
  • 38. HANNIBAL 45 que nunca tinham sido confrontados pessoalmente com o Doutor. Surgiram algumas obras escritas por psiquiatras que ele criticara duramente em revistas da especialidade e agora se achavam em segurança para se exporem. Vários afirmavam que as suas aberrações o levariam inevitavelmente ao suicídio e que era provável que já estivesse morto. Pelo menos no ciberespaço, o interesse pelo Dr. Lecter mantinha-se muito vivo. Do chão da Internet brotavam teorias Lecter como cogumelos e os sites do Doutor rivalizavam em número com os de Elvis. impostores infestavam as «chat-rooms» e no pântano da clandestinidade contrabandeavam-se a coleccionadores de mistérios de horrores fotografias da polícia dos seus ataques de violência. Ocupavam o segundo lugar de popularidade somente ultrapassado pela execução de Fou-Tchou-Li. Uma pista do Doutor, decorridos sete anos: a sua carta a Clarice Starling quando ela estava a ser crucificada pelos tablóides. A carta não acusava impressões digitais, mas o FBI possuía uma razoável certeza de que era genuína. Clarice Starling tinha a certeza absoluta. - Por que é que ele o fez, Starling?- inquiriu Crawford, quase parecendo irritado com ela. - Nunca dei a entender que o compreendia melhor do que esses estúpidos psiquiatras. Explique-me. - Ele pensou que o que me aconteceu... destruiria, me desiludiria quanto ao Bureau e ele gosta de assistir à destruição da fé, é do que mais gosta. Assemelha-se aos desmoronamentos de igrejas que costumava coleccionar. Adorou a pilha de destroços em Itália quando a fachada da igreja caiu sobre todas as avós naquela missa especial e alguém espetou uma árvore de Natal no cimo da pilha. Eu divirto-o, brinca comigo. Quando o entrevistei, deu-lhe imenso gozo apontar falhas na minha educação, acha-me muito ingénua. Crawford era porta-voz da sua própria idade e solidão ao sugerir. - Já alguma vez pensou que ele pudesse gostar de si, Starling? - Acho que o divirto. As coisas ou o divertem ou não. Se não... - Alguma vez sentiu que ele gostava de si? - perguntou Crawford, insistindo na distinção entre pensar e sentir, tal como um Baptista insiste no baptismo por imersão total. - Durante o nosso breve conhecimento, disse-me várias coisas sobre mim que eram verdadeiras. Penso que é fácil confundir compreensão com empatia - desejamos tanto a empatia. Talvez aprender a fazer essa distinção faça parte do crescimento. É difícil e horrível saber que alguém pode compreender-nos sem mesmo gostar de nós. Quando se encara a compreensão meramente usada como o instrumento de um predador, é o pior. Não... não faço ideia do que o Doutor Lecter sente a meu respeito.
