O poema descreve a criação de poemas como um processo de "invenção" semelhante à criação de vasos de cerâmica pelo ceramista. O poeta "escreve por dentro" e dá forma à matéria, assim como o ceramista molda a argila. Ambos criam obras que revelam mais do que apenas o que está explícito, da mesma forma que um vaso pode guardar flores invisíveis.
2. INVENÇÃO DE MARIA
Invento teu nome Maria
de outros ventos
que não posso inventar
os ventos são corpos
os corpos são nomes
difíceis de lembrar
Maria não
alísios são
ventos que te cobrem
de minhas mãos.
Para Maria Elizabete Sanches, minha
companheira, no plano do imaginário.
3. A palavra falta
palavras são vozes mudas
de faltas que não se ausentam
mas que de ausências se mudam
para outras faltas-presenças
por todos os lados são surdas
as palavras que se inventam
4. não do lado que se escuta
mas do outro que se pensa
aquele em que à palavra falta
seu espaço de ausência
não na lacuna do corpo
mas no que aí se inventa
como ausência há de ser oco
ou oco o que aí se pensa.
5. o poeta escreve pra dentro
do vaso que não tem flora
nem fora que não tem flores
como esta estrofe
como este vaso que não se quebra
que não seqüela palavra
cacos da cola flora de chão
cerâmica verde
o poeta escreve por dentro
argamando a massa
futuro vaso que há
futuro vaso de ar
que se espalha espelho
de outro vaso nobre.
O VASO
6. O LADO ABERTO
o lado aberto te esconde
em tua parte palavra
neste lado quase ponte
que se estende para o nada
que quase mundo some
do outro lado da fala
para espelhar o indizível
em outro espelho muralha
7. em teu silêncio-livro
o lado aberto se espalha
em lados de mil ladrilhos
de sítios de mudas caras
de seu espaço infinito
em desenho que se cala
o lado aberto te esconde
em lado que nunca fala.
8. O CERAMISTA
uma peça quando outra
sempre diz mais que de atrito
e se une lado a nova
pelas mãos do ceramista
peça que outro sermão
de ser discurso de riscos
ou de outro corpo encosta
tanto mais cor do que brilhe
9. ser invento em solo firme
ou cerâmica de novo
colada quase sentido
de cacos de piso posto
pois rejunte há de ser risco
que se gruda pelo outro
ou que outro há de atrito
que atrito não se ouve.
10. transparente, o rosto
também é água
fora de seus domínios
tenta ser olho apenas
para evadir-se
como parte de rio
em seu templo sereno
as ondas são inimigas
deste mar equilibrado
Oceanografia do rosto
11. como concha, ainda
revela-se o rosto
pacífico e atlântico
índico, em seu idílio
de remontar outro mar
ártico, em desejo
de querer-se íntimo
glacial, Antártico,
em desejo de se revelar.
12. Recife, diluidora
dos meus sonhos,
tens água suficiente
para afogar-me
tuas lâminas de vento
ensaiam o corte
de minhas pontes
respiratórias
em ti sou ilha
cercado de males
por todos os lados
GEOGRAFIA DO MAL
13. Uma andorinha só
Só faz verão
Em meus pulmões de chama
E mistério acesos
De tudo que vive
Porque em segredo.
Uma andorinha só
Só faz verão
Por que há de fazer mais ?
Por que há de cantar ?
Se em meu corpo
Clama
A canção sitiada
Que se canta em degredo.
•
A CANÇÃO SITIADA
14. O rastro do rosto
Respinga na tela
E não convence
O rastro do rosto de ontem
Sem forma
Sem rosto
Sem resto
O INOMINÁVEL
15. Se enrola
Em Silêncio
A sombra de si
O rastro do rosto
Se inventa
No traço sem rosto
O rastrocaso
O Resto
Rima
Na cor
Morre.
16. O destino tem mais dúvidas que eu
Posso teimar com as pernas
E decidir com os ombros
Para mim há sempre um pássaro que canta:
“Para quem anda o mundo nunca foi redondo”.
O NINHO
17. Doravante é decidir sozinho:
Se há para o pássaro o canto
Decerto em mim existe o ninho.
O destino tem mais dúvidas que eu
Com os olhos sempre prontos para o espanto
Se há para o pássaro um ninho
Decerto para mim existe um canto.
18. Cabe no copo
O que não cabe no corpo
E ao corpo retorna líquido
Cabe no corpo
O que no mundo não caberia
Porque de mundo não se compõe
Cabe no copo
Porque vazio após as noites
ALEGORIA
19. Como a luz que desce ao copo
Respira manhã
Como manhã ainda tenta o ar
Para recompor-se
Anda comigo
E como copo carrego
Para torná-lo
Substantivo.