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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
CENTRO DE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO
ANDERSON BALBINOT
DETERMINAÇÕES DA FELICIDADE
À VONTADE NA FILOSOFIA PRÁTICA KANTIANA
CAXIAS DO SUL
2014
ANDERSON BALBINOT
DETERMINAÇÕES DA FELICIDADE À VONTADE NA FILOSOFIA PRÁTICA
KANTIANA
Monografia apresentada como requisito parcial
para a obtenção de grau de especialista em Ética
e Filosofia Política da Universidade de Caxias
do Sul,
Orientador: Prof. Dr. Evaldo Antônio Kuiava
CAXIAS DO SUL
2014
ANDERSON BALBINOT
DETERMINAÇÕES DA FELICIDADE À VONTADE NA FILOSOFIA PRÁTICA
KANTIANA
Monografia apresentada como requisito parcial
para a obtenção de grau de especialista em Ética
e Filosofia Política da Universidade de Caxias
do Sul,
APROVADO EM: ___/___/2014
_______________________________
Prof. Dr. Evaldo Antônio Kuiava
Uma criança pode perguntar: “Qual é o sentido do mundo? ” E um adulto pode especular:
“Para onde o mundo vai? E já que estamos falando nisso, qual é o sentido do mundo?”
Creio que há um sentido no mundo, apenas um, que nos tem assustado e inspirado, de tal
forma que vivemos num seriado de Pearl White de contínuo pensamento e espanto. Os seres
humanos estão presos... em suas vidas, pensamentos, ânsias e ambições, cobiças e crueldade,
mas também em sua bondade e generosidade...numa rede do bem e do mal. Creio que é a
única coisa que temos e que ocorre em todos os níveis de sentimento e inteligência. A virtude
e o vício foram a consequência de nossa primeira percepção e serão o contexto de nosso
último pensamento, apesar de todas as mudanças que possamos impor aos campos, rios e
montanhas, à economia e aos costumes. Não há qualquer outra coisa. Depois de desfazer da
poeira e dos fragmentos de sua vida, um homem só terá uma indagação, clara e objetiva. Foi
boa ou foi má? Pratiquei o bem... ou o mal?
[...]
Em nossos tempos, quando um homem morre ... se teve riquezas, influência e poder, se teve
todos os atavios que despertam a inveja... depois que os vivos avaliam seus bens, eminência,
obras e monumentos, a indagação ainda persiste: Sua vida foi boa ou foi má? O que é outra
maneira de formular a indagação de Creso (quem é a pessoa mais afortunada do mundo?). A
inveja se desvanece e a medida de avaliação se torna diferente: Ele era amado ou odiado?
Sua morte é sentida como uma perda ou acarreta alguma alegria? ”
[...]
Na incerteza, estou convencido de que, por baixo de suas camadas superiores de fragilidade,
os homens querem ser bons e querem ser amados. Na verdade, a maioria dos vícios é uma
tentativa de atalho para o amor. Quando um homem morre, não importa qual tenha sido o
seu talento, influência e gênio, sua vida foi um fracasso se morreu sem amor, sua morte um
frio horror. Parece-me que, quando se pode optar entre dois cursos de pensamento ou ação,
devemos lembrar da morte e tentar viver de maneira a que nossa morte não proporcione
prazer ao mundo.
Temos apenas uma história e um sentido. Todos os romances e toda poesia se baseiam na
competição incessante entre o bem e o mal em nós mesmos. E me ocorre que o mal deve ser
constantemente ressuscitado, enquanto que o bem, a virtude, é imortal. O vício sempre foi um
rosto novo e jovem, enquanto a virtude é venerável como nenhuma outra coisa do mundo.
Vidas Amargas – John Steinbeck
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................ 4
2 O DUALISMO NA DETERMINAÇÃO DA VONTADE E A RAZÃO
PRÁTICA........................................................................................................................... 7
2.1 RAZÃO PRÁTICA, LIBERDADE E LEI MORAL NO JULGAMENTO
MORAL............................................................................................................................... 7
2.2 A VONTADE RACIONAL NA DETERMINAÇÃO DA LEI MORAL.................. 13
2.2.1 Livre Arbítrio e Vontade......................................................................................... 13
2.2.2 Boa Vontade, Dever e Lei Moral ............................................................................ 17
2.3 A MORALIDADE DEVE SER UM MANDAMENTO DA RAZÃO PURA.......... 21
3 DA VONTADE VIRTUOSA E DO MÉRITO À FELICIDADE ........................ 31
3.1 DA FINALIDADE DO SER HUMANO E DA DIGNIDADE DE SER FELIZ ...... 31
3.2 DA POSSIBILIDADE DA FELICIDADE COMO DETERMINAÇÃO DA VONTADE
SENSÍVEL SER PRINCÍPIO PRÁTICO ........................................................................... 41
CONCLUSÃO .......................................................................................................... 47
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 49
4
1 INTRODUÇÃO
Constitui-se problema fundamental para os seres humanos a convivência. Este é um
problema cotidiano na medida em que temos uma necessidade prática de tomarmos decisões
sobre nossos atos e enquanto estes são acontecimentos que reverberam na esfera dos assuntos
humanos. Deparamo-nos com frequência refletindo sobre atos em que nós próprios produzimos
ou que outros produzem. Atentamos para o fato de que julgamos os atos segundo o que
consideramos certo ou errado, mas muitas vezes não julgamos o critério a partir do qual
escolhemos determinados critérios de julgamento. O que julgamos como as atitudes mais
adequadas são julgadas na sua particularidade segundo um critério universal. Podemos elencar
rapidamente alguns como o critério da virtude e da felicidade, da utilidade, da revelação
teológica, do legalismo, do relativismo, enquanto critérios tradicionais e até mesmo cotidianos
que podemos assumir.
O critério kantiano figura dentre os principais tanto pelo fato de que é uma teoria que
representa significativamente o paradigma moderno na busca por critérios universais e
necessários, semelhantes aos critérios de formulação das leis científicas. Kant precisa
fundamentar a moral em um princípio racional. A necessidade desse princípio é de suma
importância pelo fato de que se pudéssemos buscar qualquer fundamento além dele, ficaríamos
sujeitos a toda forma de perversão. O princípio, porém, não se refere somente às ações vistas
do ponto de vista objetivo, mas deve ser levada em conta no mérito moral somente as ações
guiadas por uma boa vontade, uma boa intenção ou motivação adequada: Uma intenção guiada
por dever.
Lendo as obras kantianas atentamente, é curioso constatar que as principais teorias que
o autor dialoga são fundadas no conceito de felicidade, como a doutrina cristã, o estoicismo,
epicurismo e o aristotelismo. Além disso, o autor parece identificar tudo o que é de origem
empírica ou não-formal como sendo atrelado ao conceito de felicidade. Portanto, uma parte
considerável das questões kantianas tem relação com este conceito, o que o torna digno de uma
investigação.
O problema de pesquisa da presente monografia é de saber se de alguma forma Kant
aceitaria móbeis empíricos, identificados no conceito de felicidade, como colaboradores da
vontade racional no cumprimento do dever. Para tratar tal problema, usamos o método de
análise argumentativa das principais obras do autor, bem como de comentadores e especialistas
5
no tema. A tese inicial é a clássica afirmação, no contexto kantiano, de que a felicidade não
pode ser um critério absoluto ou mesmo complementar ao imperativo categórico que deve
determinar a vontade motivadora de uma ação, para que ela tenha mérito moral. Em suma,
afirma-se que nenhum móbil empírico ou motivação no sentido de desejo podem garantir
qualquer nível adicional de mérito moral a uma ação. Como já o dissemos antes, a hipótese
concorda com autores tradicionais e, portanto, não oferece nenhum risco abusivo de equívocos,
derivado de posições polêmicas ou demasiado desafiadoras. Além disso, nosso trabalho será de
grande valia como exercício de investigação filosófica e nossa introdução em alguns temas da
ética de Kant.
Também será útil expor brevemente a estrutura básica deste trabalho. Nossa
investigação se divide em duas tarefas básicas. De largada, a primeira tarefa é investigar as
condições materiais e de possibilidade para a moralidade no capítulo intitulado “O dualismo
kantiano na determinação da vontade”. A dupla realidade no qual está imerso o ser humano
implica uma moralidade específica, diferenciada de outras aplicáveis a outros tipos de seres
como Deus ou seres com uma outra estrutura cognoscitiva ou existencial. Explicitar tais
pressupostos perfaz a tarefa assentar em terreno seguro nossa exposição para posteriores
afirmações. O capítulo está dividido em três partes intituladas “Razão prática, liberdade e lei
moral no julgamento moral”, “A vontade racional na determinação da lei moral” e “A
moralidade deve ser um mandamento da razão”.
O primeiro subcapítulo desenvolve um paralelo entre as duas Críticas de Kant,
distingue os usos da razão, pura e prática; discute a impossibilidade da metafísica como ciências
e sua possibilidade de fundamentação de uma ética. O ser humano vive as dimensões numênica
e fenomenológica; que o obriga a vivenciar a necessidade e a liberdade, compreender o
condicionado e desejar o incondicionado.
O segundo subcapítulo trata da elucidação dos conceitos de vontade para o autor em
debate. Em muitos momentos Kant trata indiferentemente o conceito de vontade, entendendo-
o tanto como faculdade de agir de acordo com as próprias representações, quanto como vontade
sensível ou inclinação. Cabe-nos, neste momento, elucidar os sentidos e precisar os termos. É
outro conceito importante a boa vontade como vontade impelida pelo dever a cumprir a lei
moral, o qual será brevemente discutido inserindo pontos referentes ao tema da monografia. Ao
final deste capítulo se tratará introdutoriamente do conceito de dever como a obrigação de
cumprir a lei moral, tema próprio do próximo capítulo.
6
No terceiro, portanto, se apresentará os argumentos kantianos para sustentar que a
moralidade é um mandamento da razão pura e apenas dela, sem qualquer influência ou
compatibilidade. De forma inicial, se investigará a possibilidade de a felicidade e o exemplo
edificante serem incentivos adicionais ou motivações legítimas para o cumprimento das leis
morais.
A segunda parte do presente trabalho se intitula “Da vontade virtuosa e do mérito à
felicidade”. Trata do conceito de felicidade ao que é entendido como determinações da vontade
por móbeis sensíveis ou múltiplas motivações com a finalidade da boa vida. Esta segunda parte,
por sua vez, possui dois subcapítulos. O primeiro analisa o tema “Da finalidade do ser humano
e da dignidade de ser feliz”. Algumas questões guiarão nosso itinerário: Poderia a moralidade
e sua consciência causar a felicidade e se esta não poderia ser objetivo da vida humana? Teria
menos mérito uma ação motivada por ela? Porém, a questão centra é de saber se poderia
considerar a felicidade de alguma forma útil à moralidade. O epicurismo, estoicismo e a
doutrina cristã prometem uma relação necessária entre a moralidade e a felicidade.
Analisaremos até que ponto Kant concorda com elas ou as critica.
No segundo subcapítulo se tenta responder diretamente o que antes se perguntava de
forma retórica ou se relacionava a outros elementos da ética kantiana. Aqui se faz uma análise
do critério da felicidade como possibilidade de complemento à moralidade, a felicidade
individual, a felicidade do outro e a felicidade da maioria como critérios universais, e as
implicações jurídicas no que diz respeito à punição dos indivíduos, mostrando que se não
tomarmos como princípio a lei moral, mas a felicidade, fatalmente cairíamos em posturas
absurdas tanto nas deduções morais, que implicam o mérito moral, quanto no âmbito da
moralidade externa.
7
2 O DUALISMO NA DETERMINAÇÃO DA VONTADE E A RAZÃO PRÁTICA
Antes de expormos os motivos pelos quais Kant recusa a felicidade como critério
moral, devemos explicitar alguns conceitos fundamentais da teoria moral kantiana que
conduzirão nossa argumentação ao final para a justificação e da compreensão da tese do autor.
Partiremos das obras Fundamentação da metafísica dos costumes, Metafísica dos Costumes e
da segunda crítica kantiana na análise dos conceitos de razão prática como vontade livre,
capacidade decorrente da faculdade da razão, possibilidade da liberdade. Seguiremos com a
exposição dos binômios kantianos de necessidade e liberdade, razão pura e razão prática,
condicionado e incondicionado, fenômeno e noumeno, vontade livre e móbil empírico,
autonomia e heteronomia, princípios apodíticos e assertóricos, bom e agradável, imperativo
categórico e hipotético. O raciocínio kantiano se mostra de modo frequente na dualidade.
Desconfiamos, por isso, que de modo análogo podemos aplicá-lo para entender como o autor
opera ao pensar o conceito de felicidade. Portanto, parece razoável investigar tais dualidades.
Nosso objetivo neste capítulo se constitui em fornecer as bases conceituais e estruturantes da
ética kantiana e qualificar teoricamente o trabalho para a central discussão do conceito de
felicidade.
Dividimos este capítulo em três partes. Na primeira, discutiremos as dualidades que
têm relação com as faculdades e a experiência humanas enquanto existência condicionada, mas
com o direcionamento do incondicionado. Em um segundo momento, abordaremos as questões
que dizem respeito as determinações humanas e as fontes para a vontade. Na terceira parte deste
capítulo, discorreremos sobre o dever e a lei moral como obrigações ao sujeito deduções da
razão autônoma, condições para que efetivamente uma ação tenha mérito moral.
2.1 RAZÃO PRÁTICA, LIBERDADE E LEI MORAL NO JULGAMENTO MORAL
No início da segunda crítica Kant explica por que esta não se chamará Crítica da Razão
Pura Prática, mas “simplesmente crítica da razão prática em geral.” (KANT, 1994 p. 11). Sua
justificativa para a questão é de que a razão não pode se ultrapassar enquanto razão prática.
Enquanto que na Crítica da razão pura o autor busca delimitar o campo dos princípios do
conhecimento puro, na Crítica da Razão Prática busca fundamentar princípios para ação moral.
Para tal, enquanto que na primeira crítica busca-se restringir o conhecimento somente ao que
8
possui correspondente empírico, na segunda crítica Kant busca apenas mostrar as condições de
possibilidade da lei moral em um sistema coerente e o mais completo possível. Nas primeiras
páginas do prefácio da crítica em questão está pressuposta a ideia de que a razão pode querer
conhecer tanto o condicionado quanto o incondicionado. O pensamento não tem limites às
possibilidades da realidade, desde que estas não subvertam o princípio da não-contradição.
O condicionado é objeto para o entendimento, faculdade racional que é condição de
possibilidade para qualquer ciência. Segundo Kant, o conhecimento é o resultado de um
processo onde os fenômenos são dados pelo mundo empírico, e são elaborados como
conhecimentos científicos pelo entendimento através de suas categorias e, assim, validados
como universais e necessários. A faculdade do entendimento é a faculdade de aplicar os
conceitos às intuições. A tarefa crítica de Kant consistiu em delimitar as condições de
possibilidade do entendimento de fornecer leis a priori sobre o mundo. Nesse sentido, a
matemática e a física estão justificadas enquanto ciências capazes de fornecer conhecimentos a
priori universais e necessários.
No entanto, isso não é o caso da metafísica. Esta disciplina não pode ser considerada
uma ciência, pois o seu objeto de investigação, a saber, Deus, a imortalidade da Alma e a
liberdade, não tem um correspondente fenomênico. Na metafísica a razão se direciona para
além do que pode ser subsumido em categorias do entendimento, pois nos falta o elemento
empírico. A metafísica se direciona, fundamentalmente, para o incondicionado.
Podemos distinguir dois modos de ser da razão: Um modo racional enquanto
entendimento (verstand) que categoriza os fenômenos em vista dos conhecimentos universais
e necessários; e outro modo racional enquanto razão (vernunft). O entendimento é a razão pura
pura, enquanto é uma especificidade da razão; e a razão pura (vernunft) enquanto racionalidade
que transcende os limites do mundo causal.
O mundo fenomênico é fatalmente regido pela causalidade natural. Podemos pensar
uma causa para cada um dos fenômenos visíveis indefinidamente. Ora, se há causa para todos
os eventos, logo não há espontaneidade nem novidade nestas séries. Não há possibilidade de
pensarmos a liberdade num mundo regido pelas leis naturais causais. Mas a razão enquanto
faculdade transcendental busca no pensamento “uma completude incondicional na série, que
pode ser encontrada apenas em algum estado de uma substância que começa em si mesma e
não requer causa adicional. Isso, de acordo com Kant, fornece-nos a ideia de causa livre.”
(WOOD, 2008a, p. 102)
9
Os objetos da metafísica são, na primeira crítica, ideias da razão, pois surgem
espontaneamente na sua busca pelo incondicionado, causa primeira ou última das séries causais.
Na segunda crítica, as ideias da razão são postulados da razão prática em vista da
fundamentação racional da moral. A possibilidade da liberdade, fundamentos de toda
possibilidade da comportamento moral e da escolha do critério moral para a ação, que por sua
vez é fundamento de qualquer responsabilidade e do direito, mesmo que não pode ser provada
aos moldes do entendimento, subsumindo-a a categorias, pode ao menos ser pensada, desde que
“[…] do ponto de vista prático, ela não encerre nenhuma impossibilidade (contradição)
interna.” (KANT, 1994, p. 12). Assim, a ideia de liberdade se torna um postulado racional:
devemos poder pensar o ser humano enquanto movido por uma causalidade diferente da
causalidade natural. A possibilidade da autonomia da razão teorética de distanciamento do
mundo pelo sujeito objetivador, capaz de, pelo entendimento submeter o mundo às suas leis a
priori, universais e necessárias; doravante torna-se uma razão prática capaz de autonomia na
razão prática, o fundamento para a lei moral.
Uma vez que esta [crítica] recomendava admitir os objetos da experiência
como tais e, entre eles, mesmo o nosso próprio sujeito, unicamente como
fenômenos, pondo-lhes, no entanto, como fundamento coisas em si, portanto,
não considerar todo o suprassensível como uma ficção e seu conceito como
vazio de conteúdo, agora, a razão prática, por si mesma e sem se ter associado
com a [razão] especulativa, confere realidade a um objeto (Gegenstand)
suprassensível da categoria da causalidade, a saber, à liberdade (embora seja
enquanto conceito prático e a pensa para uso prático), por conseguinte, aquilo
que além podia simplesmente ser pensado é confirmado por um facto
(Factum). (KANT, 1994, p. 14).
A razão pode tanto fornecer leis para a constituição das ciências, quanto especular
sobre as possibilidades quiméricas de uma escatologia. Mais concretamente, mas não sem
menos relevância, ao que é o contrário, fa razão pode especular sobre o fundamento sob o qual
julgamos uma ação como boa ou má. A razão espontaneamente faz esse movimento de andar
sobre o terreno da ciência e também para além deste, inclusive sobre a possibilidade de sermos
livres.
No entanto, “a liberdade é também a única entre todas as ideias da razão especulativa,
da qual sabemos (Wissen) a possibilidade a priori sem, no entanto, a discernir (Einzusehen),
porque ela é a condição da lei moral, que conhecemos” (KANT, 1994, p. 12). Isso significa que
encontramos em nós, seres humanos racionais, através da simples introspecção, a possibilidade
de uma vontade livre, determinada pela razão prática. Ela simplesmente se encontra aí, ou seja,
constitui um fato (faktum). Continua Kant o argumento de que as ideias de Deus e da
10
imortalidade da alma não são condições para a lei moral, mas apenas garantias de que a lei
moral deve continuar a existir. A existência de um Deus que fundamenta o status de realidade
transcendente para a lei moral, ou seja, que até Deus pode reconhecer que a lei moral é legítima
de acordo com o critério estipulado, e a esperança de que pela imortalidade da alma o praticante
das leis morais universais receba sua recompensa são, nas palavras de Kant, “as condições da
aplicação da vontade, moralmente determinada, a seu objeto, que lhe é facultado a priori (o
supremo bem).” (KANT, 2004, pg. 9).
É importante notar que a razão teorética e a razão prática constituem uma única e
mesma razão, porém com dois usos distintos.
“O que certamente não conviria ao andamento sistemático de uma ciência a
constituir […], era no entanto aqui permitido, e mesmo necessário; porque a
razão é considerada com esses conceitos em transição para um uso
inteiramente diferente do que ela lá deles fazia.”. (KANT, 1994, p. 15).
Kant se refere à segunda crítica quando diz que é permitido e até necessário pressupor a
liberdade para a fundamentação de um agir livre. Deparamo-nos com a necessidade prática de
buscarmos fundamentos para as ações morais. Devemos pensar a liberdade de um modo
transcendental: devemos reconhecer a “sua indispensabilidade enquanto conceito problemático
no uso completo da razão especulativa, como também a sua total ininteligibilidade; […].” (1994
p. 15). Não podemos buscar fundamentos empíricos tanto a) porque não teríamos um
correspondente fenomênico (KANT, 1994, p. 15), quanto b) que o princípio fundamental da
moral não pode ser buscado na experiência, pois os elementos empíricos não podem ser
parâmetros para o que deve ser (KANT, 2007, p. 24-25). O caráter a priori, essencial para as
ciências é mantido por Kant também para as leis morais. As leis da natureza de acordo com a
causalidade natural e as leis morais de acordo com a causalidade livre.
Das duas espécies de imperativos, os hipotéticos e categóricos, somente os últimos
podem conferir o caráter de lei moral, pois sendo os imperativos hipotéticos preceitos
empíricos, não conferem ao que lhe manda a necessidade e universalidade. (KANT, 1994, p.
30). Por isso Kant chama a atenção para a necessidade da segunda crítica. Enquanto que a razão
especulativa tem sua legitimidade fundamentada e delimitada na primeira crítica, a segunda
crítica precisa fundamentar a possibilidade da liberdade visto que a ética está relegada ao âmbito
metafísico, onde Kant vê confusão e conhecimentos incertos. O desafio de Kant está em
justificar a razão prática como fonte legítima de leis morais universais e necessárias para todos
os seres racionais. Isso está registrado no texto kantiano como uma das duas maiores
dificuldades à crítica proposta por ele, a saber, a dificuldade de aplicar as categorias
11
transcendentais aos noumenos e de afirmar a realidade objetiva do conhecimento prático.
(KANT, 2004, p. 24-25).
A necessidade do postulado está clara em uma nota do prefácio da segunda crítica
(1994, p. 20), onde Kant busca diferenciar o conceito de postulado na sua teoria de um postulado
matemático. A raiz do mal entendido, diz Kant, está no fato do uso popular dos termos. Kant
justifica que o uso que fará do conceito não é mera procura de termos que tornem o texto mais
complicado ou que tenha uma aparência de erudição, mas que este é o termo encontrado que
melhor expressa o conceito. O postulado matemático é a possibilidade de derivação a partir de
um axioma onde seus teoremas são inferidos de forma evidente. Já o postulado no uso que Kant
faz em sua filosofia prática significa que os objetos da metafísica – Deus, imortalidade da alma
e a liberdade – devem ser colocados como condições de possibilidade, ou são condições
transcendentais para teorizarmos a moral, ou seja, é uma hipótese necessária. Enquanto que nos
postulados matemáticos a necessidade de um axioma está relacionada a um objeto, no postulado
da razão prática há uma necessidade de certezas reconhecidas em relação ao sujeito.
