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                                                                                                                      o
                                                                                                                      o




   Norte.Olívia
Niemeyer, 2008.


                      o ser humano   está continuamente atribuindo significados
                  ao mundo. A essa atividade damos o nome genérico de leitura.
                  Portanto, não lemos apenas os textos escritos, mas lemos igualmente
                  outros tipos de textos, não verbais, aos quais também atribuimos
                  significados. Jávimos que a arte se constitui em um texto muito
                  especial, pois a atribuição de significados está presa a sua forma
                  sensível de apresentação e é inseparável dela.
                     Para fazer a leitura da obra de Olivia Niemeyer, em primeiro lugar,
                  vamos situar sua proposta. Ela é uma obra pós-modernista, pois a
                  artista se apropria de outras obras para compor a sua a partir de uma
                  ótica contemporânea. Usa, também, várias técnicas: a monotípia,
                  o desenho, a pintura. Além disso, utiliza procedimentos como a
                  frottage1, a sobreposíçâo, a rasura.


                  1   Técnica artística criada pelo surrealista Max Ernst. Consiste em friccionar grafite ou carvão
                      sobre um papel ou uma tela, apoiado a uma superfície, a fim de transferir a sua textura para
                      o papel ou a tela.



                                                                                                                              427
Em Norte, que faz parte de urna série                                D A especificidade     da
de pinturas, a artista trabalha basicamente                                   informação estética
com quatro cores. Predominantemente
                                                                            Teixeira Coelho Netto, ao discutir a informação
bege, o plano é dividido por urna larga faixa                           estética, comparando-a à semântica, levanta aspec-
vermelha central que forma urna diagonal                                tos muito interessantes.'
que desce do lado direito superior ao canto                                 A informação estética, ao cóntrário da informa-
                                                                        ção semântica, não é necessariamente lógica. Ela
esquerdo inferior. Nessa faixa, vemos o
                                                                        pode ou não ter uma lógica semelhante à do senso
desenho de urna bailarina e o fragmento de                              comum ou à da ciência. Ela também não precisa ter
urna outra, de Degas, pintor impressionista                             ampla circulação, isto é, não há necessidade de que
francês, e urna frase escrita. Nas duas                                 um público numeroso tenha acesso a ela. A informa-
laterais, invadindo a faixa vermelha do                                 ção estética continua a existir mesmo dentro de um
                                                                        sistema de comunicação restrito, até interpessoal,
lado esquerdo, encontramos imagens
                                                                        ou mesmo quando não há nenhum receptor apto
carimbadas da cabeça de Vênus, da pintura                               a acolhê-Ia. Sabemos que isso aconteceu inúmeras
renascentista O nascimento de Vênus, do                                 vezes. Por exemplo, a informação estética contida
artista italiano Botticelli, e a cabeça de                              numa tela de Van Gogh permaneceu lá, embora
                                                                        em sua época poucos pudessem entendê-Ia. Outra
A moça com o brinco de pérola, pintada
                                                                        característica da informação estética que a diferen-
em 1665 pelo pintor holandês Vermeer.                                   cia da informação semântica é o fato de não ser tra-
   A artista selecionou, recortou e integrou                            duzível em outras linguagens. Quando dizemos "O
as imagens em um novo discurso, que usa                                 tempo hoje está ruim", podemos traduzir a infor-
a repetição para criar urna padronagem                                  mação semântica contida nessa frase para qual-
                                                                        quer outra língua, sem perda da informação origi-
única. As referências a várias obras
                                                                        nal. No entanto, quando vemos uma cena de tempo
importantes da história da arte estabelecem                             ruim num filme, observamos a qualidade da cor, a
um diálogo com o passado: obras, artistas,                              força do vento, da chuva ou da neve, a vegetação,
estilos, técnicas e materiais. A revisitação                            os ruídos ou o silêncio, a névoa, a qualidade da luz
dessas obras nos dá a chave para decifrar                               e inúmeros outros detalhes que nos são mostrados
                                                                        pelas câmeras e que nos causam um determinado
um de seus significados: a história da arte                             sentimento. Essa informação estética não pode ser
- a tradição pictórica do Ocidente - é que                              traduzida nem para a linguagem verbal nem para
estabelece o norte, ou seja, o caminho, a                               qualquer outra sem ser mutilada, isto é, sem perder
orientação, para a produção artistica atual.                            parte de sua significação.
                                                                           A informação estética apresenta, ainda, um
                                                                        outro aspecto distintivo, que é o fato de não ser
      QUEM É?                                                           esgotável numa única leitura. Por exemplo: a infor-
      Olívia Niemeyer nasceu em 1943, no Rio de Janeiro.                mação sobre o tempo ruim só me conta algo de
      Formada em Língua e Civilização Francesa, atual-                  novo na primeira vez em que for dada. Ela se esgota.
      mente faz doutorado em Linguística Aplicada,                      A informação estética contida em uma obra de
      na Unicamp. Seu interesse pelas Artes Visuais
                                                                        arte, no entanto, pode ser lida de várias maneiras
      foi despertado por uma visita ao ateliê de Vera
      Ferro, com quem trabalhou durante quatro anos.
                                                                        por pessoas diferentes ou por uma mesma pessoa.
      Posteriormente, foi orientada por diversos artistas:              Na primeira vez que lemos um livro ou ouvimos
      Nair Kremer, Carlos Fajardo, Sílvia Matos, Albano                 uma música, recebemos certa quantidade de infor-
      Afonso. Em zooz.juntou-se ao grupo Antropoantro,                  mações; numa segunda leitura ou audição, pode-
      de Campinas (SP). Desde 1997 tem participado de                   mos receber outras informações; anos mais tarde,
      exposições individuais e coletivas em São Paulo,
                                                                        ainda outras. Essa característica de inesgotabili-
      Campinas, Ribeirão Preto e Piracicaba, no estado
      de São Paulo.                                                     dade permite que as obras de arte não envelhe-
                                                                        çam nem se tornem ultrapassadas. A obra de arte


2   NETTO, José Teixeira Coelho. Introdução à teoria da informação estética. Petrópolis: Vozes, 1973.
    p.9-16.



    Unidade 7                     Estética
é aberta, no sentido de que ela própria instaura um                         presente seria a referencial, centrada exatamente no
universo bastante amplo de significações que vão                            contexto externo à obra. A estruturação da obra, a
sendo captadas, dependendo da disponibilidade                               sua organização interna, não chama nossa atenção.
dos receptores.'                                                            Para que isso aconteça, é necessário sair do habi-
                                                                            tual, daquilo a que estamos acostumados e que, por
                                                                            isso mesmo, nem percebemos mais, Isso implica
fJ A forma                                                                  transgredir o código consagrado.
   Roman Jakobson, conhecido linguista, definiu                                Quando o código é usado de maneira incomum, a
algumas características da função poética da lin-                           forma de apresentação da mensagem chama nossa
guagem e ampliou muito a noção do poético. Com                              atenção pela sua força poética. Isso fica bastante
ele, a função poética ganha uma dimensão estética,                          claro em poesia. As palavras de que nos utilizamos
podendo ser aplicada às outras formas artísticas                            para escrever um poema ou para nos comunicar-
além da poesia."                                                            mos no dia a dia são fundamentalmente as mesmas.
                                                                            Na fala diária, no entanto, não prestamos atenção
                                                                            à forma das palavras, porque o que nos interessa
• A função poética: a transgressão
                                                                            para que a comunicação se efetive é o seu conteúdo
  do código                                                                 semântico. A poesia, ao contrário, chama nossa
   A função poética da linguagem, segundo Jakobson,                         atenção para essa forma. Vamos examinar um tre-
caracteriza-se por estar centrada sobre a própria men-                      cho do poema de Carlos Drummond de Andrade,
sagem, isto é, por chamar a atenção sobre a forma                           Esboço defigura:
de estruturação e de composição da mensagem. A
função poética pode estar presente tanto numa pro-                              Antonio Candido ou
paganda, num outdoor, quanto numa poesia, numa                                  Antonio lúcido, límpido
música ou em qualquer outro tipo de obra de arte.                               Que conhece e pratica a força imponderável da
   Mas como se chama a atenção para a própria                                                                        intuição?
mensagem? Como vimos, no interesse naturalista                                  Que funda o juízo crítico no gosto
pela arte, a atenção do espectador não se detém na                              - o gosto que em vão se tenta anular, e permanece,
obra, na mensagem, mas é remetida para o contexto                               Mesmo negado e ignorado, sal da percepção?'
fora da obra. Na classificação de Jakobson, a função




                                                                                                             Tira Pepê e Jotabê, de
                                                                                                             Walter Kostner. Esta história
                                                                                                             em quadrinhos quebra
                                                                                                             o código consagrado: o
                                                                                                             desenho não está contido
                                                                                                             pelo "quadro". Ao contrário,
                                                                                                             a manipulação de seus
                                                                                                             limites pelo personagem
                                                                                                             é o que cria o humor.


3   ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 2000.
4   JAKOBSON. Roman. Éssais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1963. p. 209-248. (Tradução   nossa).
5   ANDRADE, Carlos Drummond         de. Amar se aprende amando. 6. ed.
    Rio de Janeiro: Record, 1986. p. 47.