  • 39. 46 THOMAS HARRIS - Que tipo de coisas lhe disse, se é que não se importa de se abrir? - Disse-me que eu era uma provinciana ambiciosa e desenvolta e os meus olhos brilhavam como pedras zodiacais baratas. Disse-me que usava sapatos baratos, mas tinha gosto, um pouco de gosto. - Achou que era verdade? - Sim. Talvez ainda seja. Comprei sapatos de melhor qualidade. - Acha, Starling, que ele pudesse estar interessado em verificar se o denunciaria, caso lhe mandasse uma carta de encorajamento? - Sabia que o denunciaria, faria melhor em sabê-lo. - Ele matou seis, depois do tribunal o condenar - replicou Crawford. - Matou Miggs na instituição psiquiátrica por lhe atirar sémen para o rosto e mais cinco, quando fugiu. Na actual situação política, se o Doutor for apanhado, receberá uma injecção letal - redarguiu Crawford, com um sorriso ante a ideia. Crawford fora o pioneiro do estudo de serial killers. Agora estava sob reforma compulsiva e o monstro que mais o desafiara, continuava em liberdade. A perspectiva de morte para o Dr. Lecter agradava-lhe enormemente. Starling sabia que Crawford tinha mencionado a atitude de Migg para lhe fulcrar a atenção, para a fazer remontar aqueles dias horríveis em que tentava interrogar Hannibal, o Canibal no subterrâneo do Hospital Estadual para os Criminosamente Insanos de Baltimore. Na época em que Lecter se divertia com ela, enquanto uma jovem se agachava na cova de Jame Gunib, à espera de morrer. Crawford tinha por hábito agudizar a atenção quando se aproximava do âmago da questão, como era agora o caso. - Sabia, Starling, que uma das primeiras vítimas do Doutor Lecter ainda está viva? - O tal que era rico. A família ofereceu uma recompensa. - Exacto. Mason Verger. Encontra-se num respirador, em Maryland. O pai morreu este ano e deixou-lhe a fortuna de acondicionamento de carnes. O velho Verger deixou igualmente a Mason um congressista e um membro do Comité de Supervisão Judiciária que não conseguiam equilibrar o orçamento sem ele. Mason afirma que está de posse de algo que pode ajudar-nos a encontrar o Doutor. Quer falar consigo. - Comigo! - Consigo. É o que Mason pretende e, de súbito, todos acham que é, de facto, uma boa ideia. É o que Mason pretende depois de lho ter sugerido? Iam expulsá-la, Starling, livrar-se de si como se fosse um esfregão. Seria desperdiçada, tal como John Brigham Apenas para salvar a pele de alguns burocratas do BATF Medo. Pressão. É a linguagem que entendem. Mandei alguém meter uma moeda para falar com
  • 40. HANNIBAL 47 Mason e informá-lo de até que ponto a caçada a Lecter ficaria prejudicada, se você fosse dentro. O que aconteceu em seguida, a quem quer que Mason possa ter telefonado depois, nem quero saber, provavelmente ao deputado VolImer. Há um ano, Crawford não teria feito esta jogada. Starling perscrutou-lhe o rosto em busca de qualquer ataque de loucura temporária que muitas vezes ataca os reformados iminentes. Não conseguiu detectá-la, mas ele parecia cansado. - Mason não é bonito, Starling, e não me refiro somente aos traços físicos. Descubra o que tem em seu poder. Traga-me o que quer que seja e iremos trabalhá-lo aqui. Finalmente. Starling sabia que há anos, desde que se formara pela Academia do FBI, que Crawford tentava destacá-la para a Ciência Comportamental. Agora que era uma veterana do Bureau, veterana de muitas missões secundárias, apercebia-se que o seu primeiro triunfo na captura do serial híller Jame Gumb, fazia parte da sua ruína no Bureau. Era uma estrela em ascensão que emperrara na subida. No processo de apanhar Gumb, arranjara pelo menos um inimigo poderoso e provocara a inveja de uma série de colegas. Tudo isso e uma certa dose de irritabilidade levara a anos de brigadas de assalto e de brigadas encarregues de assaltos a bancos, anos de mandados de captura, a ver Newark por um canudo. Por fim, rotulada de demasiado irascível para trabalhar em equipa, era uma agente técnica, que colocava sob escuta telefones e carros de gangster e pedófilos, ou fazia vigias solitárias de transmissões. E podia ser requisitada sempre que uma agência do Bureau precisava de uma pessoa de confiança numa rusga. Era robusta, rápida e cuidadosa no manejo de armas. Crawford. apercebeu-se que ela tinha aqui a sua oportunidade. Presupôs que ela sempre quisera caçar Lecter. A verdade não era assim tão simples. Nesse momento Crawford perscrutava-a. - Nunca chegou a apagar os vestígios de pólvora do rosto. Grãos de pólvora seca do revólver do falecido Jame Gurrib marcavam-lhe a face com um sinal preto. - Nunca tive tempo - arguiu Starling. - Sabe o que os franceses chamam a um sinal de beleza, um Mouche como esse, na face? Conhece o significado? - inquiriu Crawford, que era dono de uma biblioteca considerável sobre tatuagens, simbologia corporal e mutilação ritual. Starling sacudiu a cabeça. - Chamam-lhe «coragem» - prosseguiu Crawford. - Pode usá-lo. Eu mantinha-o, se estivesse no seu lugar.