O postulado da liberdade é necessário, portanto, para reafirmar que a moral não pode
ter como alicerce qualquer elemento empírico, tanto como motivação, por meio da afetação de
nossos sentidos, quanto por uma finalidade sensível. Dentre as motivações ou finalidades
possíveis está a felicidade.
Enquanto que na dimensão epistemológica, o ser humano deve ser tomado como um
ser ao mesmo tempo imanente e transcendente, se quiser que uma ciência moderna seja
possível, sob o aspecto do mérito moral das ações de um sujeito moral, o ser humano precisa
ser tomado apenas como sujeito transcendente, ou melhor, deslocado de sua dimensão concreta,
da necessidade natural, do mundo fenomênico. A ciência da moral ou metafísica dos costumes
deve depurar a moral de toda a matéria para ver os fundamentos da vontade livre. (KANT,
2007, p. 15). “Porque, com que direito podemos nós tributar respeito ilimitado, como prescrição
universal para toda a natureza racional, àquilo que só é válido talvez nas condições contingentes
da humanidade?” (KANT, 2007, p. 42). A pureza das leis morais não podem advir nem mesmo
da essência humana e menos ainda de circunstâncias existenciais ou culturais, (KANT, 2007,
p. 16) “mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da razão pura.”
Nesta última [entendimento humano vulgar], quando a razão vulgar se atreve
a afastar-se das leis da experiência e dos dados dos sentidos, vai cair em puras
incompreensibilidades e contradições consigo mesma ou, pelo menos, num
caos de incerteza, escuridão e inconstância. No campo prático, porém, a
capacidade de julgar só então começa a mostrar todas as suas vantagens
12
quando o entendimento vulgar exclui das leis práticas todos os móbiles
sensíveis. (KANT, 2007, p. 36)
A razão pura tem a função de, ao mesmo tempo produzir as máximas para a vontade e
julgar essas mesmas máximas segundo o critério do imperativo categórico. A escolha dever-se-
á pautar unicamente por uma vontade pura de instrumentalização tanto dos valores quanto de
pessoas.
As leis que regem tudo que há na natureza podem ser determinações racionais
ou naturais. O ser humano sofre influências das duas determinações, mas pela
faculdade racional tem a capacidade de agir também segundo a representação
das leis, ou segundo princípios. (KANT, 2007, p. 47).
A felicidade não faz parte das finalidades absolutas do ser humano no sumo bem. É
um bem apenas acidental no sistema kantiano. Podemos afirma-lo ainda, com referências à
Fundamentação da Metafísica dos costumes, quando Kant trata dos princípios apodíticos e
assertóricos e sua possível relação na fundamentação categórica ou hipotética de um
imperativo.
Imperativo é a fórmula de um mandamento que obriga a vontade na forma de um
dever, uma obrigação, segundo o que é bom. (KANT, 2007, p. 48). O que é bom é diferente do
que é agradável. “Praticamente bom é porém aquilo que determina a vontade por meio de
representações da razão” (KANT, 2007, p. 48), diferentemente do que é agradável, “pois este
só influi na vontade por meio das sensações em virtude de causas subjetivas que valem apenas
para a sensibilidade deste ou daquele, e não como princípio da razão que é válido para todos”.
(KANT, 2007, p. 49). Os imperativos ordenam categórica ou hipoteticamente. Os imperativos
hipotéticos apresentam uma relação condicional de ação em vista de um resultado que se prevê
e do qual se pode chegar. Nesse tipo de imperativo, Kant assinala que o dever se direciona para
a condição necessária, para o consequente, para as consequências da ação, e não para seu
sentido, o dever em si. Por outro lado, os imperativos categóricos representam uma ação
objetivamente necessária por si mesma sem relação às suas consequências ou finalidades fora
dela mesma.
No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo
é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa
vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico.
A felicidade e todos móbeis sensíveis são hipotéticos ou assertóricos.
O conselho contém, na verdade, uma necessidade, mas que só pode valer sob
a condição subjetiva e contingente de este ou aquele homem considerar isto
ou aquilo como contando para sua felicidade; enquanto que o imperativo
13
categórico, pelo contrário, não é limitado por nenhuma condição e se pode
chamar propriamente um mandamento, absolutamente, posto que
praticamente necessário. (KANT, 2007, p.53)
Kant associa estes aos princípios de prudência, se referindo indiretamente às éticas da virtude,
como por exemplo a teoria prática de Aristóteles. Os conselhos de prudência são aqueles que
guiam um indivíduo a escolher determinados meios para atingir fins determinados. São
pragmáticos e racionais, mesmo que não contenham necessidade universal como os
mandamentos morais. A prudência aconselha, a lei manda, ordena. (KANT, 2004, p. 77). Estes
são os motivos e justificativas de Kant para sustentar que o princípio do conselho, a felicidade
ou qualquer outro móbil seja usado como princípio moral.
2.2 A VONTADE RACIONAL NA DETERMINAÇÃO DA LEI MORAL
2.2.1 Livre Arbítrio e Vontade
Nas ciências naturais é preciso contar com princípios a priori, mas a origem dos
conhecimentos começa com a experiência e, assim, há elementos significativos que provêm da
evidência da experiência. A universalidade e necessidade das leis da natureza fundam uma
metafísica da natureza que trata dos princípios fundadores das leis naturais. Em algumas
ciências, tal como a química, os cientistas confiam nas experiências particulares para formular
as leis da sua ciência. Trata-se do método indutivo. Os regularidade e generalidade dos eventos
particulares acessíveis ao sujeito através dos fenômenos permite a formulação de uma lei geral
universal e necessária.
Porém, no campo moral, as leis continuam tendo o caráter de necessidade e
universalidade, mas não podem se fundamentarem nas experiências particulares. Kant separa o
campo das ciências do campo moral: As ciências diagnosticam o real enquanto que a moral
formula padrões e normas para o comportamento livre sob o critério do "dever ser", e como o
campo do que pode ser é infinitamente maior do que as fronteiras que delimitam o que acontece,
mais restrito ainda é o campo do que deve ser, como ideal, padrão e modelo racional, o que
pode e o que acontece não pode ser padrão para o que deve ser evento provocado pelo
comportamento humano.
Na busca pelo critério universal para a fundamentação moral, diz o autor que a
felicidade é apercebida de forma diferente para cada sujeito moral. Como poderia o impulso
para a alimentação, o sexo, repouso, movimento ou honra de cada um serem critérios para o
14
agir moral? Resultaria, como o autor sugere, que haveria de cada indivíduo abrir exceções e
concessões para seu agir e ajustar suas escolhas aos modos de vida particulares, o que tornaria
infortunosa a vida própria e alheia. (KANT, 2008, p. 58). Ela se vê como um gozo duradouro
para o próprio indivíduo e somente a experiência, além de algumas proposições tautológicas,
pode nos fornecer essas respostas. Sendo a razão prática uma faculdade humana, um sistema de
cognição (KANT, 2008, p. 59), só pode gerar leis universais e necessárias, de forma a priori.
Este sistema de cognição tem por objeto a liberdade de escolha. (KANT, 2008, p. 59).
No que se trata “da relação entre as faculdades da mente humana e as leis morais”,
parte assim intitulada na obra Metafísica dos Costumes, Kant diferencia vontade e livre-arbítrio.
O primeiro conceito, adicionando à faculdade de conhecer e o sentimento de prazer e desprazer,
constituem o quadro completo das faculdades do ânimo. (ORTS1
, 2008, p. 32). Entendemos
que a diferenciação dos conceitos de vontade e livre-arbítrio deve abrir nossa discussão por
ilustrarem os modos como a liberdade se nos apresenta enquanto fundamentos importantes para
a teoria moral kantiana. Iniciamos nossa caracterização nos movimentando por dentro da
constituição da vontade.
São, em linhas gerais, duas forças que atuam na escolha dos critérios para a ação livre:
o desejo, de forma não-consciente, e o livre-arbítrio, de forma consciente. Kant conceitua desejo
como “a faculdade de mediante as próprias representações serem a causa dos objetos dessa
representação. Chama-se vida a faculdade de um ser em agir em conformidade com suas
representações”. (KANT, 2008, p. 60). Na Fundamentação, Kant se expressa nos seguintes
termos: “A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo e agir em
conformidade com a representação de certas leis. É uma faculdade que só se pode encontrar em
seres racionais”. (KANT, 2007, p. 67). Isso significa que o fundamento que determina tal ação
está no interior do agente, na estrutura racional, cognoscente. Assim como a faculdade de
conhecer aplica seus princípios a priori na natureza, para os conhecer, a faculdade da vontade,
enquanto ligada ao desejo, aplica seus princípios a priori à liberdade. É pela faculdade de
desejar que o ser humano possui um interior pulsante digno de ser chamado livre das
determinações ou autônomo. Mesmo que sofra influências do meio, estas não lhe poderão
determinar definitivamente sua escolha. “[…] é denominada faculdade de fazer ou deixar de
fazer conforme aprouver a cada um.” (KANT, 2008, p. 62). A escolha é a capacidade de cada
1
Adela Cortina Ortis faz um comentário introdutório à obra “La Metafísica de las Costumbres” (2008) do qual
parafraseamos aqui.
15
um, na medida em que está ligada à consciência, realizar seu objeto mediante ação própria.
(KANT, 2008, p. 62).
No texto kantiano o conceito de desejo está claramente conectado não só a faculdade
da vontade, mas também ao sentimento do prazer e desprazer. Na vontade, estão envolvidos
também sentimentos e afetações particulares. A diferenciação está no fato de que enquanto a
faculdade da vontade, identificando-se com a razão prática, é a fonte das leis universais do
âmbito moral, e os sentimentos de prazer e desprazer diante de uma afetação não
necessariamente é universal, podendo ser ligada às vivências particulares do sujeito, e envolver
o que é meramente subjetivo. Sendo o prazer uma faculdade ainda particular, não pode ser
suficiente para explicarmos o conceito de vontade na sua completa expressão, porém, vemos
que nela está o conceito onde podemos começar a vislumbrar algo da vontade.
O livre-arbítrio se refere mais ao objeto do que ao seu fundamento. Enquanto que a
vontade é referida ao fundamento da ação, aos seus critérios de ação e justificação, o livre-
arbítrio se lança em direção a cada ação particular. “Dá-se o nome de livre-arbítrio à escolha
que pode ser determinada pela razão pura; a que pode ser determinada somente por inclinação
(impulso sensível, estímulo) seria o arbítrio animal (arbitrium brutum).” (KANT, 2008, p. 63).
Quando se encontra determinado pela razão, é arbítrio livre, enquanto que quando é
determinado pela inclinação, é arbítrio bruto: o arbítrio pode estar sendo influenciado por
inclinações ou impulsos, mas não pode ser determinado porque é livre. Porém esse conceito
não transcende o conceito de liberdade negativa, ou de libertas indifferentiae, ou seja, que “a
liberdade de escolha é essa independência do ser determinado por impulsos sensíveis.” (KANT,
2008, p. 63).
Segundo Kuiava (2003, p. 79), a obra Fundamentação conceitua vontade como “a
capacidade do ser racional de agir, não somente segundo as leis, como é o caso da natureza,
mas segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios”. Novamente se firma a ideia
de que a vontade livre é fundamentalmente racional e refinada de elementos empíricos.
A segunda Crítica ainda usa o conceito tanto para caracterizar a vontade ou vontade
pura. Neste ponto concordam os comentadores Kuiava (2003, p. 79) e Beck (1963, p. 38).
Kuiava explica que Kant enfatiza o conceito de vontade pura para diferenciar a vontade que é
o ponto de mediação entre o entendimento puro e a vontade de desejar com todas as relações
implicadas em tal relação, inclusive os possíveis elementos empíricos imbricados nela. A
vontade pura, por outro lado, é a capacidade do ser racional de representar, por meio de
16
princípios, uma lei moral. Em outras palavras, a vontade pura é a vontade guiada pela razão. O
comentador afirma ainda que o conceito de autodeterminação está ligado à distinção entre
vontade e vontade pura. Beck interpreta igualmente que a vontade (Wille) “não é mais que razão
prática: é esta faculdade que faz uma regra razão a causa eficiente da razão de uma ação por
meio do qual um objeto pode ser realizado, ou por meio do qual se parte de uma mera ideia do
estado de coisas previsto nele.”2
(1963, p. 39). Neste artigo, o comentador diferencia os dois
conceitos que Kant se instrumentaliza, o conceito de “Willkür” que denota a vontade com
origem nas determinações empíricas ou externas ao sujeito. Sabemos que os sujeitos podem
escolher satisfazer seus impulsos naturais, ou seja, direcionar regras ou máximas que atinjam o
objetivo dos desejos, e vemos na vida cotidiana que é o que a maioria das pessoas escolhem.
Por outro lado, “Wille” denota o conceito de vontade guiada pela razão prática, capaz de gerar
leis morais universais e necessárias. Este último conceito se aproxima bastante do que Kuiava
conceitua como “vontade livre”.
Na segunda seção da Fundamentação da Metafísica dos costumes, o autor intenta
derivar o conceito de dever a partir juízo moral vulgar, “não a apalpadelas ou com exemplos”,
mas fazendo uma fazendo uma descrição clara da faculdade prática da razão. Inicia afirmando
a fatalidade da natureza em contraste à liberdade humana pela vontade livre.
Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de
agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele
tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a
vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina
infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser que são conhecidas como
objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a
vontade e a vontade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da
inclinação, reconhece como praticamente necessária, quer dizer, como bom."
(KANT, 2007, p. 47)
A vontade que figura a razão prática tange a dimensão da liberdade humana no seu
sentido mais excelente. Se a vontade do ser humano somente fosse determinada pela razão
prática, sem qualquer possibilidade de determinação por algum móbil empírico, as ações seriam
objetivamente e subjetivamente necessárias. Mas tal não acontece. No ser humano não só a
razão prática determina a vontade, mas sensações, percepções, finalidades, desejos e exemplos
podem determinar decisões e ações. Sendo assim, ações que seriam objetivamente necessárias,
podem não o ser subjetivamente.
2
“is nothing but pratical reason; it is this faculty that makes a rule of reason the efficient cause of an action by
means of which an object can be realized, or the means by which one goes from mere idea to the state of affairs
envisaged in it.” (tradução nossa).
17
Ora, se uma ação realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da
inclinação e com ela todo o objeto da vontade, nada mais resta à vontade que
a possa determinar do que a lei objetivamente, e, subjetivamente, o puro
respeito por esta lei prática, e por conseguinte a máxima que manda obedecer
a essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações. (KANT, 2007,
p. 31).
Por isso, Kant vê a necessidade de falar da obrigação da lei moral. As ações podem ser
contingentes subjetivamente, mas devem ser reconhecidas objetivamente pelo agente moral.
Através do reconhecimento subjetivo da lei moral, seu comprometimento pela vontade
determinada pelo princípio racional, está garantido ao sujeito moral que a ação tenha mérito.
Só pode ser considerado como bom aquilo que determina a vontade pela razão. (KANT, 2007,
p. 51). A ação que for apenas subjetivamente necessária, determinada por móbeis sensíveis, é
uma ação agradável; enquanto que se ela for objetivamente necessária, ou seja, determinada
pela faculdade da razão, então será uma ação boa.
2.2.2 Boa Vontade, Dever e Lei Moral
No início da primeira sessão da Fundamentação Kant declara que “Neste mundo, e até
também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação
a não ser uma só coisa: uma boa vontade.” (KANT, 2007, p. 21) A boa vontade é a disposição
para fazer sempre o que é correto. É desejar fazer uma ação moralmente boa. A vontade de
fazer o bem e se esquivar das ações nefastas deve acompanhar todas as ações. Portanto, o caráter
pessoal, aqui empregado como disposição para fazer o bem, é sinônimo de boa vontade na
concepção kantiana. Na página 22 (KANT, 2007) o autor define como “valor íntimo absoluto
da pessoa”. Kant afirma que só a boa vontade pode ser considerada boa pois as virtudes
tradicionais são boas relativamente enquanto que aquela é boa em absoluto. Argumenta que os
talentos do Espírito e as qualidades do temperamento são desejáveis, mas de nada valem se não
estiverem acompanhadas de boas intenções. As qualidades e talentos podem ser de grande valia
tanto para quem os possui, quanto para a felicidade geral. Tanto os talentos do espírito como a
capacidade de bem argumentar ou bem julgar, o temperamento; quanto os talentos da fortuna
como a saúde, a fortuna e o poder, podem ser usados para grandes equívocos e males morais.
Argumenta o autor que esses talentos podem gerar soberba nos indivíduos e desencaminhar
boas iniciativas por propósitos meramente egoístas. A boa vontade, portanto, corrige toda
espécie de iniciativa mascarada pelos nossos impulsos naturais de glórias e honrarias diante de
18
ações consideradas virtuosas, corrige toda espécie de iniciativa mascarada pelos nossos
impulsos naturais. Esses impulsos, o que Kant chama de limitações e obstáculos subjetivos
(para Allen Wood “subjective limitations and hindrances”, 2008b pg 31), são antes de tudo,
empecilhos à disposição de agir por dever.
A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para
alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é em
si mesma e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais
alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de
qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações.
(KANT, 2007, p. 23).
A boa vontade não deve levar em conta as consequências das ações, mas deve ser boa
por si mesma, pelo próprio fato de querer o bem. Nisso constitui seu mérito. “A utilidade ou a
inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este valor.” (KANT, 2007, p. 23). Kant usa uma
metáfora para mostrar isto: Se uma vontade boa convergir com o critério da utilidade, será
meramente acidental, assim como uma joia com um engaste, que pode ser manejada mais
facilmente ou para atrair sobre ela a atenção daqueles que não a conhecem, mas o engaste nada
acrescenta ou minimiza o seu valor. (KANT, 2007, p. 23). A boa vontade tem um valor absoluto
e não deve querer satisfazer outros elementos que não a si mesma em sua avaliação.
Num artigo esclarecedor sobre este conceito, o autor explica que Kant não considera
somente a boa vontade como bem. Kant lista e classifica outros bens, mesmo que estes,
associados a más consequências, poderiam restringir a moralidade de uma ação. A interpretação
que o comentador oferece a esse ponto é de que também a boa vontade pode gerar más
consequências, porém, seu valor enquanto vontade boa não seria diminuído. (WOOD, 2009, p.
2-3).
Só é bom aquilo que é combinado com a boa vontade (como seu instrumento
ou seu resultado tencionado). As outras coisas, no entanto, transformam-se de
boas em más se forem combinadas de modo análogo com a vontade má. [...].
Outras coisas são tidas como boas na medida em que são combinadas com a
boa vontade. Mas a boa vontade, quando combinada como coisas más, não
perde nada sua bondade; pelo contrário, “ela brilharia por si mesma como algo
que tem seu próprio valor em si mesmo” (Ak 4:394). (WOOD, 2009, p. 33)
Na metade da segunda seção da Fundamentação, Kant parece querer ilustrar por que
começa o livro falando da boa vontade, já com muitos conceitos elucidados, dizendo que “É
absolutamente boa a vontade que não é má”
Ao contrário do que afirma muitos interpretes de Kant, o conceito de boa vontade
contém o conceito de dever, e este é um caso especial daquele, ou seja, o conceito de dever é
uma subespécie do conceito de boa vontade. O comentador justifica com uma longa
19
argumentação que o conceito de boa vontade não é de fato central, quanto muitos outros
comentadores o consideram; por isso, o conceito de boa vontade ficaria sem explicação
completa. Todo caso, Wood interpreta que o conceito de boa vontade é “exercício bem sucedido
dessa capacidade [de adotar princípios subjetivos (máximas), que é capaz de fazer isso à luz de
princípios objetivos ou leis] nos agentes morais.” (WOOD, 2009, p. 39).
Wood, Alisson (1990) e Kuiava concordam na centralidade do conceito de dever na
fundamentação da lei moral. Wood afirma que a boa vontade é apenas retoricamente o ponto
inicial da fundamentação de princípio para a moralidade na obra Fundamentação da Metafísica
dos Costumes, mas a derivação fundamental começa com o conceito de dever. (WOOD, 2009,
p. 9).
Kant distingue ações praticadas por dever, conforme ao dever e contrárias ao dever.
Estas últimas são aquelas que se posicionam diametralmente opostas a um juízo moral deduzido
do imperativo categórico. Esta ação será contrária ao dever tanto do ponto de vista legal ou
externo, quanto do ponto de vista das motivações. As ações conforme ao dever são aquelas cuja
motivação tem uma finalidade estranha ao cumprimento do dever em si mesmo, portanto, é
uma ação que tem uma causalidade meramente externa ou legal. A ação por dever se caracteriza
por agir segundo o dever em si mesmo, tanto externa quanto internamente.
“Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei.” (KANT, 2007, p. 31). O dever
é a necessidade de a lei moral ser cumprida em respeito a ela mesma. Já que a lei moral é uma
necessidade, resta ao agente segui-la pelo único motivo de que ela merece respeito e
cumprimento por ser universalmente reconhecida como lei. A lei moral implica uma obrigação
ao agente moral.
Assim com o conceito de obrigação não se aplica a Deus, pois sua vontade não pode
ser determinada por móbeis sensíveis e, portanto, não é uma vontade apenas subjetivamente
condicionada; também o conceito de dever não se aplica a qualquer ser numênico ou de perfeita
vontade. Nele o dever coincide com o querer. Kant diz que todo imperativo se exprime em um
dever. (KANT, 2007, p. 48). Por conseguinte, “os imperativos são formulas para exprimir a
relação entre as leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser
racional, da vontade humana por exemplo. (KANT, 2007, p. 49). Dessa maneira, o dever faz
parte da moralidade da dos seres racionais possuidores de uma vontade imperfeita, dentre eles,
os seres humanos.
20
Assegurar a cada um sua própria felicidade poderia, pelo menos indiretamente, ser um
dever moral (KANT, 2007, p. 48), já que a insatisfação pode tornar o agente moral indisposto
para o cumprimento dos deveres ou mesmo tentado a transgredir os deveres. Todos temos a
natural inclinação para a satisfação das inclinações, o que Kant chama de felicidade. Mas o que
a felicidade prescreve não é coerente consigo mesma, como no exemplo do “gotoso” (KANT,
2007, p. 30): deveria renunciar o doente a comer tudo que lhe apetecer? Não lhe causaria
felicidade? Percebe-se neste caso que a satisfação, que pode gerar felicidade ao sujeito, está em
contradição com a felicidade que possa haver na saúde. Kant diz que a felicidade pode ser
considerada em relação a uma ação com mérito moral se, e somente se o dever lhe acompanhar.