                                                                                             A slgnlflcaçâo na arte             Capítulo 36   lJ...·__
                                                                                                                                                :..
                                                                                                                                                 ..
o poeta chama a atenção para a construção            • O papel das vanguardas artisticas
da mensagem quando brinca com o nome do
                                                            A ênfase dada à forma da obra de arte e às trans-
professor de literatura e crítico literário Antonio
                                                         gressões do código nos leva a examinar o papel das
Candido de Mello e Sousa, usando cândido como
                                                         vanguardas artísticas. Avant-garde, em francês, é um
se fosse adjetivo e não nome próprio: iguala cân-
                                                         termo militar que designa o grupo de soldados que
dido com lúcido e límpido. O poeta usa, ainda,
                                                         avança à frente da guarda ou batalhão. Transferindo
outra estratégia para chamar a atenção para a
                                                         o termo para a área artística e cultural, também
forma de estruturação da mensagem, dessa vez
                                                         designa os desbravadores, os que fazem o "reconhe-
subvertendo o código: em vez de afirmar catego-
ricamente as qualidades do professor, ele faz per-       cimento do terreno", os que ampliam o espaço da
guntas, como que se dirigindo ao leitor e pedindo        linguagem artística por meio de experimentações. É
sua concordância.                                        a vanguarda que rompe os estilos, que propõe novos
    O que precisa ficar claro, no entanto, é que essas   usos do código. Atrás dela vêm os batalhões, ou seja,
inovações e subversões do código não são gratui-         os outros artistas, considerados seguidores e que
tas, não são feitas só para serem engraçadas. Elas       formam as escolas. Neste momento, o que era novo,
contribuem para o significado da obra, nesse caso,       o que constituía uma transgressão do código, passa
o poema.                                                 a ser, outra vez, o habitual, o código consagrado.
    A partir dessa discussão sobre a função poé-            Por essas razões, a linguagem da vanguarda
tica, que leva necessariamente à transgressão dos        cultural e artística é sempre difícil de entender. É
códigos habituais e consagrados, podemos justi-          por isso que temos certa dificuldade em compre-
ficar por que, no capítulo 5, "Linguagem e pensa-        ender as obras expostas nas bienais, os filmes de
mento", incluímos as linguagens artísticas entre         arte, o teatro experimental, a música dodecafônica
as que são estruturadas de forma mais flexível. Se       e assim por diante. Todas essas obras instituem
romper o código é uma característica própria da          um novo repertório de signos e novas regras de
arte, nenhum código artístico pode ser inflexível        combinação e de uso. Leva algum tempo, e muita
(por exemplo, os códigos matemáticos) nem exer-          convivência com o mundo artístico, para que pos-
cer força coercitiva sobre a produção dos artistas.      samos dominar os novos códigos e linguagens e
Ou estes não seriam artistas.                            cornpreendê-los.




                                                                           A charge atribui significado à
                                                                           vida pública, especialmente aos
                                                                           fatos políticos e sociais. Esta
                                                                           charge de Glauco refere-se às
                                                                           condições de vida das mulheres
                                                                           pobres no Brasil. Sem informação
                                                                           ou meios de planejar a família,
                                                                           elas sofrem o preconceito da
                                                                           sociedade, aqui representada
                                                                           pela polícia, encarregada de
                                                                           manter a ordem social.



  Unidade 1                 Estética
A existência das vanguardas, no entanto, é impres-                    encontram implícitas na obra. Por isso é imprescin-
cindível à manutenção da fermentação cultural. No                         dível que façamos uma descrição detalhada, cuida-
campo das artes, não podemos falar em progresso.                          dosa, a mais completa possível.
O conceito de progresso envolve ideias de melhoria                            Finalmente, como na leitura de um livro, vamos
e superação, absolutamente estranhas ao mundo                             levantar os significados conotativos de cada signo
artístico. A arte do século XX ou XXI não é melhor                        e dos signos combinados entre si. Ao se colocar
nem pior que a arte grega ou renascentista. É ape-                        uma figura sobre um determinad~ fundo, combinar
nas diferente, porque responde a questões colocadas                       determinadas cores, sons ou formas, associar uma
pelo ser humano e pela cultura atuais. Os artistas de                     música a uma imagem, os significados de cada signo
vanguarda são exatamente aqueles que levantam                             vão sendo alterados pelos significados dos outros
essas questões antes que a maior parte da sociedade                       signos, formando um espesso tecido de significa-
as tenha percebido e respondem-nas trabalhando a                          ções que se entre cruzam.
linguagem e a forma sensível de suas obras.                                   No levantamento dessas conotações, precisamos
                                                                          sempre levar em conta a época e o lugar em que a
                                                                          obra foi criada. Por exemplo, no Renascimento, o
IlO conteúdo                                                              unicórnio simbolizava a virgindade. Se desconhece-
    Interpretar uma obra de arte é buscar compreen-                       mos essa informação, a interpretação de uma obra
dê-Ia e apreciá-Ia. Isso exige que melhoremos nosso                       desse período em que apareça tal símbolo será defi-
nível atual de compreensão e apreciação.                                  ciente. Por outro lado, além do significado conota-
    A interpretação da obra de arte, ou seja, a atri-                     tivo cristalizado, podemos encontrar outros signi-
buição de significados pelo espectador, como vimos                        ficados a partir da perspectiva de nossa época. Por
no capítulo anterior, se dá em vários níveis. O pri-                      isso, para podermos penetrar a significação mais
                                                                          profunda de qualquer obra de arte, são necessários
meiro nível é o do sentimento, que já foi discutido.
                                                                          conhecimentos de história geral, de história da arte
Sentir em uníssono com a obra, deixar que ela nos
                                                                          e dos estilos, da história dos valores e da filosofia
leve e enleve, seguir seu ritmo interno são os modos
                                                                          da época em que a obra foi criada, a fim de poder- .
próprios de decodificação que se dão na experiên-
                                                                          mos situá-Ia em seu contexto. Precisamos, também,
cia estética. O sentimento apresenta-se como uma
                                                                          estar engajados no nosso tempo para podermos per-
unidade não dissociável da experiência, isto é, ele só
                                                                          ceber o que a obra nos diz hoje.
pode acontecer na presença da obra.
                                                                             É por isso que dissemos" que a arte nos traz o co-
    O segundo nível de interpretação se dá por meio
                                                                          nhecimento de um mundo e não somente o conheci-
do pensar e envolve a análise cuidadosa da obra.
                                                                          mento de uma obra. A arte instaura um universo de
Como se pode fazer essa análise?
                                                                          significações que jamais é esgotado e que ultrapassa
    Em primeiro lugar, precisamos fazer um levanta-
                                                                          em muito a intenção do autor. Esquematicamente,
mento da forma, em termos descritivos. Para isso, é
                                                                          podemos representar esse processo da seguinte
necessário conhecer alguns aspectos fundamentais
                                                                          forma:
das linguagens artísticas. Por exemplo, a linguagem
teatral difere da linguagem cinematográfica. Se for-
mos analisar, portanto, um espetáculo teatral, pre-                                Universo de significações possíveis
cisamos antes saber o que caracteriza a linguagem                                            de uma obra
específica do teatro.
   Em seguida, descrevemos a obra do ponto de
vista denotativo, isto é, a partir do que realmente                                               ..--r    x: intencional idade do
vemos ou ouvimos. Por exemplo, antes de perceber-                                        x                  autor.
mos que se trata do afresco Última ceia, de Leonardo                                                        y, h, W, n etc.: significados
da Vinci, nós vemos, representados na parede, treze                                                         que podemos atribuir à
homens atrás de uma mesa, de frente para nós,                                                               obra, sem desrespeitar sua
agrupados três a três, exceto a figura central, com                                 y, h, w, n              proposta.
determinado tipo de indumentária, fazendo tais
                                                                                                           o: significado arbitrário,
gestos etc. Essa descrição dos signos que aparecem
                                                                                                          que não pertence ao
na obra e de como se combinam é muito impor-
                                                                                                  ~       universo da obra e que não
tante, pois vai nos fornecer dados para estabelecer-                                          o           podemos impor a ela.
mos relações que não são tão evidentes, mas que se

6   Ver os capítulos 33. "Estética: introdução conceitual", e 35, "Arte como forma de pensamento".



                                                                                             A significação na arte           Capítulo 36
Vejamos dois exemplos de como fazer leitu-                             Vejamos agora uma leitura possível de Vestido de
         ras analíticas possíveis: a partir de um poema de                      baile, da artista plástica Nazareth Pacheco.
         Augusto de Campos? e de uma obra de arte visual
         de Nazareth Pacheco.



                                  uma vez
                                        uma fala
                                              uma foz
                                  uma vez            uma bala
                            uma fala           uma voz
                      uma foz           uma vala
                 uma bala         uma vez
                      uma voz
                            uma vala
                                   uma vez




            Trata-se de um poema concreto, portanto sua forma
         visual tem tanta importância quanto a forma sonora
         para a construção da significação. O que vemos?
         Palavras dispostas na folha f~ITnando dois ângulos
         agudos; o primeiro voltado para a direita e o segundo,
         para a esquerda. O eixo direita-esquerda é dado pela
         centralidade das palavras "uma vez" que se repetem,
         dando início e fechamento às figuras dos ângulos.
             Esse texto, escrito em 1957, faz parte da segunda
         fase do movimento concretista, na qual o desejo era
         compor um poema que, usando a fragmentação de
         palavras, ideias ou frases, esgotasse as possibilida-
         des combinatórias das palavras ou temas usados, do
         modo mais sintético possível.
             No poema, além da repetição do pronome "uma",
         o poeta usa dois outros grupos de palavras que man-
         têm semelhanças sonoras entre si: vez, voz, foz; e
         fala, bala, vala. Se considerarmos cada ângulo sepa-
         radamente, a sequência das palavras é exatamente
         a mesma. Entretanto, a sobreposição que acontece
         entre a quarta e a sétima linhas nos leva a ler linear-
         mente as duas metades, complementando o sen-
         tido: uma vez uma bala, uma fala uma voz, uma foz
         uma vala, uma bala uma vez.
             Do ponto de vista conotativo, a expressão "uma
         vez", que dá nome ao poema, nos remete à narra-
         tiva de histórias, unindo, neste caso, uma fala, uma
         voz, uma bala, uma vala, uma foz. Ou seja, a vida
          de alguém - a fala e a voz - ea bala que corta
          essa vida, levando-a para a vala, o fim. A visualidade
          do poema sugere dois movimentos antagônicos,
          embora complementares: o da vida e o da morte.                         Vestido de baile. Nazareth   Pachem, 1997-


             7    CAMPOS. Augusto de. Em: SIMON. Iumna M. e DANTAS, Vinicius de A. (Org.). Poesia concreta.
                  São Paulo: Abril Educação. 1982. p. 28. (Coleção Literatura Comentada) .