  • 41. Capítulo nove Muskrat Farrn, a mansão da família Verger, junto ao rio Susquehanna, a norte de Maryland possui uma beleza mágica. A dinastia Verger, de acondicionadores de carne, comprou-a na década de 30, quando se mudaram da parte oriental de Chicago para ficarem mais perto de Washington e bem podiam dar-se a esse luxo. Os negócios aliados à perspicácia política tinham permitido aos Vergers firmarem vantajosos contratos de carne com o Exército Americano desde a Guerra Civil. O escândalo da «carne embalsamada» durante a Guerra Hispano-Americana quase não afectou os Vergers. Quando Upton Sinclair e os funcionários de casos de corrupção investigaram condições perigosas de acondicionamento de carne em algumas fábricas, concluíram que alguns empregados haviam sido inadvertidamente transformados em banha, enlatados e vendidos como Durharns Pure Leaf Lard, uma banha da preferência dos padeiros. A culpa não foi imputada aos Vergers. O assunto não lhes custou um único contrato com o governo. Os Vergers furtaram-se a estas complicações políticas e muitas outras, dando dinheiro aos políticos, tendo sofrido como único contratempo a aprovação da Lei da Inspecção da Carne de 1906. Hoje em dia, os Vergers abatem 86 mil cabeças de gado por dia e cerca de 36 mil porcos, um número que varia ligeiramente com a estação do ano. Os relvados recentemente aparados de Muskrat Farm, a profusão dos seus lilazes ao vento, não cheiram de forma alguma a matadouro. Os únicos animais são póneis para as crianças que visitam o local e simpáticos bandos de gansos, pastando nos relvados, abanando as caudas e de cabeças enfiadas na relva. Não há cães. A casa, o celeiro e os terrenos encontram-se próximo do centro de seis quilómetros
  • 42. HANNIBAL 49 de floresta nacional e ali se manterão eternamente a coberto de uma isenção especial concedido pelo Ministério do Interior. À semelhança de muitos enclaves dos abastados, Muski---at Farm não é muito fácil de encontrar numa primeira vez. Clarice Starling tomou por uma saída mais à frente na auto-estrada. Regressando pela estrada nacional, encontrou primeiro a entrada de serviço, um portão enorme com uma corrente e cadeado na elevada vedação que cercava a floresta. Para lá do portão, um atalho perdia-se ao longo das árvores arqueadas. Não havia cabine telefónica. Quatro quilómetros mais à frente, descobriu a casa do guarda, recuada a uns 100 metros num elegante acesso. O guarda uniformizado tinha o nome num cartão. Mais quatro quilómetros de uma estrada cuidada levaram-na até à herdade. Starling parou o retumbante Mustang para dar passagem a um bando de gansos. Avistou uma fila de crianças montadas em encorpados póneis Shetland, saindo de um bonito celeiro, a uns quatrocentos metros da casa. O edifício principal que tinha diante dos olhos era uma mansão de estilo Stanford-White graciosamente construída entre montes baixos. O lugar parecia sólido e fecundo, nascente de sonhos agradáveis. Starling sentiu-se atraída. Os Vergers; tinham tido a sensatez de deixar a casa como estava, à excepção de um único acréscimo que Starling ainda não podia divisar, uma ala moderna que desponta da elevação a oriente, semelhante a um limbo extra ligado a uma grotesca experiência médica. Starling estacionou sob o alpendre central. Quando desligou o motor, conseguia ouvir o som da própria respiração. Ao olhar pelo retrovisor, avistou alguém que se aproximava a cavalo. Agora, os cascos ecoavam no pavimento ao lado do carro, quando Starling saiu. Uma pessoa de ombros largos e cabelo louro cortado curto virou-se na sela e estendeu as rédeas a um criado, sem o olhar, - Leva-o de volta - ordenou num tom profundo e gutural. - Sou Margot Verger, - Ante uma análise mais atenta, revelou-se uma mulher que estendia a mão, com o braço bem esticado. Margot Verger defendia, indubitavelmente, o culto do corpo. A malha da T-shirt ressaltava sob o pescoço musculado, e os ombros e braços robustos. Os olhos emitiam um brilho seco e pareciam irritados, como alguém que não sabe chorar. Vestia calções de montar de sarja e calçava botas sem esporas. . - Que carro vem a conduzir? - perguntou. - Um Mustang antigo? - De 88. - Cinco litros? Do tipo do que assenta em cima dos pneus? - sin,. é um mustang Roush. - Agrada-lhe?