Todo caso, Kant afirma na terceira proposição da primeira seção da Fundamentação
que o dever deve ter a lei moral como princípio e nunca como efeito: o que serve à inclinação
(KANT, 2007, p. 31). Kant diretamente combate a ideia de dever por satisfação e a considera
contraditória em si mesma. (KANT, 2004, p. 168). Além disso a ideia não é universalizável:
Não é possível esperar que todos tenham o desejo de perfeição para realizarem com satisfação
o dever. O dever frequentemente constrange o íntimo e os gostos pessoais das pessoas. O ser
humano é uma criatura, ser dependente, portanto não está livre de desejos e inclinações.
(KANT, 2004, p. 168-169). A dignidade humana se realiza com o cumprimento do dever, e a
dignidade do dever é a personalidade:
a liberdade e independência do mecanismo de toda a natureza, considerada
essa liberdade, apesar de tudo, ao mesmo tempo como uma faculdade de um
ser que está submetido a leis puras práticas correlatas, isto é, facultadas pela
sua própria razão. (KANT, 2004, p. 175).
A dignidade humana é afirmada na subjetividade de cada ser humano e sua liberdade
de agir, do que decorre que ele é fim em si mesmo, não pode ser tratado como meio. (KANT,
2004, p. 176). O ser humano não é meramente animal, que tem somente a fenomenalidade. Ele
tem consciência do que faz, busca mérito e sente culpa. Mas a “dignidade de homem justo”,
uma consciência de ter feito por dever, não poderia ser a felicidade, a recompensa merecida.
Mesmo que se não houvesse tal prazer, os seres humanos podem, e devem viver por dever.
(KANT, 2004, p. 178). “A majestade do dever nada tem que ver com o gozo da vida.” (KANT,
2004, p. 179).
Se não é possível esperar o amor à lei, por motivos práticos ou de contradição
sistemática, Kant afirma que o dever não deve ser tributado menos que com o respeito. Não é
que a lei deva esperar tributos amorosos, por não ser efeito no sujeito moral. O respeito ao dever
emerge por princípios. (KANT, 2007, p. 31). “O respeito é um tributo que não podemos negar
21
ao mérito, queiramos ou não; embora, em todo caso, possamos deixar de manifestá-lo
exteriormente, não podemos todavia, impedir de senti-lo interiormente.” (KANT, 2004, p. 157).
O sentimento moral é sempre um efeito de uma disposição. A causa do cumprimento de uma
obrigação pode ter como causa um princípio, como o dever, mas nunca um sentimento moral.
(KANT, 2004, 157-157).
2.3 A MORALIDADE DEVE SER UM MANDAMENTO DA RAZÃO PURA
Duas forças constituintes dos seres humanos podem determinar sua vontade de acordo
com Kant. As forças são classificadas como de caráter empírico ou racional. Essas forças
determinam nossas escolhas, sejam elas morais ou amorais. Ao agir ou ao confrontarmos com
uma situação que nos pede uma decisão, frequentemente podemos sentir um conflito interno
entre o que queremos fazer e o que devemos fazer. Ora cedemos aos prazeres sensuais da
sensibilidade, ora cedemos à ponderação da razão. Esse conflito interno é uma clara evidência
de que há duas determinações da vontade. Esse conflito interno e individual, comum a qualquer
ser humano particular, é constituinte do próprio ser humano que tem necessidade de decidir.
Por isso, as determinações da vontade podem ser conflitantes e problemáticas, ou mesmo
contraditórias.
Como podem os caráteres empíricos e inteligíveis serem atribuídos à um único
agente? Como pode a mesma ação ser concebida por ambas as causalidades
determinadas pelo estado antecedente do agente e fatores extrínsecos e como
um “novo começo”, o produto da espontaneidade do agente? (ALLISON,
1990, p. 29). 3
A distinção e o conflito frequente entre razão e sensibilidade não foi criada por Kant.
Ele apenas a retomou da tradição. O autor reconhece que é necessário que uma dessas forças
deve prevalecer às expensas da outra para que a ação seja moral. A razão deve determinar a
vontade segundo o critério do imperativo categórico sem qualquer diálogo ou mistura com a
sensibilidade. A felicidade não deve interferir nem sequer um pouco quando se avalia uma ação
moral. Poderia ser esse um critério moral exagerado? Não poderíamos satisfazer as duas forças
ao mesmo tempo, equilibrando-as? Será que a felicidade, a busca e o desejo mais básico da vida
humana, não importa para Kant?
3
How can both an empirical and an intelligible character be ascribed to a single agent? How can one and the same
action be conceived both as causally determined by the antecedent state of the agent and extrinsic factors and as a
“new beginning”, the product of the spontaneity of the agent?. (Tradução nossa).
22
Em termos de rigor, devemos dizer que a questão de se a felicidade poderia ser um
critério moral mais apropriado para uma abordagem ética, mesmo dentro do sistema kantiano,
poderia ser formulada da seguinte forma: Não poderíamos fundamentar uma ação moral na
universalização da máxima moral da busca pela felicidade? A determinação sensível é, como
já foi dito, uma motivação dos atos humanos, e a felicidade, classificada pelo autor em questão
como um critério moral sensível, é pretexto para as ações morais para um número expressivo
de pessoas, o que a torna um critério relevante para a pesquisa. Parece necessário aprofundar o
estudo sobre a diferença entre essas duas determinações da vontade a fim de entender as causas
e justificativas de Kant para suas respostas sobre o tema. Kant poderia conceber uma
colaboração mútua de ambas fontes, sensível e racional?
Na introdução da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant pergunta se é
realmente necessária uma filosofia moral a ser tratada de forma metódica e racional. Ele
diferencia e localiza a moral dentre os diversos ramos do conhecimento depurada de elementos
empíricos. A questão pressupõe a existência de duas faculdades que podem determinar as
disposições humanas: a razão e a sensibilidade. A questão pode também se desmembrar da
seguinte forma, como propõe Kant: “A natureza da ciência não exige que se distinga sempre
cuidadosamente a parte empírica da parte racional”? (KANT, 2007, p. 14). Ou ainda, podemos
colocar a questão nos moldes de Allison: “Não é a razão a capacidade pragmaticamente
noumenal? E como pode algo de natureza noumenal ter caráter empírico (fenomenal)?” (1990,
p. 31).4
Identificamos quatro ideias ou pressupostos que justificam a opção de Kant pela
segregação entre as duas faculdades de determinação da vontade.
Um primeiro pressuposto pode ser identificado na obra em questão na divisão
sistemática das ciências e do conhecimento. Kant desmembra os diversos campos do
conhecimento separando as ciências que prescindem do empírico daquelas que devem proceder
de forma estritamente racional, levando em conta que o conhecimento universal e necessário é
sempre a priori e, portanto, depende fundamentalmente da ação do entendimento humano e
nunca da volatilidade da sensibilidade. O autor nos leva a crer que a moral, enquanto
conhecimento racional, depende fundamentalmente, assim como qualquer conhecimento, de
um movimento racional. O autor reconhece que mesmo o conhecimento prático e seus
princípios se distinguem essencialmente de tudo o que contém elementos empíricos, e de que a
4
“Is not reason the pradigmatically noumenal capacity, and how can anything noumenal have an empirical (i.e.
phenomenal) characters?” Tradução nossa.
23
Antropologia, enquanto ciência que aborda o ser humano, por este fato não podem dar critérios,
por si mesmas, para as ações. (KANT, 2007, p. 14). Kant legitima a filosofia moral, mesmo
apartada de qualquer elemento empírico afirmando que “tal filosofia deva existir [...] da ideia
comum do dever e das leis morais”. (KANT, 2007, p. 14).
Um segundo pressuposto que Kant propõe é da necessidade de que uma lei moral deva
servir de fundamento de obrigação de forma universal e necessária para todo agente inteligível.
Kant aqui descarta a possibilidade racional do relativismo moral. Segundo ele, não é possível
racionalmente defender que uma lei moral deva se aplicar para um agente e não para outro. Da
mesma forma, as leis morais não podem ser válidas em determinadas situações e não em outras.
Nas palavras de Kant, “deve-se concordar que uma lei, para possuir valor moral, isto é, para
fundamentar uma obrigação, precisa de implicar em si uma absoluta necessidade”. (KANT,
2007, p. 2).
O terceiro pressuposto que Kant propõe é a afirmação de que toda lei moral deve valer
para todo ser racional, e não deve ser limitada ao ser humano de forma específica. Dado isso,
afirma que se um princípio deve valer para todo ser racional, então todas as leis morais, pelo
fato de serem necessárias e universais, devem ser postas como princípios morais por qualquer
ser racional. Isso porque a racionalidade é uma das causalidades aos quais podem afetar um ser
racional, e que, por possuir a possibilidade de pensar sobre seus atos, essa pode influenciar nas
suas ações. (KANT, 2007, p. 96).
A conclusão que Kant chega é de que a segregação entre conhecimentos empíricos e
racionais fundamenta todos os conceitos propostos por uma filosofia moral. O fato é de que
Kant quer fundamentar princípios de forma a priori, nunca pela experiência. A dualidade “razão
e experiência” permanece em tensão pelo fato da existência humana concreta, porém a
faculdade humana capaz de elevar-se ao sumo bem, na ética, e de conhecer, no exame da
faculdade transcendental, fundamentalmente é a razão. Aplicada a busca do princípio moral, a
segregação será pressuposto da conclusão kantiana de que a lei moral não pode ter qualquer
móbil empírico.
Na terceira sessão da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (p. 98-99) Kant
problematiza essa como a questão central dos pressupostos que coloca. Diz ele que há uma
dificuldade em perceber que devamos separar os interesses empíricos ou sensíveis, dos
imperativos do dever, para que determinada ação seja moral. A dificuldade consiste no círculo
vicioso dos pontos de vista das causas eficientes possíveis das determinações da vontade. Parece
24
que liberdade é “fazer o que quiser”, ou seja, seguir os ditames da sensibilidade. Determinação
externa significa agir com esforço contra a vontade própria e, muitas vezes parece muito mais
custoso seguir as determinações racionais do que as sensuais. Kant propõe o inverso: liberdade
significa agir por uma determinação racional e o determinismo é ceder às indicações da
sensibilidade.
Consideramo-nos como livres na ordem das causas eficientes, para nos
pensarmos submetidos a leis morais na ordem dos fins, e depois pensarmo-
nos como submetidos a estas leis porque nos atribuímos a liberdade da
vontade; pois liberdade e própria legislação da vontade são ambas autonomia,
[...]. (KANT, 2007, p. 99).
Kant aqui afirma sua tese primordial: a capacidade dos seres racionais de
determinarem sua vontade de acordo com sua faculdade própria, sem renderem-se fatalmente
aos móbeis sensíveis, ao hábito, à experiência empírica, a determinações psicológicas ou a
alguma espécie de exemplo. A capacidade de autodeterminação própria do ser humano vai além
de suas condições físicas, psicológicas ou culturais. Esse ponto de vista, segundo Kant, é
próprio de quem analisa o ser humano da perspectiva de que ele é algo que não se pode conhecer
em si mesmo, não se pode esgotá-lo com explicações objetivadoras ou científicas, no sentido
de requererem um correspondente empírico ou verificável. O fundamento determinante da
vontade é sua própria legislação, ou melhor, está em si mesmo.
A razão é o baluarte das faculdades e das potencialidades humanas. Enquanto que o
mundo sensível afeta causalmente o ser humano, preso às determinações da vida, da sua
situação concreta e limitada, a razão é aquela espontaneidade que transcende a simples
determinação mecânica e previsível. Kant pressupõe que todos os outros seres da natureza, no
seu tratamento pelo ser humano em conhece-las, são não-racionais, e, assim, estão submetidas
somente às determinações sensíveis e, portanto, são afetados somente pela sensibilidade; se são
afetados por outra causalidade, não temos acesso, mas pressupomos que seja assim pelo fato de
sua manifestação. Diz Kant que “o homem encontra realmente em si mesmo uma faculdade
pela qual se distingue de todas as outras coisas, e até de si mesmo, na medida em que ele é
afetado por objetos; essa faculdade é a razão (‘Vernunft’)”. (KANT, 2007, p. 101). E não é
somente dos animais que os seres humanos se distinguem. Deus, como ser que possui uma
vontade perfeita, onde a coincidência entre o dever e o querer acontece plenamente, é também
distinto dele por não sofrer influências da sensibilidade na sua vontade. O ser humano se
encontra entre os mundos sensível e inteligível.
25
Por tudo isso é que um ser racional deve considerar-se a si mesmo, como
inteligência (portanto não pelo lado das suas forças inferiores), não como
pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao mundo inteligível;
tem por conseguinte dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a si
mesmo e reconhecer leis do uso das suas forças, e portanto de todas as suas
ações: o primeiro, enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis naturais
(heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis
que, independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na
razão. (KANT, 2007, p. 102).
Do ponto de vista da aparência, as ações humanas estão em conformidade a leis da
natureza. O fenômeno da causalidade livre aqui ainda está oculto. Não se pode verificar a
intencionalidade da ação. Esta é apenas uma das formas possíveis de se visar a moralidade, ou
seja, do ponto de vista das simples ações, que supostamente são livres. Mas parece que se as
ações são motivadas por determinações externas ao sujeito, não são livres. Kant aceita essa
premissa. Sua conclusão é de que, mesmo que nenhum agente moral aja efetivamente por uma
intenção de cumprir um mandamento do dever, ou seja, buscado de acordo com um critério
racional, essa possibilidade ainda existe. Afirma Allison que
Isso significa que não devemos falar significativamente que algo aconteça
internamente ou para este agente, ou ainda, de seu ser determinado por
condições prévias. Em resumo, com sua concepção de um caráter inteligível,
temos a fórmula do pensamento de uma atividade que não é condicionada
empiricamente à uma motivação noumenal. (ALLISON, 1990, p. 30). 5
Se a possibilidade de os seres humanos serem guiados por um critério racional de ações
existe, então ela deve ser tomada efetivamente como um critério racional possível, mesmo que
nenhum agente concreto o pratique em determinado tempo, ou mesmo se nunca tenha sido
praticado. Esta é a ideia da diferenciação entre ser e dever ser: o que tem o dever de acontecer
pode ser muito diferente do que acontece ou do que talvez nunca venha a acontecer. As
determinações concretas não podem influenciar na representação de uma lei moral perfeita. Isso
para Kant é crucial, pois diz respeito ao fato da própria ética como ciência normativa existir.
O que acontece segundo as regras da experiência possível é acessível no tempo e no
espaço. A experiência é possível justamente pela existência desses dois a priori da
sensibilidade. Por isso que a esfera do ser, enquanto acessível pela sensibilidade, faz parte do
mundo fenomênico.
5
this means that we could not speak meaningfully of something happening in or to this agent or of its being
determined by antecedent conditions. In short, with this concept of an intelligible character we have the formula
for the thought of the empirically unconditioned activity of a noumenal subject.” (Tradução nossa).
26
Por outro lado, a esfera do dever-ser não está presa ao mundo fenomênico, mas ao
mundo inteligível, do pensamento em toda sua espontaneidade e plasticidade para pensar as
possibilidades de vir a ser. Por isso o mundo do que pode-ser é infinitamente maior do que o
mundo do ser, adequando-se, segundo Kant, a única condição do respeito à coerência interna
do sistema de pensamento.
O tempo e o espaço são condições a priori da sensibilidade que determinam as ações,
vontades e desejos e determina a possibilidade de interagirmos no mundo concreto e sensível,
ou designado por Kant como mundo fenomênico. O fenômeno do pensamento livre e
espontâneo acontece nele, portanto, mesmo que o ser humano esteja situado, limitado e
comprometido com o mundo fenomênico, faz parte também de um mundo numênico,
espontâneo e ilimitado. Kant afirma que
a Analítica [da Razão Pura Prática] mostra que este fato está inseparavelmente
ligado à consciência da liberdade da vontade, identificando-se, além disso com
ela, do que resulta reconhecer-se a vontade de um ser racional participante do
mundo dos sentidos, bem como das demais causas eficientes, necessariamente
submetido às leis da causalidade, na prática, mas ao mesmo tempo, por outro
lado, como ser em si mesmo, tem consciência de sua existência, a saber,
determinável em uma ordem inteligível das coisas [...]. (KANT, 2004, p. 88).
Na página 200 da segunda crítica, Kant se pergunta se seria possível afirmar a
liberdade sem prejuízo das ações como fenômenos. Noutro fragmento, precisamente quando o
mesmo autor argumenta contra o sensualismo, afirma que a necessidade natural, divergindo da
causalidade da liberdade, se relaciona diretamente somente às coisas existentes e determináveis
no tempo. (KANT, 2004, p. 189). Os sentimentos e desejos pertencem a essa causalidade,
portanto também estão sujeitos ao tempo. O autor conclui o argumento afirmando que estando
esta causalidade determinada por algo anterior, no caso o tempo passado em que os desejos e
sentimentos foram causados, então as ações que tem essas causas não estão sob o poder do
agente, portanto não são livres. Kant formula o seguinte argumento para afirmar a dualidade do
ser humano enquanto ser livre e ao mesmo tempo determinado pela causalidade fenomênica
(KANT, 2004, p. 190-191):
1 – se quiséssemos atribuir liberdade a um ser cuja existência seja determinada no
tempo, não poderíamos fugir à lei da necessidade física, o que seria equivalente a abandonar o
ser ao mais cego acaso.
2 – se não houvesse uma forma diversa para representar a existência dessas coisas
consideradas em si mesmas, seria necessário repelir a liberdade como um conceito quimérico e
impossível.
27
3 – Não resta outro caminho que não seja atribuir a existência de uma coisa enquanto
determinável no tempo e, por isso, também a causalidade, segundo a lei da necessidade natural,
simplesmente ao fenômeno, ainda, a liberdade a esse mesmo ser, considerado como coisa em
si mesma.
Mais adiante Kant afirma que o sujeito consciente de si como coisa em si considera a
si como uma existência não submetida às condições do tempo, onde não há nada anterior à
determinação de sua vontade. Cabe destacar aqui que Kant reafirma a possibilidade de um
agente racional de uma existência não submetida às condições do tempo através da própria
razão. (KANT, 2004, p. 196).
Ainda tentando responder sobre a possibilidade da liberdade coadunar-se com a
necessidade no ser humano, Kant lança a hipótese de que se é o tempo que nos determina
fenomenologicamente, um ser divino seria a causa da existência desse ser. (2004, p. 201). Kant
pressupõe que pelo atributo da onisuficiência devemos aceitar também que as ações do homem
tem n’Ele também seu fundamento. Por essa tese, todas as ações humanas derivariam de sua
vontade, o que o tornaria mero autômato, portanto não livre. A conclusão de Kant é de que isso
demonstra que Deus não pode ter relação fenomenológica alguma no tempo e no espaço. (2004,
p. 202). O trânsito no mundo espacio-temporal é atributo exclusivo de seres que possuem as
duas naturezas, e que, portanto, Deus estaria numa dimensão externa às ações humanas,
contrariando uma tese espinozista de colocar em uma dimensão numênica o espaço e o tempo.
(2004, p. 203). Kant expõe a premissa-chave do argumento que “Se a existência no tempo é só
um modo de representação sensível dos seres pensantes no mundo e, por conseguinte, não
pertence a estes seres como coisas em si, a criação destes seres é uma criação das coisas em si
mesmas, [...].” (KANT, 2004, p. 204). Isso quer dizer que é contraditório afirmar que Deus é a
causa das ações no mundo sensível, das ações enquanto fenômenos, mesmo sendo causa dos
agentes dos fenômenos. A conclusão de Kant é de que somente o tempo pode afirmar a
liberdade e de que a existência sensível ou fenomenológica não pode fundamentar a atividade
determinante da vontade livre e da liberdade como causalidade livre pela razão prática. (2004,
p. 205).
Sobre a dualidade temporalidade e intemporalidade, pode-se dizer que a felicidade,
como móbil empírico e originário da sensibilidade, sempre é determinável no tempo. Ela
pertence à causalidade como necessidade natural. A felicidade é algo externo ao indivíduo que
é afetado e impelido por ela.
28
Dadas as premissas:
1- Todos os móbeis empíricos são determinados através da sensibilidade, são
contingentes, variam de acordo com a situação dada ao agente inteligível existente
e surgem da determinação da natureza sobre a dimensão fenomenológica sobre os
agentes morais;
2- A felicidade é um móbil empírico.
Daqui podemos concluir por modus ponens que a felicidade é determinada através da
sensibilidade, é contingente, varia de acordo com a situação dada ao agente inteligível existente
e surge da determinação da natureza sobre a dimensão fenomenológica sobre os agentes morais;
Já mostramos até agora que Kant assume o dualismo da filosofia clássica da dupla
realidade humana cuja existência é constituída pelo conflito entre as dimensões sensíveis e
inteligíveis. Agora precisamos mostrar que o autor assume que a felicidade como um móbil
empírico. A premissa de Kant é de que a felicidade é determinada pela sensibilidade, de que
não há uma regularidade ou uma universalidade sobre o critério para a felicidade, impossível
nem mesmo para um ou qualquer indivíduo, e menos ainda universalizável à humanidade.
Também poderíamos formular inversamente o argumento:
1- A regularidade de um conhecimento racional decorre de sua necessidade e de sua
universalidade .
2- O conhecimento moral não pode servir-se de impulsos empíricos ou fenomenais,
mas tão somente de um movimento racional. (2007, p. 87).
3- Todos as possibilidades de ações morais devem ser racionais e, portanto, as ações
morais devem seguir tal determinação fruto do intelecto que gera leis universais e
necessárias inclusive para as ações morais.
4- A felicidade não é um critério que emerge de um movimento puramente racional,
mas está sujeito às determinações temporais e subjetivas.
5- Portanto, a felicidade não deve ser um critério para a moralidade.
Com um pouco de teimosia, poderíamos admitir a hipótese de uma interpretação dos
textos kantianos de que talvez o autor aceitasse que as fontes da moralidade pudessem ser
heterogêneos. Não seria bom e até necessário para a moralidade e o mérito das ações as
condições subjetivas do agente, seus sentimentos em relação aos atos, as condições materiais
ou talvez a gana de servir de exemplo para outras pessoas?
29
Kant argumenta que até o mais comum intelecto poderia se convencer de que um
exemplo aconselha, oferece uma ideia para uma ação moralmente boa, mas que somente a lei
pura prática da razão pode ser fundamento de dever para obediência. (2004, p. 184-185).
Mas para o filósofo que aqui deve (como sempre, no conhecimento racional
por meros conceitos, sem operar-se a construção dos mesmos) lutar com maior
dificuldade, porque não pode colocar nenhuma intenção como fundamento
(em seu noumeno), assiste, contudo, a vantagem de poder, quase tanto como
o químico, estabelecer aqui, a todo o tempo, uma experimentação com a razão
prática de cada homem para distinguir o fundamento de determinação moral
(puro) do empírico, podendo acrescentar a vontade empiricamente afetada
(por exemplo a daquele que quisesse de bom grado mentir porque com isso
pode ganhar alguma coisa) a lei moral (como fundamento de determinação).