.....
   _=;;..]        Unidade 7                   Estética
A existência das vanguardas, no entanto, é impres-                    encontram implícitas na obra. Por isso é imprescin-
cindível à manutenção da fermentação cultural. No                         dível que façamos uma descrição detalhada, cuida-
campo das artes, não podemos falar em progresso.                          dosa, a mais completa possível.
O conceito de progresso envolve ideias de melhoria                            Finalmente, como na leitura de um livro, vamos
e superação, absolutamente estranhas ao mundo                             levantar os significados conotativos de cada signo
artístico. A arte do século XX ou XXI não é melhor                        e dos signos combinados entre' si. Ao se colocar
nem pior que a arte grega ou renascentista. É ape-                        uma figura sobre um determinado fundo, combinar
nas diferente, porque responde a questões colocadas                       determinadas cores, sons ou formas, associar uma
pelo ser humano e pela cultura atuais. Os artistas de                     música a uma imagem, os significados de cada signo
vanguarda são exatamente aqueles que levantam                             vão sendo alterados pelos significados dos outros
essas questões antes que a maior parte da sociedade                       signos, formando um espesso tecido de significa-
as tenha percebido e respondem-nas trabalhando a                          ções que se entrecruzam.
linguagem e a forma sensível de suas obras.                                   No levantamento dessas conotações, precisamos
                                                                          sempre levar em conta a época e o lugar em que a
                                                                          obra foi criada. Por exemplo, no Renascimento, o
IJ O conteúdo                                                             unicórnio simbolizava a virgindade. Se desconhece-
    Interpretar uma obra de arte é buscar compreen-                       mos essa informação, a interpretação de uma obra
dê-Ia e apreciá-Ia. Isso exige que melhoremos nosso                       desse período em que apareça tal símbolo será defi-
nível atual de compreensão e apreciação.                                  ciente. Por outro lado, além do significado conota-
   A interpretação da obra de arte, ou seja, a atri-                      tivo cristalizado, podemos encontrar outros signi-
buição de significados pelo espectador, como vimos                        ficados a partir da perspectiva de nossa época. Por
no capítulo anterior, se dá em vários níveis. O pri-                      isso, para podermos penetrar a significação mais
                                                                          profunda de qualquer obra de arte, são necessários
meiro nível é o do sentimento, que já foi discutido.
                                                                          conhecimentos de história geral, de história da arte
Sentir em uníssono com a obra, deixar que ela nos
                                                                          e dos estilos, da história dos valores e da filosofia
leve e enleve, seguir seu ritmo interno são os modos
                                                                          da época em que a obra foi criada, a fim de poder- .
próprios de decodificação que se dão na experiên-
                                                                          mos situá-Ia em seu contexto. Precisamos, também,
cia estética. O sentimento apresenta-se como uma
                                                                          estar engajados no nosso tempo para podermos per-
unidade não dissociável da experiência, isto é, ele só
                                                                          ceber o que a obra nos diz hoje.
pode acontecer na presença da obra.
                                                                             É por isso que dissemos" que a arte nos traz o co-
    O segundo nível de interpretação se dá por meio
                                                                          nhecimento de um mundo e não somente o conheci-
do pensar e envolve a análise cuidadosa da obra.
                                                                          mento de uma obra. A arte instaura um universo de
Como se pode fazer essa análise?
                                                                          significações que jamais é esgotado e que ultrapassa
    Em primeiro lugar, precisamos fazer um levanta-
                                                                          em muito a intenção do autor. Esquematicamente,
mento da forma, em termos descritivos. Para isso, é
                                                                          podemos representar esse processo da seguinte
necessário conhecer alguns aspectos fundamentais                          forma:
das linguagens artísticas. Por exemplo, a linguagem
teatral difere da linguagem cinematográfica. Se for-
mos analisar, portanto, um espetáculo teatral, pre-                                Universo de significações possíveis
cisamos antes saber o que caracteriza a linguagem                                            de uma obra
específica do teatro.
   Em seguida, descrevemos a obra do ponto de
vista denotativo, isto é, a partir do que realmente                                                    x: intencional idade do
vemos ou ouvimos. Por exemplo, antes de perceber-                                        x              autor.
mos que se trata do afresco Última ceia, de Leonardo                                                    y, h, W, n etc.: significados
da Vinci, nós vemos, representados na parede, treze                                                     que podemos atribuir à
homens atrás de uma mesa, de frente para nós,                                                           obra, sem desrespeitar sua
agrupados três a três, exceto a figura central, com                                 y, h, w, n          proposta.
determinado tipo de indumentária, fazendo tais
                                                                                                       o: significado arbitrário,
gestos etc. Essa descrição dos signos que aparecem
                                                                                                      que não pertence ao
na obra e de como se combinam é muito impor-                                                     '/   universo da obra e que não
tante, pois vai nos fornecer dados para estabelecer-                                         o        podemos impor a ela.
mos relações que não são tão evidentes, mas que se

6   Ver os capítulos 33, "Estética: introdução conceitual", e 35, 'Arte como forma de pensamento".
o que vemos?                                             Desse modo, a obra, que inicialmente parecia
     Esse é um objeto construído com fios de náilon,       uma brincadeira, se enche de sentido, torna-se bela.
 miçangas e cristais transparentes e lâminas de bar-       E nos emociona, enche-nos de alegria, de satisfação.
 bear de metal, pendurado em um cilindro de acrílico       É o sentimento de completude.
 também transparente. O objeto assim descrito é um
 vestido, uma peça de vestuário, ligado, portanto, à
 vida cotidiana.                                           II'QUEMÉ?
     Roupas, em geral, são utilizadas pelos seres               Nazareth Pacheco e Silva nasceu em São Paulo,
                                                                em 1961, formou-se em Artes Plásticas e deu
 humanos há muitos séculos, com a função de pro-
                                                                continuidade à sua formação em Paris. Sua pri-
 teger o corpo das condições climáticas e da rudeza             meira exposição individual foi em 1988, ocasião
 da natureza. Ao longo do tempo, além de ser prote-             em que apresentou esculturas de longas fitas de
 ção, as roupas passaram a exercer outras funções: a            borracha ou latão associadas a elementos pon-
 de conferir distinção social e econômica, conforme             tiagudos. Em 1993, no Gabinete de Arte Raquel
                                                                Arna ud, expôs vitrines-arquivos de materia I auto-
 o material de que são feitas, a marca ou o estilista
                                                                biográfico. Na exposição coletiva Espelhos e som-
 que assina sua produção; a de tornar mais atraente             bras usou instrumentos médicos destinados ao
 quem a veste; e a de esconder o corpo, entre outras.           exame do corpo feminino como símbolos desse
Neste caso, o uso dos cristais e a transparência da             mesmo corpo. Embelezamento e tortura se mes-
 roupa nos levam a pensar em desfiles de moda,                  clam e se tornam tema de sua dissertação de
 ousadia, elegância, sofisticação, glamour e eventos            mestrado. Em 1997, participou do Panorama da
                                                                Arte Brasileira, no MAM de São Paulo, com cola-
 festivos, conotações confirmadas pelo próprio nome
                                                                res e vestidos. Em 1998, sua apresentação na XXIV
 do objeto: Vestido de baile. O brilho dos cristais, das        Bienal Internacional de São Paulo deu continui-
miçangas e das lâminas atrai o nosso olhar.                     dade à produção de colares. Mais recentemente,
    A presença das lâminas, entretanto, ao mesmo                entrou em nova fase de produção de objetos liga-
tempo que nos atrai, também nos repele. Esse ves-               dos à ideia de fecundação e das mutações que
                                                                podem ser provocadas nos supostos embriões.
tido não oferece proteção ao corpo, nem visual, por
ser transparente, nem efetiva, já que a qualquer
movimento o corpo pode ser cortado pelas lâmi-
nas. Em vez de ser elemento de proteção, o vestido
se transforma em ameaça e perigo. A atração que ele
                                                           9 A educação              em arte
exerce, portanto, é uma atração fatal.                         Se a interpretação de uma obra de arte depende
    Um elemento que está implícito nessa obra é o          de termos conhecimento não só das várias lingua-
corpo humano, ou melhor, o corpo feminino, para            gens como também da história da arte, dos estilos
o qual um vestido é feito. A pergunta que se impõe é:      e dos movimentos, a educação em arte terá um
a quais outros perigos o corpo feminino está exposto       papel fundamental em nossa capacidade de com-
no mundo contemporâneo? Ele pode ser cortado               preender a arte.
e recortado por operações plásticas para chegar a              A educação em arte só pode propor um cami-
se conformar com padrões estéticos da moda? Ele            nho: o da convivência com as obras de arte. Aquelas
deve se submeter a dietas e a sessões de exercícios        que estão assim rotuladas em museus e galerias, as
massacrantes para se adequar a um único modelo?            que estão em praças públicas, bancos, repartições
Ele precisa ser perfurado por piercings ou coberto         do governo, nas casas de amigos e de conhecidos.
de tatuagens para ser atraente?                            Também aquelas, anônimas, que encontramos às
    Podemos, ainda, pensar em outros significados          vezes numa vitrina, numa feira, nas mãos de um
conotativos e algumas questões podem ser coloca-           artesão. As que estão em alguns cinemas, teatros,
das a partir do que já foi analisado. Por exemplo:         na televisão e no rádio. As que estão nas ruas: cer-
será que o perigo é sempre muito atraente, mesmo           tos edifícios, casas, jardins, túmulos. Passamos por
quando a probabilidade de nos ferirmos é bastante          muitas delas, todos os dias, sem vê-Ias. Por isso, é
alta? Será que a proteção e a segurança têm de ser         preciso uma determinada intenção de procurá-Ias,
sempre contrabalançadas por uma dose de perigo,            de percebê-Ias.
uma vez que quem é muito protegido pode se tornar              Quanto mais ampla for essa convivência com
impotente para agir adequadamente quando neces-            os tipos de arte, os estilos, as épocas e os artistas,
sário? No último limite, a obra expõe a ambiguidade        melhor. É só por meio desse contato aberto e eclé-
da própria vida que transita entre a segurança (pro-       tico que podemos afinar nossa sensibilidade para as
teção) e o perigo.                                         nuanças e sutilezas de cada obra, sem querer impor-