  • 43. 50 THOMAS HARRIS - Muito. - Quanto dá? - Não sei. O suficiente, acho. - Tem medo dele? - Respeito-o. Diria que o uso com respeito - replicou Starling. - já o conhecia ou comprou-o por comprar? - Conhecia o suficiente para o comprar num leilão quando vi o que era. Aprendi mais sobre ele depois. - Acha que venceria o meu Porsche? - Depende do Porsche. Preciso falar com o seu irmão, Miss Verger. - Demorarão cerca de cinco minutos a prepará-lo. Podemos começar a dirigir-nos para lá. - Os calções de montar de sarja roçavam nas fartas coxas de Margot Verger, enquanto ela subia as escadas. O cabelo louro-palha caíra o suficiente nas têmporas para levar Starling a interrogar-se sobre se ela tomava esteróides e tivera de atar o clítoris. Aos olhos de Starling, que passou a maior parte da infância num orfanato Luterano, a casa assemelhava-se a um museu, com todos aqueles vastos espaços e vigas pintadas sobre a sua cabeça, e ainda as paredes exibindo retratos de gente morta de ar imponente. Os patamares eram forrados de esmalte cloasonado e os corredores cobertos de enormes tapetes marroquinos. Verifica-se uma brusca quebra de estilo na ala nova da mansão Verger. Impera a moderna estrutura funcional mediante portas duplas de vidro trabalhado e incongruentes no corredor abobadado. Margot Verger fez uma pausa do lado de fora das portas. Fitou Starling com o seu olhar aquoso e enraivecido. - Algumas pessoas têm dificuldade em falar com Mason - declarou. - Se se sentir incomodada ou não for capaz de aguentar, posso informá-la mais tarde sobre o que se tiver esquecido de lhe perguntar. Há uma emoção comum que todos reconhecemos e a que ainda não conseguimos dar um nome: a feliz antecipação de ser capaz de sentir desprezo. Starling detectou-a no rosto de Margot Verger. Starling limitou-se a um: - Obrigada. Starling verificou, surpreendida, que a primeira divisão da ala era uma enorme e bem equipada sala de diversões. Duas crianças afro-americanas brincavam no meio de enormes animais de peluche, uma delas montada numa grande roda e a outra puxando um camião pelo chão. Aos cantos havia uma série de triciclos e vagonetes e no centro aparelhos de ginástica com o chão almofadado por baixo. Num dos cantos da sala, um homem alto fardado de enfermeiro estava sentado num sofá a ler a Vogue. Havia câmaras de vídeo montadas nas paredes, umas mais altas e outras à altura dos
  • 45. HANNIBAL 51 Uma das que se encontrava no alto, a um canto, detectou Starling e Margot Verger e logo a lente rodou para posição de focagem. Starling já não se deixava afectar pela visão de uma criança de cor, mas tomou perfeita consciência destas crianças. Era agradável ver como brincavam alegremente, quando atravessou a sala acompanhada por Margot Verger. - Mason gosta de observar as crianças - informou Margot Verger. - Elas assustam-se ao vê-lo, excepto os mais pequenos, por isso adopta este processo. Depois vão montar os póneis. São crianças que frequentam instituições de beneficência de Baltimore durante o dia. O acesso ao quarto de Mason Verger apenas se faz através da sua casa de banho, uma instalação digna de uma estância, a toda a largura da ala. Tem um aspecto institucional, toda em aço cromado e alcatifada, com duches de portas largas, banheiras de aço inoxidável e aparelhos de elevação, tubos laranja de duche espiralados, sauna e amplos armários de unguentos da farmácia de Santa Maria Novella, em Florença. O ar na casa de banho ainda estava cheio de vapor devido a uso recente e pairavam os aromas a bálsamo e óleo de gualtéria. Starling avistava luz por baixo da porta do quarto de Mason Verger. Apagou-se, mal a irmã tocou na maçaneta. Uma área de convívio