(2004, p. 185-186).
Seguindo o mesmo fragmento de texto, Kant diferencia os fundamentos de
determinação moral e empírico através da analogia química de uma solução de sal e uma
solução de cal: não é possível coadunarem-se. Da mesma forma, se apresentássemos a um
homem honrado a lei moral decorrente da razão pura prática, jamais ele chegaria a aceitar como
digna a mentira por qualquer justificativa.
No esforço de entender o porquê Kant rechaçaria uma posição compatibilista sobre a
fonte da vontade livre, Allison afirma que Kant insiste num caráter inteligível dela. (1990, p.
34). O comentador mostra isso citando uma passagem de Kant em que ele afirma que através
da mera apercepção estamos conscientes de certas faculdades, a saber, entendimento e razão,
em que a ação não pode ser atribuída à receptividade da sensibilidade. O comentador argumenta
que o ponto principal dessa diferenciação no campo conceitual são os termos percepção e
apercepção. Diz ele que o primeiro se refere ao fato de podermos intuir diretamente um fato do
mundo, algo que está acontecendo. Essa capacidade é também acessível aos animais e depende
de uma determinação espaço-temporal. Diz respeito a uma intuição psicológica de primeira
ordem. Já o peculiar modo de ‘pensar no que estamos fazendo’, a autoconsciência é somente
construída através dessa espontaneidade racional, chama por Kant de apercepção. Por isso a
capacidade de uma instanciação do pensamento em segunda ordem é exclusiva de seres
racionais. (ALLISON, 1990, p. 37).
Outra objeção que Kant se depara é sobre a força que os exemplos morais como
pretexto de muitos para a prática de ações morais. As histórias edificantes são frequentemente
usadas para a educação moral das novas gerações ou recurso discursivo para modificações de
hábitos ou atitudes. O autor reconhece que os exemplos são formas eficientes de afetar os
sentimentos, ou de mobilizar os sentidos para uma ação notadamente boa. (2004, p. 49). Os
30
exemplos facilmente dispõem alguém a assumir como ação moral, justamente porque afetam
com facilidade os sentimentos morais. Por que não poderíamos usar como fundamento moral
um exemplo edificante ou uma ação particular como critério?
Os exemplos servem para que os agentes morais imitem ações. Kant diz de forma
taxativa que eles não são de forma alguma auxiliadores à moralidade: “Não se poderia também
prestar pior serviço à moralidade do que querer extraí-la de exemplos. ” (2007, p. 42). Isso
decorre da caracterização do conceito de moralidade que Kant assume na qual cada exemplo
deveria primeiro ser submetido ao princípio universal para depois servir de modelo, mas de
forma alguma o conceito de moralidade pode ser derivado de um exemplo. A imitação de
alguma ação moral ou um exemplo moralizante não pode servir para determinar ações. Noutro
texto (2004, p. 292-293) Kant explica que os exemplos e comparações podem não ser
emblemáticos ou representativos, mesmo que em situações semelhantes. Ações semelhantes
podem ter valores morais diferentes, dependendo dos contextos e principalmente das intenções
que as fundam. Noutro fragmento afirma que é absurdo usar exemplos para fundamentar ações
morais.
[...] parece absurdo (widersinnisch) querer encontrar no mundo sensível um
caso que, devendo participar sempre do mundo sensível como caso, só
debaixo da lei da natureza permita, todavia, aplicar-lhe uma lei da liberdade,
e ao qual possa ser aplicada a ideia supra-sensível do bem moral, que deve
surgir no in concreto. (2004, p. 139).
Por outro lado, o autor em questão não nega, e até afirma constantemente, que as
causas eficientes de determinação da vontade podem ser sensíveis. Afirma que esta
determinação afeta com mais facilidade os agentes morais. Parece que naturalmente as pessoas
são guiadas por motivos egoístas e interesseiros, e até mesmo em nome da felicidade. De modo
inegável a experiência cotidiana mostra que os critérios morais são variados. Porém, somente
será moral a ação que toma como critério moral o imperativo categórico. O fundamento não
pode ser heterogêneo, mas tão somente noumênico.
Essas referências são insuficientes e não esgotam a relação entre razão e sensibilidade
no sistema kantiano, mas ilustram previamente o fato de que para Kant a vontade pode ser
determinada tanto por móbeis sensíveis, quanto pela determinação racional. Porém, a vontade
livre é uma determinação exclusivamente racional, sem qualquer intenção ou motivação
externa.
31
3 DA VONTADE VIRTUOSA E DO MÉRITO À FELICIDADE
A discussão sobre a possibilidade da correlação entre felicidade e o cumprimento do
dever pelos seres humanos é central e necessária a nossa proposta de trabalho. Parece que a
felicidade é o conceito antagônico ao dever na filosofia kantiana e, por isso, o autor discute
continuamente com ele, argumentando sobre como este não pode ser um critério moral. Neste
capítulo conceituaremos a felicidade no contexto da teoria kantiana, analisaremos os conceitos
relacionados com ele, dando especial atenção ao tema da dignidade à felicidade.
Propõe-se inicialmente uma análise sobre a relação entre a boa vontade e a dignidade
de ser feliz. A investigação sobre a finalidade do ser humano e uma possível coadunação entre
a dignidade de ser feliz, a dignidade humana e o mundo ideal na ideia de sumo bem, podem
indicar caminhos para a descoberta de um critério justo e adequado para as ações humanas.
Além disso, a investigação será útil para esclarecer a função da felicidade e seu devido lugar
como motivação moral no contexto da ética kantiana.
3.1 DA FINALIDADE DO SER HUMANO E DA DIGNIDADE DE SER FELIZ
No prefácio à Fundamentação da Metafísica dos Costumes, o autor distingue os
campos de estudo conforme a natureza das coisas. Afirma ele que assim como a física constrói
seu edifício conceitual e explicativo sobre evidências empíricas, deve haver um aparato
epistemológico e formal subjacente donde se alicerça o edifício constituído; do mesmo modo a
antropologia prática pode estudar empiricamente e conceitualmente o fato de que o ser humano
emite julgamentos morais, fundamentados ou não sobre critérios válidos ou não, o fato das
culturas, juízos e personalidades morais; mas deve haver uma disciplina a priori que busque os
fundamentos e critérios a priori do agir moral.
A partir do caráter a priori da vontade, Kant parece perguntar se uma ação guiada pela
boa vontade tornaria a pessoa feliz. Assim como na natureza tudo tem uma função e uma
finalidade, a boa vontade contribui para que o ser humano seja mais feliz? E a felicidade é a
finalidade do ser humano e seu mais alto valor? E a razão enquanto determinação da vontade,
como realiza as intenções da natureza?
Em primeiro lugar, Kant considera a felicidade como conservação, bem-estar e o gozo
da vida. (KANT, 2007, p. 24). Em uma nota o tradutor diz que “Kant concebe a felicidade em
32
termos de satisfação de desejos ou preferências” (KANT, 2007, p. 30). Seguramente podemos
dizer que os seres vivos não racionais alcançam satisfatoriamente a felicidade, nestes termos,
se as condições forem favoráveis, apenas pelo instinto que a natureza dispôs. O ser humano
também pode viver guiado pelos instintos naturais e as inclinações vulgares e, argumenta Kant,
devemos admitir que uma razão cultivada, se fizer um balanço das vantagens e desvantagens
que tira com o uso da razão, verá que mais se sobrecarrega de fadigas que de felicidade. (KANT,
2007, p. 25).
Em segundo lugar, a razão é uma faculdade que tem relações causais sobre a vontade.
Kant a chama de razão prática. Ele argumenta que se a felicidade fosse a finalidade do ser
humano, deixaria a natureza que a razão tivesse um uso prático, onde parece ser empecilho e
estorvo para o alcance da felicidade? Seria a natureza tão aleatória ou contingente em deixar
florescer a faculdade racional no ser humano, sendo que guia para a infelicidade e o desprazer?
Esta faculdade não teria utilidade ou função para o desenvolvimento das suas capacidades,
portanto, dispensável. Kant responde que não é a felicidade a intenção da natureza para o ser
humano, mas “uma outra e mais digna intenção da existência, à qual, e não à felicidade, a razão
muito especialmente se destina […]”. (KANT, 2007, p. 25).
[…] e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como
faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro
destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para
outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era
absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com
acerto na repartição das suas faculdades e talentos.
A felicidade, no significado adequado, não deve ser a finalidade da existência humana.
A razão é que deverá guiar corretamente a vontade, produzindo uma vontade boa em si mesma.
A felicidade, segundo Kant, tem papel secundário e meramente acidental: a boa vontade deve
ser a condição de tudo, inclusive da aspiração à felicidade.
E neste caso é fácil de conciliar com a sabedoria da natureza o fato de
observarmos que a cultura da razão, que é necessária para a primeira e
incondicional intenção, de muitas maneiras restringe, pelo menos nesta vida,
a consecução da segunda que é sempre condicionada, quer dizer da felicidade,
e pode mesmo reduzi-la a menos de nada, sem que com isto a natureza falte à
sua finalidade, [...]. (KANT, 2007, p. 26).
A felicidade é secundária do ponto de vista transcendental, das condições de
possibilidade do conhecimento e da fundamentação moral, porém é necessária na vida dos
agentes morais que agem por dever. Kant reconhece que “todos os homens têm já por si mesmos
a mais forte e íntima inclinação para a felicidade, porque é exatamente nesta ideia que se reúnem
33
numa soma todas as inclinações.” (2007, p. 29). A “felicidade é um dever (pelo menos
indiretamente)” no sentido de que o cumprimento do dever deve estar acompanhada de uma
satisfação saudável que caso contrário, poderia tornar mais atrativo aos agentes a transgressão
dos deveres. Mas deve-se destacar que a felicidade não garante o valor moral de qualquer ação,
nem mesmo a justifica. (KANT, 2007, p. 29-30).
Por outro lado, Kant afirma a felicidade enquanto finalidade de todo ser racional.
(KANT, 2007, p. 51-52). No que concerne o dever meritório para com outrem, o fim natural
que todos os homens têm é a sua própria felicidade. Ser feliz é a destinação dos seres pensantes.
Kant parece ter retomado como verdadeira e associado a proposição da teologia de que Deus é
independente de tudo e portanto resta em felicidade perene e absoluta em sua independência
absoluta de ser necessário. Os seres sensíveis, e dentre eles os seres humanos, podem
experienciar a felicidade apenas de forma imperfeita, como que por espasmos momentâneos. A
sensibilidade, mais uma vez, ao mesmo tempo que turva a finalidade da felicidade, se abre como
possibilidade de sentido, tanto como sentido da vida, quanto como possibilidade do mérito
moral.
Estes fragmentos em questão, se analisados isoladamente poderiam dar margem a
interpretação de que a felicidade é a finalidade das ações morais. Para uma análise mais
abrangente parece ponderado reafirmar a interpretação tradicional e resgatar a distinção entre
ser e dever-ser. Parece que o autor afirma que a finalidade da ações humanas é a felicidade
enquanto reunião dos muitos prazeres e satisfações sensíveis e que esse seria um papel essencial
às ações morais, mas devemos interpretar que fenomenologicamente, no campo do ser, isso
acontece porém, não devem acontecer de forma essencial e como finalidade de garantia de
moralidade da ação. Em outros termos, devemos apresentar junto a estes fragmentos passagens
que reafirmam a interpretação que a felicidade não deve ser a finalidade ou o critério de decisão
à moralidade, mesmo que isso frequentemente aconteça na prática da maioria dos seres
humanos.
Mesmo com esta observação, poderíamos dizer que há uma função, mesmo que
secundária para a felicidade no cumprimento dos deveres morais? Poderia a felicidade, mesmo
que não sendo o critério supremo e derradeiro, apoiar leis derivadas do critério do imperativo
categórico? Na página 81 da segunda crítica (2004) temos a afirmação que ilustra um possível
colaboração da felicidade ao imperativo categórico:
Mais sutil, embora identicamente falso, é o que pretendem aqueles que
admitem um certo sentido moral, particular, o qual, e não a razão, determinaria
34
a lei mora; assim, pois, a consciência de virtudes estaria imediatamente
conjugada com o contentamento e o prazer, mas a consciência do vício se
imiscuiria à inquietação do ânimo à dor; desse modo, ambos reduzem tudo à
aspiração da própria felicidade. Sem repetir o que eu disse acima, quero
observar apenas a ilusão que aqui tem lugar. Para apresentar-se o viciado
como atormentado com intranquilidade de ânimo pela consciência de suas
faltas, devemos, de antemão, representá-lo, no fundamento principal de seu
caráter, pelo menos até certo ponto, como já moralmente bom, a exemplo
daquele que se felicita com a consciência por ações conformes ao dever, que
deve ser representado também de antemão como virtuoso. Dessa forma, o
conceito da moralidade e do dever deveria preceder a toda referência a esse
contentamento, não podendo de modo algum dele ser derivado. Devemos,
ainda, apreciar com antecedência a importância do que chamamos dever, a
autoridade da lei moral e o valor imediato que a observância da mesma faculta
à pessoa diante dos seus próprios olhos, para sentir aquela satisfação na
consciência que tem de sua conformidade com a lei, e a mais amargosa
imputação quando se sente como infrator da mesma. Como se vê, esse
contentamento ou essa intranquilidade de ânimo não é dado sentir antes do
conhecimento da obrigação, não podendo esta resultar como fundamento em
tal caso. Deve o indivíduo ser já, pelo menos às meias, um homem honrado
para poder animar uma representação daquelas sensações.
Nesta longa passagem, Kant deixa claríssimo sua total rejeição a aceitar como critério
de moralidade a felicidade compreendida como contentamento e prazer. O sentimento de dor e
de prazer é uma subespécie de felicidade. Dado que a felicidade como contentamento do prazer
e do ânimo, produzido fundamentalmente pela faculdade da sensibilidade, é um princípio
empírico, heterônomo (KANT, 2004, p. 130; 2004, p. 37), um sentimento (KANT, 2004, p.
129) e faz parte do mundo fenomênico, um princípio derivado do sentimento da dor e do prazer
não pode ser um princípio para a moralidade.
Isso reafirma a interpretação universalista em oposição a uma defesa do critério
utilitário no espectro das teorias éticas, mas não desqualifica em todo o conceito de felicidade.
Por um lado, diante de um dilema ético, o fundamento último da decisão seguiria o juízo
derivado do critério do dever. Por outro lado, Kant considera ser, com a ressalva de “até certo
ponto” moralmente útil o remorso, a sensação de desprazer decorrente da consciência de agir
em contradição com o dever ou o prazer em agir em conformidade com o dever. Poderíamos
considerar a sensação de prazer útil ao cumprimento dos valores morais?
Kant responde essa questão ao mesmo tempo que critica três teorias: o misticismo
religioso, o epicurismo e o estoicismo. Por agora analisaremos a primeira. Esta posição afirma
que a moralidade está na máxima do amor à lei, na dedicação da vontade sensível ao
cumprimento do dever. O autor argumenta que não podemos esperar que os sujeitos morais
tenham amor ou aquela disposição para colocar a lei moral como objeto da sensibilidade, dado
35
que a lei, sendo abstrata, deve ser objeto apenas da faculdade racional. A ideia de dever é
totalmente concebível, diferentemente de dever por satisfação, dado que esta tem por fonte um
objeto dos sentidos. Uma criatura é dependente e nunca pode estar inteiramente livre de desejos
e inclinações, os quais assentando em causas físicas, não concordam por si mesmas com a lei
moral, que tem uma fonte totalmente diversa. É necessário então, que tenha sempre que fundir
a intenção de suas máximas em constrangimento moral, não em elevação espontânea, mas no
respeito que a observância da lei requer, ou seja, na boa vontade em agir em conformidade com
o dever. (KANT, 2004, p. 168). Não é possível esperar que todos tenham esse desejo ou essa
disposição moral. Essa disposição moral “é inexequível para toda criatura”. (KANT, 2004, p.
169).
Para um homem de bem, um homem justo, por mais atribulado que seja, seria um
conforto à consciência ter permanecido na sua dignidade de homem justo, honrando desse modo
na sua pessoa, a humanidade. No entanto, este consolo não é felicidade. Este homem continua
vivendo ainda que seja só por dever, não porque encontre nisso qualquer prazer. (KANT, 2004,
p. 177). A majestade do dever nada tem que ver com o gozo da vida. (KANT, 2004, p. 179).
Pouco adiante, Kant parece ser um tanto tolerante com uma participação da felicidade
nas ações morais. Afirma ele que deve haver uma distinção entre os princípios da felicidade e
da moralidade, mas não uma oposição entre ambos. (KANT, 2004, p. 186-188). Zelar pela
própria felicidade pode em alguns casos até ser um mandamento do dever, já que à ela
pertencem os meios para o cumprimento do dever (habilidades, saúde e riqueza) e porque sua
carência poderia levar à tentação da infração do dever, como é no caso da pobreza. “A razão
pura prática não consente que se deva, por sua parte, renunciar à pretensão de ser felizes,
exigindo porém que, apenas entre em jogo o dever, não se tenha mais qualquer contemplação
para com a felicidade.” (KANT, 2004, p. 186-187). A moralidade não monopoliza a
contemplação de si, mas permite que a felicidade seja cultivada como virtude e muleta à
moralidade. Mas o parágrafo não termina sem a ressalva do autor: “Fomentar apenas a
felicidade não constitui nunca um dever imediato e, muito menos, um princípio de todo o
dever.” (KANT, 2004, p. 187). O que segue sendo dito tira completamente a esperança de
encontrar em Kant a possibilidade de fundamentar a vontade sobre um princípio sensível:
Pois bem, embora todos os fundamentos de determinação da vontade, com
exceção da única lei pura prática da razão (a moral) são em conjunto
empíricos, pertencendo, como tais, ao princípio da felicidade; devem,
portanto, todos eles, ser separados do princípio moral supremo e nunca ser
36
incorporados a ele como condição, porque isso suprimiria todo o valor moral
[...]. (KANT, 2004, p. 187).
Se com este excerto Kant nos tira a possibilidade de pensar uma vontade determinada
por qualquer princípio sensível ou por qualquer princípio consequencialista, poderíamos pensar
que Kant admitiria alguma participação, mesmo que coadjuvante da felicidade? Não
deveríamos pensar que de alguma forma, em um mundo perfeito, o sumo bem, aqueles que são
justos não devem ser também felizes? Sob o aspecto da centralidade da felicidade como sumo
bem é que o autor se destaca da tradição das teorias éticas iniciada sistematicamente por
Aristóteles. Enquanto que a tradição primeiro se acercava de conceitos e teorias sobre o bem
para depois derivar a lei moral, Kant opera o “giro copernicano na ética”, invertendo essa lógica.
(NODARI, 2010, p. 62). A lei moral não pode ser derivada ou condicionada, pois qualquer
intervenção externa incluiria, mesmo que de forma ínfima, alguma outra variável à equação,
determinando o princípio. Para entendermos melhor, Kant traz a discriminação entre os
significados do conceito de “sumo”, podendo significar supremo, ou critério de decisão: aquele
critério de incondicionalidade, ou seja, não está condicionado a nenhum outro. Um outro
significado é o de perfeição, acabamento. A virtude (dignidade de ser feliz) é a condição de
tudo o que nos possa ser apenas apetecível, de toda nossa busca pela felicidade; mas nem por
isso ela é o bem mais completo e acabado como objeto da faculdade de desejar nos seres
racionais finitos, pois exige felicidade. Porquanto, é necessário convir que aspirar a felicidade,
ser digno dela e, contudo, não participar da mesma é coisa que não pode coexistir com o perfeito
desejo de um ser racional que tivesse ao mesmo tempo todo o poder, se imaginarmos um ser
semelhante, ainda que seja a simples título de ensaio. O sumo bem de um mundo possível é que
a pessoa que é mais moral deve receber a maior felicidade. Mas a virtude (dignidade de ser
livre) é sempre superior à felicidade porque a felicidade apresenta alguma coisa que é agradável
àquele que possui, mas sem ser por sim mesma absolutamente boa sob todos os aspectos, dado
que supõe a conduta moral como condição.
Porquanto é necessário convir que aspirar a felicidade, ser digno dela e,
contudo não participar da mesma é coisa que não pode coexistir com o perfeito
desejo de um ser racional que tivesse ao mesmo tempo todo poder, se
imaginarmos um ser semelhante, ainda que seja a simples título de ensaio.
Pois bem: quando a virtude a felicidade constituem conjuntamente a posse do
sumo bem em uma pessoa e enquanto, além disso, estando a felicidade
repartida exatamente, em proporção idêntica, à moralidade (como valor da
pessoa e da sua dignidade de ser feliz), constituem ambas o sumo bem de um
mundo possível, isto significa o mais completo e acabado bem; neste, todavia,
a virtude é sempre, como condição, o bem mais elevado, porque não tem sobre
si nenhuma outra coisa que é agradável para aquele que possui, mas sem ser
37
por si mesma absolutamente boa sob todos os aspectos, dado que supõe,
constantemente, de acordo com a lei, a conduta moral como condição.
(KANT, 2004, p. 222).
Aquele que é virtuoso merece ser feliz, mas não necessariamente o será. A justificativa
para tal dada pelo autor se assemelha às categorias aristotélicas de necessidade e contingência:
A virtude é um ‘em si’, dado que não depende de nada para ser boa, enquanto que a felicidade
é contingente, visto que ‘depende de outrem para ser’. Mas Kant não deixa de reconhecer que,
no sumo bem ou mundo ideal, a relação bicondicional seria o bem mais acabado, mesmo que
não necessária por virtude de moralidade.
A ligação entre a virtude e a felicidade pode ser uma relação analítica (lógica), ou seja,
uma ligação segundo a lei da identidade; ou uma ligação sintética (ligação real), ou seja, uma
ligação segundo a lei da causalidade. (KANT, 2004, p. 223). Segundo a lei da identidade o
esforço de ser virtuoso e a racional procura da felicidade são duas ações idênticas entre si. Por
outro lado, sob o ponto de vista da lei da causalidade a virtude produz a felicidade como coisa
distinta da consciência daquela, da mesma forma que a causa produz o efeito. Os epicureos e
os estoicos concebiam que a virtude e a felicidade decorriam diretamente do sumo bem.
Portanto, concordavam sob o ponto de vista da unidade do princípio segundo a regra da
identidade, mesmo que discordassem no que diz respeito à escolha do conceito fundamental
(enquanto que os epicureos imaginavam que a virtude consistia em possuir a consciência da
máxima que conduz à felicidade, os estoicos defendiam que a felicidade consistia em ter
consciência da virtude). (KANT, 2004, p. 223). O autor lamenta que esses homens tão
perspicazes tenham identificado conceitos sumamente heterogêneos como a felicidade e a
virtude. (KANT, 2004, p. 224).
Desse modo, a partir destes elementos não podemos afirmar que o sumo bem, mesmo
que objeto de uma razão pura, possa ser fundamento de determinação de uma vontade pura.