                                                                         A significação na arte
                                                                                                       Capítulo 36    l,_.
-lhe nosso gosto e nossos padrões subjetivos, que                                   devem ter ao escolher, para seus alunos e filhos,
são marcados historicamente pela época e pelo                                       as exposições ou mesmo as vivências artísticas em
lugar em que vivemos, bem como pela classe social                                   artes visuais, música, teatro, dança. É importante
a que pertencemos.                                                                  não infantilizar a cultura, menosprezando a capa-
                                                                                    cidade de crianças e adolescentes, ou do público
                                                                                    carente cultural, de compreender por meio do sen-
    Lembraremos, ainda, que é na frequentação da obra                               timento, de estabelecer diálogos imaginativos, de
    que a intersubjetividade pode se dar. É através dela                            buscar informação.
    que podemos "encontrar" com o autor, sua época e
    também com nossos semelhantes. É pelas veredas
    não racionais da arte que a frequentação permite                                m A importância            de saber ler
    descobrir e percorrer, que nos "sintonizamos" com o                                   uma imagem
    outro, numa relação particular que a vida cotidiana
                                                                                        No mundo contemporâneo, vivemos cercados
    desconhece. Terreno da intersubjetividade, a arte nos
                                                                                    por imagens visuais de todos os lados. Das indi-
    une, servindo de lugar de encontro, de comunhão
                                                                                    cações de trânsito às propagandas, dos ícones do
    intuitiva; ela não nos coloca de acordo: ela nos
                                                                                    computador à imagem televisiva e cinematográ-
     irmana."
                                                                                    fica e aos graffiti, pichações, decalques e ilustra-
                                                                                    ções nos muros, enfim, a imagem parece prevale-
    Em seguida, precisamos aprender a sentir. Em                                    cer em nossa vida. Já se disse que a palavra perderá
nossa sociedade, dada a importância atribuída                                       seu lugar privilegiado na comunicação humana.
à racionalidade e à palavra, não é raro tentar-                                         Podemos discutir a validade dessa afirmação,
mos enquadrar a arte nesse tipo de perspectiva.                                     mas não podemos negar a importância que a ima-
Assumimos, então, tamanha distância da obra que                                     gem tem hoje. Por isso, aprender a ler a imagem,
não é possível recebê-Ia através do sentimento. Por                                 isto é, os modos como atribuímos significados a
outro lado, o sentimento, como já dissemos, não é                                   elas, é um passo que nos leva à compreensão mais
a emoção descabelada. No sentimento, a emoção                                       profunda de nossa sociedade e de nossa vida.
é despida de seu conteúdo material e elevada a outro                                    Dentre as imagens, destacamos as de arte por
estado: retirado o peso da paixão, permanecem                                       serem mais difíceis de decodificar, uma vez que
o movimento e as oscilações do sentir em comu-                                      a informação estética exige conhecimento especí-
nhão com os objetos.                                                                fico de linguagens artísticas e de história da arte;
    Finalmente, já fora da experiência estética,                                    conhecimento do contexto de produção da obra;
podemos chegar ao nível da recepção crítica, da                                     disponibilidade interna para entender a arte a
análise intelectual da obra, do julgamento de seu                                   partir de suas propostas. Além disso, ela é ines-
valor, que é o trabalho do crítico e do historiador                                 gotável em uma única leitura e não pode ser tra-
da arte. Para essa tarefa, só a convivência com a                                   duzida para outra linguagem sem perder parte de
obra não basta. É necessário o conhecimento his-                                    seu conteúdo.
tórico dos estilos, da linguagem de cada arte, além                                      Todas essas características fazem da atribui-
de um profundo conhecimento         da cultura que                                  ção de significados às obras de arte uma tarefa que
gerou cada obra.                                                                    necessita de aprendizado específico, que se dá na
   Por tudo isso, fica claro o cuidado que o edu-                                   convivência com elas, educando nossa sensibili-
cador, seja ele de museu ou de escola, e os pais                                    dade. Essa é a grande tarefa de pais e educadores.




8   COLI, Jorge.   o que é arte.   São Paulo: Brasiliense,   1984. p. 126. (Coleção Primeiros   Passos).



    Unidade 7                            Estética
Leitura complementar
    Interpretação

     "A obra de arte é divergente, sua interpretação é impossível, ou sua interpretação é
uma sofisticação: o programa de sua abordagem só pode ser investigativo, não expli-
cativo." Para a obra de arte, o processo de aproximação é a hermenêutica, que se jus-
tifica quando o que está em jogo é uma multiplicidade de sentidos (a confusão: vários
sentidos fundidos num bloco não analisável, isto é, não divisível: o individual é o não
discreto," aquilo que não se pode determinar) e, pode-se dizê-Io, de interpretações. A
                                                                                                             /"111IIII'"
figura emblemática, aqui, é Hermes: seu campo de sentido, seu território semântico, é
divergente, sua identidade não é cumulativa, nem oposicional: é flutuante: é de iden-
tificação e posicional: dependendo da situação é uma coisa, dependendo da situação é
outra: Hermes, mensageiro dos deuses, filho de Zeus, conduzia as almas dos mortos pelo
reino inferior, o submundo, e tinha poderes mágicos sobre os sonhos e o sono; e, não mas
porém e (quer dizer, apesar disso ou por causa disso) era o deus do comércio, senhor da
boa sorte e da riqueza; uma figura perigosa, porém(a arte é perigosa, a arte é um perigo),
um simulador e um ladrão - o deus dos ladrões, na verdade: no mesmo dia de
seu nascimento, roubou o rebanho de seu irmão Apoio e ocultou as pegadas
dos animais fazendo-os andar para trás; buscando reconciliar-se com o irmão,
Hermes deu-lhe a lira, que ele mesmo inventara ao pegar um casco de tarta-
ruga, abrir-lhe os buracos, e sobre elés esticar umas tantas cordas - nove delas, uma para
cada uma das nove Musas, inspiradora de todos os artistas: [...]. Então Hermes é o deus
da arte, da ideia da arte, da forma da arte, da possibilidade da arte - de tudo que exige
perícia e destreza: conduzir as almas e roubar, vender e criar instrumentos de prazer; na
primeira antiguidade grega era representado como um homem maduro, com barba; na
arte clássica helênica, como um jovem desnudo e imberbe. Não posso interpretar Hermes
de modo unitário, não posso esclarecer o sentido de suas ações: posso investigar como
ele agencia o sentido em determinada de suas ações, em certas circunstâncias, em oca-
siões específicas: não há um programa para Hermes, não há uma política cultural para
Hermes porque Hermes não é cultural: Hermes é a exceção à cultura ... Aqui cada um se
abre para o mundo conforme sua própria compreensão do mundo, sua experiência do
mundo, a partir de seu código de valores (na interpretação cultural, a experiência é dos
outros, dos antecessores): isso não significa que todas as opiniões tenham o mesmo valor:
a maioria se equivoca ou quer enganar: mas aqui há certamente mais alternativas que                             Escultura em bronze
na cultura, na interpretação [...]."                                                                            representando Hermes,
                                                                                                                conhecido como Mercúrio
                                                   NETTO, José Teixeira Coelho. A cultura e seu contrário.      na mitologia romana.
                                                  São Paulo: Iluminuras/ltaú  Cultural, 2008. p. 148-149.       Giovanni de Bologna, c. 1576.




> Questões
11 Procure o significado de "hermenêutica''. No que ela é diferente da interpretação?
11 Por que, segundo o autor, não se pode interpretar a arte?
••     Ouais são os vários sentidos de Hermes, expressos em seus diversos papéis?
11 Explique a frase: "Então Hermes é o deus da arte, da ideia da arte, da forma da
       arte, da possibilidade da arte - de tudo que exige perícia e destreza".


9    Ver,entre outros, o poeta espanhol (nascido em 1931) Antonio Gamoneda: "Ante un poema, mi estado
     favorido de conciencia es Ia confusíón". Em: El País, 3 ago. 2004, p. 40.
O   Discreto: contínuo, não separável.



                                                                                                   leitura complementar         Unidade 7
> Revendo o capitulo                                          1m   Comente este texto de Ferreira GuUar com base
                                                                   na discussão sobre conteúdo e significação da
11 Como se caracteriza a informação estética?                      obra de arte.
IJ Explique o que é a função poética e dê um exemplo.              "Não resta dúvida que o caminho percorrido pela
S O que são as vanguardas artísticas? Qual seu papel?              arte nos últimos cem anos tendeu preponderan-
                                                                   temente à eliminação do tema, a começar pelo
11 Ouais os passos para se analisar uma obra de arte?              tema literário: as cenas mitológicas, alegóricas ou
                                                                   históricas foram banidas da pintura pelo impres-
I)   Qual a importância    da educação    em arte?
                                                                   sionismo. O artista se voltou para a realidade obje-
                                                                   tiva: as paisagens e as cenas da vida moderna.
> Aplicando os conceitos
                                                                   Esse defrontar-se com o presente é um defrontar-se
     A partir da leitura do texto abaixo sobre a peça              com o devenir: Degas capta os gestos das baila-
     teatral "Arte", responda às questões de 6 a 9.                rinas que dançam, Monet capta a luz cambiante
                                                                   da paisagem. É uma pintura onde não há heróis,
     "Arte" discute a amizade masculina                            não há história, não há mitos: o artista elabora as
     "Sérgio paga R$ 50 mil por um quadro completamente            sensações que lhe chegam do mundo que ele vê."
     branco. Marcos, seu amigo há 15 anos, fica inconfor-          (Sobre arte. Rio de Janeiro: Avenir, 1982. p. 9-10.)
     mado com a atitude e provoca uma briga, o que coloca
     em risco a amizade. Ivan, um terceiro amigo, e tam-      > Caiu no vestibular
     bém o mais frágil, entra em cena para impedir que
     a amizade termine. Acaba levando a pior.                 m    (Fuvest-SP) Observe esta gravura de Escher.