a um canto do quarto de Mason Verger recebia uma forte iluminação do tecto. Por cima do sofá estava pendurada uma gravura de The Ancient of Days de William Blake - Deus medindo com os seus compassos. O quadro apresentava uma fita negra em honra do recente falecimento do patriarca Verger. O resto da divisão encontrava-se às escuras. Do escuro chegava-lhe o som de uma máquina a funcionar ritmicamente, suspirando a cada pancada. - Boa tarde, agente Starling. - Uma voz ressonante, amplificada mecanicamente, com o princípio fricativo da palavra «tarde» engolido. - Boa tarde, Mister Verger - replicou Starling no escuro, com a luz intensa sobre a cabeça. A tarde ficava num outro lugar. A tarde não entrava aqui. - Sente-se. «Vou ter de fazer isto. É bom. É necessárío». - A nossa troca de palavras, Mister Verger, terá forma de depoimento e precisarei de gravar. Tudo bem para si? - Seguramente. - A voz ouvia-se por entre os sopros da máquina, com a sibilante «s» retirada da palavra. - Acho que podes deixar-nos, Margot. Margot Verger saiu com um roçar dos calções de montar, sem um olhar para Starling.
  • 46. 52 THOMAS HARRIS - Mister Verger, gostaria de prender este microfone à sua roupa ou à sua almofada, se não se importar, ou também posso chamar uma enfermeira, caso prefira. - Faz favor - redarguiu, sem pronunciar os «f». Ficou a aguardar que o sopro seguinte da máquina lhe desse forças. - Pode fazê-lo, agente Starling. Estou mesmo aqui. Starling não conseguiu encontrar quaisquer interruptores de imediato. Concluiu que veria melhor com a própria vista e aventurou-se pelo escuro, colocando uma mão na frente, na direcção do odor a gualtéria e bálsamo. Quando ele acendeu a luz, estava mais próximo da cama do que julgava. A expressão de Starling permaneceu imutável. A mão que segurava o microfone de lapela recuou um pouco, talvez uns dois centímetros e meio. O seu primeiro pensamento formulou-se em separado do que lhe ia no peito e no estômago; foi a conscencialização de que as anomalias da fala resultavam da ausência total de lábios. O segundo pensamento foi a verificação de que ele não era cego. O seu único olho azul fitava-a através de uma espécie de monóculo com um tubo preso que mantinha o olho humedecido, pois faltava-lhe uma pálpebra. Quanto ao resto, há anos que os cirurgiões tinham feito o que podiam a esticar a pele com enxertos por cima dos ossos. Mason Verger, sem nariz nem lábios, sem tecido mole a cobrir-lhe o rosto era todo dentes, semelhante a uma criatura das profundezas dos oceanos. Dado estarmos habituados a máscaras, o choque de uma tal visão protela-se. O choque instala-se com a percepção de que existe um rosto humano com uma mente por detrás. Fica-se siderado com o movimento do mesmo, a articulação do maxilar, a procura com aquele olho. A procura do nosso rosto normal. O cabelo de Mason Verger é bonito e, estranhamente, o mais difícil de contemplar. Preto salpicado de cinzento, encontra-se apanhado num rabo de cavalo com tamanho suficiente para chegar ao chão, se for puxado para trás da almofada. Hoje, o cabelo apanhado está preso num grande rolo no peito por cima do respirador em forma de concha de tartaruga. Cabelo humano por baixo dos destroços, uma trança brilhando como escamas amontoadas. Sob os lençóis, o corpo há muito paralizado de Mason Verger, reduzido a nada na cama de hospital elevada. Diante do rosto estava o comando que se assemelhava a flautas de Pá ou uma harmónica de plástico. Enrolou a língua como um tubo em redor da boca de um tubo e exalou com o sopro seguinte do respirador. A cama reagiu com um sussurro, virou-o um pouco para ficar de frente para Starling e aumentou a elevação da cabeça.