Kant explicitamente o descarta no capítulo referente à dialética da razão pura prática. (KANT,
2004, p. 219-220). Além disso, reafirma que o único motivo da vontade pura é a lei moral e
acusa o princípio fundado na ideia de sumo bem como heterônomo.
Está já fora de questão se há relação fenomenal entre a virtude e a felicidade, porém
se deveria analisar se pelo menos no sumo bem, haveria uma ligação de mérito àquele que é
virtuoso, já que são elementos que constituem o sumo bem. (KANT, 2004, p. 226). Na
antinomia da razão prática encontramos a ideia de que em um mundo ideal, no sumo bem, deve-
se conceber a virtude e a felicidade necessariamente ligados. Aquele que cumpre as leis morais,
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  • 1. UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL CENTRO DE FILOSOFIA E EDUCAÇÃO ANDERSON BALBINOT DETERMINAÇÕES DA FELICIDADE À VONTADE NA FILOSOFIA PRÁTICA KANTIANA CAXIAS DO SUL 2014
  • 2. ANDERSON BALBINOT DETERMINAÇÕES DA FELICIDADE À VONTADE NA FILOSOFIA PRÁTICA KANTIANA Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção de grau de especialista em Ética e Filosofia Política da Universidade de Caxias do Sul, Orientador: Prof. Dr. Evaldo Antônio Kuiava CAXIAS DO SUL 2014
  • 3. ANDERSON BALBINOT DETERMINAÇÕES DA FELICIDADE À VONTADE NA FILOSOFIA PRÁTICA KANTIANA Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção de grau de especialista em Ética e Filosofia Política da Universidade de Caxias do Sul, APROVADO EM: ___/___/2014 _______________________________ Prof. Dr. Evaldo Antônio Kuiava
  • 4. Uma criança pode perguntar: “Qual é o sentido do mundo? ” E um adulto pode especular: “Para onde o mundo vai? E já que estamos falando nisso, qual é o sentido do mundo?” Creio que há um sentido no mundo, apenas um, que nos tem assustado e inspirado, de tal forma que vivemos num seriado de Pearl White de contínuo pensamento e espanto. Os seres humanos estão presos... em suas vidas, pensamentos, ânsias e ambições, cobiças e crueldade, mas também em sua bondade e generosidade...numa rede do bem e do mal. Creio que é a única coisa que temos e que ocorre em todos os níveis de sentimento e inteligência. A virtude e o vício foram a consequência de nossa primeira percepção e serão o contexto de nosso último pensamento, apesar de todas as mudanças que possamos impor aos campos, rios e montanhas, à economia e aos costumes. Não há qualquer outra coisa. Depois de desfazer da poeira e dos fragmentos de sua vida, um homem só terá uma indagação, clara e objetiva. Foi boa ou foi má? Pratiquei o bem... ou o mal? [...] Em nossos tempos, quando um homem morre ... se teve riquezas, influência e poder, se teve todos os atavios que despertam a inveja... depois que os vivos avaliam seus bens, eminência, obras e monumentos, a indagação ainda persiste: Sua vida foi boa ou foi má? O que é outra maneira de formular a indagação de Creso (quem é a pessoa mais afortunada do mundo?). A inveja se desvanece e a medida de avaliação se torna diferente: Ele era amado ou odiado? Sua morte é sentida como uma perda ou acarreta alguma alegria? ” [...] Na incerteza, estou convencido de que, por baixo de suas camadas superiores de fragilidade, os homens querem ser bons e querem ser amados. Na verdade, a maioria dos vícios é uma tentativa de atalho para o amor. Quando um homem morre, não importa qual tenha sido o seu talento, influência e gênio, sua vida foi um fracasso se morreu sem amor, sua morte um frio horror. Parece-me que, quando se pode optar entre dois cursos de pensamento ou ação, devemos lembrar da morte e tentar viver de maneira a que nossa morte não proporcione prazer ao mundo. Temos apenas uma história e um sentido. Todos os romances e toda poesia se baseiam na competição incessante entre o bem e o mal em nós mesmos. E me ocorre que o mal deve ser constantemente ressuscitado, enquanto que o bem, a virtude, é imortal. O vício sempre foi um rosto novo e jovem, enquanto a virtude é venerável como nenhuma outra coisa do mundo. Vidas Amargas – John Steinbeck
  • 5. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO........................................................................................................ 4 2 O DUALISMO NA DETERMINAÇÃO DA VONTADE E A RAZÃO PRÁTICA........................................................................................................................... 7 2.1 RAZÃO PRÁTICA, LIBERDADE E LEI MORAL NO JULGAMENTO MORAL............................................................................................................................... 7 2.2 A VONTADE RACIONAL NA DETERMINAÇÃO DA LEI MORAL.................. 13 2.2.1 Livre Arbítrio e Vontade......................................................................................... 13 2.2.2 Boa Vontade, Dever e Lei Moral ............................................................................ 17 2.3 A MORALIDADE DEVE SER UM MANDAMENTO DA RAZÃO PURA.......... 21 3 DA VONTADE VIRTUOSA E DO MÉRITO À FELICIDADE ........................ 31 3.1 DA FINALIDADE DO SER HUMANO E DA DIGNIDADE DE SER FELIZ ...... 31 3.2 DA POSSIBILIDADE DA FELICIDADE COMO DETERMINAÇÃO DA VONTADE SENSÍVEL SER PRINCÍPIO PRÁTICO ........................................................................... 41 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 47 REFERÊNCIAS....................................................................................................... 49
  • 6. 4 1 INTRODUÇÃO Constitui-se problema fundamental para os seres humanos a convivência. Este é um problema cotidiano na medida em que temos uma necessidade prática de tomarmos decisões sobre nossos atos e enquanto estes são acontecimentos que reverberam na esfera dos assuntos humanos. Deparamo-nos com frequência refletindo sobre atos em que nós próprios produzimos ou que outros produzem. Atentamos para o fato de que julgamos os atos segundo o que consideramos certo ou errado, mas muitas vezes não julgamos o critério a partir do qual escolhemos determinados critérios de julgamento. O que julgamos como as atitudes mais adequadas são julgadas na sua particularidade segundo um critério universal. Podemos elencar rapidamente alguns como o critério da virtude e da felicidade, da utilidade, da revelação teológica, do legalismo, do relativismo, enquanto critérios tradicionais e até mesmo cotidianos que podemos assumir. O critério kantiano figura dentre os principais tanto pelo fato de que é uma teoria que representa significativamente o paradigma moderno na busca por critérios universais e necessários, semelhantes aos critérios de formulação das leis científicas. Kant precisa fundamentar a moral em um princípio racional. A necessidade desse princípio é de suma importância pelo fato de que se pudéssemos buscar qualquer fundamento além dele, ficaríamos sujeitos a toda forma de perversão. O princípio, porém, não se refere somente às ações vistas do ponto de vista objetivo, mas deve ser levada em conta no mérito moral somente as ações guiadas por uma boa vontade, uma boa intenção ou motivação adequada: Uma intenção guiada por dever. Lendo as obras kantianas atentamente, é curioso constatar que as principais teorias que o autor dialoga são fundadas no conceito de felicidade, como a doutrina cristã, o estoicismo, epicurismo e o aristotelismo. Além disso, o autor parece identificar tudo o que é de origem empírica ou não-formal como sendo atrelado ao conceito de felicidade. Portanto, uma parte considerável das questões kantianas tem relação com este conceito, o que o torna digno de uma investigação. O problema de pesquisa da presente monografia é de saber se de alguma forma Kant aceitaria móbeis empíricos, identificados no conceito de felicidade, como colaboradores da vontade racional no cumprimento do dever. Para tratar tal problema, usamos o método de análise argumentativa das principais obras do autor, bem como de comentadores e especialistas
  • 7. 5 no tema. A tese inicial é a clássica afirmação, no contexto kantiano, de que a felicidade não pode ser um critério absoluto ou mesmo complementar ao imperativo categórico que deve determinar a vontade motivadora de uma ação, para que ela tenha mérito moral. Em suma, afirma-se que nenhum móbil empírico ou motivação no sentido de desejo podem garantir qualquer nível adicional de mérito moral a uma ação. Como já o dissemos antes, a hipótese concorda com autores tradicionais e, portanto, não oferece nenhum risco abusivo de equívocos, derivado de posições polêmicas ou demasiado desafiadoras. Além disso, nosso trabalho será de grande valia como exercício de investigação filosófica e nossa introdução em alguns temas da ética de Kant. Também será útil expor brevemente a estrutura básica deste trabalho. Nossa investigação se divide em duas tarefas básicas. De largada, a primeira tarefa é investigar as condições materiais e de possibilidade para a moralidade no capítulo intitulado “O dualismo kantiano na determinação da vontade”. A dupla realidade no qual está imerso o ser humano implica uma moralidade específica, diferenciada de outras aplicáveis a outros tipos de seres como Deus ou seres com uma outra estrutura cognoscitiva ou existencial. Explicitar tais pressupostos perfaz a tarefa assentar em terreno seguro nossa exposição para posteriores afirmações. O capítulo está dividido em três partes intituladas “Razão prática, liberdade e lei moral no julgamento moral”, “A vontade racional na determinação da lei moral” e “A moralidade deve ser um mandamento da razão”. O primeiro subcapítulo desenvolve um paralelo entre as duas Críticas de Kant, distingue os usos da razão, pura e prática; discute a impossibilidade da metafísica como ciências e sua possibilidade de fundamentação de uma ética. O ser humano vive as dimensões numênica e fenomenológica; que o obriga a vivenciar a necessidade e a liberdade, compreender o condicionado e desejar o incondicionado. O segundo subcapítulo trata da elucidação dos conceitos de vontade para o autor em debate. Em muitos momentos Kant trata indiferentemente o conceito de vontade, entendendo- o tanto como faculdade de agir de acordo com as próprias representações, quanto como vontade sensível ou inclinação. Cabe-nos, neste momento, elucidar os sentidos e precisar os termos. É outro conceito importante a boa vontade como vontade impelida pelo dever a cumprir a lei moral, o qual será brevemente discutido inserindo pontos referentes ao tema da monografia. Ao final deste capítulo se tratará introdutoriamente do conceito de dever como a obrigação de cumprir a lei moral, tema próprio do próximo capítulo.
  • 8. 6 No terceiro, portanto, se apresentará os argumentos kantianos para sustentar que a moralidade é um mandamento da razão pura e apenas dela, sem qualquer influência ou compatibilidade. De forma inicial, se investigará a possibilidade de a felicidade e o exemplo edificante serem incentivos adicionais ou motivações legítimas para o cumprimento das leis morais. A segunda parte do presente trabalho se intitula “Da vontade virtuosa e do mérito à felicidade”. Trata do conceito de felicidade ao que é entendido como determinações da vontade por móbeis sensíveis ou múltiplas motivações com a finalidade da boa vida. Esta segunda parte, por sua vez, possui dois subcapítulos. O primeiro analisa o tema “Da finalidade do ser humano e da dignidade de ser feliz”. Algumas questões guiarão nosso itinerário: Poderia a moralidade e sua consciência causar a felicidade e se esta não poderia ser objetivo da vida humana? Teria menos mérito uma ação motivada por ela? Porém, a questão centra é de saber se poderia considerar a felicidade de alguma forma útil à moralidade. O epicurismo, estoicismo e a doutrina cristã prometem uma relação necessária entre a moralidade e a felicidade. Analisaremos até que ponto Kant concorda com elas ou as critica. No segundo subcapítulo se tenta responder diretamente o que antes se perguntava de forma retórica ou se relacionava a outros elementos da ética kantiana. Aqui se faz uma análise do critério da felicidade como possibilidade de complemento à moralidade, a felicidade individual, a felicidade do outro e a felicidade da maioria como critérios universais, e as implicações jurídicas no que diz respeito à punição dos indivíduos, mostrando que se não tomarmos como princípio a lei moral, mas a felicidade, fatalmente cairíamos em posturas absurdas tanto nas deduções morais, que implicam o mérito moral, quanto no âmbito da moralidade externa.
  • 9. 7 2 O DUALISMO NA DETERMINAÇÃO DA VONTADE E A RAZÃO PRÁTICA Antes de expormos os motivos pelos quais Kant recusa a felicidade como critério moral, devemos explicitar alguns conceitos fundamentais da teoria moral kantiana que conduzirão nossa argumentação ao final para a justificação e da compreensão da tese do autor. Partiremos das obras Fundamentação da metafísica dos costumes, Metafísica dos Costumes e da segunda crítica kantiana na análise dos conceitos de razão prática como vontade livre, capacidade decorrente da faculdade da razão, possibilidade da liberdade. Seguiremos com a exposição dos binômios kantianos de necessidade e liberdade, razão pura e razão prática, condicionado e incondicionado, fenômeno e noumeno, vontade livre e móbil empírico, autonomia e heteronomia, princípios apodíticos e assertóricos, bom e agradável, imperativo categórico e hipotético. O raciocínio kantiano se mostra de modo frequente na dualidade. Desconfiamos, por isso, que de modo análogo podemos aplicá-lo para entender como o autor opera ao pensar o conceito de felicidade. Portanto, parece razoável investigar tais dualidades. Nosso objetivo neste capítulo se constitui em fornecer as bases conceituais e estruturantes da ética kantiana e qualificar teoricamente o trabalho para a central discussão do conceito de felicidade. Dividimos este capítulo em três partes. Na primeira, discutiremos as dualidades que têm relação com as faculdades e a experiência humanas enquanto existência condicionada, mas com o direcionamento do incondicionado. Em um segundo momento, abordaremos as questões que dizem respeito as determinações humanas e as fontes para a vontade. Na terceira parte deste capítulo, discorreremos sobre o dever e a lei moral como obrigações ao sujeito deduções da razão autônoma, condições para que efetivamente uma ação tenha mérito moral. 2.1 RAZÃO PRÁTICA, LIBERDADE E LEI MORAL NO JULGAMENTO MORAL No início da segunda crítica Kant explica por que esta não se chamará Crítica da Razão Pura Prática, mas “simplesmente crítica da razão prática em geral.” (KANT, 1994 p. 11). Sua justificativa para a questão é de que a razão não pode se ultrapassar enquanto razão prática. Enquanto que na Crítica da razão pura o autor busca delimitar o campo dos princípios do conhecimento puro, na Crítica da Razão Prática busca fundamentar princípios para ação moral. Para tal, enquanto que na primeira crítica busca-se restringir o conhecimento somente ao que
  • 10. 8 possui correspondente empírico, na segunda crítica Kant busca apenas mostrar as condições de possibilidade da lei moral em um sistema coerente e o mais completo possível. Nas primeiras páginas do prefácio da crítica em questão está pressuposta a ideia de que a razão pode querer conhecer tanto o condicionado quanto o incondicionado. O pensamento não tem limites às possibilidades da realidade, desde que estas não subvertam o princípio da não-contradição. O condicionado é objeto para o entendimento, faculdade racional que é condição de possibilidade para qualquer ciência. Segundo Kant, o conhecimento é o resultado de um processo onde os fenômenos são dados pelo mundo empírico, e são elaborados como conhecimentos científicos pelo entendimento através de suas categorias e, assim, validados como universais e necessários. A faculdade do entendimento é a faculdade de aplicar os conceitos às intuições. A tarefa crítica de Kant consistiu em delimitar as condições de possibilidade do entendimento de fornecer leis a priori sobre o mundo. Nesse sentido, a matemática e a física estão justificadas enquanto ciências capazes de fornecer conhecimentos a priori universais e necessários. No entanto, isso não é o caso da metafísica. Esta disciplina não pode ser considerada uma ciência, pois o seu objeto de investigação, a saber, Deus, a imortalidade da Alma e a liberdade, não tem um correspondente fenomênico. Na metafísica a razão se direciona para além do que pode ser subsumido em categorias do entendimento, pois nos falta o elemento empírico. A metafísica se direciona, fundamentalmente, para o incondicionado. Podemos distinguir dois modos de ser da razão: Um modo racional enquanto entendimento (verstand) que categoriza os fenômenos em vista dos conhecimentos universais e necessários; e outro modo racional enquanto razão (vernunft). O entendimento é a razão pura pura, enquanto é uma especificidade da razão; e a razão pura (vernunft) enquanto racionalidade que transcende os limites do mundo causal. O mundo fenomênico é fatalmente regido pela causalidade natural. Podemos pensar uma causa para cada um dos fenômenos visíveis indefinidamente. Ora, se há causa para todos os eventos, logo não há espontaneidade nem novidade nestas séries. Não há possibilidade de pensarmos a liberdade num mundo regido pelas leis naturais causais. Mas a razão enquanto faculdade transcendental busca no pensamento “uma completude incondicional na série, que pode ser encontrada apenas em algum estado de uma substância que começa em si mesma e não requer causa adicional. Isso, de acordo com Kant, fornece-nos a ideia de causa livre.” (WOOD, 2008a, p. 102)
  • 11. 9 Os objetos da metafísica são, na primeira crítica, ideias da razão, pois surgem espontaneamente na sua busca pelo incondicionado, causa primeira ou última das séries causais. Na segunda crítica, as ideias da razão são postulados da razão prática em vista da fundamentação racional da moral. A possibilidade da liberdade, fundamentos de toda possibilidade da comportamento moral e da escolha do critério moral para a ação, que por sua vez é fundamento de qualquer responsabilidade e do direito, mesmo que não pode ser provada aos moldes do entendimento, subsumindo-a a categorias, pode ao menos ser pensada, desde que “[…] do ponto de vista prático, ela não encerre nenhuma impossibilidade (contradição) interna.” (KANT, 1994, p. 12). Assim, a ideia de liberdade se torna um postulado racional: devemos poder pensar o ser humano enquanto movido por uma causalidade diferente da causalidade natural. A possibilidade da autonomia da razão teorética de distanciamento do mundo pelo sujeito objetivador, capaz de, pelo entendimento submeter o mundo às suas leis a priori, universais e necessárias; doravante torna-se uma razão prática capaz de autonomia na razão prática, o fundamento para a lei moral. Uma vez que esta [crítica] recomendava admitir os objetos da experiência como tais e, entre eles, mesmo o nosso próprio sujeito, unicamente como fenômenos, pondo-lhes, no entanto, como fundamento coisas em si, portanto, não considerar todo o suprassensível como uma ficção e seu conceito como vazio de conteúdo, agora, a razão prática, por si mesma e sem se ter associado com a [razão] especulativa, confere realidade a um objeto (Gegenstand) suprassensível da categoria da causalidade, a saber, à liberdade (embora seja enquanto conceito prático e a pensa para uso prático), por conseguinte, aquilo que além podia simplesmente ser pensado é confirmado por um facto (Factum). (KANT, 1994, p. 14). A razão pode tanto fornecer leis para a constituição das ciências, quanto especular sobre as possibilidades quiméricas de uma escatologia. Mais concretamente, mas não sem menos relevância, ao que é o contrário, fa razão pode especular sobre o fundamento sob o qual julgamos uma ação como boa ou má. A razão espontaneamente faz esse movimento de andar sobre o terreno da ciência e também para além deste, inclusive sobre a possibilidade de sermos livres. No entanto, “a liberdade é também a única entre todas as ideias da razão especulativa, da qual sabemos (Wissen) a possibilidade a priori sem, no entanto, a discernir (Einzusehen), porque ela é a condição da lei moral, que conhecemos” (KANT, 1994, p. 12). Isso significa que encontramos em nós, seres humanos racionais, através da simples introspecção, a possibilidade de uma vontade livre, determinada pela razão prática. Ela simplesmente se encontra aí, ou seja, constitui um fato (faktum). Continua Kant o argumento de que as ideias de Deus e da
  • 12. 10 imortalidade da alma não são condições para a lei moral, mas apenas garantias de que a lei moral deve continuar a existir. A existência de um Deus que fundamenta o status de realidade transcendente para a lei moral, ou seja, que até Deus pode reconhecer que a lei moral é legítima de acordo com o critério estipulado, e a esperança de que pela imortalidade da alma o praticante das leis morais universais receba sua recompensa são, nas palavras de Kant, “as condições da aplicação da vontade, moralmente determinada, a seu objeto, que lhe é facultado a priori (o supremo bem).” (KANT, 2004, pg. 9). É importante notar que a razão teorética e a razão prática constituem uma única e mesma razão, porém com dois usos distintos. “O que certamente não conviria ao andamento sistemático de uma ciência a constituir […], era no entanto aqui permitido, e mesmo necessário; porque a razão é considerada com esses conceitos em transição para um uso inteiramente diferente do que ela lá deles fazia.”. (KANT, 1994, p. 15). Kant se refere à segunda crítica quando diz que é permitido e até necessário pressupor a liberdade para a fundamentação de um agir livre. Deparamo-nos com a necessidade prática de buscarmos fundamentos para as ações morais. Devemos pensar a liberdade de um modo transcendental: devemos reconhecer a “sua indispensabilidade enquanto conceito problemático no uso completo da razão especulativa, como também a sua total ininteligibilidade; […].” (1994 p. 15). Não podemos buscar fundamentos empíricos tanto a) porque não teríamos um correspondente fenomênico (KANT, 1994, p. 15), quanto b) que o princípio fundamental da moral não pode ser buscado na experiência, pois os elementos empíricos não podem ser parâmetros para o que deve ser (KANT, 2007, p. 24-25). O caráter a priori, essencial para as ciências é mantido por Kant também para as leis morais. As leis da natureza de acordo com a causalidade natural e as leis morais de acordo com a causalidade livre. Das duas espécies de imperativos, os hipotéticos e categóricos, somente os últimos podem conferir o caráter de lei moral, pois sendo os imperativos hipotéticos preceitos empíricos, não conferem ao que lhe manda a necessidade e universalidade. (KANT, 1994, p. 30). Por isso Kant chama a atenção para a necessidade da segunda crítica. Enquanto que a razão especulativa tem sua legitimidade fundamentada e delimitada na primeira crítica, a segunda crítica precisa fundamentar a possibilidade da liberdade visto que a ética está relegada ao âmbito metafísico, onde Kant vê confusão e conhecimentos incertos. O desafio de Kant está em justificar a razão prática como fonte legítima de leis morais universais e necessárias para todos os seres racionais. Isso está registrado no texto kantiano como uma das duas maiores dificuldades à crítica proposta por ele, a saber, a dificuldade de aplicar as categorias