     'A arte escolheu um caminho que acabou afas-
     tando as pessoas. Essa ídeia de desmaterialíza-
     ção, de abstração, acaba colocando o artista como
     um ser superior, incompreendido, o que incomoda
     cada vez mais o público', diz Kátia. 'Dizer que
     entende determinada     obra pode significar uma
     maneira de ser esnobe.'

     Leda afirma que a arte contemporânea pode ser muito
     provo cativa: 'Muitas vezes, os trabalhos causam polê-                                                Mãos
                                                                                                           desenhando,
     micas incríveis por causa de sua busca pelo novo.
                                                                                                         M. C. Escher,
     Depois, passam os anos e todo mundo entende.'
                                                                                                         2°°9·
     O critico de arte lacob Klintowitz acredita que são           Na linguagem verbal, exemplos de aproveitamento
     as interpretações da arte - e não a obra em si - que          de recursos equivalentes aos da gravura de Escher
     podem desencadear um conflito." (Ana Paula Ragazzi.           encontram-se com frequência,
     Folha de S.Paulo, 5 set. 1999. Acontece. p. 3.)               a} nos jornais, quando o repórter registra uma ocor-

D    Qual a razão do conflito que se estabelece       entre
                                                                      rência que lhe parece extremamente intrigante.

     os três amigos?                                               b) nos textos publicitários, quando se comparam
                                                                      dois produtos que têm a mesma utilidade.
IJ   Analise a resposta da curadora Katia Canton
                                                                   c) na prosa científica, quando o autor descreve
     a partir dos conceitos de gênio (veja o tópico
                                                                      com isenção e distanciamento   a experiência
     "Romantismo", no capitulo 37) e de gosto (veja
                                                                      de que trata.
     capitulo 35).
                                                                   d) na literatura, quando o escritor se vale das
IJ   Analise a resposta da artista Leda Catunda (veja
                                                                      palavras para expor procedimentos construti-
     uma de suas obras no inicio do capitulo 37) a par-
                                                                      vos do discurso.
     tir do conceito de novidade.
                                                                   e) nos manuais de instrução, quando se organiza
11   Analise a resposta do critico de arte lacob Klintowitz           com clareza uma determinada sequência de
     fundamentada no conceito de interpretação.                       operações.