  • 47. HANNIBAL 53 - Agradeço a Deus o que aconteceu - disse Verger. - Foi a minha salvação. Acredita em Jesus, Miss Starling? Tem fé? - Fui criada num ambiente muito religioso, Mister Verger. Tenho o que quer que nos resta nesse caso - respondeu Starling. Agora, se não se importa, vou prender-lhe isto à sua almofada. Não o incomoda aqui, pois não? - A voz saiu-lhe num tom mais acelerado e protector do que pretendia. A mão dela junto à sua cabeça, a visão daquelas duas carnes juntas, não ajudava Starling, nem tão pouco a pulsação dele nos vasos esticados sobre os ossos da face para lhe fornecer sangue, a dilatação dos mesmos assemelhava-se a vermes engolindo. Ajeitou o microfone e recuou até junto da mesa, do seu gravador e do microfone separado. - Fala a agente especial Clarice Starling, do FBI, número 5143690, recolhendo o depoimento de Mason R.Verger, número de Segurança Social 475989823, em casa dele, na data acima indicada, sob juramento e autenticada. Mister Verger está a par que lhe foi concedida imunidade de acusação pelo promotor público do distrito 36 e pelas autoridades locais num memorando junto, sob juramento e autenticado. - Agora, Mister Verger... - Quero falar-lhe do acampamento - interrompeu com o sopro seguinte. - Foi uma maravilhosa experiência de infância que revivi na essência. - Podemos chegar lá, Mister Verger, mas julguei que... - Olhe! Podemos chegar lá agora, Miss Starling. Tudo se resume a dar à luz, sabe? Foi como conheci Jesus e nunca lhe direi nada mais importante. - Fez uma pausa para que a máquina deixasse sair o ar. - Era um acampamento cristão que o meu pai pagou. Pagou tudo, todos os cento e vinte e cinco campistas junto ao lago Michigan. Alguns deles eram uns infelizes e fariam tudo por uma barra de chocolate. Talvez me tivesse aproveitado, talvez os tratasse com dureza quando não aceitavam o chocolate e não faziam o que eu queria... Não estou a esconder nada, porque agora está tudo certo. - Mister Verger, examinemos algum material com o mesmo... Ele não a ouvia e esperava apenas que a maquina lhe desse fôlego. - Tenho imunidade, Miss Starling, e está tudo certo, agora. Tenho uma concessão de imunidade de Jesus. Tenho imunidade do promotor público dos EUA, tenho imunidade do promotor público de Owing Mills, aleluia! Estou livre, Miss Starling, e está tudo certo. Estou bem com Ele e está tudo certo. Ele é Jesus Ressuscitado e no acampamento chamávamos-lhe O Ressuscitado. Ninguém o vence. Tornámo-lo actual, sabe? Servi-o em África, aleluia, servi-o, em Chicago,