  • 13. 11 transcendentais aos noumenos e de afirmar a realidade objetiva do conhecimento prático. (KANT, 2004, p. 24-25). A necessidade do postulado está clara em uma nota do prefácio da segunda crítica (1994, p. 20), onde Kant busca diferenciar o conceito de postulado na sua teoria de um postulado matemático. A raiz do mal entendido, diz Kant, está no fato do uso popular dos termos. Kant justifica que o uso que fará do conceito não é mera procura de termos que tornem o texto mais complicado ou que tenha uma aparência de erudição, mas que este é o termo encontrado que melhor expressa o conceito. O postulado matemático é a possibilidade de derivação a partir de um axioma onde seus teoremas são inferidos de forma evidente. Já o postulado no uso que Kant faz em sua filosofia prática significa que os objetos da metafísica – Deus, imortalidade da alma e a liberdade – devem ser colocados como condições de possibilidade, ou são condições transcendentais para teorizarmos a moral, ou seja, é uma hipótese necessária. Enquanto que nos postulados matemáticos a necessidade de um axioma está relacionada a um objeto, no postulado da razão prática há uma necessidade de certezas reconhecidas em relação ao sujeito. O postulado da liberdade é necessário, portanto, para reafirmar que a moral não pode ter como alicerce qualquer elemento empírico, tanto como motivação, por meio da afetação de nossos sentidos, quanto por uma finalidade sensível. Dentre as motivações ou finalidades possíveis está a felicidade. Enquanto que na dimensão epistemológica, o ser humano deve ser tomado como um ser ao mesmo tempo imanente e transcendente, se quiser que uma ciência moderna seja possível, sob o aspecto do mérito moral das ações de um sujeito moral, o ser humano precisa ser tomado apenas como sujeito transcendente, ou melhor, deslocado de sua dimensão concreta, da necessidade natural, do mundo fenomênico. A ciência da moral ou metafísica dos costumes deve depurar a moral de toda a matéria para ver os fundamentos da vontade livre. (KANT, 2007, p. 15). “Porque, com que direito podemos nós tributar respeito ilimitado, como prescrição universal para toda a natureza racional, àquilo que só é válido talvez nas condições contingentes da humanidade?” (KANT, 2007, p. 42). A pureza das leis morais não podem advir nem mesmo da essência humana e menos ainda de circunstâncias existenciais ou culturais, (KANT, 2007, p. 16) “mas sim a priori exclusivamente nos conceitos da razão pura.” Nesta última [entendimento humano vulgar], quando a razão vulgar se atreve a afastar-se das leis da experiência e dos dados dos sentidos, vai cair em puras incompreensibilidades e contradições consigo mesma ou, pelo menos, num caos de incerteza, escuridão e inconstância. No campo prático, porém, a capacidade de julgar só então começa a mostrar todas as suas vantagens
  • 14. 12 quando o entendimento vulgar exclui das leis práticas todos os móbiles sensíveis. (KANT, 2007, p. 36) A razão pura tem a função de, ao mesmo tempo produzir as máximas para a vontade e julgar essas mesmas máximas segundo o critério do imperativo categórico. A escolha dever-se- á pautar unicamente por uma vontade pura de instrumentalização tanto dos valores quanto de pessoas. As leis que regem tudo que há na natureza podem ser determinações racionais ou naturais. O ser humano sofre influências das duas determinações, mas pela faculdade racional tem a capacidade de agir também segundo a representação das leis, ou segundo princípios. (KANT, 2007, p. 47). A felicidade não faz parte das finalidades absolutas do ser humano no sumo bem. É um bem apenas acidental no sistema kantiano. Podemos afirma-lo ainda, com referências à Fundamentação da Metafísica dos costumes, quando Kant trata dos princípios apodíticos e assertóricos e sua possível relação na fundamentação categórica ou hipotética de um imperativo. Imperativo é a fórmula de um mandamento que obriga a vontade na forma de um dever, uma obrigação, segundo o que é bom. (KANT, 2007, p. 48). O que é bom é diferente do que é agradável. “Praticamente bom é porém aquilo que determina a vontade por meio de representações da razão” (KANT, 2007, p. 48), diferentemente do que é agradável, “pois este só influi na vontade por meio das sensações em virtude de causas subjetivas que valem apenas para a sensibilidade deste ou daquele, e não como princípio da razão que é válido para todos”. (KANT, 2007, p. 49). Os imperativos ordenam categórica ou hipoteticamente. Os imperativos hipotéticos apresentam uma relação condicional de ação em vista de um resultado que se prevê e do qual se pode chegar. Nesse tipo de imperativo, Kant assinala que o dever se direciona para a condição necessária, para o consequente, para as consequências da ação, e não para seu sentido, o dever em si. Por outro lado, os imperativos categóricos representam uma ação objetivamente necessária por si mesma sem relação às suas consequências ou finalidades fora dela mesma. No caso de a ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo é hipotético; se a ação é representada como boa em si, por conseguinte como necessária numa vontade em si conforme à razão como princípio dessa vontade, então o imperativo é categórico. A felicidade e todos móbeis sensíveis são hipotéticos ou assertóricos. O conselho contém, na verdade, uma necessidade, mas que só pode valer sob a condição subjetiva e contingente de este ou aquele homem considerar isto ou aquilo como contando para sua felicidade; enquanto que o imperativo
  • 15. 13 categórico, pelo contrário, não é limitado por nenhuma condição e se pode chamar propriamente um mandamento, absolutamente, posto que praticamente necessário. (KANT, 2007, p.53) Kant associa estes aos princípios de prudência, se referindo indiretamente às éticas da virtude, como por exemplo a teoria prática de Aristóteles. Os conselhos de prudência são aqueles que guiam um indivíduo a escolher determinados meios para atingir fins determinados. São pragmáticos e racionais, mesmo que não contenham necessidade universal como os mandamentos morais. A prudência aconselha, a lei manda, ordena. (KANT, 2004, p. 77). Estes são os motivos e justificativas de Kant para sustentar que o princípio do conselho, a felicidade ou qualquer outro móbil seja usado como princípio moral. 2.2 A VONTADE RACIONAL NA DETERMINAÇÃO DA LEI MORAL 2.2.1 Livre Arbítrio e Vontade Nas ciências naturais é preciso contar com princípios a priori, mas a origem dos conhecimentos começa com a experiência e, assim, há elementos significativos que provêm da evidência da experiência. A universalidade e necessidade das leis da natureza fundam uma metafísica da natureza que trata dos princípios fundadores das leis naturais. Em algumas ciências, tal como a química, os cientistas confiam nas experiências particulares para formular as leis da sua ciência. Trata-se do método indutivo. Os regularidade e generalidade dos eventos particulares acessíveis ao sujeito através dos fenômenos permite a formulação de uma lei geral universal e necessária. Porém, no campo moral, as leis continuam tendo o caráter de necessidade e universalidade, mas não podem se fundamentarem nas experiências particulares. Kant separa o campo das ciências do campo moral: As ciências diagnosticam o real enquanto que a moral formula padrões e normas para o comportamento livre sob o critério do "dever ser", e como o campo do que pode ser é infinitamente maior do que as fronteiras que delimitam o que acontece, mais restrito ainda é o campo do que deve ser, como ideal, padrão e modelo racional, o que pode e o que acontece não pode ser padrão para o que deve ser evento provocado pelo comportamento humano. Na busca pelo critério universal para a fundamentação moral, diz o autor que a felicidade é apercebida de forma diferente para cada sujeito moral. Como poderia o impulso para a alimentação, o sexo, repouso, movimento ou honra de cada um serem critérios para o
  • 16. 14 agir moral? Resultaria, como o autor sugere, que haveria de cada indivíduo abrir exceções e concessões para seu agir e ajustar suas escolhas aos modos de vida particulares, o que tornaria infortunosa a vida própria e alheia. (KANT, 2008, p. 58). Ela se vê como um gozo duradouro para o próprio indivíduo e somente a experiência, além de algumas proposições tautológicas, pode nos fornecer essas respostas. Sendo a razão prática uma faculdade humana, um sistema de cognição (KANT, 2008, p. 59), só pode gerar leis universais e necessárias, de forma a priori. Este sistema de cognição tem por objeto a liberdade de escolha. (KANT, 2008, p. 59). No que se trata “da relação entre as faculdades da mente humana e as leis morais”, parte assim intitulada na obra Metafísica dos Costumes, Kant diferencia vontade e livre-arbítrio. O primeiro conceito, adicionando à faculdade de conhecer e o sentimento de prazer e desprazer, constituem o quadro completo das faculdades do ânimo. (ORTS1 , 2008, p. 32). Entendemos que a diferenciação dos conceitos de vontade e livre-arbítrio deve abrir nossa discussão por ilustrarem os modos como a liberdade se nos apresenta enquanto fundamentos importantes para a teoria moral kantiana. Iniciamos nossa caracterização nos movimentando por dentro da constituição da vontade. São, em linhas gerais, duas forças que atuam na escolha dos critérios para a ação livre: o desejo, de forma não-consciente, e o livre-arbítrio, de forma consciente. Kant conceitua desejo como “a faculdade de mediante as próprias representações serem a causa dos objetos dessa representação. Chama-se vida a faculdade de um ser em agir em conformidade com suas representações”. (KANT, 2008, p. 60). Na Fundamentação, Kant se expressa nos seguintes termos: “A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis. É uma faculdade que só se pode encontrar em seres racionais”. (KANT, 2007, p. 67). Isso significa que o fundamento que determina tal ação está no interior do agente, na estrutura racional, cognoscente. Assim como a faculdade de conhecer aplica seus princípios a priori na natureza, para os conhecer, a faculdade da vontade, enquanto ligada ao desejo, aplica seus princípios a priori à liberdade. É pela faculdade de desejar que o ser humano possui um interior pulsante digno de ser chamado livre das determinações ou autônomo. Mesmo que sofra influências do meio, estas não lhe poderão determinar definitivamente sua escolha. “[…] é denominada faculdade de fazer ou deixar de fazer conforme aprouver a cada um.” (KANT, 2008, p. 62). A escolha é a capacidade de cada 1 Adela Cortina Ortis faz um comentário introdutório à obra “La Metafísica de las Costumbres” (2008) do qual parafraseamos aqui.
  • 17. 15 um, na medida em que está ligada à consciência, realizar seu objeto mediante ação própria. (KANT, 2008, p. 62). No texto kantiano o conceito de desejo está claramente conectado não só a faculdade da vontade, mas também ao sentimento do prazer e desprazer. Na vontade, estão envolvidos também sentimentos e afetações particulares. A diferenciação está no fato de que enquanto a faculdade da vontade, identificando-se com a razão prática, é a fonte das leis universais do âmbito moral, e os sentimentos de prazer e desprazer diante de uma afetação não necessariamente é universal, podendo ser ligada às vivências particulares do sujeito, e envolver o que é meramente subjetivo. Sendo o prazer uma faculdade ainda particular, não pode ser suficiente para explicarmos o conceito de vontade na sua completa expressão, porém, vemos que nela está o conceito onde podemos começar a vislumbrar algo da vontade. O livre-arbítrio se refere mais ao objeto do que ao seu fundamento. Enquanto que a vontade é referida ao fundamento da ação, aos seus critérios de ação e justificação, o livre- arbítrio se lança em direção a cada ação particular. “Dá-se o nome de livre-arbítrio à escolha que pode ser determinada pela razão pura; a que pode ser determinada somente por inclinação (impulso sensível, estímulo) seria o arbítrio animal (arbitrium brutum).” (KANT, 2008, p. 63). Quando se encontra determinado pela razão, é arbítrio livre, enquanto que quando é determinado pela inclinação, é arbítrio bruto: o arbítrio pode estar sendo influenciado por inclinações ou impulsos, mas não pode ser determinado porque é livre. Porém esse conceito não transcende o conceito de liberdade negativa, ou de libertas indifferentiae, ou seja, que “a liberdade de escolha é essa independência do ser determinado por impulsos sensíveis.” (KANT, 2008, p. 63). Segundo Kuiava (2003, p. 79), a obra Fundamentação conceitua vontade como “a capacidade do ser racional de agir, não somente segundo as leis, como é o caso da natureza, mas segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios”. Novamente se firma a ideia de que a vontade livre é fundamentalmente racional e refinada de elementos empíricos. A segunda Crítica ainda usa o conceito tanto para caracterizar a vontade ou vontade pura. Neste ponto concordam os comentadores Kuiava (2003, p. 79) e Beck (1963, p. 38). Kuiava explica que Kant enfatiza o conceito de vontade pura para diferenciar a vontade que é o ponto de mediação entre o entendimento puro e a vontade de desejar com todas as relações implicadas em tal relação, inclusive os possíveis elementos empíricos imbricados nela. A vontade pura, por outro lado, é a capacidade do ser racional de representar, por meio de
  • 18. 16 princípios, uma lei moral. Em outras palavras, a vontade pura é a vontade guiada pela razão. O comentador afirma ainda que o conceito de autodeterminação está ligado à distinção entre vontade e vontade pura. Beck interpreta igualmente que a vontade (Wille) “não é mais que razão prática: é esta faculdade que faz uma regra razão a causa eficiente da razão de uma ação por meio do qual um objeto pode ser realizado, ou por meio do qual se parte de uma mera ideia do estado de coisas previsto nele.”2 (1963, p. 39). Neste artigo, o comentador diferencia os dois conceitos que Kant se instrumentaliza, o conceito de “Willkür” que denota a vontade com origem nas determinações empíricas ou externas ao sujeito. Sabemos que os sujeitos podem escolher satisfazer seus impulsos naturais, ou seja, direcionar regras ou máximas que atinjam o objetivo dos desejos, e vemos na vida cotidiana que é o que a maioria das pessoas escolhem. Por outro lado, “Wille” denota o conceito de vontade guiada pela razão prática, capaz de gerar leis morais universais e necessárias. Este último conceito se aproxima bastante do que Kuiava conceitua como “vontade livre”. Na segunda seção da Fundamentação da Metafísica dos costumes, o autor intenta derivar o conceito de dever a partir juízo moral vulgar, “não a apalpadelas ou com exemplos”, mas fazendo uma fazendo uma descrição clara da faculdade prática da razão. Inicia afirmando a fatalidade da natureza em contraste à liberdade humana pela vontade livre. Tudo na natureza age segundo leis. Só um ser racional tem a capacidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. Como para derivar as ações das leis é necessária a razão, a vontade não é outra coisa senão razão prática. Se a razão determina infalivelmente a vontade, as ações de um tal ser que são conhecidas como objetivamente necessárias, são também subjetivamente necessárias, isto é, a vontade e a vontade de escolher só aquilo que a razão, independentemente da inclinação, reconhece como praticamente necessária, quer dizer, como bom." (KANT, 2007, p. 47) A vontade que figura a razão prática tange a dimensão da liberdade humana no seu sentido mais excelente. Se a vontade do ser humano somente fosse determinada pela razão prática, sem qualquer possibilidade de determinação por algum móbil empírico, as ações seriam objetivamente e subjetivamente necessárias. Mas tal não acontece. No ser humano não só a razão prática determina a vontade, mas sensações, percepções, finalidades, desejos e exemplos podem determinar decisões e ações. Sendo assim, ações que seriam objetivamente necessárias, podem não o ser subjetivamente. 2 “is nothing but pratical reason; it is this faculty that makes a rule of reason the efficient cause of an action by means of which an object can be realized, or the means by which one goes from mere idea to the state of affairs envisaged in it.” (tradução nossa).
  • 19. 17 Ora, se uma ação realizada por dever deve eliminar totalmente a influência da inclinação e com ela todo o objeto da vontade, nada mais resta à vontade que a possa determinar do que a lei objetivamente, e, subjetivamente, o puro respeito por esta lei prática, e por conseguinte a máxima que manda obedecer a essa lei, mesmo com prejuízo de todas as minhas inclinações. (KANT, 2007, p. 31). Por isso, Kant vê a necessidade de falar da obrigação da lei moral. As ações podem ser contingentes subjetivamente, mas devem ser reconhecidas objetivamente pelo agente moral. Através do reconhecimento subjetivo da lei moral, seu comprometimento pela vontade determinada pelo princípio racional, está garantido ao sujeito moral que a ação tenha mérito. Só pode ser considerado como bom aquilo que determina a vontade pela razão. (KANT, 2007, p. 51). A ação que for apenas subjetivamente necessária, determinada por móbeis sensíveis, é uma ação agradável; enquanto que se ela for objetivamente necessária, ou seja, determinada pela faculdade da razão, então será uma ação boa. 2.2.2 Boa Vontade, Dever e Lei Moral No início da primeira sessão da Fundamentação Kant declara que “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade.” (KANT, 2007, p. 21) A boa vontade é a disposição para fazer sempre o que é correto. É desejar fazer uma ação moralmente boa. A vontade de fazer o bem e se esquivar das ações nefastas deve acompanhar todas as ações. Portanto, o caráter pessoal, aqui empregado como disposição para fazer o bem, é sinônimo de boa vontade na concepção kantiana. Na página 22 (KANT, 2007) o autor define como “valor íntimo absoluto da pessoa”. Kant afirma que só a boa vontade pode ser considerada boa pois as virtudes tradicionais são boas relativamente enquanto que aquela é boa em absoluto. Argumenta que os talentos do Espírito e as qualidades do temperamento são desejáveis, mas de nada valem se não estiverem acompanhadas de boas intenções. As qualidades e talentos podem ser de grande valia tanto para quem os possui, quanto para a felicidade geral. Tanto os talentos do espírito como a capacidade de bem argumentar ou bem julgar, o temperamento; quanto os talentos da fortuna como a saúde, a fortuna e o poder, podem ser usados para grandes equívocos e males morais. Argumenta o autor que esses talentos podem gerar soberba nos indivíduos e desencaminhar boas iniciativas por propósitos meramente egoístas. A boa vontade, portanto, corrige toda espécie de iniciativa mascarada pelos nossos impulsos naturais de glórias e honrarias diante de
  • 20. 18 ações consideradas virtuosas, corrige toda espécie de iniciativa mascarada pelos nossos impulsos naturais. Esses impulsos, o que Kant chama de limitações e obstáculos subjetivos (para Allen Wood “subjective limitations and hindrances”, 2008b pg 31), são antes de tudo, empecilhos à disposição de agir por dever. A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é em si mesma e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações. (KANT, 2007, p. 23). A boa vontade não deve levar em conta as consequências das ações, mas deve ser boa por si mesma, pelo próprio fato de querer o bem. Nisso constitui seu mérito. “A utilidade ou a inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este valor.” (KANT, 2007, p. 23). Kant usa uma metáfora para mostrar isto: Se uma vontade boa convergir com o critério da utilidade, será meramente acidental, assim como uma joia com um engaste, que pode ser manejada mais facilmente ou para atrair sobre ela a atenção daqueles que não a conhecem, mas o engaste nada acrescenta ou minimiza o seu valor. (KANT, 2007, p. 23). A boa vontade tem um valor absoluto e não deve querer satisfazer outros elementos que não a si mesma em sua avaliação. Num artigo esclarecedor sobre este conceito, o autor explica que Kant não considera somente a boa vontade como bem. Kant lista e classifica outros bens, mesmo que estes, associados a más consequências, poderiam restringir a moralidade de uma ação. A interpretação que o comentador oferece a esse ponto é de que também a boa vontade pode gerar más consequências, porém, seu valor enquanto vontade boa não seria diminuído. (WOOD, 2009, p. 2-3). Só é bom aquilo que é combinado com a boa vontade (como seu instrumento ou seu resultado tencionado). As outras coisas, no entanto, transformam-se de boas em más se forem combinadas de modo análogo com a vontade má. [...]. Outras coisas são tidas como boas na medida em que são combinadas com a boa vontade. Mas a boa vontade, quando combinada como coisas más, não perde nada sua bondade; pelo contrário, “ela brilharia por si mesma como algo que tem seu próprio valor em si mesmo” (Ak 4:394). (WOOD, 2009, p. 33) Na metade da segunda seção da Fundamentação, Kant parece querer ilustrar por que começa o livro falando da boa vontade, já com muitos conceitos elucidados, dizendo que “É absolutamente boa a vontade que não é má” Ao contrário do que afirma muitos interpretes de Kant, o conceito de boa vontade contém o conceito de dever, e este é um caso especial daquele, ou seja, o conceito de dever é uma subespécie do conceito de boa vontade. O comentador justifica com uma longa
  • 21. 19 argumentação que o conceito de boa vontade não é de fato central, quanto muitos outros comentadores o consideram; por isso, o conceito de boa vontade ficaria sem explicação completa. Todo caso, Wood interpreta que o conceito de boa vontade é “exercício bem sucedido dessa capacidade [de adotar princípios subjetivos (máximas), que é capaz de fazer isso à luz de princípios objetivos ou leis] nos agentes morais.” (WOOD, 2009, p. 39). Wood, Alisson (1990) e Kuiava concordam na centralidade do conceito de dever na fundamentação da lei moral. Wood afirma que a boa vontade é apenas retoricamente o ponto inicial da fundamentação de princípio para a moralidade na obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, mas a derivação fundamental começa com o conceito de dever. (WOOD, 2009, p. 9). Kant distingue ações praticadas por dever, conforme ao dever e contrárias ao dever. Estas últimas são aquelas que se posicionam diametralmente opostas a um juízo moral deduzido do imperativo categórico. Esta ação será contrária ao dever tanto do ponto de vista legal ou externo, quanto do ponto de vista das motivações. As ações conforme ao dever são aquelas cuja motivação tem uma finalidade estranha ao cumprimento do dever em si mesmo, portanto, é uma ação que tem uma causalidade meramente externa ou legal. A ação por dever se caracteriza por agir segundo o dever em si mesmo, tanto externa quanto internamente. “Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei.” (KANT, 2007, p. 31). O dever é a necessidade de a lei moral ser cumprida em respeito a ela mesma. Já que a lei moral é uma necessidade, resta ao agente segui-la pelo único motivo de que ela merece respeito e cumprimento por ser universalmente reconhecida como lei. A lei moral implica uma obrigação ao agente moral. Assim com o conceito de obrigação não se aplica a Deus, pois sua vontade não pode ser determinada por móbeis sensíveis e, portanto, não é uma vontade apenas subjetivamente condicionada; também o conceito de dever não se aplica a qualquer ser numênico ou de perfeita vontade. Nele o dever coincide com o querer. Kant diz que todo imperativo se exprime em um dever. (KANT, 2007, p. 48). Por conseguinte, “os imperativos são formulas para exprimir a relação entre as leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva deste ou daquele ser racional, da vontade humana por exemplo. (KANT, 2007, p. 49). Dessa maneira, o dever faz parte da moralidade da dos seres racionais possuidores de uma vontade imperfeita, dentre eles, os seres humanos.