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  • 1. 36 "'----'0: S :::J Ü f= o: Ci: o .<t ~ 8 1 o: W >- ur 2 w Z <t s '::J o ~ ~ <t (li <t ~ li: o o Norte.Olívia Niemeyer, 2008. o ser humano está continuamente atribuindo significados ao mundo. A essa atividade damos o nome genérico de leitura. Portanto, não lemos apenas os textos escritos, mas lemos igualmente outros tipos de textos, não verbais, aos quais também atribuimos significados. Jávimos que a arte se constitui em um texto muito especial, pois a atribuição de significados está presa a sua forma sensível de apresentação e é inseparável dela. Para fazer a leitura da obra de Olivia Niemeyer, em primeiro lugar, vamos situar sua proposta. Ela é uma obra pós-modernista, pois a artista se apropria de outras obras para compor a sua a partir de uma ótica contemporânea. Usa, também, várias técnicas: a monotípia, o desenho, a pintura. Além disso, utiliza procedimentos como a frottage1, a sobreposíçâo, a rasura. 1 Técnica artística criada pelo surrealista Max Ernst. Consiste em friccionar grafite ou carvão sobre um papel ou uma tela, apoiado a uma superfície, a fim de transferir a sua textura para o papel ou a tela. 427
  • 2. Em Norte, que faz parte de urna série D A especificidade da de pinturas, a artista trabalha basicamente informação estética com quatro cores. Predominantemente Teixeira Coelho Netto, ao discutir a informação bege, o plano é dividido por urna larga faixa estética, comparando-a à semântica, levanta aspec- vermelha central que forma urna diagonal tos muito interessantes.' que desce do lado direito superior ao canto A informação estética, ao cóntrário da informa- ção semântica, não é necessariamente lógica. Ela esquerdo inferior. Nessa faixa, vemos o pode ou não ter uma lógica semelhante à do senso desenho de urna bailarina e o fragmento de comum ou à da ciência. Ela também não precisa ter urna outra, de Degas, pintor impressionista ampla circulação, isto é, não há necessidade de que francês, e urna frase escrita. Nas duas um público numeroso tenha acesso a ela. A informa- laterais, invadindo a faixa vermelha do ção estética continua a existir mesmo dentro de um sistema de comunicação restrito, até interpessoal, lado esquerdo, encontramos imagens ou mesmo quando não há nenhum receptor apto carimbadas da cabeça de Vênus, da pintura a acolhê-Ia. Sabemos que isso aconteceu inúmeras renascentista O nascimento de Vênus, do vezes. Por exemplo, a informação estética contida artista italiano Botticelli, e a cabeça de numa tela de Van Gogh permaneceu lá, embora em sua época poucos pudessem entendê-Ia. Outra A moça com o brinco de pérola, pintada característica da informação estética que a diferen- em 1665 pelo pintor holandês Vermeer. cia da informação semântica é o fato de não ser tra- A artista selecionou, recortou e integrou duzível em outras linguagens. Quando dizemos "O as imagens em um novo discurso, que usa tempo hoje está ruim", podemos traduzir a infor- a repetição para criar urna padronagem mação semântica contida nessa frase para qual- quer outra língua, sem perda da informação origi- única. As referências a várias obras nal. No entanto, quando vemos uma cena de tempo importantes da história da arte estabelecem ruim num filme, observamos a qualidade da cor, a um diálogo com o passado: obras, artistas, força do vento, da chuva ou da neve, a vegetação, estilos, técnicas e materiais. A revisitação os ruídos ou o silêncio, a névoa, a qualidade da luz dessas obras nos dá a chave para decifrar e inúmeros outros detalhes que nos são mostrados pelas câmeras e que nos causam um determinado um de seus significados: a história da arte sentimento. Essa informação estética não pode ser - a tradição pictórica do Ocidente - é que traduzida nem para a linguagem verbal nem para estabelece o norte, ou seja, o caminho, a qualquer outra sem ser mutilada, isto é, sem perder orientação, para a produção artistica atual. parte de sua significação. A informação estética apresenta, ainda, um outro aspecto distintivo, que é o fato de não ser QUEM É? esgotável numa única leitura. Por exemplo: a infor- Olívia Niemeyer nasceu em 1943, no Rio de Janeiro. mação sobre o tempo ruim só me conta algo de Formada em Língua e Civilização Francesa, atual- novo na primeira vez em que for dada. Ela se esgota. mente faz doutorado em Linguística Aplicada, A informação estética contida em uma obra de na Unicamp. Seu interesse pelas Artes Visuais arte, no entanto, pode ser lida de várias maneiras foi despertado por uma visita ao ateliê de Vera Ferro, com quem trabalhou durante quatro anos. por pessoas diferentes ou por uma mesma pessoa. Posteriormente, foi orientada por diversos artistas: Na primeira vez que lemos um livro ou ouvimos Nair Kremer, Carlos Fajardo, Sílvia Matos, Albano uma música, recebemos certa quantidade de infor- Afonso. Em zooz.juntou-se ao grupo Antropoantro, mações; numa segunda leitura ou audição, pode- de Campinas (SP). Desde 1997 tem participado de mos receber outras informações; anos mais tarde, exposições individuais e coletivas em São Paulo, ainda outras. Essa característica de inesgotabili- Campinas, Ribeirão Preto e Piracicaba, no estado de São Paulo. dade permite que as obras de arte não envelhe- çam nem se tornem ultrapassadas. A obra de arte 2 NETTO, José Teixeira Coelho. Introdução à teoria da informação estética. Petrópolis: Vozes, 1973. p.9-16. Unidade 7 Estética
  • 3. é aberta, no sentido de que ela própria instaura um presente seria a referencial, centrada exatamente no universo bastante amplo de significações que vão contexto externo à obra. A estruturação da obra, a sendo captadas, dependendo da disponibilidade sua organização interna, não chama nossa atenção. dos receptores.' Para que isso aconteça, é necessário sair do habi- tual, daquilo a que estamos acostumados e que, por isso mesmo, nem percebemos mais, Isso implica fJ A forma transgredir o código consagrado. Roman Jakobson, conhecido linguista, definiu Quando o código é usado de maneira incomum, a algumas características da função poética da lin- forma de apresentação da mensagem chama nossa guagem e ampliou muito a noção do poético. Com atenção pela sua força poética. Isso fica bastante ele, a função poética ganha uma dimensão estética, claro em poesia. As palavras de que nos utilizamos podendo ser aplicada às outras formas artísticas para escrever um poema ou para nos comunicar- além da poesia." mos no dia a dia são fundamentalmente as mesmas. Na fala diária, no entanto, não prestamos atenção à forma das palavras, porque o que nos interessa • A função poética: a transgressão para que a comunicação se efetive é o seu conteúdo do código semântico. A poesia, ao contrário, chama nossa A função poética da linguagem, segundo Jakobson, atenção para essa forma. Vamos examinar um tre- caracteriza-se por estar centrada sobre a própria men- cho do poema de Carlos Drummond de Andrade, sagem, isto é, por chamar a atenção sobre a forma Esboço defigura: de estruturação e de composição da mensagem. A função poética pode estar presente tanto numa pro- Antonio Candido ou paganda, num outdoor, quanto numa poesia, numa Antonio lúcido, límpido música ou em qualquer outro tipo de obra de arte. Que conhece e pratica a força imponderável da Mas como se chama a atenção para a própria intuição? mensagem? Como vimos, no interesse naturalista Que funda o juízo crítico no gosto pela arte, a atenção do espectador não se detém na - o gosto que em vão se tenta anular, e permanece, obra, na mensagem, mas é remetida para o contexto Mesmo negado e ignorado, sal da percepção?' fora da obra. Na classificação de Jakobson, a função Tira Pepê e Jotabê, de Walter Kostner. Esta história em quadrinhos quebra o código consagrado: o desenho não está contido pelo "quadro". Ao contrário, a manipulação de seus limites pelo personagem é o que cria o humor. 3 ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 2000. 4 JAKOBSON. Roman. Éssais de linguistique générale. Paris: Minuit, 1963. p. 209-248. (Tradução nossa). 5 ANDRADE, Carlos Drummond de. Amar se aprende amando. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 1986. p. 47. A slgnlflcaçâo na arte Capítulo 36 lJ...·__ :.. ..
  • 4. o poeta chama a atenção para a construção • O papel das vanguardas artisticas da mensagem quando brinca com o nome do A ênfase dada à forma da obra de arte e às trans- professor de literatura e crítico literário Antonio gressões do código nos leva a examinar o papel das Candido de Mello e Sousa, usando cândido como vanguardas artísticas. Avant-garde, em francês, é um se fosse adjetivo e não nome próprio: iguala cân- termo militar que designa o grupo de soldados que dido com lúcido e límpido. O poeta usa, ainda, avança à frente da guarda ou batalhão. Transferindo outra estratégia para chamar a atenção para a o termo para a área artística e cultural, também forma de estruturação da mensagem, dessa vez designa os desbravadores, os que fazem o "reconhe- subvertendo o código: em vez de afirmar catego- ricamente as qualidades do professor, ele faz per- cimento do terreno", os que ampliam o espaço da guntas, como que se dirigindo ao leitor e pedindo linguagem artística por meio de experimentações. É sua concordância. a vanguarda que rompe os estilos, que propõe novos O que precisa ficar claro, no entanto, é que essas usos do código. Atrás dela vêm os batalhões, ou seja, inovações e subversões do código não são gratui- os outros artistas, considerados seguidores e que tas, não são feitas só para serem engraçadas. Elas formam as escolas. Neste momento, o que era novo, contribuem para o significado da obra, nesse caso, o que constituía uma transgressão do código, passa o poema. a ser, outra vez, o habitual, o código consagrado. A partir dessa discussão sobre a função poé- Por essas razões, a linguagem da vanguarda tica, que leva necessariamente à transgressão dos cultural e artística é sempre difícil de entender. É códigos habituais e consagrados, podemos justi- por isso que temos certa dificuldade em compre- ficar por que, no capítulo 5, "Linguagem e pensa- ender as obras expostas nas bienais, os filmes de mento", incluímos as linguagens artísticas entre arte, o teatro experimental, a música dodecafônica as que são estruturadas de forma mais flexível. Se e assim por diante. Todas essas obras instituem romper o código é uma característica própria da um novo repertório de signos e novas regras de arte, nenhum código artístico pode ser inflexível combinação e de uso. Leva algum tempo, e muita (por exemplo, os códigos matemáticos) nem exer- convivência com o mundo artístico, para que pos- cer força coercitiva sobre a produção dos artistas. samos dominar os novos códigos e linguagens e Ou estes não seriam artistas. cornpreendê-los. A charge atribui significado à vida pública, especialmente aos fatos políticos e sociais. Esta charge de Glauco refere-se às condições de vida das mulheres pobres no Brasil. Sem informação ou meios de planejar a família, elas sofrem o preconceito da sociedade, aqui representada pela polícia, encarregada de manter a ordem social. Unidade 1 Estética