  • 22. 20 Assegurar a cada um sua própria felicidade poderia, pelo menos indiretamente, ser um dever moral (KANT, 2007, p. 48), já que a insatisfação pode tornar o agente moral indisposto para o cumprimento dos deveres ou mesmo tentado a transgredir os deveres. Todos temos a natural inclinação para a satisfação das inclinações, o que Kant chama de felicidade. Mas o que a felicidade prescreve não é coerente consigo mesma, como no exemplo do “gotoso” (KANT, 2007, p. 30): deveria renunciar o doente a comer tudo que lhe apetecer? Não lhe causaria felicidade? Percebe-se neste caso que a satisfação, que pode gerar felicidade ao sujeito, está em contradição com a felicidade que possa haver na saúde. Kant diz que a felicidade pode ser considerada em relação a uma ação com mérito moral se, e somente se o dever lhe acompanhar. Todo caso, Kant afirma na terceira proposição da primeira seção da Fundamentação que o dever deve ter a lei moral como princípio e nunca como efeito: o que serve à inclinação (KANT, 2007, p. 31). Kant diretamente combate a ideia de dever por satisfação e a considera contraditória em si mesma. (KANT, 2004, p. 168). Além disso a ideia não é universalizável: Não é possível esperar que todos tenham o desejo de perfeição para realizarem com satisfação o dever. O dever frequentemente constrange o íntimo e os gostos pessoais das pessoas. O ser humano é uma criatura, ser dependente, portanto não está livre de desejos e inclinações. (KANT, 2004, p. 168-169). A dignidade humana se realiza com o cumprimento do dever, e a dignidade do dever é a personalidade: a liberdade e independência do mecanismo de toda a natureza, considerada essa liberdade, apesar de tudo, ao mesmo tempo como uma faculdade de um ser que está submetido a leis puras práticas correlatas, isto é, facultadas pela sua própria razão. (KANT, 2004, p. 175). A dignidade humana é afirmada na subjetividade de cada ser humano e sua liberdade de agir, do que decorre que ele é fim em si mesmo, não pode ser tratado como meio. (KANT, 2004, p. 176). O ser humano não é meramente animal, que tem somente a fenomenalidade. Ele tem consciência do que faz, busca mérito e sente culpa. Mas a “dignidade de homem justo”, uma consciência de ter feito por dever, não poderia ser a felicidade, a recompensa merecida. Mesmo que se não houvesse tal prazer, os seres humanos podem, e devem viver por dever. (KANT, 2004, p. 178). “A majestade do dever nada tem que ver com o gozo da vida.” (KANT, 2004, p. 179). Se não é possível esperar o amor à lei, por motivos práticos ou de contradição sistemática, Kant afirma que o dever não deve ser tributado menos que com o respeito. Não é que a lei deva esperar tributos amorosos, por não ser efeito no sujeito moral. O respeito ao dever emerge por princípios. (KANT, 2007, p. 31). “O respeito é um tributo que não podemos negar
  • 23. 21 ao mérito, queiramos ou não; embora, em todo caso, possamos deixar de manifestá-lo exteriormente, não podemos todavia, impedir de senti-lo interiormente.” (KANT, 2004, p. 157). O sentimento moral é sempre um efeito de uma disposição. A causa do cumprimento de uma obrigação pode ter como causa um princípio, como o dever, mas nunca um sentimento moral. (KANT, 2004, 157-157). 2.3 A MORALIDADE DEVE SER UM MANDAMENTO DA RAZÃO PURA Duas forças constituintes dos seres humanos podem determinar sua vontade de acordo com Kant. As forças são classificadas como de caráter empírico ou racional. Essas forças determinam nossas escolhas, sejam elas morais ou amorais. Ao agir ou ao confrontarmos com uma situação que nos pede uma decisão, frequentemente podemos sentir um conflito interno entre o que queremos fazer e o que devemos fazer. Ora cedemos aos prazeres sensuais da sensibilidade, ora cedemos à ponderação da razão. Esse conflito interno é uma clara evidência de que há duas determinações da vontade. Esse conflito interno e individual, comum a qualquer ser humano particular, é constituinte do próprio ser humano que tem necessidade de decidir. Por isso, as determinações da vontade podem ser conflitantes e problemáticas, ou mesmo contraditórias. Como podem os caráteres empíricos e inteligíveis serem atribuídos à um único agente? Como pode a mesma ação ser concebida por ambas as causalidades determinadas pelo estado antecedente do agente e fatores extrínsecos e como um “novo começo”, o produto da espontaneidade do agente? (ALLISON, 1990, p. 29). 3 A distinção e o conflito frequente entre razão e sensibilidade não foi criada por Kant. Ele apenas a retomou da tradição. O autor reconhece que é necessário que uma dessas forças deve prevalecer às expensas da outra para que a ação seja moral. A razão deve determinar a vontade segundo o critério do imperativo categórico sem qualquer diálogo ou mistura com a sensibilidade. A felicidade não deve interferir nem sequer um pouco quando se avalia uma ação moral. Poderia ser esse um critério moral exagerado? Não poderíamos satisfazer as duas forças ao mesmo tempo, equilibrando-as? Será que a felicidade, a busca e o desejo mais básico da vida humana, não importa para Kant? 3 How can both an empirical and an intelligible character be ascribed to a single agent? How can one and the same action be conceived both as causally determined by the antecedent state of the agent and extrinsic factors and as a “new beginning”, the product of the spontaneity of the agent?. (Tradução nossa).
  • 24. 22 Em termos de rigor, devemos dizer que a questão de se a felicidade poderia ser um critério moral mais apropriado para uma abordagem ética, mesmo dentro do sistema kantiano, poderia ser formulada da seguinte forma: Não poderíamos fundamentar uma ação moral na universalização da máxima moral da busca pela felicidade? A determinação sensível é, como já foi dito, uma motivação dos atos humanos, e a felicidade, classificada pelo autor em questão como um critério moral sensível, é pretexto para as ações morais para um número expressivo de pessoas, o que a torna um critério relevante para a pesquisa. Parece necessário aprofundar o estudo sobre a diferença entre essas duas determinações da vontade a fim de entender as causas e justificativas de Kant para suas respostas sobre o tema. Kant poderia conceber uma colaboração mútua de ambas fontes, sensível e racional? Na introdução da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant pergunta se é realmente necessária uma filosofia moral a ser tratada de forma metódica e racional. Ele diferencia e localiza a moral dentre os diversos ramos do conhecimento depurada de elementos empíricos. A questão pressupõe a existência de duas faculdades que podem determinar as disposições humanas: a razão e a sensibilidade. A questão pode também se desmembrar da seguinte forma, como propõe Kant: “A natureza da ciência não exige que se distinga sempre cuidadosamente a parte empírica da parte racional”? (KANT, 2007, p. 14). Ou ainda, podemos colocar a questão nos moldes de Allison: “Não é a razão a capacidade pragmaticamente noumenal? E como pode algo de natureza noumenal ter caráter empírico (fenomenal)?” (1990, p. 31).4 Identificamos quatro ideias ou pressupostos que justificam a opção de Kant pela segregação entre as duas faculdades de determinação da vontade. Um primeiro pressuposto pode ser identificado na obra em questão na divisão sistemática das ciências e do conhecimento. Kant desmembra os diversos campos do conhecimento separando as ciências que prescindem do empírico daquelas que devem proceder de forma estritamente racional, levando em conta que o conhecimento universal e necessário é sempre a priori e, portanto, depende fundamentalmente da ação do entendimento humano e nunca da volatilidade da sensibilidade. O autor nos leva a crer que a moral, enquanto conhecimento racional, depende fundamentalmente, assim como qualquer conhecimento, de um movimento racional. O autor reconhece que mesmo o conhecimento prático e seus princípios se distinguem essencialmente de tudo o que contém elementos empíricos, e de que a 4 “Is not reason the pradigmatically noumenal capacity, and how can anything noumenal have an empirical (i.e. phenomenal) characters?” Tradução nossa.
  • 25. 23 Antropologia, enquanto ciência que aborda o ser humano, por este fato não podem dar critérios, por si mesmas, para as ações. (KANT, 2007, p. 14). Kant legitima a filosofia moral, mesmo apartada de qualquer elemento empírico afirmando que “tal filosofia deva existir [...] da ideia comum do dever e das leis morais”. (KANT, 2007, p. 14). Um segundo pressuposto que Kant propõe é da necessidade de que uma lei moral deva servir de fundamento de obrigação de forma universal e necessária para todo agente inteligível. Kant aqui descarta a possibilidade racional do relativismo moral. Segundo ele, não é possível racionalmente defender que uma lei moral deva se aplicar para um agente e não para outro. Da mesma forma, as leis morais não podem ser válidas em determinadas situações e não em outras. Nas palavras de Kant, “deve-se concordar que uma lei, para possuir valor moral, isto é, para fundamentar uma obrigação, precisa de implicar em si uma absoluta necessidade”. (KANT, 2007, p. 2). O terceiro pressuposto que Kant propõe é a afirmação de que toda lei moral deve valer para todo ser racional, e não deve ser limitada ao ser humano de forma específica. Dado isso, afirma que se um princípio deve valer para todo ser racional, então todas as leis morais, pelo fato de serem necessárias e universais, devem ser postas como princípios morais por qualquer ser racional. Isso porque a racionalidade é uma das causalidades aos quais podem afetar um ser racional, e que, por possuir a possibilidade de pensar sobre seus atos, essa pode influenciar nas suas ações. (KANT, 2007, p. 96). A conclusão que Kant chega é de que a segregação entre conhecimentos empíricos e racionais fundamenta todos os conceitos propostos por uma filosofia moral. O fato é de que Kant quer fundamentar princípios de forma a priori, nunca pela experiência. A dualidade “razão e experiência” permanece em tensão pelo fato da existência humana concreta, porém a faculdade humana capaz de elevar-se ao sumo bem, na ética, e de conhecer, no exame da faculdade transcendental, fundamentalmente é a razão. Aplicada a busca do princípio moral, a segregação será pressuposto da conclusão kantiana de que a lei moral não pode ter qualquer móbil empírico. Na terceira sessão da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (p. 98-99) Kant problematiza essa como a questão central dos pressupostos que coloca. Diz ele que há uma dificuldade em perceber que devamos separar os interesses empíricos ou sensíveis, dos imperativos do dever, para que determinada ação seja moral. A dificuldade consiste no círculo vicioso dos pontos de vista das causas eficientes possíveis das determinações da vontade. Parece
  • 26. 24 que liberdade é “fazer o que quiser”, ou seja, seguir os ditames da sensibilidade. Determinação externa significa agir com esforço contra a vontade própria e, muitas vezes parece muito mais custoso seguir as determinações racionais do que as sensuais. Kant propõe o inverso: liberdade significa agir por uma determinação racional e o determinismo é ceder às indicações da sensibilidade. Consideramo-nos como livres na ordem das causas eficientes, para nos pensarmos submetidos a leis morais na ordem dos fins, e depois pensarmo- nos como submetidos a estas leis porque nos atribuímos a liberdade da vontade; pois liberdade e própria legislação da vontade são ambas autonomia, [...]. (KANT, 2007, p. 99). Kant aqui afirma sua tese primordial: a capacidade dos seres racionais de determinarem sua vontade de acordo com sua faculdade própria, sem renderem-se fatalmente aos móbeis sensíveis, ao hábito, à experiência empírica, a determinações psicológicas ou a alguma espécie de exemplo. A capacidade de autodeterminação própria do ser humano vai além de suas condições físicas, psicológicas ou culturais. Esse ponto de vista, segundo Kant, é próprio de quem analisa o ser humano da perspectiva de que ele é algo que não se pode conhecer em si mesmo, não se pode esgotá-lo com explicações objetivadoras ou científicas, no sentido de requererem um correspondente empírico ou verificável. O fundamento determinante da vontade é sua própria legislação, ou melhor, está em si mesmo. A razão é o baluarte das faculdades e das potencialidades humanas. Enquanto que o mundo sensível afeta causalmente o ser humano, preso às determinações da vida, da sua situação concreta e limitada, a razão é aquela espontaneidade que transcende a simples determinação mecânica e previsível. Kant pressupõe que todos os outros seres da natureza, no seu tratamento pelo ser humano em conhece-las, são não-racionais, e, assim, estão submetidas somente às determinações sensíveis e, portanto, são afetados somente pela sensibilidade; se são afetados por outra causalidade, não temos acesso, mas pressupomos que seja assim pelo fato de sua manifestação. Diz Kant que “o homem encontra realmente em si mesmo uma faculdade pela qual se distingue de todas as outras coisas, e até de si mesmo, na medida em que ele é afetado por objetos; essa faculdade é a razão (‘Vernunft’)”. (KANT, 2007, p. 101). E não é somente dos animais que os seres humanos se distinguem. Deus, como ser que possui uma vontade perfeita, onde a coincidência entre o dever e o querer acontece plenamente, é também distinto dele por não sofrer influências da sensibilidade na sua vontade. O ser humano se encontra entre os mundos sensível e inteligível.
  • 27. 25 Por tudo isso é que um ser racional deve considerar-se a si mesmo, como inteligência (portanto não pelo lado das suas forças inferiores), não como pertencendo ao mundo sensível, mas como pertencendo ao mundo inteligível; tem por conseguinte dois pontos de vista dos quais pode considerar-se a si mesmo e reconhecer leis do uso das suas forças, e portanto de todas as suas ações: o primeiro, enquanto pertence ao mundo sensível, sob leis naturais (heteronomia); o segundo, como pertencente ao mundo inteligível, sob leis que, independentes da natureza, não são empíricas, mas fundadas somente na razão. (KANT, 2007, p. 102). Do ponto de vista da aparência, as ações humanas estão em conformidade a leis da natureza. O fenômeno da causalidade livre aqui ainda está oculto. Não se pode verificar a intencionalidade da ação. Esta é apenas uma das formas possíveis de se visar a moralidade, ou seja, do ponto de vista das simples ações, que supostamente são livres. Mas parece que se as ações são motivadas por determinações externas ao sujeito, não são livres. Kant aceita essa premissa. Sua conclusão é de que, mesmo que nenhum agente moral aja efetivamente por uma intenção de cumprir um mandamento do dever, ou seja, buscado de acordo com um critério racional, essa possibilidade ainda existe. Afirma Allison que Isso significa que não devemos falar significativamente que algo aconteça internamente ou para este agente, ou ainda, de seu ser determinado por condições prévias. Em resumo, com sua concepção de um caráter inteligível, temos a fórmula do pensamento de uma atividade que não é condicionada empiricamente à uma motivação noumenal. (ALLISON, 1990, p. 30). 5 Se a possibilidade de os seres humanos serem guiados por um critério racional de ações existe, então ela deve ser tomada efetivamente como um critério racional possível, mesmo que nenhum agente concreto o pratique em determinado tempo, ou mesmo se nunca tenha sido praticado. Esta é a ideia da diferenciação entre ser e dever ser: o que tem o dever de acontecer pode ser muito diferente do que acontece ou do que talvez nunca venha a acontecer. As determinações concretas não podem influenciar na representação de uma lei moral perfeita. Isso para Kant é crucial, pois diz respeito ao fato da própria ética como ciência normativa existir. O que acontece segundo as regras da experiência possível é acessível no tempo e no espaço. A experiência é possível justamente pela existência desses dois a priori da sensibilidade. Por isso que a esfera do ser, enquanto acessível pela sensibilidade, faz parte do mundo fenomênico. 5 this means that we could not speak meaningfully of something happening in or to this agent or of its being determined by antecedent conditions. In short, with this concept of an intelligible character we have the formula for the thought of the empirically unconditioned activity of a noumenal subject.” (Tradução nossa).
  • 28. 26 Por outro lado, a esfera do dever-ser não está presa ao mundo fenomênico, mas ao mundo inteligível, do pensamento em toda sua espontaneidade e plasticidade para pensar as possibilidades de vir a ser. Por isso o mundo do que pode-ser é infinitamente maior do que o mundo do ser, adequando-se, segundo Kant, a única condição do respeito à coerência interna do sistema de pensamento. O tempo e o espaço são condições a priori da sensibilidade que determinam as ações, vontades e desejos e determina a possibilidade de interagirmos no mundo concreto e sensível, ou designado por Kant como mundo fenomênico. O fenômeno do pensamento livre e espontâneo acontece nele, portanto, mesmo que o ser humano esteja situado, limitado e comprometido com o mundo fenomênico, faz parte também de um mundo numênico, espontâneo e ilimitado. Kant afirma que a Analítica [da Razão Pura Prática] mostra que este fato está inseparavelmente ligado à consciência da liberdade da vontade, identificando-se, além disso com ela, do que resulta reconhecer-se a vontade de um ser racional participante do mundo dos sentidos, bem como das demais causas eficientes, necessariamente submetido às leis da causalidade, na prática, mas ao mesmo tempo, por outro lado, como ser em si mesmo, tem consciência de sua existência, a saber, determinável em uma ordem inteligível das coisas [...]. (KANT, 2004, p. 88). Na página 200 da segunda crítica, Kant se pergunta se seria possível afirmar a liberdade sem prejuízo das ações como fenômenos. Noutro fragmento, precisamente quando o mesmo autor argumenta contra o sensualismo, afirma que a necessidade natural, divergindo da causalidade da liberdade, se relaciona diretamente somente às coisas existentes e determináveis no tempo. (KANT, 2004, p. 189). Os sentimentos e desejos pertencem a essa causalidade, portanto também estão sujeitos ao tempo. O autor conclui o argumento afirmando que estando esta causalidade determinada por algo anterior, no caso o tempo passado em que os desejos e sentimentos foram causados, então as ações que tem essas causas não estão sob o poder do agente, portanto não são livres. Kant formula o seguinte argumento para afirmar a dualidade do ser humano enquanto ser livre e ao mesmo tempo determinado pela causalidade fenomênica (KANT, 2004, p. 190-191): 1 – se quiséssemos atribuir liberdade a um ser cuja existência seja determinada no tempo, não poderíamos fugir à lei da necessidade física, o que seria equivalente a abandonar o ser ao mais cego acaso. 2 – se não houvesse uma forma diversa para representar a existência dessas coisas consideradas em si mesmas, seria necessário repelir a liberdade como um conceito quimérico e impossível.
  • 29. 27 3 – Não resta outro caminho que não seja atribuir a existência de uma coisa enquanto determinável no tempo e, por isso, também a causalidade, segundo a lei da necessidade natural, simplesmente ao fenômeno, ainda, a liberdade a esse mesmo ser, considerado como coisa em si mesma. Mais adiante Kant afirma que o sujeito consciente de si como coisa em si considera a si como uma existência não submetida às condições do tempo, onde não há nada anterior à determinação de sua vontade. Cabe destacar aqui que Kant reafirma a possibilidade de um agente racional de uma existência não submetida às condições do tempo através da própria razão. (KANT, 2004, p. 196). Ainda tentando responder sobre a possibilidade da liberdade coadunar-se com a necessidade no ser humano, Kant lança a hipótese de que se é o tempo que nos determina fenomenologicamente, um ser divino seria a causa da existência desse ser. (2004, p. 201). Kant pressupõe que pelo atributo da onisuficiência devemos aceitar também que as ações do homem tem n’Ele também seu fundamento. Por essa tese, todas as ações humanas derivariam de sua vontade, o que o tornaria mero autômato, portanto não livre. A conclusão de Kant é de que isso demonstra que Deus não pode ter relação fenomenológica alguma no tempo e no espaço. (2004, p. 202). O trânsito no mundo espacio-temporal é atributo exclusivo de seres que possuem as duas naturezas, e que, portanto, Deus estaria numa dimensão externa às ações humanas, contrariando uma tese espinozista de colocar em uma dimensão numênica o espaço e o tempo. (2004, p. 203). Kant expõe a premissa-chave do argumento que “Se a existência no tempo é só um modo de representação sensível dos seres pensantes no mundo e, por conseguinte, não pertence a estes seres como coisas em si, a criação destes seres é uma criação das coisas em si mesmas, [...].” (KANT, 2004, p. 204). Isso quer dizer que é contraditório afirmar que Deus é a causa das ações no mundo sensível, das ações enquanto fenômenos, mesmo sendo causa dos agentes dos fenômenos. A conclusão de Kant é de que somente o tempo pode afirmar a liberdade e de que a existência sensível ou fenomenológica não pode fundamentar a atividade determinante da vontade livre e da liberdade como causalidade livre pela razão prática. (2004, p. 205). Sobre a dualidade temporalidade e intemporalidade, pode-se dizer que a felicidade, como móbil empírico e originário da sensibilidade, sempre é determinável no tempo. Ela pertence à causalidade como necessidade natural. A felicidade é algo externo ao indivíduo que é afetado e impelido por ela.
  • 30. 28 Dadas as premissas: 1- Todos os móbeis empíricos são determinados através da sensibilidade, são contingentes, variam de acordo com a situação dada ao agente inteligível existente e surgem da determinação da natureza sobre a dimensão fenomenológica sobre os agentes morais; 2- A felicidade é um móbil empírico. Daqui podemos concluir por modus ponens que a felicidade é determinada através da sensibilidade, é contingente, varia de acordo com a situação dada ao agente inteligível existente e surge da determinação da natureza sobre a dimensão fenomenológica sobre os agentes morais; Já mostramos até agora que Kant assume o dualismo da filosofia clássica da dupla realidade humana cuja existência é constituída pelo conflito entre as dimensões sensíveis e inteligíveis. Agora precisamos mostrar que o autor assume que a felicidade como um móbil empírico. A premissa de Kant é de que a felicidade é determinada pela sensibilidade, de que não há uma regularidade ou uma universalidade sobre o critério para a felicidade, impossível nem mesmo para um ou qualquer indivíduo, e menos ainda universalizável à humanidade. Também poderíamos formular inversamente o argumento: 1- A regularidade de um conhecimento racional decorre de sua necessidade e de sua universalidade . 2- O conhecimento moral não pode servir-se de impulsos empíricos ou fenomenais, mas tão somente de um movimento racional. (2007, p. 87). 3- Todos as possibilidades de ações morais devem ser racionais e, portanto, as ações morais devem seguir tal determinação fruto do intelecto que gera leis universais e necessárias inclusive para as ações morais. 4- A felicidade não é um critério que emerge de um movimento puramente racional, mas está sujeito às determinações temporais e subjetivas. 5- Portanto, a felicidade não deve ser um critério para a moralidade. Com um pouco de teimosia, poderíamos admitir a hipótese de uma interpretação dos textos kantianos de que talvez o autor aceitasse que as fontes da moralidade pudessem ser heterogêneos. Não seria bom e até necessário para a moralidade e o mérito das ações as condições subjetivas do agente, seus sentimentos em relação aos atos, as condições materiais ou talvez a gana de servir de exemplo para outras pessoas?
  • 31. 29 Kant argumenta que até o mais comum intelecto poderia se convencer de que um exemplo aconselha, oferece uma ideia para uma ação moralmente boa, mas que somente a lei pura prática da razão pode ser fundamento de dever para obediência. (2004, p. 184-185). Mas para o filósofo que aqui deve (como sempre, no conhecimento racional por meros conceitos, sem operar-se a construção dos mesmos) lutar com maior dificuldade, porque não pode colocar nenhuma intenção como fundamento (em seu noumeno), assiste, contudo, a vantagem de poder, quase tanto como o químico, estabelecer aqui, a todo o tempo, uma experimentação com a razão prática de cada homem para distinguir o fundamento de determinação moral (puro) do empírico, podendo acrescentar a vontade empiricamente afetada (por exemplo a daquele que quisesse de bom grado mentir porque com isso pode ganhar alguma coisa) a lei moral (como fundamento de determinação). (2004, p. 185-186). Seguindo o mesmo fragmento de texto, Kant diferencia os fundamentos de determinação moral e empírico através da analogia química de uma solução de sal e uma solução de cal: não é possível coadunarem-se. Da mesma forma, se apresentássemos a um homem honrado a lei moral decorrente da razão pura prática, jamais ele chegaria a aceitar como digna a mentira por qualquer justificativa. No esforço de entender o porquê Kant rechaçaria uma posição compatibilista sobre a fonte da vontade livre, Allison afirma que Kant insiste num caráter inteligível dela. (1990, p. 34). O comentador mostra isso citando uma passagem de Kant em que ele afirma que através da mera apercepção estamos conscientes de certas faculdades, a saber, entendimento e razão, em que a ação não pode ser atribuída à receptividade da sensibilidade. O comentador argumenta que o ponto principal dessa diferenciação no campo conceitual são os termos percepção e apercepção. Diz ele que o primeiro se refere ao fato de podermos intuir diretamente um fato do mundo, algo que está acontecendo. Essa capacidade é também acessível aos animais e depende de uma determinação espaço-temporal. Diz respeito a uma intuição psicológica de primeira ordem. Já o peculiar modo de ‘pensar no que estamos fazendo’, a autoconsciência é somente construída através dessa espontaneidade racional, chama por Kant de apercepção. Por isso a capacidade de uma instanciação do pensamento em segunda ordem é exclusiva de seres racionais. (ALLISON, 1990, p. 37). Outra objeção que Kant se depara é sobre a força que os exemplos morais como pretexto de muitos para a prática de ações morais. As histórias edificantes são frequentemente usadas para a educação moral das novas gerações ou recurso discursivo para modificações de hábitos ou atitudes. O autor reconhece que os exemplos são formas eficientes de afetar os sentimentos, ou de mobilizar os sentidos para uma ação notadamente boa. (2004, p. 49). Os
  • 32. 30 exemplos facilmente dispõem alguém a assumir como ação moral, justamente porque afetam com facilidade os sentimentos morais. Por que não poderíamos usar como fundamento moral um exemplo edificante ou uma ação particular como critério? Os exemplos servem para que os agentes morais imitem ações. Kant diz de forma taxativa que eles não são de forma alguma auxiliadores à moralidade: “Não se poderia também prestar pior serviço à moralidade do que querer extraí-la de exemplos. ” (2007, p. 42). Isso decorre da caracterização do conceito de moralidade que Kant assume na qual cada exemplo deveria primeiro ser submetido ao princípio universal para depois servir de modelo, mas de forma alguma o conceito de moralidade pode ser derivado de um exemplo. A imitação de alguma ação moral ou um exemplo moralizante não pode servir para determinar ações. Noutro texto (2004, p. 292-293) Kant explica que os exemplos e comparações podem não ser emblemáticos ou representativos, mesmo que em situações semelhantes. Ações semelhantes podem ter valores morais diferentes, dependendo dos contextos e principalmente das intenções que as fundam. Noutro fragmento afirma que é absurdo usar exemplos para fundamentar ações morais. [...] parece absurdo (widersinnisch) querer encontrar no mundo sensível um caso que, devendo participar sempre do mundo sensível como caso, só debaixo da lei da natureza permita, todavia, aplicar-lhe uma lei da liberdade, e ao qual possa ser aplicada a ideia supra-sensível do bem moral, que deve surgir no in concreto. (2004, p. 139). Por outro lado, o autor em questão não nega, e até afirma constantemente, que as causas eficientes de determinação da vontade podem ser sensíveis. Afirma que esta determinação afeta com mais facilidade os agentes morais. Parece que naturalmente as pessoas são guiadas por motivos egoístas e interesseiros, e até mesmo em nome da felicidade. De modo inegável a experiência cotidiana mostra que os critérios morais são variados. Porém, somente será moral a ação que toma como critério moral o imperativo categórico. O fundamento não pode ser heterogêneo, mas tão somente noumênico. Essas referências são insuficientes e não esgotam a relação entre razão e sensibilidade no sistema kantiano, mas ilustram previamente o fato de que para Kant a vontade pode ser determinada tanto por móbeis sensíveis, quanto pela determinação racional. Porém, a vontade livre é uma determinação exclusivamente racional, sem qualquer intenção ou motivação externa.
  • 33. 31 3 DA VONTADE VIRTUOSA E DO MÉRITO À FELICIDADE A discussão sobre a possibilidade da correlação entre felicidade e o cumprimento do dever pelos seres humanos é central e necessária a nossa proposta de trabalho. Parece que a felicidade é o conceito antagônico ao dever na filosofia kantiana e, por isso, o autor discute continuamente com ele, argumentando sobre como este não pode ser um critério moral. Neste capítulo conceituaremos a felicidade no contexto da teoria kantiana, analisaremos os conceitos relacionados com ele, dando especial atenção ao tema da dignidade à felicidade. Propõe-se inicialmente uma análise sobre a relação entre a boa vontade e a dignidade de ser feliz. A investigação sobre a finalidade do ser humano e uma possível coadunação entre a dignidade de ser feliz, a dignidade humana e o mundo ideal na ideia de sumo bem, podem indicar caminhos para a descoberta de um critério justo e adequado para as ações humanas. Além disso, a investigação será útil para esclarecer a função da felicidade e seu devido lugar como motivação moral no contexto da ética kantiana. 3.1 DA FINALIDADE DO SER HUMANO E DA DIGNIDADE DE SER FELIZ No prefácio à Fundamentação da Metafísica dos Costumes, o autor distingue os campos de estudo conforme a natureza das coisas. Afirma ele que assim como a física constrói seu edifício conceitual e explicativo sobre evidências empíricas, deve haver um aparato epistemológico e formal subjacente donde se alicerça o edifício constituído; do mesmo modo a antropologia prática pode estudar empiricamente e conceitualmente o fato de que o ser humano emite julgamentos morais, fundamentados ou não sobre critérios válidos ou não, o fato das culturas, juízos e personalidades morais; mas deve haver uma disciplina a priori que busque os fundamentos e critérios a priori do agir moral. A partir do caráter a priori da vontade, Kant parece perguntar se uma ação guiada pela boa vontade tornaria a pessoa feliz. Assim como na natureza tudo tem uma função e uma finalidade, a boa vontade contribui para que o ser humano seja mais feliz? E a felicidade é a finalidade do ser humano e seu mais alto valor? E a razão enquanto determinação da vontade, como realiza as intenções da natureza? Em primeiro lugar, Kant considera a felicidade como conservação, bem-estar e o gozo da vida. (KANT, 2007, p. 24). Em uma nota o tradutor diz que “Kant concebe a felicidade em
  • 34. 32 termos de satisfação de desejos ou preferências” (KANT, 2007, p. 30). Seguramente podemos dizer que os seres vivos não racionais alcançam satisfatoriamente a felicidade, nestes termos, se as condições forem favoráveis, apenas pelo instinto que a natureza dispôs. O ser humano também pode viver guiado pelos instintos naturais e as inclinações vulgares e, argumenta Kant, devemos admitir que uma razão cultivada, se fizer um balanço das vantagens e desvantagens que tira com o uso da razão, verá que mais se sobrecarrega de fadigas que de felicidade. (KANT, 2007, p. 25). Em segundo lugar, a razão é uma faculdade que tem relações causais sobre a vontade. Kant a chama de razão prática. Ele argumenta que se a felicidade fosse a finalidade do ser humano, deixaria a natureza que a razão tivesse um uso prático, onde parece ser empecilho e estorvo para o alcance da felicidade? Seria a natureza tão aleatória ou contingente em deixar florescer a faculdade racional no ser humano, sendo que guia para a infelicidade e o desprazer? Esta faculdade não teria utilidade ou função para o desenvolvimento das suas capacidades, portanto, dispensável. Kant responde que não é a felicidade a intenção da natureza para o ser humano, mas “uma outra e mais digna intenção da existência, à qual, e não à felicidade, a razão muito especialmente se destina […]”. (KANT, 2007, p. 25). […] e se, no entanto, a razão nos foi dada como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, para o que a razão era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto agiu em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos. A felicidade, no significado adequado, não deve ser a finalidade da existência humana. A razão é que deverá guiar corretamente a vontade, produzindo uma vontade boa em si mesma. A felicidade, segundo Kant, tem papel secundário e meramente acidental: a boa vontade deve ser a condição de tudo, inclusive da aspiração à felicidade. E neste caso é fácil de conciliar com a sabedoria da natureza o fato de observarmos que a cultura da razão, que é necessária para a primeira e incondicional intenção, de muitas maneiras restringe, pelo menos nesta vida, a consecução da segunda que é sempre condicionada, quer dizer da felicidade, e pode mesmo reduzi-la a menos de nada, sem que com isto a natureza falte à sua finalidade, [...]. (KANT, 2007, p. 26). A felicidade é secundária do ponto de vista transcendental, das condições de possibilidade do conhecimento e da fundamentação moral, porém é necessária na vida dos agentes morais que agem por dever. Kant reconhece que “todos os homens têm já por si mesmos a mais forte e íntima inclinação para a felicidade, porque é exatamente nesta ideia que se reúnem
  • 35. 33 numa soma todas as inclinações.” (2007, p. 29). A “felicidade é um dever (pelo menos indiretamente)” no sentido de que o cumprimento do dever deve estar acompanhada de uma satisfação saudável que caso contrário, poderia tornar mais atrativo aos agentes a transgressão dos deveres. Mas deve-se destacar que a felicidade não garante o valor moral de qualquer ação, nem mesmo a justifica. (KANT, 2007, p. 29-30). Por outro lado, Kant afirma a felicidade enquanto finalidade de todo ser racional. (KANT, 2007, p. 51-52). No que concerne o dever meritório para com outrem, o fim natural que todos os homens têm é a sua própria felicidade. Ser feliz é a destinação dos seres pensantes. Kant parece ter retomado como verdadeira e associado a proposição da teologia de que Deus é independente de tudo e portanto resta em felicidade perene e absoluta em sua independência absoluta de ser necessário. Os seres sensíveis, e dentre eles os seres humanos, podem experienciar a felicidade apenas de forma imperfeita, como que por espasmos momentâneos. A sensibilidade, mais uma vez, ao mesmo tempo que turva a finalidade da felicidade, se abre como possibilidade de sentido, tanto como sentido da vida, quanto como possibilidade do mérito moral. Estes fragmentos em questão, se analisados isoladamente poderiam dar margem a interpretação de que a felicidade é a finalidade das ações morais. Para uma análise mais abrangente parece ponderado reafirmar a interpretação tradicional e resgatar a distinção entre ser e dever-ser. Parece que o autor afirma que a finalidade da ações humanas é a felicidade enquanto reunião dos muitos prazeres e satisfações sensíveis e que esse seria um papel essencial às ações morais, mas devemos interpretar que fenomenologicamente, no campo do ser, isso acontece porém, não devem acontecer de forma essencial e como finalidade de garantia de moralidade da ação. Em outros termos, devemos apresentar junto a estes fragmentos passagens que reafirmam a interpretação que a felicidade não deve ser a finalidade ou o critério de decisão à moralidade, mesmo que isso frequentemente aconteça na prática da maioria dos seres humanos. Mesmo com esta observação, poderíamos dizer que há uma função, mesmo que secundária para a felicidade no cumprimento dos deveres morais? Poderia a felicidade, mesmo que não sendo o critério supremo e derradeiro, apoiar leis derivadas do critério do imperativo categórico? Na página 81 da segunda crítica (2004) temos a afirmação que ilustra um possível colaboração da felicidade ao imperativo categórico: Mais sutil, embora identicamente falso, é o que pretendem aqueles que admitem um certo sentido moral, particular, o qual, e não a razão, determinaria
  • 36. 34 a lei mora; assim, pois, a consciência de virtudes estaria imediatamente conjugada com o contentamento e o prazer, mas a consciência do vício se imiscuiria à inquietação do ânimo à dor; desse modo, ambos reduzem tudo à aspiração da própria felicidade. Sem repetir o que eu disse acima, quero observar apenas a ilusão que aqui tem lugar. Para apresentar-se o viciado como atormentado com intranquilidade de ânimo pela consciência de suas faltas, devemos, de antemão, representá-lo, no fundamento principal de seu caráter, pelo menos até certo ponto, como já moralmente bom, a exemplo daquele que se felicita com a consciência por ações conformes ao dever, que deve ser representado também de antemão como virtuoso. Dessa forma, o conceito da moralidade e do dever deveria preceder a toda referência a esse contentamento, não podendo de modo algum dele ser derivado. Devemos, ainda, apreciar com antecedência a importância do que chamamos dever, a autoridade da lei moral e o valor imediato que a observância da mesma faculta à pessoa diante dos seus próprios olhos, para sentir aquela satisfação na consciência que tem de sua conformidade com a lei, e a mais amargosa imputação quando se sente como infrator da mesma. Como se vê, esse contentamento ou essa intranquilidade de ânimo não é dado sentir antes do conhecimento da obrigação, não podendo esta resultar como fundamento em tal caso. Deve o indivíduo ser já, pelo menos às meias, um homem honrado para poder animar uma representação daquelas sensações. Nesta longa passagem, Kant deixa claríssimo sua total rejeição a aceitar como critério de moralidade a felicidade compreendida como contentamento e prazer. O sentimento de dor e de prazer é uma subespécie de felicidade. Dado que a felicidade como contentamento do prazer e do ânimo, produzido fundamentalmente pela faculdade da sensibilidade, é um princípio empírico, heterônomo (KANT, 2004, p. 130; 2004, p. 37), um sentimento (KANT, 2004, p. 129) e faz parte do mundo fenomênico, um princípio derivado do sentimento da dor e do prazer não pode ser um princípio para a moralidade. Isso reafirma a interpretação universalista em oposição a uma defesa do critério utilitário no espectro das teorias éticas, mas não desqualifica em todo o conceito de felicidade. Por um lado, diante de um dilema ético, o fundamento último da decisão seguiria o juízo derivado do critério do dever. Por outro lado, Kant considera ser, com a ressalva de “até certo ponto” moralmente útil o remorso, a sensação de desprazer decorrente da consciência de agir em contradição com o dever ou o prazer em agir em conformidade com o dever. Poderíamos considerar a sensação de prazer útil ao cumprimento dos valores morais? Kant responde essa questão ao mesmo tempo que critica três teorias: o misticismo religioso, o epicurismo e o estoicismo. Por agora analisaremos a primeira. Esta posição afirma que a moralidade está na máxima do amor à lei, na dedicação da vontade sensível ao cumprimento do dever. O autor argumenta que não podemos esperar que os sujeitos morais tenham amor ou aquela disposição para colocar a lei moral como objeto da sensibilidade, dado
  • 37. 35 que a lei, sendo abstrata, deve ser objeto apenas da faculdade racional. A ideia de dever é totalmente concebível, diferentemente de dever por satisfação, dado que esta tem por fonte um objeto dos sentidos. Uma criatura é dependente e nunca pode estar inteiramente livre de desejos e inclinações, os quais assentando em causas físicas, não concordam por si mesmas com a lei moral, que tem uma fonte totalmente diversa. É necessário então, que tenha sempre que fundir a intenção de suas máximas em constrangimento moral, não em elevação espontânea, mas no respeito que a observância da lei requer, ou seja, na boa vontade em agir em conformidade com o dever. (KANT, 2004, p. 168). Não é possível esperar que todos tenham esse desejo ou essa disposição moral. Essa disposição moral “é inexequível para toda criatura”. (KANT, 2004, p. 169). Para um homem de bem, um homem justo, por mais atribulado que seja, seria um conforto à consciência ter permanecido na sua dignidade de homem justo, honrando desse modo na sua pessoa, a humanidade. No entanto, este consolo não é felicidade. Este homem continua vivendo ainda que seja só por dever, não porque encontre nisso qualquer prazer. (KANT, 2004, p. 177). A majestade do dever nada tem que ver com o gozo da vida. (KANT, 2004, p. 179). Pouco adiante, Kant parece ser um tanto tolerante com uma participação da felicidade nas ações morais. Afirma ele que deve haver uma distinção entre os princípios da felicidade e da moralidade, mas não uma oposição entre ambos. (KANT, 2004, p. 186-188). Zelar pela própria felicidade pode em alguns casos até ser um mandamento do dever, já que à ela pertencem os meios para o cumprimento do dever (habilidades, saúde e riqueza) e porque sua carência poderia levar à tentação da infração do dever, como é no caso da pobreza. “A razão pura prática não consente que se deva, por sua parte, renunciar à pretensão de ser felizes, exigindo porém que, apenas entre em jogo o dever, não se tenha mais qualquer contemplação para com a felicidade.” (KANT, 2004, p. 186-187). A moralidade não monopoliza a contemplação de si, mas permite que a felicidade seja cultivada como virtude e muleta à moralidade. Mas o parágrafo não termina sem a ressalva do autor: “Fomentar apenas a felicidade não constitui nunca um dever imediato e, muito menos, um princípio de todo o dever.” (KANT, 2004, p. 187). O que segue sendo dito tira completamente a esperança de encontrar em Kant a possibilidade de fundamentar a vontade sobre um princípio sensível: Pois bem, embora todos os fundamentos de determinação da vontade, com exceção da única lei pura prática da razão (a moral) são em conjunto empíricos, pertencendo, como tais, ao princípio da felicidade; devem, portanto, todos eles, ser separados do princípio moral supremo e nunca ser
  • 38. 36 incorporados a ele como condição, porque isso suprimiria todo o valor moral [...]. (KANT, 2004, p. 187). Se com este excerto Kant nos tira a possibilidade de pensar uma vontade determinada por qualquer princípio sensível ou por qualquer princípio consequencialista, poderíamos pensar que Kant admitiria alguma participação, mesmo que coadjuvante da felicidade? Não deveríamos pensar que de alguma forma, em um mundo perfeito, o sumo bem, aqueles que são justos não devem ser também felizes? Sob o aspecto da centralidade da felicidade como sumo bem é que o autor se destaca da tradição das teorias éticas iniciada sistematicamente por Aristóteles. Enquanto que a tradição primeiro se acercava de conceitos e teorias sobre o bem para depois derivar a lei moral, Kant opera o “giro copernicano na ética”, invertendo essa lógica. (NODARI, 2010, p. 62). A lei moral não pode ser derivada ou condicionada, pois qualquer intervenção externa incluiria, mesmo que de forma ínfima, alguma outra variável à equação, determinando o princípio. Para entendermos melhor, Kant traz a discriminação entre os significados do conceito de “sumo”, podendo significar supremo, ou critério de decisão: aquele critério de incondicionalidade, ou seja, não está condicionado a nenhum outro. Um outro significado é o de perfeição, acabamento. A virtude (dignidade de ser feliz) é a condição de tudo o que nos possa ser apenas apetecível, de toda nossa busca pela felicidade; mas nem por isso ela é o bem mais completo e acabado como objeto da faculdade de desejar nos seres racionais finitos, pois exige felicidade. Porquanto, é necessário convir que aspirar a felicidade, ser digno dela e, contudo, não participar da mesma é coisa que não pode coexistir com o perfeito desejo de um ser racional que tivesse ao mesmo tempo todo o poder, se imaginarmos um ser semelhante, ainda que seja a simples título de ensaio. O sumo bem de um mundo possível é que a pessoa que é mais moral deve receber a maior felicidade. Mas a virtude (dignidade de ser livre) é sempre superior à felicidade porque a felicidade apresenta alguma coisa que é agradável àquele que possui, mas sem ser por sim mesma absolutamente boa sob todos os aspectos, dado que supõe a conduta moral como condição. Porquanto é necessário convir que aspirar a felicidade, ser digno dela e, contudo não participar da mesma é coisa que não pode coexistir com o perfeito desejo de um ser racional que tivesse ao mesmo tempo todo poder, se imaginarmos um ser semelhante, ainda que seja a simples título de ensaio. Pois bem: quando a virtude a felicidade constituem conjuntamente a posse do sumo bem em uma pessoa e enquanto, além disso, estando a felicidade repartida exatamente, em proporção idêntica, à moralidade (como valor da pessoa e da sua dignidade de ser feliz), constituem ambas o sumo bem de um mundo possível, isto significa o mais completo e acabado bem; neste, todavia, a virtude é sempre, como condição, o bem mais elevado, porque não tem sobre si nenhuma outra coisa que é agradável para aquele que possui, mas sem ser
  • 39. 37 por si mesma absolutamente boa sob todos os aspectos, dado que supõe, constantemente, de acordo com a lei, a conduta moral como condição. (KANT, 2004, p. 222). Aquele que é virtuoso merece ser feliz, mas não necessariamente o será. A justificativa para tal dada pelo autor se assemelha às categorias aristotélicas de necessidade e contingência: A virtude é um ‘em si’, dado que não depende de nada para ser boa, enquanto que a felicidade é contingente, visto que ‘depende de outrem para ser’. Mas Kant não deixa de reconhecer que, no sumo bem ou mundo ideal, a relação bicondicional seria o bem mais acabado, mesmo que não necessária por virtude de moralidade. A ligação entre a virtude e a felicidade pode ser uma relação analítica (lógica), ou seja, uma ligação segundo a lei da identidade; ou uma ligação sintética (ligação real), ou seja, uma ligação segundo a lei da causalidade. (KANT, 2004, p. 223). Segundo a lei da identidade o esforço de ser virtuoso e a racional procura da felicidade são duas ações idênticas entre si. Por outro lado, sob o ponto de vista da lei da causalidade a virtude produz a felicidade como coisa distinta da consciência daquela, da mesma forma que a causa produz o efeito. Os epicureos e os estoicos concebiam que a virtude e a felicidade decorriam diretamente do sumo bem. Portanto, concordavam sob o ponto de vista da unidade do princípio segundo a regra da identidade, mesmo que discordassem no que diz respeito à escolha do conceito fundamental (enquanto que os epicureos imaginavam que a virtude consistia em possuir a consciência da máxima que conduz à felicidade, os estoicos defendiam que a felicidade consistia em ter consciência da virtude). (KANT, 2004, p. 223). O autor lamenta que esses homens tão perspicazes tenham identificado conceitos sumamente heterogêneos como a felicidade e a virtude. (KANT, 2004, p. 224). Desse modo, a partir destes elementos não podemos afirmar que o sumo bem, mesmo que objeto de uma razão pura, possa ser fundamento de determinação de uma vontade pura. Kant explicitamente o descarta no capítulo referente à dialética da razão pura prática. (KANT, 2004, p. 219-220). Além disso, reafirma que o único motivo da vontade pura é a lei moral e acusa o princípio fundado na ideia de sumo bem como heterônomo. Está já fora de questão se há relação fenomenal entre a virtude e a felicidade, porém se deveria analisar se pelo menos no sumo bem, haveria uma ligação de mérito àquele que é virtuoso, já que são elementos que constituem o sumo bem. (KANT, 2004, p. 226). Na antinomia da razão prática encontramos a ideia de que em um mundo ideal, no sumo bem, deve- se conceber a virtude e a felicidade necessariamente ligados. Aquele que cumpre as leis morais,