  • 5. A existência das vanguardas, no entanto, é impres- encontram implícitas na obra. Por isso é imprescin- cindível à manutenção da fermentação cultural. No dível que façamos uma descrição detalhada, cuida- campo das artes, não podemos falar em progresso. dosa, a mais completa possível. O conceito de progresso envolve ideias de melhoria Finalmente, como na leitura de um livro, vamos e superação, absolutamente estranhas ao mundo levantar os significados conotativos de cada signo artístico. A arte do século XX ou XXI não é melhor e dos signos combinados entre si. Ao se colocar nem pior que a arte grega ou renascentista. É ape- uma figura sobre um determinad~ fundo, combinar nas diferente, porque responde a questões colocadas determinadas cores, sons ou formas, associar uma pelo ser humano e pela cultura atuais. Os artistas de música a uma imagem, os significados de cada signo vanguarda são exatamente aqueles que levantam vão sendo alterados pelos significados dos outros essas questões antes que a maior parte da sociedade signos, formando um espesso tecido de significa- as tenha percebido e respondem-nas trabalhando a ções que se entre cruzam. linguagem e a forma sensível de suas obras. No levantamento dessas conotações, precisamos sempre levar em conta a época e o lugar em que a obra foi criada. Por exemplo, no Renascimento, o IlO conteúdo unicórnio simbolizava a virgindade. Se desconhece- Interpretar uma obra de arte é buscar compreen- mos essa informação, a interpretação de uma obra dê-Ia e apreciá-Ia. Isso exige que melhoremos nosso desse período em que apareça tal símbolo será defi- nível atual de compreensão e apreciação. ciente. Por outro lado, além do significado conota- A interpretação da obra de arte, ou seja, a atri- tivo cristalizado, podemos encontrar outros signi- buição de significados pelo espectador, como vimos ficados a partir da perspectiva de nossa época. Por no capítulo anterior, se dá em vários níveis. O pri- isso, para podermos penetrar a significação mais profunda de qualquer obra de arte, são necessários meiro nível é o do sentimento, que já foi discutido. conhecimentos de história geral, de história da arte Sentir em uníssono com a obra, deixar que ela nos e dos estilos, da história dos valores e da filosofia leve e enleve, seguir seu ritmo interno são os modos da época em que a obra foi criada, a fim de poder- . próprios de decodificação que se dão na experiên- mos situá-Ia em seu contexto. Precisamos, também, cia estética. O sentimento apresenta-se como uma estar engajados no nosso tempo para podermos per- unidade não dissociável da experiência, isto é, ele só ceber o que a obra nos diz hoje. pode acontecer na presença da obra. É por isso que dissemos" que a arte nos traz o co- O segundo nível de interpretação se dá por meio nhecimento de um mundo e não somente o conheci- do pensar e envolve a análise cuidadosa da obra. mento de uma obra. A arte instaura um universo de Como se pode fazer essa análise? significações que jamais é esgotado e que ultrapassa Em primeiro lugar, precisamos fazer um levanta- em muito a intenção do autor. Esquematicamente, mento da forma, em termos descritivos. Para isso, é podemos representar esse processo da seguinte necessário conhecer alguns aspectos fundamentais forma: das linguagens artísticas. Por exemplo, a linguagem teatral difere da linguagem cinematográfica. Se for- mos analisar, portanto, um espetáculo teatral, pre- Universo de significações possíveis cisamos antes saber o que caracteriza a linguagem de uma obra específica do teatro. Em seguida, descrevemos a obra do ponto de vista denotativo, isto é, a partir do que realmente ..--r x: intencional idade do vemos ou ouvimos. Por exemplo, antes de perceber- x autor. mos que se trata do afresco Última ceia, de Leonardo y, h, W, n etc.: significados da Vinci, nós vemos, representados na parede, treze que podemos atribuir à homens atrás de uma mesa, de frente para nós, obra, sem desrespeitar sua agrupados três a três, exceto a figura central, com y, h, w, n proposta. determinado tipo de indumentária, fazendo tais o: significado arbitrário, gestos etc. Essa descrição dos signos que aparecem que não pertence ao na obra e de como se combinam é muito impor- ~ universo da obra e que não tante, pois vai nos fornecer dados para estabelecer- o podemos impor a ela. mos relações que não são tão evidentes, mas que se 6 Ver os capítulos 33. "Estética: introdução conceitual", e 35, "Arte como forma de pensamento". A significação na arte Capítulo 36
  • 6. Vejamos dois exemplos de como fazer leitu- Vejamos agora uma leitura possível de Vestido de ras analíticas possíveis: a partir de um poema de baile, da artista plástica Nazareth Pacheco. Augusto de Campos? e de uma obra de arte visual de Nazareth Pacheco. uma vez uma fala uma foz uma vez uma bala uma fala uma voz uma foz uma vala uma bala uma vez uma voz uma vala uma vez Trata-se de um poema concreto, portanto sua forma visual tem tanta importância quanto a forma sonora para a construção da significação. O que vemos? Palavras dispostas na folha f~ITnando dois ângulos agudos; o primeiro voltado para a direita e o segundo, para a esquerda. O eixo direita-esquerda é dado pela centralidade das palavras "uma vez" que se repetem, dando início e fechamento às figuras dos ângulos. Esse texto, escrito em 1957, faz parte da segunda fase do movimento concretista, na qual o desejo era compor um poema que, usando a fragmentação de palavras, ideias ou frases, esgotasse as possibilida- des combinatórias das palavras ou temas usados, do modo mais sintético possível. No poema, além da repetição do pronome "uma", o poeta usa dois outros grupos de palavras que man- têm semelhanças sonoras entre si: vez, voz, foz; e fala, bala, vala. Se considerarmos cada ângulo sepa- radamente, a sequência das palavras é exatamente a mesma. Entretanto, a sobreposição que acontece entre a quarta e a sétima linhas nos leva a ler linear- mente as duas metades, complementando o sen- tido: uma vez uma bala, uma fala uma voz, uma foz uma vala, uma bala uma vez. Do ponto de vista conotativo, a expressão "uma vez", que dá nome ao poema, nos remete à narra- tiva de histórias, unindo, neste caso, uma fala, uma voz, uma bala, uma vala, uma foz. Ou seja, a vida de alguém - a fala e a voz - ea bala que corta essa vida, levando-a para a vala, o fim. A visualidade do poema sugere dois movimentos antagônicos, embora complementares: o da vida e o da morte. Vestido de baile. Nazareth Pachem, 1997- 7 CAMPOS. Augusto de. Em: SIMON. Iumna M. e DANTAS, Vinicius de A. (Org.). Poesia concreta. São Paulo: Abril Educação. 1982. p. 28. (Coleção Literatura Comentada) . ..... _=;;..] Unidade 7 Estética
  • 7. A existência das vanguardas, no entanto, é impres- encontram implícitas na obra. Por isso é imprescin- cindível à manutenção da fermentação cultural. No dível que façamos uma descrição detalhada, cuida- campo das artes, não podemos falar em progresso. dosa, a mais completa possível. O conceito de progresso envolve ideias de melhoria Finalmente, como na leitura de um livro, vamos e superação, absolutamente estranhas ao mundo levantar os significados conotativos de cada signo artístico. A arte do século XX ou XXI não é melhor e dos signos combinados entre' si. Ao se colocar nem pior que a arte grega ou renascentista. É ape- uma figura sobre um determinado fundo, combinar nas diferente, porque responde a questões colocadas determinadas cores, sons ou formas, associar uma pelo ser humano e pela cultura atuais. Os artistas de música a uma imagem, os significados de cada signo vanguarda são exatamente aqueles que levantam vão sendo alterados pelos significados dos outros essas questões antes que a maior parte da sociedade signos, formando um espesso tecido de significa- as tenha percebido e respondem-nas trabalhando a ções que se entrecruzam. linguagem e a forma sensível de suas obras. No levantamento dessas conotações, precisamos sempre levar em conta a época e o lugar em que a obra foi criada. Por exemplo, no Renascimento, o IJ O conteúdo unicórnio simbolizava a virgindade. Se desconhece- Interpretar uma obra de arte é buscar compreen- mos essa informação, a interpretação de uma obra dê-Ia e apreciá-Ia. Isso exige que melhoremos nosso desse período em que apareça tal símbolo será defi- nível atual de compreensão e apreciação. ciente. Por outro lado, além do significado conota- A interpretação da obra de arte, ou seja, a atri- tivo cristalizado, podemos encontrar outros signi- buição de significados pelo espectador, como vimos ficados a partir da perspectiva de nossa época. Por no capítulo anterior, se dá em vários níveis. O pri- isso, para podermos penetrar a significação mais profunda de qualquer obra de arte, são necessários meiro nível é o do sentimento, que já foi discutido. conhecimentos de história geral, de história da arte Sentir em uníssono com a obra, deixar que ela nos e dos estilos, da história dos valores e da filosofia leve e enleve, seguir seu ritmo interno são os modos da época em que a obra foi criada, a fim de poder- . próprios de decodificação que se dão na experiên- mos situá-Ia em seu contexto. Precisamos, também, cia estética. O sentimento apresenta-se como uma estar engajados no nosso tempo para podermos per- unidade não dissociável da experiência, isto é, ele só ceber o que a obra nos diz hoje. pode acontecer na presença da obra. É por isso que dissemos" que a arte nos traz o co- O segundo nível de interpretação se dá por meio nhecimento de um mundo e não somente o conheci- do pensar e envolve a análise cuidadosa da obra. mento de uma obra. A arte instaura um universo de Como se pode fazer essa análise? significações que jamais é esgotado e que ultrapassa Em primeiro lugar, precisamos fazer um levanta- em muito a intenção do autor. Esquematicamente, mento da forma, em termos descritivos. Para isso, é podemos representar esse processo da seguinte necessário conhecer alguns aspectos fundamentais forma: das linguagens artísticas. Por exemplo, a linguagem teatral difere da linguagem cinematográfica. Se for- mos analisar, portanto, um espetáculo teatral, pre- Universo de significações possíveis cisamos antes saber o que caracteriza a linguagem de uma obra específica do teatro. Em seguida, descrevemos a obra do ponto de vista denotativo, isto é, a partir do que realmente x: intencional idade do vemos ou ouvimos. Por exemplo, antes de perceber- x autor. mos que se trata do afresco Última ceia, de Leonardo y, h, W, n etc.: significados da Vinci, nós vemos, representados na parede, treze que podemos atribuir à homens atrás de uma mesa, de frente para nós, obra, sem desrespeitar sua agrupados três a três, exceto a figura central, com y, h, w, n proposta. determinado tipo de indumentária, fazendo tais o: significado arbitrário, gestos etc. Essa descrição dos signos que aparecem que não pertence ao na obra e de como se combinam é muito impor- '/ universo da obra e que não tante, pois vai nos fornecer dados para estabelecer- o podemos impor a ela. mos relações que não são tão evidentes, mas que se 6 Ver os capítulos 33, "Estética: introdução conceitual", e 35, 'Arte como forma de pensamento".
  • 8. o que vemos? Desse modo, a obra, que inicialmente parecia Esse é um objeto construído com fios de náilon, uma brincadeira, se enche de sentido, torna-se bela. miçangas e cristais transparentes e lâminas de bar- E nos emociona, enche-nos de alegria, de satisfação. bear de metal, pendurado em um cilindro de acrílico É o sentimento de completude. também transparente. O objeto assim descrito é um vestido, uma peça de vestuário, ligado, portanto, à vida cotidiana. II'QUEMÉ? Roupas, em geral, são utilizadas pelos seres Nazareth Pacheco e Silva nasceu em São Paulo, em 1961, formou-se em Artes Plásticas e deu humanos há muitos séculos, com a função de pro- continuidade à sua formação em Paris. Sua pri- teger o corpo das condições climáticas e da rudeza meira exposição individual foi em 1988, ocasião da natureza. Ao longo do tempo, além de ser prote- em que apresentou esculturas de longas fitas de ção, as roupas passaram a exercer outras funções: a borracha ou latão associadas a elementos pon- de conferir distinção social e econômica, conforme tiagudos. Em 1993, no Gabinete de Arte Raquel Arna ud, expôs vitrines-arquivos de materia I auto- o material de que são feitas, a marca ou o estilista biográfico. Na exposição coletiva Espelhos e som- que assina sua produção; a de tornar mais atraente bras usou instrumentos médicos destinados ao quem a veste; e a de esconder o corpo, entre outras. exame do corpo feminino como símbolos desse Neste caso, o uso dos cristais e a transparência da mesmo corpo. Embelezamento e tortura se mes- roupa nos levam a pensar em desfiles de moda, clam e se tornam tema de sua dissertação de ousadia, elegância, sofisticação, glamour e eventos mestrado. Em 1997, participou do Panorama da Arte Brasileira, no MAM de São Paulo, com cola- festivos, conotações confirmadas pelo próprio nome res e vestidos. Em 1998, sua apresentação na XXIV do objeto: Vestido de baile. O brilho dos cristais, das Bienal Internacional de São Paulo deu continui- miçangas e das lâminas atrai o nosso olhar. dade à produção de colares. Mais recentemente, A presença das lâminas, entretanto, ao mesmo entrou em nova fase de produção de objetos liga- tempo que nos atrai, também nos repele. Esse ves- dos à ideia de fecundação e das mutações que podem ser provocadas nos supostos embriões. tido não oferece proteção ao corpo, nem visual, por ser transparente, nem efetiva, já que a qualquer movimento o corpo pode ser cortado pelas lâmi- nas. Em vez de ser elemento de proteção, o vestido se transforma em ameaça e perigo. A atração que ele 9 A educação em arte exerce, portanto, é uma atração fatal. Se a interpretação de uma obra de arte depende Um elemento que está implícito nessa obra é o de termos conhecimento não só das várias lingua- corpo humano, ou melhor, o corpo feminino, para gens como também da história da arte, dos estilos o qual um vestido é feito. A pergunta que se impõe é: e dos movimentos, a educação em arte terá um a quais outros perigos o corpo feminino está exposto papel fundamental em nossa capacidade de com- no mundo contemporâneo? Ele pode ser cortado preender a arte. e recortado por operações plásticas para chegar a A educação em arte só pode propor um cami- se conformar com padrões estéticos da moda? Ele nho: o da convivência com as obras de arte. Aquelas deve se submeter a dietas e a sessões de exercícios que estão assim rotuladas em museus e galerias, as massacrantes para se adequar a um único modelo? que estão em praças públicas, bancos, repartições Ele precisa ser perfurado por piercings ou coberto do governo, nas casas de amigos e de conhecidos. de tatuagens para ser atraente? Também aquelas, anônimas, que encontramos às Podemos, ainda, pensar em outros significados vezes numa vitrina, numa feira, nas mãos de um conotativos e algumas questões podem ser coloca- artesão. As que estão em alguns cinemas, teatros, das a partir do que já foi analisado. Por exemplo: na televisão e no rádio. As que estão nas ruas: cer- será que o perigo é sempre muito atraente, mesmo tos edifícios, casas, jardins, túmulos. Passamos por quando a probabilidade de nos ferirmos é bastante muitas delas, todos os dias, sem vê-Ias. Por isso, é alta? Será que a proteção e a segurança têm de ser preciso uma determinada intenção de procurá-Ias, sempre contrabalançadas por uma dose de perigo, de percebê-Ias. uma vez que quem é muito protegido pode se tornar Quanto mais ampla for essa convivência com impotente para agir adequadamente quando neces- os tipos de arte, os estilos, as épocas e os artistas, sário? No último limite, a obra expõe a ambiguidade melhor. É só por meio desse contato aberto e eclé- da própria vida que transita entre a segurança (pro- tico que podemos afinar nossa sensibilidade para as teção) e o perigo. nuanças e sutilezas de cada obra, sem querer impor- A significação na arte Capítulo 36 l,_.
  • 9. -lhe nosso gosto e nossos padrões subjetivos, que devem ter ao escolher, para seus alunos e filhos, são marcados historicamente pela época e pelo as exposições ou mesmo as vivências artísticas em lugar em que vivemos, bem como pela classe social artes visuais, música, teatro, dança. É importante a que pertencemos. não infantilizar a cultura, menosprezando a capa- cidade de crianças e adolescentes, ou do público carente cultural, de compreender por meio do sen- Lembraremos, ainda, que é na frequentação da obra timento, de estabelecer diálogos imaginativos, de que a intersubjetividade pode se dar. É através dela buscar informação. que podemos "encontrar" com o autor, sua época e também com nossos semelhantes. É pelas veredas não racionais da arte que a frequentação permite m A importância de saber ler descobrir e percorrer, que nos "sintonizamos" com o uma imagem outro, numa relação particular que a vida cotidiana No mundo contemporâneo, vivemos cercados desconhece. Terreno da intersubjetividade, a arte nos por imagens visuais de todos os lados. Das indi- une, servindo de lugar de encontro, de comunhão cações de trânsito às propagandas, dos ícones do intuitiva; ela não nos coloca de acordo: ela nos computador à imagem televisiva e cinematográ- irmana." fica e aos graffiti, pichações, decalques e ilustra- ções nos muros, enfim, a imagem parece prevale- Em seguida, precisamos aprender a sentir. Em cer em nossa vida. Já se disse que a palavra perderá nossa sociedade, dada a importância atribuída seu lugar privilegiado na comunicação humana. à racionalidade e à palavra, não é raro tentar- Podemos discutir a validade dessa afirmação, mos enquadrar a arte nesse tipo de perspectiva. mas não podemos negar a importância que a ima- Assumimos, então, tamanha distância da obra que gem tem hoje. Por isso, aprender a ler a imagem, não é possível recebê-Ia através do sentimento. Por isto é, os modos como atribuímos significados a outro lado, o sentimento, como já dissemos, não é elas, é um passo que nos leva à compreensão mais a emoção descabelada. No sentimento, a emoção profunda de nossa sociedade e de nossa vida. é despida de seu conteúdo material e elevada a outro Dentre as imagens, destacamos as de arte por estado: retirado o peso da paixão, permanecem serem mais difíceis de decodificar, uma vez que o movimento e as oscilações do sentir em comu- a informação estética exige conhecimento especí- nhão com os objetos. fico de linguagens artísticas e de história da arte; Finalmente, já fora da experiência estética, conhecimento do contexto de produção da obra; podemos chegar ao nível da recepção crítica, da disponibilidade interna para entender a arte a análise intelectual da obra, do julgamento de seu partir de suas propostas. Além disso, ela é ines- valor, que é o trabalho do crítico e do historiador gotável em uma única leitura e não pode ser tra- da arte. Para essa tarefa, só a convivência com a duzida para outra linguagem sem perder parte de obra não basta. É necessário o conhecimento his- seu conteúdo. tórico dos estilos, da linguagem de cada arte, além Todas essas características fazem da atribui- de um profundo conhecimento da cultura que ção de significados às obras de arte uma tarefa que gerou cada obra. necessita de aprendizado específico, que se dá na Por tudo isso, fica claro o cuidado que o edu- convivência com elas, educando nossa sensibili- cador, seja ele de museu ou de escola, e os pais dade. Essa é a grande tarefa de pais e educadores. 8 COLI, Jorge. o que é arte. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 126. (Coleção Primeiros Passos). Unidade 7 Estética
  • 10. Leitura complementar Interpretação "A obra de arte é divergente, sua interpretação é impossível, ou sua interpretação é uma sofisticação: o programa de sua abordagem só pode ser investigativo, não expli- cativo." Para a obra de arte, o processo de aproximação é a hermenêutica, que se jus- tifica quando o que está em jogo é uma multiplicidade de sentidos (a confusão: vários sentidos fundidos num bloco não analisável, isto é, não divisível: o individual é o não discreto," aquilo que não se pode determinar) e, pode-se dizê-Io, de interpretações. A /"111IIII'" figura emblemática, aqui, é Hermes: seu campo de sentido, seu território semântico, é divergente, sua identidade não é cumulativa, nem oposicional: é flutuante: é de iden- tificação e posicional: dependendo da situação é uma coisa, dependendo da situação é outra: Hermes, mensageiro dos deuses, filho de Zeus, conduzia as almas dos mortos pelo reino inferior, o submundo, e tinha poderes mágicos sobre os sonhos e o sono; e, não mas porém e (quer dizer, apesar disso ou por causa disso) era o deus do comércio, senhor da boa sorte e da riqueza; uma figura perigosa, porém(a arte é perigosa, a arte é um perigo), um simulador e um ladrão - o deus dos ladrões, na verdade: no mesmo dia de seu nascimento, roubou o rebanho de seu irmão Apoio e ocultou as pegadas dos animais fazendo-os andar para trás; buscando reconciliar-se com o irmão, Hermes deu-lhe a lira, que ele mesmo inventara ao pegar um casco de tarta- ruga, abrir-lhe os buracos, e sobre elés esticar umas tantas cordas - nove delas, uma para cada uma das nove Musas, inspiradora de todos os artistas: [...]. Então Hermes é o deus da arte, da ideia da arte, da forma da arte, da possibilidade da arte - de tudo que exige perícia e destreza: conduzir as almas e roubar, vender e criar instrumentos de prazer; na primeira antiguidade grega era representado como um homem maduro, com barba; na arte clássica helênica, como um jovem desnudo e imberbe. Não posso interpretar Hermes de modo unitário, não posso esclarecer o sentido de suas ações: posso investigar como ele agencia o sentido em determinada de suas ações, em certas circunstâncias, em oca- siões específicas: não há um programa para Hermes, não há uma política cultural para Hermes porque Hermes não é cultural: Hermes é a exceção à cultura ... Aqui cada um se abre para o mundo conforme sua própria compreensão do mundo, sua experiência do mundo, a partir de seu código de valores (na interpretação cultural, a experiência é dos outros, dos antecessores): isso não significa que todas as opiniões tenham o mesmo valor: a maioria se equivoca ou quer enganar: mas aqui há certamente mais alternativas que Escultura em bronze na cultura, na interpretação [...]." representando Hermes, conhecido como Mercúrio NETTO, José Teixeira Coelho. A cultura e seu contrário. na mitologia romana. São Paulo: Iluminuras/ltaú Cultural, 2008. p. 148-149. Giovanni de Bologna, c. 1576. > Questões 11 Procure o significado de "hermenêutica''. No que ela é diferente da interpretação? 11 Por que, segundo o autor, não se pode interpretar a arte? •• Ouais são os vários sentidos de Hermes, expressos em seus diversos papéis? 11 Explique a frase: "Então Hermes é o deus da arte, da ideia da arte, da forma da arte, da possibilidade da arte - de tudo que exige perícia e destreza". 9 Ver,entre outros, o poeta espanhol (nascido em 1931) Antonio Gamoneda: "Ante un poema, mi estado favorido de conciencia es Ia confusíón". Em: El País, 3 ago. 2004, p. 40. O Discreto: contínuo, não separável. leitura complementar Unidade 7
  • 11. > Revendo o capitulo 1m Comente este texto de Ferreira GuUar com base na discussão sobre conteúdo e significação da 11 Como se caracteriza a informação estética? obra de arte. IJ Explique o que é a função poética e dê um exemplo. "Não resta dúvida que o caminho percorrido pela S O que são as vanguardas artísticas? Qual seu papel? arte nos últimos cem anos tendeu preponderan- temente à eliminação do tema, a começar pelo 11 Ouais os passos para se analisar uma obra de arte? tema literário: as cenas mitológicas, alegóricas ou históricas foram banidas da pintura pelo impres- I) Qual a importância da educação em arte? sionismo. O artista se voltou para a realidade obje- tiva: as paisagens e as cenas da vida moderna. > Aplicando os conceitos Esse defrontar-se com o presente é um defrontar-se A partir da leitura do texto abaixo sobre a peça com o devenir: Degas capta os gestos das baila- teatral "Arte", responda às questões de 6 a 9. rinas que dançam, Monet capta a luz cambiante da paisagem. É uma pintura onde não há heróis, "Arte" discute a amizade masculina não há história, não há mitos: o artista elabora as "Sérgio paga R$ 50 mil por um quadro completamente sensações que lhe chegam do mundo que ele vê." branco. Marcos, seu amigo há 15 anos, fica inconfor- (Sobre arte. Rio de Janeiro: Avenir, 1982. p. 9-10.) mado com a atitude e provoca uma briga, o que coloca em risco a amizade. Ivan, um terceiro amigo, e tam- > Caiu no vestibular bém o mais frágil, entra em cena para impedir que a amizade termine. Acaba levando a pior. m (Fuvest-SP) Observe esta gravura de Escher. 'A arte escolheu um caminho que acabou afas- tando as pessoas. Essa ídeia de desmaterialíza- ção, de abstração, acaba colocando o artista como um ser superior, incompreendido, o que incomoda cada vez mais o público', diz Kátia. 'Dizer que entende determinada obra pode significar uma maneira de ser esnobe.' Leda afirma que a arte contemporânea pode ser muito provo cativa: 'Muitas vezes, os trabalhos causam polê- Mãos desenhando, micas incríveis por causa de sua busca pelo novo. M. C. Escher, Depois, passam os anos e todo mundo entende.' 2°°9· O critico de arte lacob Klintowitz acredita que são Na linguagem verbal, exemplos de aproveitamento as interpretações da arte - e não a obra em si - que de recursos equivalentes aos da gravura de Escher podem desencadear um conflito." (Ana Paula Ragazzi. encontram-se com frequência, Folha de S.Paulo, 5 set. 1999. Acontece. p. 3.) a} nos jornais, quando o repórter registra uma ocor- D Qual a razão do conflito que se estabelece entre rência que lhe parece extremamente intrigante. os três amigos? b) nos textos publicitários, quando se comparam dois produtos que têm a mesma utilidade. IJ Analise a resposta da curadora Katia Canton c) na prosa científica, quando o autor descreve a partir dos conceitos de gênio (veja o tópico com isenção e distanciamento a experiência "Romantismo", no capitulo 37) e de gosto (veja de que trata. capitulo 35). d) na literatura, quando o escritor se vale das IJ Analise a resposta da artista Leda Catunda (veja palavras para expor procedimentos construti- uma de suas obras no inicio do capitulo 37) a par- vos do discurso. tir do conceito de novidade. e) nos manuais de instrução, quando se organiza 11 Analise a resposta do critico de arte lacob Klintowitz com clareza uma determinada sequência de fundamentada no conceito de interpretação. operações.